Tomem cuidado com o Cuck Cinema.

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Começando explicando já de onde esse texto vem. Cuck Cinema é um termo que eu estou deliberadamente roubando de uma lista que eu achei no letterboxd, criada pelo usuário Sparks Lowry. Uma rápida olhada no termo Cuck Cinema, na leve descrição e na lista de filmes que ele selecionou abriram minha cabeça e me deixaram com aquela clareza fascinante, de quando existe algo que está te incomodando por muito tempo, e você enfim aprendeu a dar um nome para aquilo, e pode enxergar melhor a origem do incômodo.

Enfim. Eu não sei se esse cara foi quem criou esse termo Cuck Cinema, ou se ele copiou de alguém. Também não sei se ele concordaria com a maneira como eu entendi o termo e vou descrever nesse texto. E também não é o ponto. O ponto é que eu estou pegando esse termo para nomear um processo que eu tenho acompanhado já tem um tempo. Um processo, que eu, sem saber dar um nome claro, coloquei no centro de vários textos nesse blog ao longo dos anos. É algo que eu acho que precisa ser conversado, e esse nome me ajudou a conseguir puxar essa conversa de maneira que eu só consegui contornar antes no blog.

É algo que eu pocurei, mas não encontrei nesse texto.
E nesse
Especialmente nesse.
Mas também nesse daqui.

Sei lá se era esse o propósito da lista. Mas chegou aqui. A internet é assim mesmo, as vezes o que jogamos nela afeta os outros de maneiras imprevisíveis.

Enfim, Cuck Cinema, que poderia ser traduzido para “Cinema de Corno”, não tem relação nenhuma com filmes retratando personagens cometendo infidelidades. Mas sim como filmes podem ser um grande Cavalo de Troia, usando uma estética divertida, pós-moderna e progressista para firmar os grandes valores da política de direita em seu centro. E assim, como o pássaro cuco faz com que outros pássaros choquem seus ovos e criem seus filhotes, o Cuck Cinema faz com que o público progressista divulgue e prestigie a propaganda dos grupos conservadores que esse público se opõe.

Aqui no Dentro da Chaminé eu defendo que a gente politize absolutamente tudo o que pudermos, e vejamos a arte, em especial artes que trabalhem o contar-de-histórias, sob uma perspectiva política. Mas eu também defendo que possamos passar os devidos panos praquilo que gostamos. A gente não vê um filme somente pra pensarmos que concordamos, e o apelo de uma jornada emocional de um personagem pode ser visto mesmo achando os aspectos políticos da obra cagados. Um dos meus primeiros textos no blog aponta pontos que eu discordo na política de The Lion King, e eu não tiro o filme da minha lista de favoritos. Então essa conversa não é sobre tentar convencer você, meu leitor a parar de gostar de algo que você gosta, ou a não assistir certos filmes.

Mas o texto é um pedido para não se fechar os olhos. Eu acho que a verdadeira passada de pano, e a mais grave, é a de fingir que não está lá. É a de achar que os aspectos políticos desconfortáveis somem quando são ignorados. E é aqui que eu acho que essas obras podem ter um poder perigoso, quando a gente não fala sobre.

Existem assuntos que são que nem hienas. Não deixam de existir quando paramos de prestar a atenção, porém se tornam mais perigosas e mais capazes de atacar a gente se a gente não prestar atenção nelas. Não ignorem hienas.

Enfim. Meu nome é Izzombie, esse é meu blog o Dentro da Chaminé, e nesse texto vou olhar de perto pro Cuck Cinema, que filmes são esses, como eles funcionam, por que eles são feitos, e o que fazer com essa informação.

Mas antes de começar, quero pedir que se você gosta dos meus textos e do trabalho que eu faço nesse blog, que você cogite se tornar um apoiador do Dentro da Chaminé na nossa campanha de financiamento coletivo do apoia.se, contribuindo com o valor que achar justo. Os apoios ajudam o blog a ficar ativo e produtivo, e também são uma imensa ajuda pra mim, que amo esse blog, e gosto de poder por foco naquilo que amo. Se não quiser fazer uma contribuição mensal, você também pode apoiar o Dentro da Chaminé fazendo um pix de qualquer valor para a chave franciscoizzo@gmail.com, que será igualmente homenageado por aqui, além de igualmente ter a minha gratidão.

Além disso, comentar, compartilhar o texto, mas principalmente manter a conversa viva. Eu quero começar conversas, não terminá-las, e o texto não fica completo sem se misturar a perspectiva de vocês.

Esse texto é escrito em homenagem a todos os que já apoiam o Dentro da Chaminé e ajudam de diversas maneiras e são os verdadeiros heróis do blog. E eu espero que gostem do texto.

Comecemos então do ponto mais importante.

O que é o Cuck Cinema?

Para explicar o que é o Cuck Cinema, é necessário falar sobre um divisão que existe nos filmes da qual eu já falei aqui no passado no meu texto sobre Jurassic Park. Que é falar a diferença entre a maquiagem e a alma do filme, dois termos que eu cunhei nesse mesmo texto de Jurassic Park.

A maquiagem do filme, são os seus elementos estéticos, que dão pro filme a sua cara, o seu hype, e os elementos com os quais o filme mais vai ser associado. Um monte de carro correndo em um deserto pós-apocalíptico, com seus motoristas de dando tiros, e culturas estranhas girando em torno de carros e armas, é a maquiagem por trás de Mad Max.

A maquiagem de um filme, muitas vezes serve também como o mel do filme. Mel é um termo que eu joguei no meu texto sobre sexo na ficção para descrever os elementos do filme cujo maior propósito é gerar prazer visual no seu público e chamá-lo pra ver o filme. Em um filme como qualquer um dos Godzillas, o lagarto gigante destruindo a cidade é o mel do filme, metade da plateia está lá só pra ver o Godzilla. Tanto que o Tv Tropes nomeou esse fenômeno de ver um filme só pelo imenso apelo que é ver a atração central dele sem ligar pro resto como “Just Here For Godzilla”, que traduz pra “Eu só vim pelo Godzilla”.

E a alma do filme são os temas e mensagens que dão valor pra jornada emocional que os personagens atravessam e que representam o tipo de narrativa do filme. Mad Max Fury Road é uma jornada sobre pessoas que buscam fugir de uma terra hostil e cruel para encontrar um paraíso, porém precisam encarar a realidade de que o paraíso não existe e cabe a eles construir um paraíso, tomando o controle da terra hostil e cruel e consertando-a. Essa é a alma do filme, e essa alma podia existir em um filme sobre vampiros, sobre homens das cavernas, sobre imigração nos EUA ou sobre máfia. Mas essa alma existiu em um filme sobre um monte de carro correndo em um deserto apocalíptico, com seus motoristas se dando tiros, e culturas estranhas girando em torno de carros e armas.

Acho que quem melhor fraseou essa separação foi o comediante John Oliver ao descrever o filme Air Bud como “Um filme que fala discretamente sobre luto e ruidosamente sobre um cachorro que joga basquete.”

E é isso. Tarzan tem em sua alma um filme sobre um jovem em crise de identidade dividido entre sua natureza e sua criação, mas sua maquiagem é a de um homem de tanga surfando em árvores e falando com animais…. e entre essas duas coisas existe também um grande comentário sobre masculinidade.

Quando um filme explode, geralmente, seja na forma de cópias ou de sequências, os produtores são muito rápidos em tentar repetir a maquiagem do filme, e desinteressados em tentar repetir sua alma. E isso faz com que muitas vezes as grandes revoluções do que os filmes tiveram de revolucionário, fiquem escondidas na sombra de sua maquiagem. Um filme como Pirates of the Caribbean estoura, e todo mundo se apressa em tentar reviver heróis de capa-e-espada antes de se interessar em quais características fizeram o Jack Sparrow um ícone do cinema que não foi replicado.

Mas as vezes não é vacilo. Uma pessoa conduzindo um remake pode de fato só reaproveitar a maquiagem do filme, mas ter a própria ideia de qual deveria ser a alma do filme. É o que acontece, por exemplo, ao comparar Ringu com The Ring, dois filmes em que exatamente as mesmas coisas acontecem, mas que não batem nos mesmos pontos.

Pois bem, o Cuck Cinema, quer usar uma maquiagem pautada em diversidade, celebração da tolerância, música, representatividade, piscadas pra plateia, referências, narrativas diferenciadas e principalmente: diversão. Para poder passar o mel no filme e vender uma alma centrada em: status quo, condenação de movimentos sociais, valorização das instituições de poder estadunidenses, valorização do sonho americano, uma noção de que o sistema funciona, individualismo prevalecendo acima do coletivismo, e celebração do capitalismo.

Colocando em um exemplo bem prático.

Fazemos um filme cuja maquiagem são animais antropomórficos aprendendo a não se julgarem nem se excluírem baseados em sua espécie e aprendendo que todos devem fazer sua parte contra o racismo. Em sua alma, retrata a força policial como um agente importante de combate ao racismo, a importância de termos minorias dentro da polícia, o sistema de racismo estrutural que o filme descreve essencialmente não existe, e o maior perigo de todos é como as minorias podem exagerar casos de racismo para conseguir vantagens políticas.

Um filme para promover a polícia como uma instituição que não promove o racismo, que só existe na esfera individual e não é um problema estrutural e para enfatizar o problema dos políticos exagerando o assunto, saiu e foi amplamente promovido como um filme progressista de resistência aos valores trumpistas.

link pra resenha aqui

Ou podemos fazer um filme que seja a biografia de um dos maiores cantores de todos os tempos, um astro do rock, com presença de palco e carisma estão entre os maiores da história, e que é uma figura famosa por sua sexualidade e um grande ícone queer. Freddie Mercury é um gigante, e o impacto dele ser um bissexual que foi uma das vítimas da AIDS dos anos 80 é parte de sua grandeza. E aí fazemos o pilar emocional do filme ser a sua relação com sua namorada Mary, o único amor de sua vida, e mais do que o seu único amor a sua redenção, depois que o filme retrata que sua relação com homens foi a sua decadência, uma corrupção inerente que destruiu sua vida e que ele precisava ser resgatada por uma mulher que poderia lhe oferecer amor de verdade.

E vamos dar um Oscar pra esse filme!

Forrest Gump, de trás da história inspiradora de um homem intelectualmente limitado que testemunhou os principais eventos do século XX, divide a identidade dos Estados Unidos em dois personagens de jornadas opostas. Forrest triunfou no sonho americano. Ele foi a influência de Elvis Presley, um astro do futebol americano um herói de guerra, uma oposição simbólica ao comunismo ao enfrentar os chineses nas olimpíadas, um empreendedor de sucesso e um guru que influenciou pessoas. Sua história é uma história de triunfo, esportivo, militar, financeiro e motivacional. E ele reuniu esses triunfos e foi viver o resto da vida criando seu filho em uma casinha suburbana de cercas brancas, o lar oficial da família estadunidense. Essa jornada é contrastada com Jenny que viveu a vida não conservadora dos Estados Unidos, e foi uma vida de fracasso, ela se envolveu com hippies, com esquerdistas e com o movimento dos Panteras Negras, onde ela sofreu abusos físicos dessas pessoas, foi infeliz e eventualmente morreu de AIDS para ser punida por ter vivido a era do amor livre e da revolução sexual.

Os personagens desses filmes são pessoas sem preconceitos, inspiradoras, que triunfam apesar de serem minorias. Mas o mundo desse filme é um mundo que valida morais conservadoras e inocenta instituições de poder de qualquer problema. Forrest Gump não foi um homem racista, seu melhor amigo foi negro e ele ajudou a família do seu melhor amigo a dar o troco na patroa branca. E por isso o filme se sente livre pra retratar os Panteras Negras com um viés negativo.

Se indivíduos forem bons o bastante, nós vemos que as instituições podem ser boas. O que falta na polícia de Zootopia é mais coelhos. O Tenente Dan é um homem bom, o Forrest Gump também, então obviamente o pelotão deles não estuprou civis no Vietnã nem queimou ninguém com Napalm.

Então vamos falar justamente sobre o que é que essas faces contêm. O que significa a celebração do empoderamento da Capitã Marvel e o que significa a propaganda militar escancarada de Captain Marvel. O que começa falando um pouco sobre o que é a direita.

Sobre a direita.

Quando a gente pensa na divisão política entre a esquerda e a direita, a gente logo pensa na divisão entre o marxismo/socialismo e o capitalismo. E isso está correto, afinal os textos de Karl Marx e as ideias que ele lançou pautam muito do debate político desde o século XIX.

Mas essas terminologias são anteriores à Karl Marx, que nasceu depois que a esquerda e direita já existiam como palavras pra designar lados políticos. É relativamente conhecido que os termos vêm da revolução francesa, onde os membros da assembleia nacional se sentavam com seus iguais nas reuniões. Quem apoiava a revolução se sentavam à esquerda e quem defendia o rei se sentava à direita.

A revolução francesa trouxe à França o fim do feudalismo, e com isso o poder foi pra burguesia, e o capitalismo floresceu na França…. e hoje, 230 anos depois, a gente odeia o capitalismo. Mas na época ser um defensor do capitalismo era ser de esquerda, pois era oposição aos sistemas estabelecidos de opressão defendidos pela classe dominante.

O ponto é, além de defender o capitalismo, hoje, a direita é marcada por assim como em 1789, seguir defendendo os sistemas estabelecidos de opressão e a classe dominante. Em 1789 inventaram essa palavra pra designar a direita: “Reacionários”, e a gente usa essa palavra até hoje, e a origem dessa palavra vem de reação. Um reacionário é uma pessoa que reage negativamente às mudanças sociais. Que resistem a mudanças na sociedade, e que justificam essa resistência em uma insistência de que as estruturas de poder e as hierarquias operantes são naturais, inevitáveis ou melhores que a alternativa. E apelando pra tradição, e pra valorização dos velhos valores que não devem ser quebrados.

O termo “conservador” vem disso também, no desejo de conservar a sociedade como ela é. Rejeitar mudanças, pois da maneira que está é bom.

E esse é o foco que eu quero dar pra esse debate. Pois essa é a situação da direita atual. Tentar barrar uma série de exigências por mudanças sociais que vem se naturalizando nas últimas várias décadas. Alguns com mais sucesso que outros, mas o cabo de guerra no presente dos últimos 20 anos, tem sido uma grande pressão para um monte de mudanças acontecerem, em direitos humanos, em sexualidade, no direito ao próprio corpo, em acessibilidade de certos grupos a certos direitos, na maneira como o sistema legal atua, entre outros. E cada pauta tem um nível diferente de sucesso.

Atualmente toda luta organizada por direitos de minorias é lida como de esquerda e sofre alta resistência da direita. Além disso, a luta antirracista tem trazido muito forte nos EUA a pauta antipolícia, por uma reforma policial e um reconhecimento do papel da polícia nas várias formas de opressão, em especial o racismo. A luta pra diminuir a influência dos bilionários, por maior taxação de grandes fortunas, e pela perda do poder dos empresários fazendo com que tenham mais responsabilidade e transparência por suas ações. A luta por frear o nosso modo de produção industrial para cuidar do meio ambiente e lutar contra as mudanças climáticas que vão literalmente nos matar. Leis de tornar públicos e gratuitos serviços que são direitos humanos e se tornam inacessíveis para a população por seus altos preços, coisas como comida, saúde e educação. Legalização do aborto e das drogas, e o apelo para olhar para esses debates como pautas de saúde pública e os impactos de suas proibições nas vidas, mais do que no moralismo de “mas você quer que sua filha faça ou não”. Todas essas são pautas que a direita combate, e todas essas são pautas que seus militantes tendem a serem identificados como a esquerda, mas essas não são a mesma pauta.

O que é o grande lance, pois a gente, e com a gente eu digo: alguns círculos da internet acham que todas essas lutas são combo do Burger King, em que você compra uma pauta e vem todas as outras juntas. Que as pessoas pegam ideologia por pacote básico. O que não é verdade. Existem pessoas que são a favor de saúde e educação gratuitos para a população, que também são pela criminalização do aborto. Existem pessoas que são parte da luta antirracista, mas são contra questões LGBT. Tem gente que é pelo fim do capitalismo e é contra pautas identitárias. Muita gente tem suas próprias posições em cada um desses itens.

Pois reforço, pautas não são vendidas em um sistema de “se você apoia uma, você é obrigado apoiar todas”, por isso que esquerda e direita são espectros, que existe o centro, que existem correntes. diferentes, etc A esquerda atual no Brasil e EUA insiste na pauta do desarmamento, enquanto a direita bate muito forte na pauta do armamento da população. Porém grupos Marxistas dos anos 1970, dentre eles destaco os Panteras Negras eram a favor da pauta do armamento, e da necessidade de armar o povo negro pra que esse pudesse reagir a sua opressão e tomar o poder.

Temos um monte de ancap que é a favor da liberação das drogas.

Mas mesmo assim a gente confunde.

E eis que entra nessa história esse lugar chamado Hollywood. Que é uma zona em Los Angeles, mas é também uma indústria. Uma indústria nefasta, a indústria do entretenimento.

E essa indústria é relativamente dominada por grupo que é popularmente lido como “a esquerda estadunidense”, e tem bons motivos pra isso. A California é um Estado que tradicionalmente elege o candidato Democrata nas eleições deles, eles são em uma maioria um bando de ex-aluno de faculdades de artes, e eles usam seu status de celebridade para serem vocais contra políticas de Donald Trump, contra guerras, a favor de direitos humanos para minorias e pelas pautas ambientais, além de se envolverem em várias filantropias.

Porém os EUA são aquilo, né? Dois partidos: o Republicano e o Democrata. O Democrata está definitivamente à esquerda do Republicano. Mas não está a esquerda de muita coisa. Afinal metade dos presidentes dos EUA são Democratas, e todos os presidentes (alguns mais que outros), contribuíram pro país seguir sendo o grande referencial pros ideais da direita internacionalmente. Isso não é surpreendente tendo em vista que os EUA tiveram um trabalho excelente de erradicação de sua esquerda dos grandes espaços.

A quinta temporada de Arrested Development estreou no meio do governo Trump, por isso essa cena serve de twist de que cronologicamente a série ainda está no governo Obama, e o presidente de direita que está fazendo as merdas não é o alvo fácil.

Um trabalho que foi pesado em Hollywood. Muito se fala sobre o macartismo, e a caça às bruxas que os EUA teve com os comunistas, e em Hollywood isso recebeu o nome de “lista negra” e durou de 1946 até 1957, e envolveu centenas e centenas de roteiristas, diretores, músicos e atores sendo sistematicamente impedidos de conseguir trabalhar com cinema, e tendo suas carreiras sabotadas por serem ou terem sido comunistas.

Hollywood foi parte dessa eliminação e inúmeros profissionais simplesmente foram eliminados da indústria cinematográfica. Agora, sabem uma curiosidade interessante? Existia um ator em Hollywood que era um espião do FBI que denunciava pro FBI todo colega de trabalho que pudesse ter envolvimento com os comunistas para serem interrogados e presos. Esse espião se tornou o primeiro e único presidente dos EUA a sair do entretenimento, tendo governado o país de 1981 a 1989, o Ronald Reagan, até hoje um dos maiores gurus da direita estadunidense.

E alguém que até os principais nomes dos Republicanos do presente ainda tentam emular.

Mas meu ponto é: depois que a caça-as-bruxas acabou, os comunistas não exatamente reapareceram em Hollywood, agora que a barra estava limpa. E apesar de ainda terem intelectuais marxistas nos EUA, os efeitos do Macartismo para de fato minar e remover comunistas de posições foi fundamental para diminuir essa ideologia na cultura estadunidense, e criar o estigma pela qual é julgada até hoje… pelos estadunidenses que se passam pela esquerda.

Afinal quando uma visão radical da esquerda foi removida do jornalismo e do entretenimento. Pessoas com ideias muito mais leves passaram a ser chamadas de “a esquerda”.

Graças ao macartismo, milhares de pessoas tiveram a vida arruinada, e o leque do espectro político nos EUA diminuíram radicalmente. As vozes de oposição a direita não iam mais tão longe, tinha um limite.

Apesar de Hollywood ter o maior tesão do mundo em contar a própria história e dar Oscares pra filmes que celebrem a história de Hollywood, demorou muito pra Hollywood deliberadamente fazer filmes sobre as vítimas do macartismo. Esses filmes não são uma lista grande, são em sua maioria biografias sobre indivíduos da mídia que foram investigados pelo macartismo, com ênfase no quão injusto e cruel o senador McCarthy era, e deixam claro o status de filme de época, retratando um período negro que já foi superado.

Foi superado? Bom, o medo de ser confundido com um comunista e perder o emprego continuou forte por décadas depois do macartismo não ser mais aplicado, e foi usado como motivação para que diversos cidadãos estadunidenses não se juntassem a sindicatos, ou não apoiassem o movimento dos direitos civis nos anos 1960, por trauma do macartismo. O impacto do ataque aos movimentos trabalhistas é um que só piorou no pós-macartismo e do qual os EUA nunca se recuperaram e começou ali, na caça-as-bruxas.

Mas o mais importante, esses filmes retratam o FBI como uma instituição corrupta ou com uma luz negativa enquanto organização? Ou focam no fato de que alguns homens insanos como McCarthy ou J. Edgar Hoover estavam ditando as regras? O FBI foi o órgão principal na caça-as-bruxas, mas esses filmes nunca fazem o ponto sobre o absurdo por trás dessa instituição.

O que me leva ao grande ponto.

Indivíduos e Instituições:

O cinema estadunidense tem uma maneira pontual de passar suas mensagens e designar a simpatia do público, e está na dicotomia entre indivíduos e instituições. O FBI é uma instituição, e não qualquer instituição, uma instituição que existe faz 114 anos. Entre operar o macartismo, que hoje a maior parte dos cidadãos estadunidenses reconhecem como um momento sombrio, a antagonizar o líder civil Martin Luther King Jr, que hoje a maior parte dos cidadãos americanos reconhece como um herói, a acobertar crimes da Ku Klux Klan, organização que a maior parte dos cidadãos americanas reconhece como má, o FBI tem uma história longa de controversas em que eles não estavam do lado abençoado pela história. E mesmo assim a instituição tem um histórico imenso de representação positiva.

O FBI é tradicionalmente tratado no entretenimento americano como uma instituição competente, eficiente, e acima de tudo, importante, que trabalha em casos importantes de segurança nacional e do qual o país depende. Com ênfase neles sendo a organização que persegue os casos difíceis de capturar, como os mais sádicos Serial Killers ou os mais poderosos milionários corruptos.

A inúmeras histórias, de diversos gêneros, são contadas da perspectiva de agentes do FBI, e esses agentes sempre são pessoas decentes com um senso de justiça inabalável.

Quando um filme retrata uma pisada na bola que o FBI deu, esse filme é sempre uma história real, ninguém vai cogitar pensar em um filme fictício em que o FBI faz merda. Depois, esse filme é sempre de época, sempre com uma distância o suficiente pra: “e nenhuma dessas pessoas trabalha mais aí hoje, e lutamos diariamente pra que não se repita” estar eternamente implícito. E terceiro, tem sempre uma gente que é a figura errada, é esse cara que está fazendo merda. As vezes ele tem um chefe que tentou impedir a merda, mas foi ignorado, ou as vezes ele é o chefe e o filme reforça que seus subordinados não concordam.

No filme American Hustle, temos uma versão ficcionalizada de um grande podre real do FBI que foi a Operação ABSCAM. O filme responsabiliza um agente narcisista pelo fracasso e deixa claro que ele desobedeceu as ordens superiores pra fazer merda.

Pessoas são só humanas, e potencialmente qualquer pessoa ruim pode ocupar cargos de poder, mas o grupo FBI, esse grupo é de respeito. É uma organização centenária que está presa pelos interesses do povo estadunidense. E nenhum filme vai retratar um episódio problemático da organização, sem ser “tinha um cuzão ali na época, e a culpa é só dele”.

O mesmo vale pra CIA, pra Polícia e para qualquer unidade real do exército estadunidense, todas instituições íntegras, justas, majoritariamente bem-intencionadas, fundamentais para o bem-estar do povo estadunidense, com algumas mijadas pra fora do vaso ao longo de sua história causadas por gente otária que já não está mis envolvida com a organização.

Quando um filme quer criticar o governo, como eles criticam então? Se todas as instituições são boas? Tem algumas estratégias.

A primeira: vilanize subdivisão fictícia, que é pouco transparente e cagada. De preferência, deixe muito ambíguo e estranho qual é o real cargo dessas pessoas na hierarquia do governo. Nela tem problemas graves de corrupção ou de comportamento sinistro. E aí tudo bem. Sabe por que tudo bem? Porque literalmente ninguém tem um tio que trabalha nessa organização.

Sabem quantos jovens de 18 anos desistiram de se alistar na SHIELD por descobrir os crimes do Nick Fury contra o povo estadunidense? Literalmente nenhum. A SHIELD não existe, e, portanto, os oficiais da SHIELD não podem comprar briga contra o filme.

A segunda: culpe oficiais eleitos. O presidente não é tratado como uma instituição nos filmes, e sim como um indivíduo. Não existe um sistema interno ao qual o presidente de adequa quando eleito. Então você sempre pode falar “o país foi pro cacete, pois elegeram um tremendo escroto”, e isso não diz nada sobre a corrupção da CIA, do FBI ou das Forças Armadas. Afinal o presidente não é: “o governo”, mas somente uma figura eleita por 4 anos que depois vai embora.

Então em Don’t Look Up, não foram as instituições de segurança dos EUA que fracassaram em levar a ameaça do cometa a sério. Foi a presidenta, aquela imbecil. Porém entre os aliados que tentaram até o fim proteger a terra do cometa, estava um representante da PDCO (Planetary Defense Coordination Office), uma agência do governo que existe de verdade, fundada em 2016 que é uma subdivisão da NASA, cujo trabalho é alertar e guiar o governo estadunidense para que esse possa reagir a ameaças de impactos de asteroides, meteoros e cometas. Um órgão que ninguém no mundo sabia que existia, mas estão com os heróis do filme tentando fazer a coisa certa contra uma presidenta que é uma paródia de Donald Trump.

Agora, a PDCO rejeitou um dos primeiros roteiros para Don’t Look Up antes da versão final ser aprovada, em que a organização sai bonita na foto, como um grupo que não foi parte do problema.

Porque a PDCO tinha que aprovar o roteiro de Don’t Look Up? Porque é isso que o governo faz. Inúmeros projetos de Hollywood só saem do papel com a aprovação do braço do governo que eles retratam. No caso o PDCO tinha que validar que as estratégias de defesa contra o cometa eram cientificamente válidas, mas no processo eles tiveram a prévia de como seriam retratados.

O FBI, a CIA e as Forças Armadas investem muito dinheiro em Hollywood, e a esfera de influência deles é sempre o roteiro, é pra sempre garantir que as organizações estão sendo devidamente bem retratadas. Em troca os filmes recebem além de ajuda de financiamento, acesso a veículos militares de verdade, acesso a bases, e soldados reais fazendo figuração, para dar mais realismo as cenas.

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Sério, se no filme tem um submarino, um caça ou um tanque, podem ter certeza de que o filme foi ajudado por uma dessas organizações. E sem nenhuma transparência. Existem documentos que você pode pesquisar e encontrar mostrando a parceria com o exército ou com a CIA, mas isso não vai aparecer nos créditos do filme em nenhum momento, pois isso tornaria a propaganda ineficiente, a gente saber que estamos vendo a perspectiva dessas organizações sobre eles mesmos.

O logotipo do Pentágono nos créditos iniciais logo depois do logotipo da Marvel realmente faria a gente achar as cenas de Captain Marvel muito mais estranhas. Quebraria a ilusão. Nem mesmo nos créditos o Pentágono vai aparecer, apesar deles serem parte dos produtores do filme.

E daí vem esses filmes que mostram que apesar de alguns humanos serem falíveis ou corruptíveis, as instituições são incorruptíveis. A caça às bruxas não foi um erro do FBI, foi um erro do J. Edgar Hoover. Personagens que integrem as forças armadas são justos e foram educados a serem íntegros dentro da instituição. E as instituições inimigas? Completamente sujas.

Sempre se lembrem, o único personagem de Avatar que representa a instituição das Forças Armadas Estadunidenses é o Jake Sully, que se diferencia do mercenários que nunca se alistaram pelo seu senso de honra, e pela sua noção inabalável de certo e errado.

O governo dos países estrangeiros, esse não precisa ser individualizado, não, a instituição é podre, e todo soldado do lado inimigo é um cúmplice de todas as atrocidades do grupo inimigo. Soldados Iraquianos? Malignos. Soldados Russos? Malignos. Tem algum afegão que o Tony Stark explodiu que tem esposa e filhos e só foi ludibriado por propaganda estatal? Não importa, eles vão morrer, eles são parte do grupo do mal. Nenhum Stormtrooper é inocente. Nenhum soldado inimigo teve a vida destruída pelo imperialismo estadunidense. São todos membros de organizações do mal.

Quando grupos e instituições são malignas, elas têm que acabar. E grupos inimigos nunca foram corrompidos pelo erro humano de um único indivíduo. O povo estrangeiro nunca entra na situação de “eles não tem culpa do seu presidente” na qual o povo estadunidense é constantemente retratado.

Agora, os Estados Unidos são um país que se construiu em cima do poder do indivíduo. Uma cultura individualista que quer te ensinar, que bons indivíduos fazem a diferença.

Se filmes de propagada governamental da China passam muito a ideia de trabalho em equipe, de que somos todos parte de um todo, de coordenação para grandes resultados, e outros ideais em que a vitória é do coletivo. Filmes estadunidenses promovem o individualismo, e a ideia de que você consegue tudo se for excepcional. De que seja uma pessoa excepcional, e todos se curvarão a você, e aí você salva o mundo. E especialmente, se que se você for excepcional o suficiente, você pode quebrar as regras, pois os resultados são o que realmente importa, e resultados não se conseguem escutando os outros, e sim seguindo o próprio instinto.

Então repare assim. O Indiana Jones em seus filmes está representando a comunidade arqueóloga e tendo suas ações aprovadas por algum grupo do qual ele faz parte? Não. Os vilões do Indiana Jones estão representando um grupo que é maior do que os 10 gato pingado que ele mata no filme? Sim. Exércitos são ruins, e os vilões do Indiana Jones não tem a mesma individualidade que ele. O arqueólogo excepcional que despreza ficar na biblioteca conferindo livros.

O herói que não segue ordens é famoso. Ele tem um chefe, e ele ignora o chefe, pois ele sabe o que é o melhor. O herói típico do cinema estadunidense é insubordinado, arrogante, prepotente e altamente competente de maneira que justifique seu problema de comportamento. Quando eles são parte de uma instituição, eles são a parte problemática, por não serem quadrados nas regras internas.

O gênero inteiro de filmes de super-herói gira em torno da noção, de que a lei deve abrir exceções para pessoais excepcionais, pois a liberdade irrestrita dessas pessoas excepcionais de não serem limitadas pelo que limita uma pessoa normal, causa mais bem do que mal ao mundo. Qualquer filme em que uma lei tenta regulamentar a ação dos super-heróis, o agente do governo ocupa um papel antagonista no filme, e o herói é recompensado e celebrado por passar por cima dessas leis.

No caso de Civil War, em vez de uma instituição estadunidense tentar regular os heróis, o fardo foi pra ONU.

Essa perspectiva é tipicamente estadunidense, e não universal. Boku no Hero Academia é um mangá e um anime de grande sucesso no ocidente, com muito carisma, que se passa em um mundo em que o super-heroismo é completamente regulamentado, identidades secretas não existem, e todo super-herói precisa de uma autorização do governo pra poder atuar. O mundo de Boku no Hero Academia não é uma distopia sobre abuso de autoridade, nem um mundo em que todo supervilão depois de derrotado vai e mata a mãe do Deku só de vingança. Porém é um mundo em que a lei do registro e as propostas do Tony Stark nas HQs de Civil War passaram.

The Incredibles faz um ponto tão forte a respeito da liberdade dos excepcionais de estarem acima da lei, que o filme é amplamente acusado de ser propaganda dos ideais de Ayn Rand, o que muita gente critica e nega, que existem pontos no filme que contrariam o objetivismo de Rand, mas as rimas estão lá mesmo assim.. Ayn Rand é uma autora russa que criou a filosofia do objetivismo, que prega que se todo mundo puder agir só em torno do próprio interesse, o chamado “egoísmo racional”, o mundo se tornará um lugar bom, pois vai permitir que as pessoas excepcionais tenham o poder de guiar o mundo pro seu melhor. E essa autora, que manifesta seus ideais primariamente em dois livros Atlas Shrugged e Fountainhead, onde a busca por igualdade social faz com que a sociedade colapse diante do fim de sua elite, que é composta pelos melhores e mais aptos cidadãos. Isso é até hoje a grande bíblia do partido Republicano e da direita estadunidense.

E inspiração para uma tonelada de filmes. E não por coincidência, já que durante o Macarthismo, Ayn Rand não só foi uma aliada do FBI em identificar quais filmes eram comunistas ou não, como ela pessoalmente escreveu um panfleto com guias de como fazer os seus filmes não serem comunistas.

O link pro guia dela aqui.

O guia de Rand inclui: Não criticar empresas, não criticar indústrias, não criticar riqueza, e não vilanizar o desejo por lucro, não glorificar o homem comum, não glorificar o coletivo, não glorificar uma pessoa que fracassa, não glorificar pervertidos, não criticar o homem independente e por último não criticar as instituições políticas estadunidenses. E eu cito aqui:

“É verdade que já tivemos parlamentares, juízes e políticos perversos que fraudaram eleições, assim como toda profissão já teve homens perversos. Mas se você for mostrar um deles em uma história, certifique-se de que você está criticando esses homens em particular, e não o sistema. O sistema americano, do jeito que é, é o melhor já pensado na história. Se alguns homens não o honraram, então condenemos esses homens, e não o sistema que eles traíram.”

E bem, isso tudo é sobre eliminar o comunismo, o marxismo, e alguns ideais de esquerda de ter uma voz cultural, em um país que na década de 1930 descobriu que Hollywood era sua maior indústria de propaganda política. Mas isso também é sobre preservar nos valores do individualismo, do capitalismo e do respeito pelo sistema estadunidense e suas instituições, uma noção grande de identidade nacional pro povo estadunidense. Para que celebrar os Estados Unidos seja celebrar o individualismo, o capitalismo e as instituições nacionais.

A identidade estadunidense na cultura pop:

Em ao longo de quase todos os anos 1980, os Estados Unidos foram governados pelo ex-dedo-duro do FBI, figurão de Hollywood e fã de carteirinha da Ayn Rand, Ronald Reagan (embora aparentemente, ela não seja muito fã dele). E o seu governo coincidiu com o estabelecimento da década do entretenimento que se tornou o pilar que sustenta todo o conceito de cultura pop até hoje.

E quando isso aconteceu, o país estava na ressaca de um evento histórico chamado “Guerra do Vietnã”, que foi a grande guerra que os EUA perderam. Foi uma guerra desumana, em que os Estados Unidos cometeram inúmeras violações de direitos humanos, destruiriam vilas civis, queimaram pessoas com napalm, fizeram barbáries e perderam, deixando de legado uma chacina de jovens e adolescentes estadunidenses mortos para deter o comunismo em um país que é comunista até hoje, pois não foi detido.

Pois bem, Reagan, uma figura altamente midiática, foi eleito pela maioria dos estados, inclusive o tipicamente estado Democrata, California, lar de Hollywood e foi eleito em uma campanha nostálgica, prometendo recuperar alguma velha identidade nostálgica, um Estados Unidos brilhante do passado.

Ele propôs um plano econômico liberal, pautado em poucas regulamentações, diminuição de impostos pros ricos, alta liberdade pra empresas. E a cultura pop seguiu a vibe dele.

Voltando do trauma da guerra do Vietnã, embora alguns diretores quisessem falar no assunto e conversar sobre esse trauma coletivo, como Francis Ford Coppola em seu filme Apocalypse Now, o cinema, em especial o cinema de estúdio, dos anos 1980 queria ser divertido.

Um filme sobre um veterano da Guerra do Vietnã que voltou quebrado, com PTSD e sem se encaixar no mundo, foi transformado com o poder da trilogia em uma das franquias de ação mais divertidas da década.

Explode uma franquia sobre viajar pro passado, relembrar os anos 1950, ver como eles moldam os EUA do presente, e essa franquia é pura diversão.

Fizeram um filme que serviu como uma das grandes propagandas das medidas econômicas de Reagan, com os protagonistas sendo empreendedores começando o próprio negócio de caça aos fantasmas, e seu negócio é ótimo, até que os órgãos regulamentadores do Estado quase destroem Nova York.

O Indiana Jones começou a enfrentar os nazistas, os inimigos de 50 anos atrás.

Muito olhar pro passado, muita celebração da identidade estadunidense, filmes sobre o triunfo na terra das oportunidades. Filmes sobre finais felizes. E filmes empolgantes. Hollywood pegou fogo nessa época.

Nos anos 1980 uma pandemia mortal estava correndo o mundo, e o governo Reagan estava tomando a postura de essencialmente não fazer nada a respeito. O surto da AIDS é algo que eu não vivi, e presumo que muitos leitores meus também não viveram, mas se agora que a gente viveu o Covid, temos alguma noção de como um medo generalizado de um vírus novo pode impactar a população. Tentem imaginar como deve ser em um vírus que tinha uma taxa de mortalidade de 100% e sem vacina e completamente incurável (na época, recentemente começamos a fazer muito progresso em curar a AIDS).

E se conosco tínhamos o Bo Burnham fazendo um vídeo só sobre as ansiedades do Covid como um dos grandes lançamentos da Netflix, nos EUA eles tinham…. Nada. O John Lennon foi morto a tiros, rolou o incidente de Chernobyl, e a paranoia de ser morto pela bomba atômica por causa da guerra fria ainda tava viva e forte, e eles tinham um grande código de: evitar falar no assunto no cinema.

Filmes como E.T, como Rocky 4, como Star Wars V, Star Wars VI, como Gremlins e como Top Gun definiram o tom do cinema da época, de não falar diretamente sobre nada disso, de que o povo precisava se divertir, esquecer, e que o cinema devia ser uma experiência oposta ao noticiário.

O que não é o mesmo que dizer que esses filmes não tinham política. Ou que eles não ajudaram o povo estadunidense a se definir. Pelo contrário, nesses filmes havia patriotismo. As vezes direto, como em Top Gun e Rocky 4. As vezes indireto como em Ghostbusters, Indiana Jones. E alguns eram E.T, a maior bilheteria dos anos 1980, e foi por dez anos consecutivos a maior bilheteria cinematográfica da história até ser superada por Jurassic Park.

E.T é uma história sobre amizade, sobre aceitar as diferenças, sobre não ter medo de quem vem de fora, e sobre altruísmo, sobre a importância de ajudar o próximo. O filme também é uma defesa aos valores familiares, a importância da família nuclear, aos valores da cidade pequena e do subúrbio, em que a burocracia e interferência governamental (que assim como em Ghostbusters é tratado como uma instituição, sem individualizar o problema), são os responsáveis pelas coisas ruins.

E isso é a identidade nacional que Hollywood precisava reconstruir. Isso serve para lembrar o povo o que eles querem proteger e recuperar para poder evitar a mudança.

Sendo a mudança, a crise da AIDS trazer à tona o tratamento merda que a comunidade gay recebia na época, e os direitos que eles querem conquistar. A pauta pelos direitos gays e pela visibilidade gay estava fortíssima (e não é coincidência que nos anos 1990, ao fazer os primeiros filmes sobre a AIDS, foi a primeira vez que a Hollywood convencional fora do circuito alternativo começou a dar seus primeiros passos em escrever personagens gays humanizados e em tratar homossexualidade como algo não-condenável). Por isso nessa época reforçar a família como uma instituição que se fortalece por ter um pai e uma mãe, e reforçar que você não precisa do governo eram as mensagens fundamentais de Hollywood.

O que me leva enfim ao Cuck Cinema e ao ponto do texto.

Cuck Cinema:

Ok, agora eu imagino que vocês devam se estar perguntando porque eu repassei toda a história de como o conservadorismo estadunidense guia Hollywood por décadas e décadas. Eu espero que vocês estejam se perguntando isso ao menos, muito tempo longe do tema central do texto. Mas é justamente pra estabelecer os seguintes pontos:

Primeiro: Apesar de Hollywood ter, por tradição, tendências que estão a esquerda das maiores lideranças de direita dos EUA, a indústria cinematográfica nunca está significantemente longe da narrativa central do país. Eles tentam ser progressistas, mas mantém os valores centrais de sua época que muitas vezes são definidos pela direita. É como Hollywood opera. Dan Aykroid é pessoalmente contra as políticas do Reagan, mas em 1984 ele dançou o ritmo da grande narrativa nacional inconscientemente, e fez um filme sobre o sucesso da economia Reagan.

Segundo: queria também estabelecer os valores conservadores que dominaram essa jornada. Em especial a contradição da relação do povo com o governo, que eu espero que vocês tenham notado. Não é pra criticar o sistema, as forças da lei e da ordem nem o exército, e especialmente a democracia estadunidense. Mas ao mesmo tempo, a burocracia estatal, o autoritarismo, noções de regulamentações e de adaptar as leis a conceitos novos e braços fictícios do governo (como o órgão-anti-alien de ET que não tem nome, então não é o FBI, que protege a população), são usados como escada para enfatizar como o cidadão tem que ter liberdade de se rebelar contra o governo, ser livre e viver sem ser na coleira dos agentes do governo… é só não ser o FBI fazendo isso. Pois o FBI existe e os vilões de ET não. O FBI protege a população e é nobre, mas os agentes do governo genérico não entendem o mundo e querem atrapalhar as empresas e a família. Existe uma diferença.

Para muitos, colocar os crimes reais cometidos por agentes reais da NSA, na conta da SHIELD e do Nick Fury, é uma maneira efetiva de se criticar o problema. Para outros falar que isso é tudo culpa dos nazistas que se infiltraram na SHIELD é uma maneira de tirar a culpa da NSA e dos estadunidenses que cometem esses abusos sem nenhuma influência nazista.

Mas enfim, aí a gente avança no tempo até os dias atuais, onde a esquerda nos EUA ganhou um gás completamente novo graças à juventude. Graças à chamada Geração Z. Os jovens dos Estados Unidos lideram movimentos como o Ocuupy Wall Street, o Black Lives Matter, o #MeToo e são a grande parte do eleitorado de Bernie Sanders. Surgiu um novo gás, e uma nova vida para noções de pautas progressistas por parte do jovem moderno. E ideias que já existiam estão tendo sucesso em serem difundidas nas redes sociais, e forçando o povo a falar sobre racismo estrutural, sobre pronome neutro, sobre direitos humanos e sobre como os EUA historicamente oprimiu minorias e isso precisa mudar. Tudo isso ganhou uma voz que nos anos 1980 estava debaixo dos panos e agora não pode ser ignorado pelos conservadores.

Reparem em como os Simpsons que constantemente se contradizem para ser um espelho dos discursos sociais de sua época, tem Lisa brigando contra Adil na 1ª temporada sobre capitalismo vs comunismo, em que ela toma o lado do capitalismo, em virtude dos EUA ser a terra da liberdade. Na 33ª temporada, ela admite envergonhada o quanto o projeto dela de sociedade perfeita tem diversas rimas com o comunismo. A Lisa representa a perspectiva do jovem politizado desde sua concepção e essa perspectiva mudou com os anos, e criou uma geração altamente progressista que está fazendo barulho nos EUA. Estima-se que hoje 58% dos eleitores dos estadunidenses entre 18 e 34 anos acreditam que o socialismo é bom pra sociedade.

E reforço, pondo a luta das minorias em primeiro plano. E fazendo cobranças em Hollywood, por mais representatividade, por reformular como personagens de minorias são retratadas e por verem mais progressismo no cinema.

Entra então o Cuck Cinema. A estética desse progressismo, um uso não estereotipado e respeitoso de minorias, como peça central de um filme que promova o status quo, a ausência de mudanças políticas, o capitalismo como sistema político e a confiança na polícia, exército, FBI e CIA.

A tentativa de Hollywood de seguir sendo um espelho para os valores conservadores, tentando dar a esse público o que esse público quer gerou coisas como, uma série sobre a agência de polícia de uma das cidades com mais acusações de má conduta policial dos EUA, sendo composta por gays, negros e latinos todos na esfera progressista. Eles raramente apontam a contradição entre o racismo estrutural do qual a polícia faz parte e as visões progressistas deles mesmo, e quando apontam, eles resolvem tudo dentro do sistema. Mostrando que apesar dos policiais racistas, a Instituição Polícia de Nova York realmente valoriza honestidade e trabalho duro e recompensa os progressistas que querem fazer um bom trabalho ali dentro.

…. aparentemente Brooklyn 99, parou de tentar viver em um mundo sem o Black Lives Matter na sua reta final, pois a contradição já não podia ser ignorada, e eu confesso que não fui ver o resultado. Mas quando a série foi criada e atingiu seu auge de popularidade era isso aí.

Temos também a Captain Marvel, um hino pelo empoderamento feminino e pela independência da mulher promovendo as forças armadas dos EUA como uma instituição onde esse empoderamento acontece.

Ou a luta pelos direitos mutantes dos X-Men envolvendo o Charles Xavier se envolver romanticamente com uma agente do FBI, e ajudar a deter os comunistas e mutantes terroristas ajudando os comunistas.

Além é claro dos dois grupos sociais que se sentiram extremamente representados no filme Black Panther, a comunidade negra e os agentes da CIA, que amaram o filme. Claro. Retrata um agente da CIA indo pra África, interferindo em uma guerra civil, matando os simpatizantes do rei mau, pro amigo dele subir ao trono. E frisando que a interferência da CIA na situação de Wakanda foi boa pra Wakanda.

Eu juro, não tem um filme do James Bond que deixa esses agentes se sentindo amados que nem Black Panther deixa, não é surpresa que a CIA foi a maior torcida do mundo pra Black Panther ganhar o Oscar.

Meu favorito fez menos sucesso que esses aí, mas é o The Greatest Showman, biografia promovendo o filho da puta do P. T. Barnum, homem que meio que inventou o formato circense nos EUA da maneira que conhecemos. O filme insiste na ideia de que ao criar um Freak Show, Barnum empoderou a mulher barbada, os gêmeos siameses e as demais atrações dele. E fazem a mulher barbada cantar uma música sobre empoderamento e sobre estar ocupando os espaços que foi indicada ao Oscar de melhor canção.

A perspectiva de que o dono do circo explorar as pessoas com problemas de formação transformando suas condições físicas em espetáculo nunca é explorada. E o filme explicitamente diz que o dono do circo se põe como um igual às “aberrações”.

O plano é fazer filmes que mostrem o quanto a luta por direitos humanos e igualdade pode ser obtida dentro do Status Quo, com a ajuda da Polícia, do Exército, da CIA, do FBI, das grandes empresas, do Capitalismo Desenfrado. Afinal, no capitalismo, podemos ter CEOs mulheres, podemos ter gays na CIA, esses grupos podem incorporar diversidade dentro de si para fazer as pazes com algumas minorias. Afinal dentro do sistema, um homem negro pode virar o presidente. Quando a Kamala Harris foi eleita vice-presidente dos Estados Unidos, o fato dela ser uma mulher negra foi colocado em primeiro plano a respeito da importância dela ali, acima da sua conexão com a polícia e a um passado sendo parte dos abusos policiais que ocorreram nos EUA.

E aí os responsáveis por adaptar One Piece, um mangá de enorme viés anti-autoritário, declarou que acredita que o Luffy, protagonista de One Piece é uma espécie de Kamala Harris.

E aqui, eu acho que é importante deixar claro uma coisa.

Diversidade e representatividade em Hollywood é bom. Aliás, só falar que é bom é fácil, deixa eu ampliar isso. Mesmo quando o filme é ruim, é bom. Mesmo se o filme for propaganda nazista, tem um lado bom. Pois significa que o discurso está forte demais que mesmo as forças que o antagonizam estão tendo que ceder. Quando uma propaganda conservadora precisa colocar minorias bem representadas e com grande apelo ao jovem de esquerda no centro de seus filmes, significa que eles já não podem mais se dar ao luxo de antagonizar essas pautas nos filmes. E isso é bom. É uma conquista, são os conservadores recuando….

Digo, o CEO da empresa de Lightyear literalmente financiou a campanha eleitoral de uma série de políticos homofóbicos que lutam por leis homofóbicas. E os lucros de Lighyear foram todos pro bolso dele pra financiar a campanha de mais homofóbicos para lançarem mais leis. Mas mesmo assim ele é obrigado a por um personagem gay por filme e a vendê-lo como “o primeiro personagem gay da Disney”, pois ele não consegue fingir que aguenta antagonizar esse público em seus filmes. Ele precisa apesar de tudo, tentar fazer as pazes com a comunidade.

Outra coisa que eu acho fundamental deixar bem claro é que existem setores da esquerda que acreditam que as pautas identitárias atrapalham a esquerda, e distraem da luta de classes, e deviam ser removidas dos debates e tal, e eu acho esse papo uma grande merda, discordo bastante disso. As pautas identitárias são importantíssimas, e elas devem tomar a linha de frente da luta por um mundo melhor. Falo com clareza, pois não quero meu texto sendo distorcido pra validar galera querendo expulsar pauta identitária das lutas de esquerda não. Enfim, por isso justamente que é importante ficar atento para não naturalizar a maneira como a mídia propõe soluções para os problemas sociais que elas apontam dentro do sistema capitalista. O mundo precisa de pautas identitárias, e esse é o grande motivo pelo qual é necessário algum cinismo em relação à Hollywood atual.

E eu acho que esses próprios filmes, como Captain Marvel ou Black Panther podem e devem ser celebrados pela sua representatividade. Não é eu papel aqui tirar o doce da boca da criança… mas é o meu papel aqui explicar quantos corantes artificiais insalubres colocaram nesse doce que deixa a criança feliz. Acho importante perceber essas coisas.

Pois é quando a gente não percebe, que as coisas viram propaganda. O pensamento crítico é a antítese da propaganda. E a gente tem que saber olhar pra esses filmes.

Porque agora toda temporada de Oscar vem isso. Jojo Rabbit, filme amado pela sua condenação do nazismo, ridicularização de Hitler e por mostrar como o nazismo afetava o povo alemão. O filme tem um subtexto muito forte de fazer o público entender de verdade, que as pessoas que não havia anti-semitismo real nos soldados que lutaram pelo nazismo na segunda guerra mundial, só um discurso vazio e sem contexto que eles repetiam por um senso de pertencimento. Isso é evidenciado no arco de personagem de Jojo, que não era um nazista de verdade, só um jovem fazendo roleplay de nazista porque fazia ele se sentir parte do clube. E também no personagem de Klezendorf, o líder do centro de lavagem cerebral em crianças, que não tinha nada contra os judeus, protege Elsa, a menina judia, da Gestapo. E revela que ele também, mesmo sendo uma autoridade nazista e parte da conversão de crianças, ele só queria vestir uma roupa estilosa e se sentir parte das coisas.

O capitão Klezendorf termina se sacrificando, permitindo que os Soviéticos o matassem e suas últimas palavras foram pedir pra Jojo proteger a menina Judia. Depois o diretor Taika Waititi veio por fora explicar que o personagem é gay, e que era importante entender a diversidade que havia dentro do nazismo.

O filme faz um ponto em nos fazer entender a diferença entre os soldados que praticam o nazismo porque acreditam e a diferença entre os que praticam sem acreditar. E eu, pessoalmente, não consigo ver essa diferença sendo relevante. Como se todo mundo que invadiu o Capitólio só por que se sentiu parte de uma comunidade não fosse parte do problema. Como se ninguém que não está acampado em frente a um quartel seja parte do fascismo brasileiro. Como se um senso de inclusão e pertencimento não seja como os fascistas predam em jovens inseguros para convencê-los a adotar uma ideologia de ódio e ressentimento, como se fosse tudo separado e o Jojo não tivesse se envolvido de verdade com nada errado.

Mas o ponto não é nem isso, isso é só uma birra minha, não é a parte que importa. O filme conclui com Elsa vendo a bandeira estadunidense e ficando aliviada que a cidade dela foi tomada pelos aliados. É historicamente conhecido que os estadunidenses não tomaram a Alemanha nos momentos que antecederam o suicídio de Hitler. Os soviéticos tomaram. Mas a narrativa clara de que “Os Estados Unidos ganharam a Segunda Guerra Mundial”, é parte de uma narrativa estadunidense, de ver a Segunda Guerra Mundial como os estadunidenses salvando o dia.

E o filme deixa claro que sua condenação do nazismo é dentro da perspectiva estadunidense, em que os EUA são os algozes do nazismo. E a bandeira estadunidense é um símbolo da esperança… quando todos nós sabemos qual foi a bandeira que foi hasteada quando a Alemanha foi tomada pelos aliados. A foto é famosa.

E o filme cortou uma cena também, em que literalmente falavam sobre como os Estados Unidos foram os grandes heróis, mas cena foi removida, por ser “esperta, porém desnecessária.”

As críticas de Jojo Rabbit ao nazismo são genuínas, mas são presas a perspectiva estadunidense e não dão a sua audiência as armas para que eles possam efetivamente criticar o neofascismo que estava no comando dos EUA quando o filme lançou. 

Quantos jovens em Charlottesville não são somente Jojos, querendo ser parte da turma, e que precisam somente ser amados e acolhidos pelas minorias que eles ameaçam de morte, para se tornarem pessoas boas? Que visão de mundo conveniente para quem está de fato se sentindo empoderado pela normalização do fascismo atualmente. Muita gente no mundo não é a Elsa, que quer abraçar e responder com amor quem fala que ela merece ser exterminada, e ninguém precisa ser a Elsa também não.

Enfim. Filme de Oscar.

O que mais é filme de Oscar? Three Bilboards Outside Ebbing Misouri, em que uma mãe irada pelo estupro e assassinato de sua filha começa a cobrar mais ética e profissionalismo da polícia de sua cidade e aprende que ela não pode direcionar a sua raiva contra a polícia, que o policial racista e torturador da cidade não é inimigo dela, é só alguém que age assim, pois não tem gente elogiando ele pelo seu trabalho. E inclui literalmente uma cena em que um policial negro explica para a personagem que nem todo policial é parte do problema. O filme saiu no auge do movimento Black Lives Matteri, tomando completamente a defesa da polícia, sob a mquiagem de um filme que explora o ódio e a impotência diante do feminicídio.

E entre Green Bock e Argo sendo vencedores de melhor filme, podemos ver que o Oscar, e por consequência a produção Hollywoodiana, vai incentivar filmes que reforcem os valores conservadores. A narrativa estadunidense. O Status Quo. E a maneira como minorias podem ser incorporadas nessa visão conservadora, então não tem a necessidade real delas se manifestarem contra o sistema, que não precisa ser inimigo delas desde que elas queiram fazer parte.

Sabe o que mais eles adoram fazer? Pegar um vilão e usá-lo como veículo pra o filme falar de pautas sociais importantes e do presente. Depois faz o vilão trair seu discurso, e falar que ele acredita que pros seus ideais, é necessário matar os inocentes. Pronto, o filme em uma tacada só conseguiu associar as pautas sociais do presente ao assassinato de inocentes, associou ela aos vilões, fez os personagens que acreditam nessas pautas precisarem ser detidos/mortos. Mas o filme vai colher os méritos de ter trazido discussões importantes pro debate e os méritos de ter feito um vilão cinza e tridimensional e, portanto, um filme complexo. Colocamos o filme em um pedestal por levantar uma pauta que o filme na real criticou.

E isso é um cavalo de troia. É um filme de corno. Elevamos, divulgamos e vendemos a importância de um filme que cochicha pra gente que ele quer mudança, mas quando a gente não tá vendo, está dormindo com o Tio Sam. E usam isso pra acalmar o povo. Um povo cada vez mais irritado consumindo grandes filmes com uma estética progressista falando “raiva não é solução, a solução real é perdoar o opressor, fazer as pazes com as instituições e acreditar na bandeira estadunidense.” É muito importante que a raiva, e atacar os agentes de opressão nunca seja a solução nos filmes, pois tem muito agente de opressão nos EUA morrendo e medo do número de pessoas que começou a sentir raiva nos últimos anos, precisando muito que a mensagem de que heróis não devem usar violência contra tiranos.

Não é todo filme. Pois Hollywood não é um monólito, só porque tem tendências claras. Ainda tem filmes conservadores que fazem um ponto em não ceder espaço nenhum para uma estética que agrade a esquerda. E ainda tem diretores que de fato não buscam fazer nenhum tipo de pazes com a narrativa predominante. Get Out considerou importantíssimo mostrar que os vilões do filme são eleitores do Obama que se consideram progressistas. Que essa gente é parte do problema.

Eu não acho que o Cuck Cinema deva ser boicotado, nem que ele não possa dialogar com o seu expectador positivamente. Mas eu acho importante ele não ficar escondido. Se o Cavalo de Troia for transparente, aí tá tudo bem, a gente pode ver os soldados lá dentro e se defender deles. Mas enquanto a gente não apontar essas propagandas, elas continuam te afetando. Sermos agentes ativos e não passivos na hora de consumir, interpretar e analisar entretenimento nos protege da propaganda, o que me leva a um ponto importante que não pode ficar sem ser dito.

Temos o poder de decidir a mensagem do filme:

Eu estou aqui falando de com Hollywood historicamente se deixou cooptar pela direita, não enfrenta o discurso conservador vigente nos EUA e isso tudo se transfere pros seus filmes e que a indústria cinematográfica é a maior máquina de propaganda de todos os EUA, que com seu poder de exportar cultura apresenta essa propaganda pra todo o planeta…. Mas apesar de tudo isso, depois que o filme lançou ele foi lançado, ele está aberto a ser interpretado por qualquer um.

Afinal de contas, o filme é mais sobre o que a gente tira dele do que sobre o que colocaram nele.

Então, o fato de que a gente pode entender que um filme foi financiado pelo pentágono para motivar jovens a se alistarem no exército e validar as intervenções militares dos EUA no exterior, usando o poder do feminismo para divulgar o filme como um filme necessário e importante pra mudar a cultura pop. Isso não é necessariamente a sua relação com o filme, a sua relação com o filme pode ser qualquer coisa. Eu dei esse exemplo de Captain Marvel agora, e você pode se conectar com o filme por conta de fato da jornada de empoderamento de sua heroína, mas você também pode apreciar um secundário, os Skrulls, ou qualquer elemento.

Pois filmes são diálogos. O que fica é como os elementos do filme se misturam com o seu repertório e visão de mundo e formam o que você tirou do filme. E o que você tira do filme sempre vai ser único e seu, desde que você de fato tenha agência para vê-lo com sua própria visão.

Por isso qualquer um pode objetivamente tirar uma lição de esquerda em um filme que seja propaganda da direita, e vice-versa. Aliás, cá entre nós, a direita faz isso faz muito tempo, eles são especialistas em fazer isso. Toda a esquerda morre de medo de usar o simbolismo da pílula vermelha e da pílula azul pois a direita se apropriou dessa imagem para descrever a narrativa deles de que o politicamente correto é a Matrix. E nenhum posicionamento das irmãs Wachowski faz eles mudarem a leitura deles de Matrix como um filme conservador, que valida como eles pensam.

Da mesma forma, os nazistas adoram American History X, uma explícita crítica ao nazismo, que no processo de criticar não pode evitar fazer os neonazistas gostarem de se ver retratados e se sentirem empoderados em cenas de violência cuja conotação negativa eles abstraem.

E temos o bom e velho Fight Club, que é outro que eles deixaram a esquerda com medo de tocar no filme, com a reputação do filme de formar incels, graças ao culto de um público que vai na contramão dos ideais por trás do filme.

Para isso, o público agora fala que “os conservadores não entenderam o filme.” Que eles não entenderam nenhum filme, que eles não entendem Star Wars, nem X-Men, que tudo que é progressista eles não entendem e interpretam errado.

E sim, de fato eles rejeitam a interpretação dos autores da obra e a mensagem original. Mas é assim mesmo que se vê filme, e a gente pode fazer isso também. Nós decidimos qual é a mensagem do filme. Não estamos presos a mensagem original, pois inúmeras obras têm mensagens acidentais, tem mensagens que surgem com um novo contexto, ou tem uma mensagem original que é mal passada e o autor acaba falando o oposto do que ele queria.

O Padilha achou que estava criticando o bope eficientemente em Tropa de Elite, e ele ajudou a promover admiração pelo Bope e a começar o nascimento do fascismo no Brasil. Isso significa que quem vê o filme sob uma perspectiva crítica a polícia tá errado? Ou que os fascistas tão errados? Ninguém tá errado, pois depois que o filme sai ele é de todo mundo, existem inúmeros filmes chamados Tropa de Elite com um conteúdo diferente, um pra cada expectador diferente.

E isso nos dá agência. Nós projetamos, interpretamos, adicionamos perspectivas que os autores não têm acesso, discutimos, analisamos, falamos com os outros, e somos agentes ativos em ver a mensagem do filme. Não somos esponjas. Não estamos absorvendo tudo sem critica e sem reflexão.

Não podemos ser. Se formos, aí sim a propaganda vence.

Conclusão:

Gente. Eu não quero cagar regra em vocês. Vocês se divirtam com o que vocês quiserem, eu mesmo tenho filmes reacionários no meu histórico de filmes favoritos. Esse texto não é com o propósito de criar uma lista de filmes banidos que quem assistir perde o direito de se chamar de progressista. Até porque eu pessoalmente não só não acredito em remover carteirinhas dos outros, e muito menos me sinto qualificado pra questionar os demais assim.

Mas eu vejo esse texto como uma ajuda para ler rótulos. Assim como é importante ler rótulo de suco de laranja natural, orgânico, sem conservantes cuja empresa faz parte do combate ao desmatamento, para conferir se qualquer um dessas informações é, na verdade, uma mentira (e muitas vezes todas se tornam mentira ao ler o rótulo), é importante saber “ler o rótulo” dos filmes.

Pois mesmo tendo o poder de tornar qualquer filme nosso, vendo-o de nossa perspectiva, ainda é importante saber de onde ele vem. Hollywood é uma das maiores máquinas de propaganda política do mundo, e a maneira como os filmes estadunidenses são usados pra propagar ideologia estadunidense não perde em nada pro cinema nazista nem pro cinema soviético, regimes famosos pelos seus filmes usados como propaganda, que fazem a gente pensar que “na democracia essas coisas não rolam”, ah, mas rolam sim.

Pois já falei várias vezes no texto e reforço. A propaganda funciona quando é ignorada. A visão crítica, e a interpretação enfrentam a propaganda embutida nos filmes.

Mas é isso. Faz poucas semanas estreou na Shonen Jump um mangá novo em que na primeira cena, o protagonista comenta seu choque, ele começou uma escola nova e acreditava que sua nova escola seria progressista, pois as meninas não precisavam usar minissaia como uniforme. Porém ele descobre que isso se deve porque a escola é uma escola de formação militar barra pesada. E acho que essa cena parece muito com como se consome entretenimento hoje em dia.

Eu acho importante pela maneira como os EUA dominam o nosso consumo de entretenimento, que a gente sempre tenha o pé atrás. Os EUA têm uma identidade nacional forte demais pautada na perpetuação dos sistemas de poder que se beneficiam de um mundo racista, misógino, desigual. E até os mais bem-intencionados dos estadunidenses não estão imunes de ser parte disso. Eu não acho que a solução é traçar uma linha no chão e falar “só vou ver filme iraniano daqui em diante para não me corromper”, primeiro porque não é assim que o mundo funciona, não é porque um filme é não-estadunidense que ele não fortalece o fascismo nacional, a gente fez Tropa de Elite nós mesmos, mas principalmente porque os EUA sendo o maior exportador de entretenimento do planeta, eventualmente eles vão fazer muita coisa boa. E o que é bom deve ser visto.

Não é pra ninguém virar um sujeito hipotético que não vai ver Breaking Bad, pois foda-se o entretenimento imperialista. Mas lidar com a narrativa estadunidense exige uma dose razoável de cinismo. Pois os EUA historicamente nunca foram parte da solução, eles consistentemente tem sido parte do problema. E é fácil acharmos que a Disney se adequou aos tempos, mas não.

Se os nossos filmes progressistas, revolucionários que enfrentam os conservadores vão de vez enquanto dar aquela escapada e ir dormir abraçados com os conservadores, então a gente pode até dar essa permissão. O que não dá é ficar sendo o corno.

Sobre o autor

Izzombie

Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

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Izzombie

Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

Alertas

  • – Todos os posts desse blog contém SPOILERS de seus respectivos assuntos, sem exceção. Leia com medo de perder toda a experiência.
  • – Todos os textos desse blog contém palavras de baixo calão, independente da obra analisada ser ou não ao público infantil. Mesmo ao analisar uma obra pra crianças a analise ainda é destinada para adultos e pode tocar e temas como sexo e violência.

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