Um texto sobre sexo na ficção.

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Meus caros leitores… vamos falar de putaria?

Esse é um texto que eu já quis fazer várias vezes sob várias perspectivas diferentes, sempre muito motivado por como o sexo é encarado quando encontrado em uma obra de ficção. O sexo foi um grande tabu por muito tempo, e ainda é um tabu, tanto na ficção quanto na vida em geral.

Sexo é condenado na igreja e nos discursos políticos. As pessoas ainda oprimem e atacam pessoas baseadas em atração sexual pelo mesmo gênero. E tudo o que não é sexo ativamente reprodutivo tem uma conotação bizarra de inapropriado, incluindo atos que deveriam ser as preliminares, como o sexo oral.

Recentemente a DC passou esse vexame de proibir que a série animada Harley Quinn, dissesse que o Batman já fez sexo oral na mulher gato, pois heróis não devem fazer sexo oral em suas parceiras. Enquanto Harley e Ivy estão mais livres para fazer essas coisas, por serem duas vilãs, e poderem realizar atos moralmente questionáveis.

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E vai sem nem dizer que a série é para maiores de dezoito, e está indo para sua terceira temporada tendo sido sempre repleta de referências sexuais. Mas mesmo nesse espaço, a ideia de um Batman chupar a namorada cruzou uma linha moral. Pois envolveu um herói. E heróis não fazem isso.

Pra deixar bem claro! É nessa série aqui que o Batman não pode chupar mulheres. Na série que teve essa cena! Essa cena já tem sexo oral implícito.

Pois se heróis começarem a dar praticar sexo oral, como é que vão vender os bonequinhos dele? E eu acho isso bizarro. Eu acho bizarro alguém querer ter um bonequinho de alguém que nunca chuparia a pessoa com quem dorme. Como que essa informação pode agregar algo positivo na admiração por alguém? Tipo pior que alguém que fica desconfortável sabendo que ele chupa é alguém que fica mais confortável com a certeza de que ele não chuparia. 

Eu quero falar sobre isso. Sobre o Batman não podendo dar prazer pra mulher gato sob o risco de perder seu heroísmo e também sobre piadas “adultas” em desenhos infantis. Além disso quero falar sobre as críticas de que a cultura pop atual tem um excesso de cenas de sexo desnecessárias, como se as cenas não-sexuais fossem absolutamente necessárias. Eu quero falar sobre a história da menção sexual em Hollywood, e quais grupos controlam quanto sexo é apropriado de ser referenciado e quanto não é. Eu quero falar sobre a relação do Sexo com seus dois irmãos, as Drogas e a Violência no que diz respeito a sua menção em histórias. Quero falar de tato e maturidade nas cenas de sexo que existem. Eu quero falar sobre o fandom que projeta sexo nas coisas e enche de sexo fanfics e fanarts sobre personagens em obras castas. E eu precisamente quero falar de como essa noção de policiar sexo na maneira como se consome cultura pop se intercala nas tentativas de trazer representatividade de personagens mulheres e lgbt na cultura pop.

Eu quero falar sobre muita coisa! Esse texto vai ser enorme e condensar um monte de pequenas discussões que você encontra espalhadas por aí que são todas ramificações de uma grande discussão. Que é: Em 2022 como é que a gente lida com a noção de que alguns dos nossos personagens favoritos transam?

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E mais do que trazer respostas, e guias, eu quero trazer reflexões, contexto, conectar alguns pontos que costumam aparecer desconectados, e eu espero que esse texto não encerre o debate, e que ele seja continuado, pra isso a sessão de comentários existe.

Também quero lembrá-los de que o Dentro da Chaminé possui uma campanha de financiamento coletivo no apoia.se. Eu não conto histórias de que o apoio é a única coisa que mantém o blog no ar, pois eu amo esse blog, e eu me vejo no futuro fazendo todos os meus esforços pra manter o blog no ar e com todos os textos gratuitos mesmo se eu estiver na pior situação possível. Mas, mesmo assim, eu não quero que seja tão difícil assim, e o apoio de vocês ajuda muito a não ser. Eu vejo esse blog como trabalho, e um do qual eu tenho bastante orgulho, por isso significaria muito se esse trabalho pudesse ser apoiado com o valor que vocês acharem justo. Se não puder apoiar mensalmente, você também ajuda muito o blog se fizer uma doação de qualquer via pix para a chave franciscoizzo@gmail.com.

Mas é claro que interagir, comentar e compartilhar esse texto já é um tremendo de um apoio, pois afinal estamos aqui pra trocar e divulgar ideias.

Eu sou muito grato a todos os que já me ajudam, e por isso esse texto é em homenagem a esse elenco fantástico e a diferença que faz. Espero que todos gostem do texto.

Então vamos começar.

Parte 1: Personagens de histórias infantis transam?

Vamos lá, quando você vai ver um filme legalmente, seja no cinema, no streaming ou em um Blu-Ray, você provavelmente vai poder identificar em algum lugar, um simbolozinho falando quais idades podem ver o filme. Alguns são livres, alguns são pra maiores de 10 anos, alguns para maiores de 12 anos, alguns para maiores de 14 anos, alguns para maiores de 16 anos, e outros pra maiores de 18 anos. 18 é o nível máximo e passando dos 18 você pode ver qualquer filme…

Os elementos que decidem o quão velha uma pessoa precisa ser pra poder ver um filme são três: sexo, drogas e violência. Se os personagens não mencionam a existência de sexo, drogas e não se envolvem em violência, então o filme é livre… mesmo se o filme for 2002: A Space Odissey. Não é um filme que interessa a crianças, mas como ninguém sangra, ninguém fuma maconha e nenhuma mulher mostra os peitos, o filme é livre.

Tem muito filme que é mais infantil e também mais impróprio.

Naturalmente tem loopholes e todo mundo já viu filmes com sexo, drogas e violência que pegaram a censura livre. Alguns se esconderam de verdade e são passagens que o expectador distraído não nota. Mas outras simplesmente tiraram vantagem de que pessoas diferentes consideram sexo, droga e violência, como coisas diferentes.

O vilão precisar ser derrotado através de uma luta física e troca de socos e chutes raramente vai ser encarado como algo impróprio pra crianças. Limites são traçados no uso de armas de fogo, ou no quão machucado quem sofreu a violência fica, e especialmente no uso de sangue. A trilogia Dark Knight do Nolan é notória por ter sido considerada apropriada para crianças de 13 anos, por não ter nenhuma cena de sangue e, portanto, conter somente violência leve. No geral a ideia de que é preciso lutar e socar um vilão para poder detê-lo não cria uma conotação de que a obra contém violência.

Drogas são as ilícitas. Antigamente qualquer obra continuaria infantil e não teria sua classificação indicativa afetada mesmo com a presença de álcool e cigarros, desde que consumidos pelos adultos. Hoje álcool e cigarros já afetam a classificação indicativa, mas qualquer trama narrativa descrevendo: estado de alteração mental depois do consumo de substâncias, vício, dependência ou abstinência, não são considerados como drogas, desde que a droga em si não seja reconhecida como um produto que crianças não deveriam consumir. Então mostrar drogas é não-infantil, mas mostrar chocolate tendo o exato efeito da droga na vida do personagem não é. Pois o problema não é a dependência, é só a criança não ver pessoas consumindo produtos reais que sejam drogas.

Prestem atenção em quantos personagens secundários que associam muito de sua personalidade ao amor por café, não estão escondendo algo maior.

E amor romântico, atração física, flerte e beijo na boca são completamente ok de se aparecerem em desenhos infantis…. desde que o casal seja hétero! Essa barreira está sendo quebrada enquanto falamos, mas estar no processo de estar sendo quebrada não significa que é coisa do passado. E justamente, a existência e manifestação de uma galera que tenta acusar um desenho como Owl House de ser mais sexualizado que a média por causa de um beijo entre mulheres é parte do que eu quero que fique visível com esse texto. O beijo na boca homossexual é considerado por pessoas que controlam essas classificações como uma extensão do ato sexual, e como uma atividade de natureza sexual. Mas o beijo hétero é mais que liberado.

Crianças não foram educadas sobre sexo, ou pelo menos o protocolo social é presumir que não foram e se virmos uma criança que saiba mais do que devia, espera-se que a gente não dê corda.

Eu pessoalmente tive educação sexual na escola de uma maneira bem completa. Eu tive livros didáticos de educação sexual, e por um semestre inteiro educação sexual foi uma matéria extra na minha quarta série, duas aulas por semana, sempre no mesmo horário, tinha prova e tinha nota. Eu sei que isso não é a norma, que a maioria das escolas do país não tem aula de educação sexual, e que muitas tem, mas é o mínimo possível que eles passam e com um foco de “vamos acabar logo com isso”. Isso é uma noção que eu tenho hoje. Na época não parecia algo muito fora de lugar a escola explicar pra gente pelo que íamos passar na época em que a puberdade estava começando a atacar alguns de nós. Inclusive, sempre bom lembrar, importantíssimo existir esse tipo de ensinamento nas escolas, especialmente para ajudar a criança a se comunicar na puberdade. A noção de palavrões, palavras feias sendo quase todas palavras sexuais, deixam as vezes a criança sem vocabulário para poder falar sobre pelo que ela está passando, e ganhar vocabulário e maneiras de falar desses assuntos na escola ajuda a crianças a denunciarem abusos que ocorrem na própria casa e todo mundo sabe disso. Enfim, sempre importante lembrar.

Eu não sei e nem imagino, se essa decisão de currículo gerou briga ou não entre os pais das outras crianças, ou como foi esse processo, pois não chegou até mim essa briga, pois eu era a criança e quem brigam são os adultos.

Enfim, antes de passar por esse assunto na escola eu sabia muito pouco sobre esse assunto. Mas ao mesmo tempo eu sabia o suficiente para entender muita piada suja. Eu sabia especialmente que tinha um enorme assunto na comunidade adulta do qual ninguém podia falar na minha frente. A gente nota essas coisas. Algumas crianças sabem supor o que estão escondendo delas melhor do que outras, mas elas notam, que tem uma parte da vida dos pais das quais eles gostam de falar, mas só quando não tem crianças na sala.

Existe um distanciamento entre o mundo das crianças e o mundo dos adultos. E os filhos entendem parcialmente e sem contexto que seus pais fazem algumas coisas. Que eles bebem bebidas que nós não podemos beber, seja álcool ou seja café (café é exceção em algumas casas, sob alguns contextos e em algumas culturas), que eles riem de piadas que não entendemos e que alguns adultos adoram peitos e bundas de maneira hipnótica que beira o sobrenatural. Os filhos sabem que fotos de mulher pelada são uma coisa que muita gente quer ver, mas que as crianças especificamente não podem. Isso gera uma série de mistérios e estranheza no mundo adulto.

E quando uma obra de público-alvo infantil quer colocar a perspectiva infantil na série, os roteiristas deliberadamente usam sexo para retratar como essa estranheza funciona.

O avô do Tommy Pickles alugou um filme do Reptar pra eles, e um filme chamado Beldades Espaciais Solitárias, mas que esse era pra ele ver depois que as crianças estiverem na cama. E você vai achar essa cena mencionada em várias listas de “Piadas que somente os adultos entenderam dos desenhos da sua infãncia.” Ou “Piadas que te fazem questionar se o desenho era realmente infantil”. Mas convenhamos: somente um adulto entende a piada? A gente precisa virar adulto para saber que nosso avô gostava muito de ver mulheres seminuas?

Isso vale pro avô de Hey Arnold, prestes a contar a história de quando ele precisou dormir em uma fazenda, mas o fazendeiro não estava, somente as suas três filhas. Ele dormiu no celeiro, mas uma das filhas foi até o celeiro no meio da noite ver ele. E aí ele é interrompido por outro adulto que pergunta se ele quer mesmo continuar essa história na frente das crianças. O avô disfarça e fala que continua a história de noite…. mesmo uma criança que não consiga entender as implicações de como seria a noite do avô, consegue reconhecer a situação em que um adulto desiste de terminar a história, pois você está ouvindo.

A internet adora listas de “esses desenhos eram todos muito mais adultos do que lembravam”, mas esses desenhos estão usando a sexualidade dos adultos para fazer os personagens infantis, que são a perspectiva, viverem situações familiares aquelas que nós vivemos na infância. Alguns adultos escondem melhor a vida sexual do que outros, mas raríssimos são os que escondem completamente, não deixam pistas e não geram em seus filhos nenhum sentimento de que eles estão excluídos de alguns assuntos.

Essa divisão do mundo adulto com o infantil fica mais intensa se for uma série em que as brincadeiras de faz de conta e a imaginação são levadas a sério. Pois crianças incorporam muitos elementos do mundo adulto nas suas brincadeiras por razões estéticas e não práticas. Me aponta qualquer brincadeira de faz de conta de velho oeste em uma série infantil, e necessariamente vai ter a cena das crianças reproduzindo o saloon. Mesmo que tudo o que se tem pra fazer em um saloon (beber, apostas e observar mulheres em vestidos provocantes dançarem) não sejam coisas de crianças. Elas colocam essa estética nas brincadeiras.

Você vê um episódio de desenho das crianças brincando de detetive, e os personagens vão encarnar o arquétipo de detetive durão e femme fatale e falar no tom com que se falam nesse tipo de filme, é parte da brincadeira… aliás nem sei porque eu fui tão longe quanto um cenário comum de brincadeira tanto em séries infantis quanto na vida real é as crianças brincarem que estão casadas. Eu já brinquei de casinha e de boneca na minha época, eu fui um menino que tentou fazer amizade com meninas, e olha… as brincadeiras ali tinham muito marido traindo a mulher, muita briga e muita imitação de novela. É assim que criança brinca de faz de conta, fingindo que pertencem a cenários adultos.
…e as vezes as crianças não sabem as implicações dos cenários que imitam e observam em seus pais e tios, mas os adultos transam. Isso é algo tão imerso no imaginário do que um adulto faz, que muita gente considera a perda da virgindade um rito de passagem pra vida adulta… quem aqui assistiu Big? Filme em que o Tom Hanks vira um adulto, mas continua com o coração de uma criança, agindo como uma criança em toda situação, mesmo em seu trabalho. Mas no instante em que ele dorme com uma colega de trabalho, ele passa a tomar café, levar o trabalho a sério e querer distância de assuntos infantis.

E o ponto de eu trazer isso pra cá e colocar logo nos primeiros exemplos do texto é para lembrar de algo importante: Sexo e sexualidade são elementos que constroem uma parte muito importante do mundo e da vida no mundo real. E isso não afeta somente as pessoas que realizam o ato. Até mesmo as pessoas que mal foram educadas sobre a existência de sexo e possuem um conhecimento bem sem contexto sobre como essas coisas funcionam, estão expostas a um mundo formado por sexo, entre outras coisas. E interagem com um mundo onde sexo é parte dele.

Existe uma visão de mundo hegemônica que determina papéis de gênero e uma noção do que é a vida adulta que gira em torno de sexo, e essa visão de mundo não é legal, eu tenho muita coisa contra ela, mas ela é poderosa e ela guia muito da vida de muita gente. Tanto das pessoas que se enquadram nessa visão de mundo quanto nas que questionam e combatem ela. E essa visão de mundo é imposta pra crianças. Crianças são heteronormativizadas a acreditar que é natural pra meninos e meninas ficarem juntos. E meninos são ensinados desde muito cedo que quando eles crescerem eles vão beijar meninas. E isso é a visão de sexo do mundo sendo exposta pra crianças. Isso não é um assunto separado de sexo.

O ser humano é uma espécie de animal que transa, tanto como método primário de reprodução e como o plano A para todo mundo que quer ter um filho, mas também é uma das raras espécies que transa por prazer. O ser humano não tem cio, não temos a época do acasalamento pra nossa espécie, pois espera-se que transemos com frequência e uma hora vai fazer o filho. Dito isso, nem todo mundo transa, nem todo mundo transa pra se reproduzir, pessoas incapazes de se reproduzir não necessariamente param de transar e muita gente transa exclusivamente com parceiros com quem não irão se reproduzir. O sexo tem um papel social que vai além dos filhos e esse papel. E em qualquer obra de ficção contendo adultos, os roteiristas vão partir do pressuposto de que boa parte desses adultos tem vida sexual, mesmo em obras com protagonistas sem vida ou conhecimento sexual.

Geralmente se você apontar uma cena de, por exemplo, Turma da Mônica, em que fique implícito que os pais do Cebolinha transam, provavelmente a internet inteira vai gritar “Porra, Maurício”, e “Meu Deus”, e “Que errado”, e “Minha infância”, “Olha esse trauma” e vários outros comentários de que aquela cena está fora de onde devia estar e se perguntando “Como é que isso passou?”. Mas na real é cenas assim que firmam a Turma da Mônica em uma espécie de infância identificável, em que as diferenças entre crianças e adultos são as mesmas do nosso mundo, mesmo o mundo da Mônica seja mais doido.

Essas reações, especialmente as sugerindo de que a ideia do pai do Cebolinha e a mãe do Cebolinha transarem enquanto o Cebolinha não olha, tem menos a ver com se o leitor infantil vai realmente entender a implicação, e mais sobre como o sexo ainda pode ser um assunto chocante e desconfortável para muitos adultos.

Afinal de contas por que fazem tantas listas para tentar explicar que os desenhos animados têm cenas de sexo como se isso fosse surpreendente? Por que a ideia de que os pais dos protagonistas transam causa choque?

Para pensar isso vamos falar sobre como historicamente existiu um esforço grande para que adultos não vissem cenas de sexo nos filmes.

Parte 2: Sexo, proibido para maiores.

Um dos filmes mais famosos de todos os tempos é o filme estadunidense de 1942, estrelado com Humphrey Bogart e Ingrid Bergman, vencedor do Oscar de Melhor filme, conhecido como um dos exemplos principais de como Hollywood se tornou uma máquina de propaganda anti-nazista durante a segunda guerra mundial, e por metade das falas filme terem virado alguns dos quotes mais repetidos do cinema. É um filme grande… agora eu vou falar o final do filme.

É nesse texto terão spoilers de Casablanca, começando já no parágrafo que vem. Se liga nesse spoiler:

No final do filme, Rick Blaine se despede de sua amada Ilsa, eles estavam apaixonados, mas Ilsa era casado com o herói da resistência ao nazismo Victor Laszlo, e Victor não poderia ter o coração quebrado na hora de enfrentar os nazistas. Quem toma essa decisão é RIck que fala que o que está em jogo na guerra vale mais do que o drama pessoal de três pessoas, e manda Ilsa ir com o marido que ela estava prestes a deixar. Ilsa e Laszlo se vão, e Rick fica pra trás, melancólico, mas satisfeito.

Esse final é clássico e bonito. E um exemplo de uma decisão tão popular que é até bizarro que eu queria usar de exemplo pro que eu vou falar, pois muita gente vai falar “ficou melhor assim”. Mas eu vou usar esse exemplo, para mostrar como filmes grandes eram regrados por isso. Nunca foi possível o final de Casablanca ser outro. Muita gente acha que foi surpreendente ou anti-intuitivo que o casal principal não ficasse junto. Mas Ilsa era uma mulher casada, e era a heroína do filme, e para ela poder ser a heroína do filme era uma regra que ela não pudesse cometer adultério, e que ela não traísse Victor Laszlo. As únicas opções dela eram: ou ser fiel ao marido e quebrar o coração de Rick, ou trair o marido, se revelar uma vilã antagonista, e ser morta no final.

Tanto que no filme ela tem um caso com Rick em Paris, mas o filme remove qualquer menção ou qualquer cena que deixe implícito que esse caso era sexual. Fica implícito de qualquer jeito….pois era um maldito caso! É o que pessoas que estão “tendo um caso” fazem. Mas apesar do mero contexto da situação deixar implícito, qualquer pessoa que quiser insistir que Ilsa e Rick nunca transaram não vai ser desmentida por nenhum momento do filme. Pois se Ilsa e Rick transassem, mesmo que offscreen, o filme quebraria uma regra.

E não era um acordo implícito ou uma regra não-escrita. Era uma regra escrita, um código vulgarmente conhecido como Código Hays, nome verdadeiro: The Motion Picture Production Code.. O código ditava regras de que conteúdo um filme poderia ter ou não para poder ser distribuído. O código era aplicado pela organização que na época chamava MPPDA (Motion Pictures Producers and Distributors of America) e hoje chama MPA (Motion Picture Association), e consiste em uma união para atender os interesses do que na época eram os cinco maiores estúdios de cinema dos EUA. Hoje a organização representa os cinco maiores estúdios de cinema e a Netflix. Como esses estúdios detinham monopólio e eram os donos das redes de cinema, eles garantiam que nenhum filme desrespeitando o código pudesse estrear.

O código resumidamente era escrito com forte influência da igreja católica, para fazer com que ações pecaminosas não fossem retratadas com luz positiva, e o pecador não recebesse a empatia do público. E o sexo era um pecado. O sexo só deveria ficar implícito caso fossem duas pessoas casadas. E mesmo assim, muita cena do casal em camas separadas. Sexo em outro contexto eles passavam a tesoura. Aliás beijos só poderiam durar no máximo três segundos para não ficarem pecaminosos. Três segundos era o limite entre o amor e a luxúria de satã. Naturalmente os roteiristas tinham muito sexo pra descrever, e muita ideia de filme que tinha sexo como um tema central, então eles usavam muita criatividade para poder indicar sexo sem ter que mostrar personagens sequer chegando perto de uma cama. O exemplo mais famoso que sempre é lembrado foi o que Hitchcock usou em North by Northwest em que quando os personagens se beijam em um trem no fim do filme, a câmera mostra o trem entrando em um túnel conforme os créditos começam.

Mas isso significa que nessa época foi onde Hollywood começou o famoso queer-coding, uma série de maneirismos e ações dados para um personagem para indicar para a audiência que o personagem é homossexual, sem nunca reconhecer ao longo do filme que homossexualidade sequer existe. Esses maneirismos e ações foram padronizados com o uso e viraram um atalho para fazer a audiência rapidamente entender a sexualidade dos personagens, e era deliberadamente usado para criar alívios cômicos, mas também vilões e facilitar a não-empatia do público pelo personagem. Personagens não podiam ser gays, mas essas brechas permitiam que vilões e pessoas abomináveis ainda pudessem ter maneirismos lidos como gay pra plateia entender.

O Código Hays foi enfraquecendo com o tempo, porque leis antitruste derrubaram o controle que os estúdios tinham de cinemas e permitiram aos cinemas agência e independência para exibir outros tipos de filmes. E a concorrência de filmes independentes e estrangeiros que podiam incorporar uma moralidade mais cinza, temas complexos e sexualidade começou a ter um apelo grande com o público justamente por ser algo que Hollywood não oferecia. E isso obrigou Hollywood a afrouxar o código e deixar algumas coisas aqui e outras ali passarem até o código ser abolido de vez em 1968, quando os Estados Unidos adotaram o sistema de classificação indicativa que eles usam até hoje.

A extinção do Còdigo Hays é a divisão que separa o fim da Era de Ouro de Hollywood e o começo da Nova Hollywood, dominada menos pelo poder dos estúdios e mais pelo poder dos diretores. E foi o que permitiu que figuras como Scorsese, Coppola, Brian de Palma, David Lynch, Ridley Scott, Estuprador Foragido Roman Polanski, Stanley Kubrick, entre outros pudessem fazer filmes nos próprios termos.

O que eu quero que a gente tire do código e de como entender o uso de sexo na ficção através dessa referência são três coisas.

Primeiro: A ideia do guia moral no filme não permitindo que o expectador visse sugestões de sexo fora do casamento, sexo por prazer, adultério, homossexualidade, fetiches, etc, não existia para proteger as crianças. Metade desses filmes não iam ser vistos ou apreciados por crianças de qualquer jeito. A ideia era proteger os adultos dessa imoralidade. E a ideia era impedir que pessoas que vissem sexo sob uma luz positiva recebessem empatia, e isso é importante de entender, pois isso é um problema. Não é questão de se o expectador transa ou não, é se o expectador é capaz de empatizar com a ideia de uma mulher tendo um affair, ou se ela será desprezada. Na ficção há um exercício de nos projetarmos e tentarmos espelhar nossas experiências, mas é também um exercício de empatia, de vermos o lado de personagens que não nos representam.

Usar a sexualidade feminina como maneira de fazer o público não ter empatia com uma personagem assassinada foi inventado nessa época.

Segundo: Cenas de sexo em filmes e séries estadunidenses foram uma conquista, com a qual teve briga, teve resistência, e só foi possível quando uma ação legal impediu que estúdios gigantescos que estavam muito alinhados a exigências da Igreja tivessem um monopólio grande demais no entretenimento. Muita gente hoje pensa que “Ah, mas hoje é tudo muito explícito, antigamente eles eram mais elegantes, eles deixavam subentendido”, mas o diretor que deixou subentendido, só fez assim, pois era o limite do quão longe ele conseguia chegar e era um ato de resistência e desafio ao código que proibia que o filme tivesse sexo. Billy Wilder desafiava o código o tempo todo, e a sutileza dele com o tema era a limitação obrigando a criatividade. Pensem nos protestos contra o governo na época da ditadura, algumas músicas anti-ditadura eram super criativas, elegantes e poéticas, pois eram obrigadas a ser, ou seriam proibidas. Mas isso não quer dizer que hoje, a gente precise ser poético e criativo para xingar o fascista da república sem ninguém notar. Sexo nos filmes é algo que nem sempre tivemos, e que podemos perder de novo, uma vez que o poder do cinema está saindo da mão dos diretores e voltando pra mão dos estúdios, as leis que derrubaram o Código Hays caíram, e a Disney está aí impondo restrições morais a respeito do que pode ou não mostrar em seus filmes, o que me leva ao terceiro ponto.

The Apartment foi um filme ousado que só foi feito porque o código já estava frouxo nos anos 1960.

Terceiro: O legado do código hays está vivo. O código saiu de uso, mas seus efeitos se dissipam mais lentamente. O uso de queer-coding como maneira de condenar e indica vilania de antagonistas associando-os com homossexualidade continuou vivo na indústria por décadas, de maneira muito famosa, nas mãos da Disney. E no que diz a respeito de como o cinema retrata mulheres, o cinema que existia antes do Código Hays é até hoje um exemplo de retratação de mulheres livres que intimida os filmes atuais. De filmes permitindo que suas protagonistas abortem, sejam bígamas, assumam carreiras, sejam bissexuais e se vinguem de maridos abusivos. Claro, que o cinema sem censura de antes do código era livre pra todos, e esses filmes coexistiam com filmes retratando misoginia sem precedentes. Mas existem filmes ousados em relação a sexualidade e a normalização de conceitos como homossexualidade, bissexualidade, poligamia, aborto, divórcio, que alguns demoraram pra se tornarem parte da norma após o fim do código, e outros não se tornaram a norma até agora.

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Ou seja, nem tudo o que o código eliminou foi recuperado ainda.

Agora o código não veio do governo, veio da união dos estúdios para se prevenir de críticas, críticas do governo, da população conservadora, da igreja, e nosso entretenimento até hoje existe visando muito evitar críticas. Agora mais que nunca com as redes sociais permitindo que a parte mais vocal dos consumidores seja a mais indignada.

Uma crítica comum que se nota em obras do presente tem a ver com se cenas de sexo são necessárias. Se havia necessidade da cena pro filme. Se a cena agrega algo.

Parte 3: Sexo desnecessário? O que é necessário nessa indústria?

Eu acho que a relação da humanidade com proibições se assemelha a uma mola, em especial no que diz respeito a relacionar estilos de vida individuais e privados com moral, costumes e ética. Quanto mais as proibições e restrições impedem as pessoas de poderem manifestar sua sexualidade de maneira orgânica e natural esmagam uma pessoa para baixo, mais forte será o salto dela quando essas proibições forem enfim removidas. Nós testemunhamos mais de uma vez o efeito em que uma atriz mirim com contrato com a Disney foi obrigada a vender a imagem de si como o modelo infantil ideal e da menininha perfeita e exemplo de pureza para gerações, pois suas ações refletiam na Disney. Mas quando ela entrou na adolescência e se desassociou da Disney se tornou um alvo recorrente da mídia querendo enfatizar problemas com drogas, muito sexo, paparazzi achando foto sem calcinha. Britney Spears e Lindsay Lohan foram alvos recorrentes de uma mídia que perseguiu e expôs a maneira como elas experimentaram a chegada de sexo, álcool e drogas em sua vida como intensa, exagerada e como se a história dessas fosse a de uma criança modelo se corrompendo e indo pra tragédia. E então Miley Cyrus fez de sua sexualidade intensa meio que a marca registrada de sua fase pós-Disney, chocando as pessoas com a maneira como ela se expressa sexualmente de propósito.

É uma mola, a sexualidade reprimida explode. E a Disney é parte direta dessa repressão, mas nós também somos. Como eu falei, a mídia foi um agente ativo em como essas atrizes surtaram. E nós que achamos que “ex-atriz-mirim agora é uma adolescente e se divertiu na festa” é notícia sobre corrupção e consumimos essa história como loucos fomos agentes ativos nisso.

Enfim, o mesmo vale pra proibição de sexo na mídia. A gente observa com muita clareza como os anos que sucederam o fim da ditadura e o fim da censura no Brasil foram marcados pelo maior índice de putaria da história da televisão aberta. O que era o programa do Gugu, gente?

Então, quando as leis e regulamentações do que é conteúdo aceitável de se passar na televisão começaram a ficar mais frouxas com a TV a Cabo, isso começou a permitir que séries que nunca poderiam ser exibidas no passado ganhassem seu espaço. E a HBO é famosa por ter feito a festa e tirado alta vantagem de seu status de TV a Cabo com permissão legal de exibir conteúdo +18 em séries de TV para liderar o que é hoje conhecido como Prestige TV, com séries como Sopranos, The Wire, Breaking Bad, The Leftovers, Game of Thrones e Watchmen que se tornaram ícones e um novo tipo de série de televisão que dominou o mundo. Notórias por um foco maior que a média em qualidade de atuação, em roteiro e por uma dose imensa e não-filtrada de protagonistas imorais, violência, drogas e sexo. Importante notar, esse trio vem junto.

O sexo chamava muita a atenção. Chamava demais a atenção. Especialmente pelo senso de exclusividade, por ser uma coisa que você não pode achar em mais nenhum canal. Qualquer canal de TV podia oferecer LOST, mas The Sopranos era algo que ou existiria na HBO com a sua falta de restrições, ou não existiria em lugar nenhum. Muita gente ia atrás dessas séries só pra ver televisão mostrando cenas de sexo em vez de esconder a feiura do mundo. Agora se eles iam até essas séries pra ver peito e bunda, eles ficavam por causa da trama…

…só ver como ninguém tinha paciência mais pras cenas de sexo de Game of Thrones quando a história foi pro saco.

Eu chamo isso de “mel”. Mel é um elemento que você passa na sua série para atrair pessoas, para chamar a atenção, para fazer ela se destacar na multidão e para fazer as pessoas quererem ver algo ali. Aí uma vez ali, a série oferece muito mais coisa além do mel e você julga as coisas pelo todo, independente do que te atraiu. Colocar celebridades que só tem 5 minutos de cena no filme no pôster é passar mel no filme. Cenas de ação fodidas e coreografadas são mel. Cenas de dança são mel. Cameo e referências são mel. E sexo é mel. Eles estão ali pra pessoas que poderiam não ter atraídas para as demais cenas ficarem felizes mas que ganharam algo que gostavam e agora vão ver o pacote completo.

Enfim, aí a Netflix que é tão livre quanto a HBO começou a usar sexo como mel de muitas de suas séries. House of Cards e Orange is the New Black que estavam entre as primeiras originais do canal apostavam nisso pra atrair expectadores que procurassem algo que não se encontrava mais em lugar nenhum.

Avançamos 10 anos no tempo e agora esse mel parou de atrair as pessoas, começou a repelir na verdade e começou essa crítica comum sobre como as séries da Netflix e da HBO são repletas de cenas de sexo desnecessárias que não avançam a trama, não fazem diferença nenhuma e que dava pra cortar.

Séries como Elite, Euphoria e Sex Education começaram a ser criticadas em redes sociais por cenas de sexo desnecessárias e inúteis. Começou-se a falar sobre a necessidade de um botão que pula cena de sexo da mesma maneira que pula a abertura. E aí a gente entra em um território medonho… pois afinal o que é uma cena desnecessário.

Os cara fala “eles colocam aquilo só pra ser apelativo.” E eu acho que tem uma contradição entre uma cena estar ali para dar visibilidade, fama e chamar público e uma cena inútil. Eu não quero nem negar que as cenas de Sex Education e Euphoria possam não contribuir nada à trama, eu não ligo pra essas séries pra defender elas, eu não assisti essas séries e não são o tipo de série que eu assistiria para escrever um texto aqui, eu caguei pra elas, se vocês falam “a cena é um desperdício de tempo” eu acredito e vou tratar como se fosse mesmo.

Mas eu quero dar um passo pra trás e falar que “só pra chamar a atenção” é um motivo válido pra se colocar uma cena em uma obra. E ainda mais, “só porque eu posso” é outro motivo válido, especialmente quando a maioria das pessoas não pode. Por que um artista não usaria as armas exclusivas dele em sua obra?

Críticas baseadas em necessidade abrem uma caixa de pandora bizarra a respeito do que é realmente necessário. Pois a verdade é que nada é necessário. As cenas de sexo de Elite não necessárias ao roteiro? Galera, olha o roteiro de Elite, o roteiro não é necessário. E a verdade é que Elite não é uma série necessária. Nada é necessário. Os dois homens-aranha extras em No Way Home não eram necessários. O John Travolta dançando em Pulp Fiction não era necessário.

Quando julgamos essas obras com base no que é essencial e no que não é, passamos a ter uma visão muito pragmática da obra. As cenas não existem somente pra trazer informação que permita que você mova pra próxima cena. Porra, isso não é fórmula matemática. Storytelling é tom, é clima, é equilíbrio entre cena de tensão e cena relaxante. Storytelling é prazer, é controle das emoções do expectador, emoções como raiva, como medo, como felicidade, como tristeza…. e como o tesão, que é uma emoção tão válida quanto as outras.

Eu acho que quando a crítica é: “Mas determinada cena só existe pro expectador ficar de pau duro.”, eu me atrevo a falar que isso não é objetivamente um problema. Um número gigantesco de cenas existe pra isso, mas gera um pau duro metafórico. E por ser metafórico quem não tem pau também tem essa mesma reação. A cena do John Snow encarando os cavalos existe só pra deixar o expectador de pau duro. O Hulk batendo no Loki existe só pra deixar o expectador de pau duro. As danças em La La Land existem pra deixar o espectador de pau duro. Um ser humano tirar algum tipo de prazer pessoal de ver cenas de intimidade não é um problema de verdade, só vira um problema se envolver alguém em público com as mãos nos genitais. E vira outro tipo de problema, sem relação com o filme.

Essa cena existe só pra gerar tesão no expectador, pra nada mais.

A Horny Jail não existe gente! E ninguém tem que ir pra lá! E justamente, no instante em que uma cadeia imaginária simbólica é criada na internet pra separar quem tem tesão de quem não tem, que elementos puritanos começam a infestar o debate.

E essa crítica abrange muito tipo de obra também. Eu fui pesquisar quais cenas estavam sendo criticadas por terem sexo desnecessário e achei muita gente mencionando Matrix Reloaded e a cena de sexo do Neo com a Trinity. Uma cena de seis minutos do Neo e da Trinity se tocando em paralelo ao resto de Zion participando de uma Rave.

E assim… eu poderia vir falar sobre a dicotomia entre humanidade e máquina e como o prazer carnal e o contato humano que marcava a maneira como Neo e Trinity demonstravam o amor um pelo outro no mundo real como algo que servia para enfatizar o quanto eles eram separados e diferentes das máquinas e da tradição das Irmãs Wachowski de usar cenas de sexo para simbolizar momentos de liberdade, espontaneidade e de personagens agindo fora de uma regra de comportamento esperado para eles, visto tanto na cena de sexo entre duas mulheres em Bound como na cena de sexo da clone criada para não viver prazeres, Somni-451 em Cloud Atlas. Eu podia focar nesses pontos para falar que esse é um caso de cena de sexo trazendo mensagem, tom, e sendo parte do que forma a narrativa de Matrix.

Mas o que me pega de verdade é a cena ter só 6 minutos, e o filme Matrix Reloaded ter também 41 minutos consecutivos de uma cena de luta contra os gêmeos, que além de ter quase um terço da duração do filme focado só nessa cena de ação, ela é uma cena que não avança a trama em nada. Mas na época, ela foi a cena mais elogiada do filme… essa cena é o mel que levou a galera pro cinema, ver o quão impressionantes eram os efeitos de Matrix. E aí a turma que foi ali de pau duro pra ver os maiores efeitos da época ficou chocado com 6 minutos de namorados transando.

Eu acho que quando batemos em cenas de sexo procurando verificar se elas eram essenciais ou não pro filme, é fácil cair na hipocrisia de que ser repleto de cenas não essenciais que estão lá para excitar a plateia é o feijão-com-arroz de qualquer o filme. E que quando eles resolvem usar sexo, em particular, pra isso, as pessoas interpretam como um golpe baixo, como algo sujo, como algo covarde. O que é uma maneira de ver o sexo como um elemento anormal. Como algo que deve ser a exceção diferente de todas as outras formas de excitar o expectador.

As Bond Girls estão no filme só pra excitar o expectador? Com toda a certeza. As armas, os carros, os smokings também. Se o problema for a necessidade, a verdade é que essa franquia é só um gigantesco pau duro desnecessário. Nada é necessário nesse tipo de filme.
Agora o debate sobre objetificação feminina não passa por ver se o Bond seduzir mulheres é necessário ou não pro desenrolar da trama, passa por ver como o filme vende armas, mulheres, carros e roupas como elementos equivalentes no imaginário masculino.

E assim, não me levem a mal. Eu acho que tem um número muito grande de cenas de sexo que dá pra falar mal. Muita cena de sexo que dá pra falar que diminui a qualidade da obra. E eu mesmo nesse blog falo. Falei mal da maneira como as cenas de sexo de Black Sails e Game of Thrones objetificam o corpo feminino. Podemos falar isso. Podemos, e devemos, apontar misoginia, aspectos problemáticos, mal-gosto em cenas de sexo. E podemos também falar “essa cena de sexo é ruim”. Tudo isso não só é válido, é mais que bem-vindo para se falar da maioria das cenas de sexo.

Cena de sexo não é, e nunca devia ser, um ambiente que tem desculpa para reproduzir sexismo, normas de gênero escrotas impostas pela sociedade, e isso é ótimo de bater. Assim como ela pode só ser ruim. Ser chata. Ser mal filmada. Tudo isso é possível.

Mas uma crítica que não dá para fazer, é que a série ou filme em questão não precisavam de sexo. Pois não é sobre o que precisa ou não precisa. Game of Thrones ficou infame por fazer os personagens debaterem o lore e o roteiro enquanto transavam. Isso torna a cena relevante? O Litlefinger contar a história de origem dele pra um grupo de prostitutas nuas tornou a cena necessária de verdade? É esse o casamento entre sexo e roteiro que vocês querem?

Geralmente quando eu penso em cena de sexo necessária eu penso que existe um subtexto que nunca fica dito, mas sempre está lá que é: “o objetivo do sexo é bebês”. A cena da Sarah Connor transando com o Kyle Reese era essencial para explicar como o John Connor foi feito. Não podia ficar ambíguo que os dois escalaram sua tensão sexual pro ato em si. Mas Rose Dawon poderia ter tido a mesma jornada pessoal se não tivesse transado com Jack. Ela podia ter tido a mesma jornada pessoal se não tivesse nem mesmo beijado Jack, se eles fossem tão platônicos quanto Ilsa e Rick. Então dá para cortar toda menção a sexo de Titanic. Mas de Terminator se não houvesse nenhuma sugestão de sexo deixaria um furo no roteiro.

Mas sexo, reforço, não é só pra filhos, e é importante que seja por prazer. E Titanic é melhor por sabermos que Jack e Rose puderam dar prazer físico um pro outro, além de conforto emocional.

E assim, longe de mim não achar que menos é mais, eu elogiei aqui no passado e elogio de novo BoJack Horseman, que tinha a regra de um único uso da palavra fuck por temporada, mesmo a Netflix permitindo bem mais, e tinham também um fanservice praticamente nulo a respeito de como eles usavam o corpo das personagens femininas. E isso tudo é bom.

Mas foi um desenho com cena de sexo. Elas existiram, e mais que isso, foram com animais, tem cena de um labrador e uma humana transando. Mas o tom da série não era o de “vamos explorar o quão gostosa é a Diane”. É possível dizer inclusive que o retrato sincero de pessoas sofrendo depressão é o mel que os autores de BoJack Horseman pasaram na série pra te fazer ver cena de sexo furry.

O propósito da cena não era objetificar a Diane, mas mesmo assim eles escolheram não deixar nada implícito e mostrar onscreen como explorar o relacionamento da Diane com Mr. Peanutbutter envolvia explorar a vida sexual deles. Ah, e vai sem dizer, mas vou dizer mesmo assim. A gente só viu a cena da Diane com o Mr. Peanutbutter nesse nível de detalhes, pois a Netflix é uma rede sem restrições quanto a cenas de sexo, isso aí não teria ido pro Adult Swim. 

O que me leva a uma distinção que eu acho importante de fazer.

Parte 4: O que é sexo? E o que não é sexo?

Sabe um mangá que eu gosto muito? One Piece. Literalmente um dos maiores temas recorrentes do Dentro da Chaminé. Esse mangá tem muita coisa. Tem aventura, tem emoção, tem catarse, tem revolução, tem frases bonitas, tem mulheres bonitas, tem mulheres gostosas, tem mulheres com decotes provocantes, tem mulheres sem camisa, tem mulheres com proporções desumanas e hiperbólicas, tem nudez, e temos muitos personagens homens, babando e delirando quando olham o corpo dessas mulheres independente de se a mulher quer ser observada ou não no momento.

Sabe o que não tem em One Piece? Sexo! Mesmo se olhar no que está implícito você pode em 1050 capítulos contar nos dedos de uma mão todas as cenas que deixam implícito que qualquer personagem ali tenha vida sexual. Em 1050 capítulos tivemos só um caso genuíno que subtrama romântica em um arco. Ninguém se beija, ninguém se toca, ninguém namora. Crushes tem conotação cômica e não são levados a sério, além de serem unilaterais, beijos tem conotação de zoeira, e o amor pela aventura é maior do que histórias de amor. De verdade, o protagonista do mangá, Luffy, é amplamente considerado como assexual pela maioria do fandom, a jornada dele não lida com esses elementos.

Isso não é tratado com o tom de uma subtrama de romance. Só como piada. Não impede os shippers. Aliás, nem deveria impedir, tão certos os shippers.

E o autor explicitamente falou já que não coloca mesmo esse tipo de conteúdo em One Piece.

O que gera essa contradição. One Piece é um mangá com alto conteúdo sexual, por causa da alta e visível objetificação e apelação do corpo de suas personagens femininas? Mesmo com o sexo em si mal existindo?

Essa pergunta me lembra um dia em que meu pai biológico tentou se conectar comigo quando eu tinha 15 anos. Ele foi ler o mangá Dragon Ball, pois queria ver as coisas que eu gostava. E ao terminar o volume 1 da edição definitiva, ele me perguntou confuso, que não entendia se o Mestre Kame estava tentando seduzir a Bulma ou não.

E eu penso nessa dúvida dele faz 17 anos. O Mestre Kame definitivamente quer olhar o corpo da Bulma e tirar dela todas as casquinhas que ele conseguir, o Mestre Kame quer invadir a privacidade da Bulma para se deliciar com seu corpo. Mas o Mestre Kame não parece nada interessado em ter namoradas ou amantes ou relacionamentos de qualquer natureza, ele não parece querer seduzir ninguém. A tara dele para no ponto em que ele constrange as garotas, abusa delas, mas não vai ao ponto em que ele parece alguém que quer ter vida sexual ou relacionamentos.

Se dessem uma mulher vulnerável, atraente e desesperada pra ele na forma de um presente, e ela fosse chantageada a morar com o Mestre Kame, ela viraria empregada do Mestre, mas não sua amante… e quando a gente olha, meu Deus, é bizarro a quantidade de coisa escrota que existia no contexto de como a Launch foi morar na Kame House. A gente fala muito pouco sobre todas as implicações medonhas da relação dos dois.

Enfim, comparemos com um mangá como Chainsawman, em que ter uma vida sexual, pegar em peitos, beijar mulheres e transar é um dos maiores objetivos do protagonista. É o sonho dele e é algo que motiva ele a fazer qualquer coisa. A promessa de um beijo, de pegar em peitos, de ser íntimo das mulheres. Chainsawman tem um tom altamente sexual. O sexo e a sexualidade dos protagonistas é parte essencial da história.

Mas ao mesmo tempo Chainsawman não investe em fazer suas personagens femininas serem o auge do fanservice. A maioria de proporções normais, com poucas cenas da câmera enquadrando ou enfatizando suas curvas, com roupas que não destacam seus peitos. O Denji deseja ser mais próximo sexualmente da Makima, mas o traço e o enquadramento do mangá não é feito para que ela esteja sensualizando com o leitor.

A palavra “peitos” enquanto conceito tem um foco muito maior do que a mulher ouvindo ser uma peituda.

One Piece parece um mangá muito mais fácil de um moleque de 13 anos usar pra tocar uma na ausência de pornografia de verdade, mesmo sendo Chainsawman que tem uma cena de sexo explícita no meio do mangá.

Kaguya-Sama Wa Kokurasetai é outro mangá que apesar de uma legião imensa de waifus, e dos personagens terem e comentarem sobre sua vida sexual, sobre detalhes da prática sexual e sobre suas experiências, tem um nível beirando o nulo de fanservice, fazendo um ponto em nunca usar as chances que eles têm de mostrar as garotas nuas ou seminuas. O despertar sexual de Kaguya é algo que acompanhamos toda a jornada. Dela descobrindo o que era sexo, até ela dando os primeiros passos com o menino que ela gosta, e o mangá não explora o corpo nem dela nem de nenhuma outra menina ou rapaz envolvido nessa jornada.

Eu não acho que nenhum desses exemplos está aqui pra ditar regras, nem exceções. Tem muito mangá no mundo que tem muito sexo e muita objetificação feminina, ao mesmo tempo que tem muito mangá no mundo sem nenhum dos dois elementos. O que eu pretendo com esses exemplos é evidenciar que justamente a quantidade de sexo, implícito ou explícito em uma história não é necessariamente conectado ao quanto essa história está usando esse tema com o propósito único de usar mulheres gostosas para excitar leitores homens.

Inclusive não é estranho achar justamente em mangás assim chamados ecchi, com muito fanservice, nudez e mulheres surtando de tanto tesão, discursos mais contrários as vontades sexuais das personagens, com o herói tentando explicar para essa garota excitada com peitos maiores que a própria cabeça, que se eles dormirem juntos eles estariam cometendo uma imoralidade e a violação de algo sagrado. Se o mangá for harém, um número imenso deles tem como protagonista um rapaz íntegro que não vai tirar vantagem (de propósito) de nenhuma dessas garotas excitadas, mesmo se o contexto for: elas pedirem.

Sério, mangás harém ecchi podem ser cheios de ideias de que pessoas não apaixonadas não deveriam transar e que esperar o casamento é o correto. A objetificação dos personagens pode vir acompanhada de uma explicita não normalização do sexo entre jovens apaixonados.

O que leva a pergunta: Mas o que é sexo afinal?

Se você teve “A Conversa” com um adulto mais velho que achou que estava na hora de você aprender de onde vinham os bebês, tem uma chance considerável dele ter te explicado que quando um homem e uma mulher se amam muito, uma maneira deles demonstrarem esse amor é o homem inserir seu pênis na vagina de uma mulher e que é assim que os bebês são feitos. E bem… essa explicação é reducionista e incompleta em inúmeros níveis.

Pois não precisam ser um homem e uma mulher para fazer sexo. Podem ser dois homens, duas mulheres. Podem envolver pessoas que não se identificam com esses termos binários. Podem ser mais que duas pessoas. Elas não necessariamente precisam se amar muito, elas nem sequer precisam se amar. O ato pode não ser penetrativo e ainda ser sexo. E o objetivo do ato não só pode não ser fazer um bebê. como eu te garanto que 99% das vezes que o ato foi realizado no mundo, o objetivo não era esse.

Mas muita gente aprende sobre sexo nesses termos. Inclusive, ficou offscreen a explicação, mas eu ponho a mão no fogo de que é exatamente assim que a Fujiwara explicou pra Kaguya em Kaguya-Sama..

E de que foi assim que a Jennifer explicou pra sua mãe em Pleasantville também.

Eu realmente desgosto de sexo sendo visto nesses termos. Eu prefiro, e gostaria que fosse mais difundido outro pensamento: o de ver sexo como uma conexão entre pessoas. São duas pessoas, ou mais ali se conectando, trocando, interagindo e se dando prazer, em um momento de intimidade. Essa conexão carnal não é necessariamente amor, mas pode ser uma forma saudável de manifestar o amor se for entre pessoas que sintam esse tipo de desejo. E o sentimento desse tipo de conexão é tão fácil e catártico, que desenhos infantis podem usar substitutos de sexo para enfatizar esse tipo de dinâmica entre casais.

Em Rocko’s Modern Life, quebrar pratos era claramente um ato sexual para os vizinhos de Rocko. A metáfora sexual era visível para qualquer adulto vendo, mas não era sexo. Mesmo não sendo sexo, ajudou a ilustrar e explicar pra audiência infantil como era a dinâmica do casal.

Fusão em alguns episódios de Steven Universe serve como uma metáfora pra sexo, e é justamente sobre esse tipo de conexão. E sobre como pessoas diferentes buscam essa conexão para efeitos emocionais diferentes.

Em Who Framed Roger Rabbit é visível que os desenhos tiram prazer sexual de bater as mãos, e que, portanto, todas as implicações emocionais da vida sexual dos desenhos são manifestadas nesse bater de mãos.

E tem uma quantidade enorme de comédias de heróis/vilões que fazem a relação entre um herói e seu vilão serem o equivalente a um namoro, e a luta deles o equivalente ao sexo. Séries adultas e infantis fazem essa metáfora o tempo todo, já se tornou o seu próprio clichê.

Essas cenas não contêm genitais roçando entre si, não contêm nem sequer algo penetrando algo (outros exemplos que eu omiti usam. Powerpuff Girls usou a metáfora de um lápis entrando em um apontador, mas eu não dei isso de exemplo), mas elas contêm a parte emocional do que o sexo representa. Quase como se a parte genital fosse a parte nojenta, mas explicar que “casais tem crises relacionado ao quanto e como fazem uma atividade emocional juntos” fosse muito fácil e não envolvesse sentimentos complexos. Afinal apesar de ser perfeitamente aceitável gostar de fazer sexo sem amor envolvido, mesmo assim é muito comum que pessoas alossexuais em um relacionamento romântico façam e vejam no ato parte da rotina de casal, e que o sexo seja uma manifestação se a parte emocional está ou não em ordem.

O importante não é o que entrou aonde, nem quem pôs o que na boca. O importante é a troca intencional de prazeres. Importante até porque na vida real existem contextos em que temos a penetração, mas não temos a troca de prazeres, nem a conexão, temos um dos lados sendo forçado. E as vezes até uma galera bem-intencionada, mas mais vezes ainda, a mídia na má fé, chama atos de violência sexual, estupro, chantagem, abuso e outros de “estavam fazendo sexo”. Mas se estupro é sexo, então nocautear uma pessoa com um taco é praticar esportes.

Meu ponto é: a maneira como sexo é retratado e a maneira como sexo é lido em uma obra de ficção depende muito de como tanto a pessoa contando a história quanto a pessoa assistindo encaram sexo no geral.

O ato sexual gera constrangimento em um número grande de pessoas, mas esse constrangimento não é natural, não nasceu com a gente. É cultural, e tem suas origens em como somos educados sobre sexo e em qual lugar achamos que sexo ocupa em nossa sociedade. Tanto que esse constrangimento se transmite para aquilo que não é sexo também.

Até mesmo os nossos mitos apontam essa falta de naturalidade no desconforto, com Adão e Eva precisando comer o fruto proibido pra aprender a ter vergonha e se cobrirem com folhas.

Como por exemplo, a nudez. Enquanto a nudez é parte do ato sexual, e o sexo muitas vezes vem acompanhado de nudez, o oposto não ocorre. O sexo não é parte da nudez. Mas muita gente projeta o constrangimento do sexo em muitas situações, a mais icônica: mulheres revelando parte de seu peito para amamentar em público. Mas também para qualquer tipo de naturismo ou zonas de nudismo. Mas nudez não é sexo. E a maneira como a gente julga e condena a nudez as vezes chama a atenção pois essa associação é feita para condenar.

Isso sem nem falar no típico babaca que fala que tudo bem um casal gay existir, desde que não pareçam gays em público e só sejam gays entre quatro paredes. Tem muita gente por aí que aplica para pessoas lgbtqia+ meramente existirem como sendo um ato sexual, e, portanto, que sua existência deve ser tratada com o mesmo constrangimento e vergonha do ato sexual. Esse constrangimento não é natural também. Somos moldados pela nossa cultura para nos constranger com situações sexuais.

Um casal gay tomando cuidado pra não constranger quem assista o desenho.

Daí vem muito a ideia do “mas não pode ser tudo offscreen? Porque eu sou capaz de entender se você deixar implícito.” E assim. Poder, pode. Tudo pode. Mas assim. Dá para deixar o beijo do Jack com a Rose implícito também em Titanic, que o público ia pegar esse recado. A gente podia deixar o abraço que a Boo deu no Sully implícito e seria perfeitamente possível de passar a mensagem sem mostrar. A gente podia deixar implícito que a Juno iria começar algo com o corredor ali e não mostrar e dava pra fazer isso… mas eu não quero que façam nada disso. Eu não quero que os personagens demonstrando o que sentem em gestos fique implícito. Sentimento do personagem é mais valorizado na tela.

Dava pra pular esse momento e deixar tudo subentendido? Dava, mas o filme é mais feliz por não ter feito isso. E não por que isso avançou a trama, e sim porque tinha sentimento aqui pra ser compartilhado.

Afeto é pra ser celebrado! Demonstrações de amor, de carinho são boas, não tem por que serem escondidas. Tem positividade no sexo, tem prazer, tem carinho, tem paz. Existe muita energia positiva no sexo, e esse ato nos constranger tanto é algo para repensarmos. Ao que associamos o sexo?

Porque assim. Em 1930 um ricaço estadunidense tentando de parceria com a igreja passou uma série de normas sobre como os filmes deveriam tratar cena de sexo nos termos de uma cena de assassinato, em que quanto mais mãos se tocando e mais pele fosse visível era o equivalente a mais gore na cena de assassinato. Esse código foi derrubado faz 50 anos e a gente ainda fala isso. A gente ainda usa sexo e violência como duas partes da mesma moeda. Os filmes de terror eram onde tinham as principais cenas de sexo, pois eram filmes de violência, e onde tem violência tem sexo, onde tem sexo tem violência. As normas de censura que se aplicam a sexo se aplicam a violência. Mas sexo não é pra ser um ato de violência. Sexo é carícia, e carícia não é violência. Quando uma cena possui sexo e violência simultaneamente, o desconforto deve vir da violência. A parte desconcertante de um assassinato entre um casal pelado na cama não deve ser a quantidade de pele a mostra.

Agora, muita gente tem gatilho com cenas de sexo, que podem derivar de traumas e experiências com situações de violência. E esse texto não é pra menosprezar o gatilho de ninguém. Gatilho não é questão de constrangimento, gatilho é outra parada. Acho importante fazer essa distinção. Nada disso é sobre as pessoas que não conseguem encarar essas coisas por gatilho. Mas esse texto é para questionar se não temos atualmente muita gente que está sendo induzido a associar sexo como um elemento com as conotações negativas de todas as coisas que a classificações indicativas põe junto do sexo.

Um filme pode mostrar um sexo desassociado da violência e como um assunto separado. Mas na realidade é um fato de que existe muita violência sexual. Que reforço, também não é natural. O ser humano não estupra por instinto nem por chamado da natureza. É cultural, vem de como nossa sociedade educa as pessoas (em particular o homem). A cultura do estupro, o patriarcado, as relações de poder e os papéis de gênero na sociedade não vêm do nosso DNA, vem de como a sociedade nos passa uma visão de mundo. Isso significa que são pensamentos que podem ser desafiados, pois uma sociedade pode mudar. E deve mudar, em relação ao que ela tem de errado.

Mas a cultura do estupro, a misoginia, a objetificação das mulheres, tudo isso pode ser transmitido pra um filme através de cenas de sexo sim! Eu falei ali em cima de amor, afeto e conexão, mas se o diretor vai retratar o sexo assim, ou se vai retratar como algo doentio, nojento, inerentemente violento e abusivo, é escolha dele.

E isso vai além de como o sexo vai ser retratado no corte final. Pode vir dos bastidores.

Parte 5: Abuso de atrizes.

Esse aqui é um alvo fundamental. Uma parte considerável das críticas da cena de sexo que tão aí na internet nasceram dessa indignação, e se essas críticas batessem nessa situação específica, esse texto não estaria sendo feito. Eu querer ajudar a não jogar o bebê fora com a água do banho, não significa que não é pra falar do quão suja tá a água do banho, e isso é falar sobre como muitas atrizes são tratadas nas cenas de sexo.

E a resposta é simples: muito mal. Nossa, essa foi fácil. Mas vamos expandir isso. Existem muitos e muitos casos de denúncia, que algumas cenas de sexo ou de nudez foram obtidas através de pressão, mentiras, chantagem ou até literal violência com as atrizes que iam precisar se expor pra cena funcionar, e que a atriz não concordava com o contexto em que ela estava.

Exemplos variam de Sharon Stone ter sido manipulada e enganada para mostrar a vulva em Basic Instinct, para a Maria Schneider estar chorando de verdade e não estar atuando na cena de estupro de Last Tango in Paris, devido ao tratamento de Marlon Brando e Bernardo Bertolucci. Rosie Perez comentou sobre o quanto ela não queria ter feito a cena de sexo de Do the Right Thing, e as atrizes de La Vie D’aAdèle se manifestaram em relação a como a filmagem da infame cena de sexo foi escrota e abusiva. Emilia Clarke fez críticas sobre como foi tratada em Game of Thrones em relação as suas cenas de sexo e nudez.

E tem todo um lance de. Sharon Stone mostrou o que ela tinha entre as pernas na cena mais famosa de sua carreira e decolou seu estrelato inteiro disso. A Sharon Stone foi tapeada pra mostrar. Porém tem muita atriz que não foi tapeada e mostrou de propósito, pois sabia que essa era a regra do jogo e precisava disso pra decolar. As que mostraram de propósito não estão de fora do debate, pois a pressão de que a carreira delas depende desse tipo de exposição é forte independente de qualquer coisa. O problema é essa noção de que a nudez de uma atriz iniciante pode ser explorada, pois elas não tem fama o suficiente, ainda, pra poderem fazer filme que não objetifique elas. As que aceitaram e não aceitaram estão ambas enfrentando o mesmo sistema.

A indústria do entretenimento é famosa pela maneira como explora as atrizes sexualmente. Seja nesse tipo de situação, seja em atrizes que tenham dormir com produtores ou diretores para conseguir ter uma carreira. Seja na maneira como o corpo de atrizes é tratado com descaso mesmo em situações não sexuais. O Tarantino colocou a Uma Thurman em uma cena de risco sem dublê por pura babaquice. Hollywood é dominada por homens, e as atrizes são obrigadas a seguir as regras do jogo, escritas por um bando de velho branco rico que odeia mulher.

E não é somente esse exemplo fácil que eu estou dando. É uma multidão de velho nojento.

E acredite em mim. A menos que você veja exclusivamente filme independente de diretora mulher, você provavelmente já viu um filme em que a atriz foi maltratada e achou o filme bom.

Para uma personagem mostrar a bunda para o amante dela em um quarto de hotel escondido, uma atriz tem que mostrar a bunda e outras partes também para outro ator, pro diretor, pro câmera, pro cara da luz, pro cara do som, pro produtor, e tem chances consideráveis de ela ser a única mulher no set.

Eu não vou generalizar e falar que toda cena de sexo e nudez em live-action rolou de maneira escrota. Mas muitas rolaram, e foram o suficiente para que qualquer pessoa que fique em dúvida do quanto uma atriz queria estar ali naquele contexto não esteja paranoico. Atores e atrizes são seres humanos e não objetos de cena.

E com isso eu vou até além do debate de sexo e nudez e misoginia. Atores não são objetos de cena, e eu não gosto na real de nenhum tipo de “sacrifício pela arte” que a crítica ama tanto elogiar… porque sério. “Ah, mas o DiCaprio mesmo sendo vegetariano comeu carne de verdade no The Revenant pelo realismo”, ou o “Olha como o Christian Bale emagreceu de verdade pra fazer o papel de uma pessoa subnutrida literalmente morrendo de fome”, ou o pior de tudo. Os “Mas o Heath Ledger entrou tanto no personagem do Joker que ele surtou”. Gente, nada disso tem valor! Realismo não tem valor! Hollywood tem essa cultura absurda do ator de método que vira seu personagem, sofre, faz babaquice, viola valores pessoais, e passa sei lá quantos anos em preparações mentais para encarnar a mente de uma pessoa muito fora da curva e de que essas trivias agregam valor ao filme e a atuação e de que a atuação é melhor por causa disso. Pois se torna real.

Realismo não tem importância, e não deve ser atingido às custas da saúde do elenco. Física ou mental. Porra, ano passado uma pessoa morreu, pois o Alec Baldwin usou uma arma de verdade no set. E foi um acidente, e eu não quero falar mal do Alec Baldwin aqui, quero só apontar que nunca existiu nenhum motivo pra ter uma arma de verdade no set depois da invenção do CGI. “Ah, mas vai parecer falso”, foda-se! Já faz tempo que era pra toda arma ser CGI.

Por isso que eu amo o filme Birdman, que trabalha bem esse surto por realismo no teatro, e da não-ilusão, mostrando bem o contraste entre uma cena com arma de verdade e uma cena com a arma de dedo, e tinha tanta emoção na cena da arma de dedo. Não tinha nada de errado na arma de dedo.

E Birdman, falando sobre esse assunto sobre o quanto é patético o ator achar que tem que ser realista, inclui uma cena em que o personagem do Edwart Norton tenta fazer sexo de verdade com a atriz com a qual contracenava, para dar mais realismo a uma cena. E na indústria isso rola. Existe uma tentativa de usar “realismo” para justificar tratamento escroto com mulheres. Entre um filme realista ou os atores com dignidade, o segundo é sempre mais importante.

Nada disso é sequer minimamente aceitável! Tudo isso é condenável! E tem sim uma intersecção grande de como isso dialoga com como cenas de sexo são feitas! E tudo isso pode ser combatido. Mas a essência disso não está nas cenas de sexo, elas só são o alvo mais fácil.

Em Batman v. Superman, o Zack Snyder incluiu uma cena de sexo do Superman com a Lois Lane. E você encontra essa cena em listas colocando-a como uma das piores coisas desse filme infame, por não avançar a trama. Por outro lado, o Zack Snyder foi substituído pelo Joss Whedon na sequência do filme, que foi o Justice League, e que não contém nenhuma cena de sexo, mas teve denúncias do quanto o Joss Whedon enquadrou o filme para privilegiar o fanservice da Gal Gadot, e do quanto a versão do Whedon pega pesado nela estar em cena como objeto sexual. Incluindo o infame momento em que o Whedon fez o Ezra Miller cair em cima da Gal Gadot, que foi muito criticado. E é importante vermos essa diferença. Não acreditar que esse tipo de conteúdo vem junto da cena de sexo, nem que ele vai embora quando a cena vai.

Isso é sobre toda a misoginia hollywoodiana, que também é reproduzida por gente que pode passar uma carreira inteira sem mostrar um único mamilo em cena. Essa misoginia deve sim ser combatida! E eu sou bem cético quanto a “nós enquanto consumidores podemos mudar Hollywood com boicotes, pois somos demanda e o mercado vai ceder a nós o consumidor.”, como se as empresas realmente perdessem a homofobia em Junho. Mas, mesmo assim, eu acho que está em nosso poder validar e valorizar com nossa audiência, filmes dirigidos por mulheres, e de realmente parar de querer separar essa noção de “mas eu gosto desse filme e eu separo o produto final do seu artista” na hora de apontar a merda que rolou.

Tem muita coisa escrota que pode rolar quando tem um homem filmando uma mulher. Mas tem também muita mulher que filma filmes com erotismo, que filmam cenas de sexo, e que tem coisas para de fato ensinar para a mídia em geral sobre como essas cenas podem ser retratadas. Especialmente quando a crítica tenta vender a ideia de que o que o filme mostrou não era uma cena de sexo, quando era sim.

Quando questionada por não ter tido coragem de colocar uma cena de sexo em seu filme, a diretora Céline Sciamma disse “Tem uma cena de sexo no filme… talvez você não tenha entendido.”

Conclusão:

Então recapitulando meus principais pontos. Sexo é algo bom! Feito com boas energias e que provoca boas sensações! Você não precisa fazer, nem gostar, mas ele é uma parte do mundo, e eu enfatizo, é uma parte boa do mundo. O mundo é formado por muita coisa horrível que faz sair da cama um esforço diário, mas termos a capacidade de ter orgasmos e de dar orgasmos aos outros não é uma delas, é um a coisa boa. Apesar disso no mundo atual existe uma onda conservadora assustadora, e essa onda traz consigo misoginia, traz consigo apagamento de pessoas lgbtqia+, traz consigo dogmas religiosos bizarros e traz consigo um pudor do sexo como algo sujo, maléfico e proibido. E essas pessoas ocupam muitas posições de poder ao redor de todo o planeta. E não precisamos de nenhuma delas como aliadas.

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Na hora de lutarmos por um mundo melhor, é sério, olhem com muito cuidado quem são seus companheiros no campo de batalha. Muito discurso anti-sexo vira discurso anti-lgbtqia+, isso é histórico, isso foi usado pra tirar esses grupos do cinema nos anos 1930, isso foi usado para tirar esses grupos do Tumblr faz pouco tempo.

Aí alguém fala: “mas o meu discurso não é assim”, mas essa galera se apropria do discurso dos outros. O que mais tem de gente no mundo é conservador usando discurso dos progressistas contra os progressistas. O MBL nasceu fazendo isso, roubando uma manifestação de esquerda e transformando na ascensão da extrema-direita e do cenário político atual no Brasil. Eu não posso enfatizar o suficiente: tome cuidado com quem consegue pegar o seu discurso, colocar dois itens a mais no seu discurso que não tavam ali quando você falou, e transformar seu discurso em projeto de lei homofóbico.

No campo da música é algo estudado e visível como certos gêneros de música foram considerados imorais e agentes de corrupção do jovem por serem muito sexuais, e esse ataque dos conservadores estava diretamente ligado a serem gêneros dominados por pessoas negras. E isso vale pro jazz no começo do século XX para o funk atualmente. Suspeite da galera que tem medo do poder do sexo de corromper os jovens por estar presente na arte.

Matéria aqui.

É sério gente, muita lei preconceituosa e opressora não surge sob a desculpa de “precisamos de mais preconceito e opressão estrutural”, surgem sobre uma falácia de estar protegendo as crianças da corrupção. E corrupção é sempre sexo, drogas e violência. Então a gente tem que ter cuidado com o que falamos que está corrompendo o jovem.

Muita cena de sexo é ruim! E tá ok elas serem criticadas por serem ruins, ou por serem sexistas, ou problemáticas. Tá ok descer o pau em tudo isso. Tá até ok falar “Mas não sei quantos anos que eu não vejo uma cena de sexo que não seja escrota.”. Mas cenas de sexo não precisam ser necessárias para existir. Uma cena de sexo necessária que avança a trama pode as vezes ser justamente a cena mais problemática do filme. O adjetivo desnecessário aqui não contribui em nada pro debate, ele só contribui para transformar a experiência cinematográfica em um grande Cinema Sins. A cena não precisa ser “necessária” para se justificar. Necessário por necessário o próprio filme não é necessário.

E qualquer combate contra a cultura do estupro envolve combater muita prática que está imersa na sociedade e que se manifesta nas interações sexuais. Envolve chamar a atenção pra muita coisa errada que é vista como normal. Envolve mudar muita mentalidade de muita gente. Mas não envolve o fim do sexo. Não envolve o fim do prazer sexual. E nem envolve atribuirmos conotações negativas ao sexo. Ou ao menos não deveria envolver.

E eu acho que a ficção é um espaço para imaginar. Para retratar mundos não somente como são, mas como devem ser, mundos melhores que o nosso, modelos do que podemos almejar ser. E por isso a ficção é um espaço para sexo. E atualmente, se você está em um fórum da internet e vê alguém falando sobre como imagina o Mickey e a Minnie dando aquela macetada, e a primeira coisa que você pensa é “Que horror! E a minha infância?”. É isso que eu quero questionar. Não tem horror. E os seus heróis de infância transaram sim, só não te falaram. No mínimo os seus pais. E nada disso é um horror, apesar de ser a nossa reação espontânea. Vamos rever esse horror. Gente transando não é um horror. Imaginar seus personagens favoritos fazendo sexo não é imaginar coisas horríveis acontecendo com eles.

Usa-se muito a palavra “wholesome” na internet, que pode ser traduzida pra “acalentador”, mas é muito usada em inglês para falar de obras de ficção com relacionamentos saudáveis, fofos, que fazem você se sentir abraçado e acolhido. E pra muita gente ser wholesome significa não ter sexo! Vamos repensar isso, sexo pode ser wholesome. E erotismo pode ser parte de uma narrativa sobre um relacionamento saudável.

E quero terminar citando o meu grande amigo com quem eu frequentemente gravo podcast O Judeu Ateu em sua afirmação de que quando um roteirista ama muito os personagens que ele criou, ele quer que os personagens tenham orgasmos. Nossa, mas lendo Domestic na Kanojo esse foi meu sentimento primário, de que as cenas de sexo passavam acima de tudo o quanto esses personagens eram amados por sua autora. Eu falo brincando várias vezes que a Kei Sasuga é uma mangaka completa, pois ela desenha o próprio hentai, e eu vou falar, isso não é um defeito. E não é porque as cenas avançam nada, é porque os personagens estão sempre felizes participando delas. E vale pra quem faz fanart também. Se você desenhou seus personagens favoritos se comendo, é porque você ama muito eles.

Sobre o autor

Izzombie

Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

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Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

Alertas

  • – Todos os posts desse blog contém SPOILERS de seus respectivos assuntos, sem exceção. Leia com medo de perder toda a experiência.
  • – Todos os textos desse blog contém palavras de baixo calão, independente da obra analisada ser ou não ao público infantil. Mesmo ao analisar uma obra pra crianças a analise ainda é destinada para adultos e pode tocar e temas como sexo e violência.

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