Zom 100 e a evolução da ideia por trás de Zombieland.

Z

Em 2009 estreou esse filme chamado Zombieland. Esse filme era uma comédia que fazia chacota com os clichês do subgênero “filme de zumbi”, mas ela era diferente.

E não somente era diferente, pois filmes que misturam comédia com apocalipse zumbi ainda não eram comuns, com Shaun of the Dead sendo o único que eu consigo imaginar que veio antes, mas não é sobre quem veio primeiro, pois Zombieland também é diferente dos que vieram depois, como Warm Bodies, Cockneys vs Zombies e Anna and the Apocalypse, que também misturam comédia e humor descontraído com o apocalipse zumbi, mas não fazem o que Zombieland fez.

Em filmes do subgênero de zumbis, independente de se ele está se levando a sério ou não, geralmente temos o foco na sobrevivência. Uma galera enfiada em algum lugar supostamente protegido, ficando paranoicos, e tendo que decidir se vão deixar os sentimentos de alguém fazer com que corram riscos ou se vão seguir o cara racional que também é um canalha. Esse conflito de sobrevivência e dos sacrifícios necessários pra se manter seguros é o feijão com arroz do gênero.

Zombieland é um road movie, um filme dos personagens criando laços em uma viagem de carro, rumo a um parque de diversões, que era o sonho da menina mais nova da turma, enquanto o mais velho quer coletar todos os twinkies que ele conseguir, pois eles tem um prazo de validade que resiste ao apocalipse. Os personagens não estão enfurnados num espaço sendo paranoicos, eles estão rodando o mundo formando laços novos e se tornando uma família, invadindo a casa do Bill Murray e curtindo um pouco.

O protagonista Columbus tem uma lista de regras que devem ser cumpridas pra poder sobreviver o apocalipse. Mas no meio do filme, quando eles todos resolvem destruir uma loja de souvenirs de nativo-americanos só pra descarregar, o Columbus adiciona uma regra nova “Desfrute dos pequenos momentos”. Era importante conseguir se dar os pequenos prazeres ali.

Zombieland não é um filme sobre os personagens sobrevivendo, era sobre eles vivendo. Os Estados Unidos deixaram de existir, e eles são a população da Zumbilândia agora. E estão tentando achar qualidade de vida e diversão na nova terra deles.

É um filme otimista sobre formar laços novos, manter os espíritos erguidos, e sobre a importância de mesmo depois do apocalipse, seguir indo atrás do que você ama.

E aí, 9 anos depois veio esse mangá chamado Zom 100, e fez a exata mesma coisa só que fez melhor! E o texto é sobre esse mangá. Sobre o que ele tem de parecido com Zombieland, o que ele tem de diferente, e sobre a importância de se celebrar o melhor da humanidade nos filmes de zumbi. Eu sou Izzombie e sejam bem-vindos ao texto do Dentro da Chaminé, sobre a conversa sobre apocalipse Zumbi que Zombieland começou e Zom 100 deu continuidade.

Antes de começar quero falar da campanha de financiamento coletivo do Dentro da Chaminé. Esse Blog é financiado pelos seus fãs, e esse financiamento me ajuda muito a manter o site no ar. E se você quiser ajudar o site, pode participar contribuindo com o valor que achar justo, e participando do grupo de apoiadores. Ao que eu seria muito grato. E caso não queira fazer um compromisso mensal, mas quiser dar uma força, pode também fazer um pix de qualquer valor pra chave franciscoizzo@gmail.com, que você não só vai ter minha gratidão do mesmo jeito, mas também vai ter sua homenagem em um texto.

Pois esse texto aqui é escrito em homenagem aos que já me apoiam, dão forças, dão ideias, dão inspiração, e ajudam o blog de tantas maneiras. Eu espero de verdade que gostem do texto.

E esse texto é sobre Zom 100.

Então vamos falar desse mangá.

Zom 100:

Zom 100 conta a história de um rapaz chamado Akira Tendou, que desperdiçou os últimos três anos de vida trabalhando numa Black Kigyo, ou empresa negra, Que é uma empresa que oferece condições de trabalho insalubres no que diz respeito há obrigar horas extras não remuneradas, ao abuso verbal dos superiores, chantagens e ameaças para evitar demissões e ao stress que aplica. Black Kigyos são um problema enorme no Japão, normalizadas na cultura trabalhista local, e responsável por grande parte das mortes por excesso de trabalho, stress e suicídio do país.

Por isso quando Akira descobre que a epidemia dos zumbis se espalhou e não existe mais sociedade no apocalipse, ele fica feliz de saber que está livre do seu trabalho. Essa é a cena marcante do começo pelo seu elemento cômico, do cara de fato tratando o apocalipse e o fim da sociedade como se tivesse enfim entrado de férias. Ele usa o tempo livre pra arrumar a casa, pra poder beber o dia todo, e coisas do gênero.

Mas o mangá não fica só nisso. Ele rapidamente percebe que ele não é o típico herói de filmes de zumbi, e que ele talvez não sobreviva o apocalipse inteiro. Então em vez dele entrar no modo-sobrevivência e começar a estudar que hábitos ele precisa alterar pra poder ter uma chance de sobreviver, ele vai na direção oposta. Ele monta uma lista com “100 coisas que eu quero fazer antes de virar um zumbi”.

E a história essa, a questão trabalhista e do quanto ele odiava seu trabalho abusivo é importantíssima. Mas esse mangá muitas vezes é descrito como “A história de zumbi do assalariado que odeia o trabalho”, mas o foco maior de todos está na lista. Nessa grande bucket list que ele fez.

E os itens dessa lista são coisas do nível de: comer sushi, dirigir um trailer, ver uma aurora, fazer dreadlocks, aprender inglês ou abrir um bar. Coisas relativamente razoáveis de uma pessoa fazer em situação normal, que só se tornaram difíceis, pois agora a sociedade entrou em colapso. Mas o ponto é meio que esse, antes do apocalipse, não se tinha tempo, disposição ou energia pra correr atrás dos prazeres, mas agora depois do apocalipse, não só se tem esse tempo, mas as prioridades de Akira foram colocadas em perspectiva e ele percebe que é agora ou nunca que ele vai realizar os pequenos prazeres que o trabalho lhe privou.

E isso não é só uma pira dele. Ele não está sozinho. Ele seguindo a lista se reconecta com seu amigo de escola Kenchou, que sonhava em ser um comediante, mas se tornou um corretor de imóveis, e agora no apocalipse está não só ajudando Akira a realizar seus sonhos, mas está realizando seus próprios, tornando a lista de Akira em um projeto colaborativo.

Após isso entra pra turma: Shizuka, que antes do apocalipse era contadora de uma multinacional. Shizuka é uma mulher pragmática, que viveu a vida inteira colocando seus próprios desejos em segundo plano, em prol de viver com eficiência. Ela representa no começo do mangá a perspectiva tradicional do sobrevivente de uma história de zumbi, fazendo uma lista de regras de sobrevivência e fazendo todas as privações racionais necessárias pra não correr riscos. Naturalmente quando ela conhece Akira ela instantaneamente despreza ele.

Mas, naquelas coincidências que só existem na ficção, os caminhos dos dois seguiram se cruzando e ela seguiu achando ele maluco, até o dia em que ela viu Akira reverter a quem ele era antes do apocalipse. Shizuka, Kenchou e Akira topam por acaso com o ex-gerente do setor de Akira, e seu chefe direto. Ele rapidamente toma controle da situação pra explicar que ele liderava um grupo focado em sobreviver e fez um Akira sofrendo de PTSD diante de uma figura de quem ele tinha tanto medo, voltar a trabalhar pra ele. Ao ver o que era a vida de Akira ela rapidamente percebeu que os termos nos quais ela cresceu eram parecidos com o que ela viu acontecer com Akira e que ela não achava aquilo aceitável. Cabia a ela devolver a liberdade de Akira e começar a própria liberdade. Ela foi criada pelo seu pai rigoroso a ser uma máquina de eficiência que ela naturalizou, mas achar absurdo ver Akira sofrer, fez ela achar a própria situação um absurdo, e ela tinha que tirar essa mentalidade de si pra tirar ela de Akira.

O que inclui ela adicionar seus próprios sonhos na Lista dos Desejos de Akira também.

E eles vão conhecendo mais e mais gente que vai entrando pra turma, e atualmente já são sete rodando o país na van juntos, e essas pessoas chegam trazendo seus próprios sonhos, e nisso vão todos se conhecendo.

Eles criam esse laço legal de realizar o sonho deles juntos. O Akira queria correr uma maratona? Todos foram correr uma maratona. A Shizuka queria nadar com golfinhos? Todos foram nadar com golfinhos. A Beatrix, uma alemã fascinada pelo Japão que estava de férias quando explodiu o apocalipse, queria fazer o Caminho de Shikoku, que é uma jornada de dois meses por 88 templos que a maioria ali não tinha interesse? Todos foram.

Ao realizarem seus sonhos juntos, eles dividem seus sonhos um com os outros, fortalecem seus laços e se tornam uma família. Teve valor neles aprendendo o quanto a Beatrix amava aqueles templos pros quais eles não ligavam.

No geral o tom do mangá é o de aproveitar a queda da sociedade pra recuperar tudo o que viver nela tirou deles. Mas em vez de ser em um tom meio de gente coringando, é no tom de gente aproveitando cada momento do seu dia, mesmo em uma situação perigosa. Afinal, ser livre é a maior das resistências as vezes.

Liberdade, realização dos sonhos, e correr atrás do tempo perdido. Zom 100 é um mangá de zumbis que gira em torno desses ideias. E tendo eles definidos, vamos voltar pra comparação com o Zombieland.

Zom 100, Zombieland e os zumbis.

Uma das primeiras coisas que a gente nota em Zom 100, é que o autor não está se divertindo com a parte de matar os zumbis. O que os heróis mal fazem, matam um aqui e ali, mas eles principalmente fogem, e exceto por Beatrix ter uma espada de samurai, o restante nem sequer está armado.

Na maioria das histórias, um único zumbi dificilmente faria os heróis sairem correndo sem só encher ele de porrada.

Isso é estranho, pois se sobreviver, brigar com gente emotiva querendo abrir a porta, e ter a frieza pra atirar na sua mãe depois que ela virou zumbi é 50% de uma boa história de zumbis, os outros 50% é só matar muito zumbi. O gênero é muito focado na adrenalina que é poder dar um tiro bem na cabeça de um.

E as comédias não são exceção. Pelo contrário, as comédias se divertem pra ir além, pra exagerarem na violência e no quão mirabolante são as maneiras de matar zumbis. Do Shaun jogando discos na cabeça de zumbis como se fossem Shuriken, mas causalmente escolhendo a dedo quais que ele não quer se desfazer. Ou o massacre a um único zumbi ao som de Don’t Stop me Now do Queen.

E em Zombieland, o foco dos protagonistas era se divertir e matar os Zumbis era obviamente parte da diversão. O Tallahase amava matar zumbis, nossa, isso e twinkies eram as duas coisas que ainda davam prazer pra ele depois do apocalipse. Zombieland foi planejado originalmente pra ser uma série de televisão, onde em teoria dariam um prêmio de melhor morte de zumbi da semana pra um personagem que matou um zumbi de maneira muito criativa. O que é dado nos dois filmes.

Existem pessoas reais no nosso mundo que levam a ideia de um conceito de apocalipse zumbi mais a sério do que deveriam, e veem no gênero uma maneira de escapismo de um mundo onde você é recompensado pela sua frieza emocional, habilidade com armas de fogo e capacidade de sobreviver. E se você fuçar nas áreas da internet que essa galera conversa, existe um apelo em poder atirar em algo que parece com um ser humano, mas não é um ser humano.

Se parece papinho de incel, é porque existe uma conexão entre esses públicos.

Toda a estética de atirar numa pessoa, mas é só um monstro em forma de pessoa, então tudo bem.

E filmes exploram isso. Nem todos são filmados na perspectiva reaça, mas todos têm um certo tesão nisso.

Existe um fascínio enorme na ex-humanidade dos zumbis maior do que no de vários outros monstros que são ex-humanos. Enquanto imaginamos vampiros e lobisomens com figurinos específicos que façam eles soarem vampiros ou lobisomens, existe um prazer os diretores e do público de fazer figurinos mais e mais curiosos pra zumbis, pra levantar bem a pergunta de: “mas o que ele estava fazendo na hora que foi mordido”?

Zumbi palhaço, zumbi mágico, zumbi mestre de obras, zumbi stripper, zumbi bailarina, sério, vê filme o suficiente e você vai achar todos os uniformes do mundo sendo usados por um zumbi. Toda possível classe de pessoa.

De todos os ex-humanos, os zumbis estão numa situação interessantíssima, quando paramos pra pensar. Pois sério comparemos com os vampiros. Exploramos muito pouco quem eram em vida os vampiros mais famosos que tem. O Drácula tem a vantagem de sua identidade em vida ser um personagem histórico famoso (e agora mais famoso ainda graças ao Drácula), mas muitas histórias grandes de vampiro, incluindo Drácula, dão foco muito baixo pra identidade do vampiro anterior a sua transformação.

Em Yofukashi no Uta (Call of the Night no ocidente), é um ponto relevante do roteiro de que vampiros tendem a esquecer completamente seu tempo de vida como humanos, e eu sinto que a ideia é essa. Por eles serem criaturas inteligentes, eles acham a própria identidade como vampiros, refazem a vida. Excelente mangá de vampiros, recomendo.

Mas zumbis são irracionais, e não tem identidade nenhuma, então os vestígios de uma ex-vida neles é muito forte.

Como eu já discuti aqui no passado, os Zumbis enquanto um monstro do imaginário coletivo são um conceito muito recente. De verdade, devido aos direitos autorais é literalmente impossível alguém inventar uma nova criatura que possa aterrorizar o povo e ela não instantaneamente ser presa a uma empresa e a uma franquia específica de filmes que ameace processar qualquer um que faça igual. Os zumbis são a adição mais recente á turma dos vampiros, lobisomens, múmias e fantasmas. E eles foram adicionados por engano, pois o filme Night of the Living Dead, de George Romero simplesmente se esqueceu de por direitos autorais no filme, erro sem precedentes e que jamais foi repetido em uma indústria que pensa muito nessa parte. Então o filme nasceu no domínio público com seus monstros livres pra serem usados em outros filmes.

E nesses primeiros filmes de zumbi do Romero existiam simbolismos e metáforas que meio que marcaram o que se tornaria todo um subgênero como um veículo pra essas metáforas. Night of the Living Dead é famoso pelo final subversivo e chocante em que após o protagonista negro sobreviver ao ataque dos zumbis, os policiais e os caipiras atiram nele casualmente e alegam ter confundido ele com um zumbi. E muita gente comparou a imagem de várias pessoas agressivas e instáveis trancadas em uma casa com medo de uma multidão do lado de fora, como uma imagem que lembrava dos movimentos sociais dos anos 1960, como os movimentos por igualdade racial, ou contra a guerra do Vietnã. O que só reforça o final, em que a polícia simplesmente resolve tudo atirando em todo mundo incluindo um homem negro que não era parte do grupo, mas hey, eles “confundiram”.

Na sequência, Dawn of the Dead, é famosa por ser oficial a explicação de que o cenário do shopping center foi inspirado em como na sociedade consumista nós somos atraidos ao shopping, e os zumbis depois de zumbis instintivamente vão ao shopping e os vivos no shopping parecem que já são zumbis.

O que virou meio que uma noção clara de como zumbis funcionam. Quando eles não estão comendo gente, eles estão tendendo a fazer o que já faziam em vida. Eles tem esse legado ainda. E nós em vida já agimos como zumbi.

Em Shawn of the Dead é usado como piada, como demora pra Shawn perceber os zumbis a sua volta, pois ele já interage com gente que se porta como zumbi e ele próprio já se move no piloto automático e nem nota a diferença no cenário. E se você amarrar um zumbi a um controle de videogame ele vai instintivamente querer jogar.

Não existe o zumbi sem os vestígios de quem ele era em vida assombrá-los, mantendo seus hábitos por inércia. Afinal não somos todos hoje zumbis em nossos celulares andando na rua? É uma interpretação meio boomer, mas o gênero não existe sem ela.

Por isso que o tesão em atirar neles, na ideia de que “é impossível fazer nada, eles são perigosos, vamos dar arma pras crianças também, todo mundo precisa atirar em um” é algo que não precisa de muito pra cair em algo reaça. Obviamente os protagonistas não tem opção senão atirar, mas tem respeito e desrespeito pela ideia de que eles até anteontem eram um ser humano.

E Zombieland transforma esse desrespeito em pura diversão. É o puro tesão de massacrar zumbi. Tanto quando por destruir coisas, tacar o foda-se, a civilização acabou, vamos destruir essa lojinha de lembranças de povos indígenas. Eu não acho que isso impede a apreciação do filme, eu simpatizo com Zombieland, mas isso destaca ele dentre seus pares. Nenhum outro filme tem tanto tesão pela parte que sem sociedade estamos livre pra sair metendo o pé na jaca.

Zombieland existe como uma celebração do desapego pela sociedade que acabou. Exceto por twinkies, pela Disneyland e por algumas figuras da cultura pop como Bill Murray e Elvis, os personagens não realmente sentem falta de nada que perderam.

O que é simbolizado por essa prática unânime de que depois do apocalipse zumbi, todo mundo abandonou seu nome anterior e passou a se chamar pela cidade de onde veio/pra onde vai. Por algum motivo. Eu nunca entendi essa parte, acho que alguém na produção achou que ia ser muito daora se todo mundo se desapegasse do nome como identidade e todo mundo se identificasse só por cidades…. Acho nada a ver, mas não impota, o que importa é que é um sintoma do desapego deles. Deixaram tudo pra trás. Gritaram Hakuna Matata e foram se divertir atirando em zumbi.

A alternativa a desumanizar os zumbis e sair atirando aparece em alguns filmes na forma da ideia de uma cura. De que seria possível reverter a transformação em zumbi, ou ao menos impedir novas transformações. A maioria dos filmes de zumbi tratam a questão como algo menos mágico e como uma doença causada por vírus (ou no caso de Last of Us, fungo). E se é uma calamidade da saúde pública pode ser tratada.

São histórias menos populares do que as de resolver o assunto matando todos os zumbis, mas elas existem. E na contramão de Zombieland, Zom 100 é uma delas.

Se em Zombieland, os protagonistas desapegaram do mundo anterior, e se adaptaram a Terra sem Lei, em Zom 100 existe o desejo de os sobreviventes conseguirem restaurar o mundo. A turma do Akira não está ativamente fazendo a vacina mas eles encontra e ajudam um cientista trabalhando em uma, dão o apoio que ele precisa, e fazem o que está no alcance deles pra curar o mundo que ficou doente.

Afinal “Restaurar a beleza do Japão” é um dos itens da lista que eles escrevem coletivamente.

A prioridade dos personagens de Zom 100 de se divertirem, correrem atrás dos prazeres e comemorarem não estarem presos ao fracasso do capitalismo, não necessariamente implica que eles querem viver numa terra sem lei, e eles sentem ainda o desejo por um mundo sem zumbis e por um contato com outras pessoas, encontrar novos sobreviventes, e de usar seus talentos com os demais. Ter pra quem cozinhar, ter pra quem construir casas, etc….

E existe uma inversão forte de todo o conceito de “parecem humanos o suficiente, mas são matáveis”, com a aparência humana dos zumbis permitir alguma positividade. No primeiro capítulo, Akira se declara pra sua crush, ela não só havia virado um zumbi, como era visível que ela estava na cama com outro homem quando foi mordida. Mas Akira queria passar esses sentimentos mesmo assim, mesmo pra um Zumbi, ela era semelhante o bastante pra ele querer tirar aquilo do peito antes de fugir dela.

Eu acho que aí entra algumas diferenças entre os filmes que tem a ver com as diferenças entre valores nos EUA e no Japão.

As diferenças entre EUA e o Japão.

Olá, eu sou Izzombie, eu sou ou um anarquista com um pé no comunismo, ou um comunista com um pé no anarquismo, eu não tenho certeza, pois eu não ando com a militância desses movimentos, e eu não fico me focando em rótulos ou na rixa interna que a esquerda tem entre si. O que eu definitivamente não sou em nenhuma interpretação, é a favor do capitalismo.

Os EUA e o Japão são países extremamente capitalistas, e exemplos notórios do pior que o capitalismo tem a oferecer no planeta. São países com uma tradição mínima, pra não dizer nula, de governos de esquerda, e com uma tradição poderosa e de sucesso na caça e no combate aos comunistas e a proliferação do pensamento de esquerda. E por coincidência extrema, são os dois maiores exportadores de cultura pop do planeta, e o país de origem de 99% do que se conversa sobre nesse blog aqui.

Porque eu estou começando com isso? Pois apesar de serem países diferentes, eu não quero marcar a diferença deles como se eu tivesse puxando uma sardinha “olha aí o Japão como uma alternativa saudável e progressista aos malditos Estados Unidos”. Longe disso. Eu não tenho interesse de mostrar nenhum país onde o capitalismo está fracassando e falhando com seu povo como nenhum tipo de ideal.

Mas são países diferentes mesmo sendo capitalistas, afinal estão de lados opostos do mundo, e mesmo com MUITA influência dos EUA no Japão e em como o Japão sofreu muitas mudanças sociais depois da Segunda Guerra Mundial devido a uma ocupação militar dos EUA lá, ainda são países com mentalidades muito diferentes. Especialmente em uma visão de mundo no que diz respeito a trabalho, ao coletivismo, ao papel do governo e a ser um membro produtivo da sociedade.

Que são os pontos que eu quero trazer aqui.

E não é difícil notar que a ficção estadunidense e a ficção japonesa trabalham esses assuntos por perspectivas muito diferentes. O que é um ponto que pouca gente presta atenção quando os EUA fazem uma adaptação deles de um anime ou mangá famoso. Mas são os grandes pontos que eu noto. Efeitos, cosplay e atores eu confio, mas os EUA sempre vão colocar uma mudança cultural grande na adaptação de anime no meio das “cenas fieis”, e eu acho essas mudanças culturais relevantes. Fiz um texto sobre Death Note só sobre isso.

E não farei um sobre One Piece, pelo menos não só com a primeira temporada, mas sai cheio de opiniões sobre porque certos pontos do mangá foram ignorados pelos produtores estadunidenses.

Enfim, já escrevi muito sobre o que é a norma da visão de mundo mais explorada pela ficção estadunidense no meu texto sobre Cuck Cinema. Mas recapitulando, é uma grande desconfiança nas regulamentações do governo e uma idealização do herói que resolve tudo sozinho, que falando grosso atropela a burocracia, e que é mais poderoso do que o homenzinho de terno. A ficção estadunidense acredita que o trabalho de escritório e burocrático é um ato de emasculação e um ambiente que priva homens de serem homens, e que o heroísmo independente, em que indivíduos excelentes corrigem a sociedade sozinho com base nos seus valores internos de certo e errado são a cura pra isso. Existe um texto meu também só sobre esse sentimento de emasculação.

A ficção japonesa não vai muito pra esse caminho. Muito pelo contrário, a ficção japonesa a burocracia e a máquina podem aparecer como parte de algo que eleva nosso potencial.

Acho que o melhor exemplo pra isso é a HQ da Marvel e sua adaptação cinematográfica Civil War, em que o Capitão America e o Homem de Ferro decidem se matar pois o Homem de Ferro concordava que os heróis deviam abrir mão de alguns direitos civis pelo bem comum da população, e o Capitão América achava que não. A HQ e o Filme não apresentam os mesmos termos na questão, com muitos detalhes de diferente, mas ambos focam muito em dois aspectos, que são os mais importantes e o centro da briga. Que os heróis deveriam ter suas identidades públicas, e trabalhar para o governo em troca de um salário. Que eles não iam ter a autoridade de decidir que área da cidade explodir com raio laser e qual não explodir e se esconder no anonimato das consequências de todo o dano colateral que causar.

E as duas versões da história mostrando os excessos e falácias de ambos os lados, tende a concluir que o Capitão América está mais correto. Que o governo não é confiável, e os Super-Heróis são uma alternativa ao governo, e que se eles não puderem decidir eles mesmos quem espancar, então eles estão reféns de autoritários mal-intencionados.

Em extremo contraste a essa lógica, o mangá Boku no Hero Academia, se passa em um mundo no Japão, onde os termos do Homem de Ferro são implantados. Os heróis todos têm identidades públicas e ser super-herói é um emprego registrado que você precisa de licença pra exercer. O mangá é extremamente popular tanto no ocidente quanto no oriente, e ele não mostra esse sistema pra criticá-lo ou pra mostrar os problemas da regulamentação atrapalhando o heroísmo, ele só normaliza essa ideia, e usa pra criar um ambiente verossímil de super-heroísmo.

Ah, e ninguém mata a mãe do Deku, só porque sua identidade é pública, as lutas são menos pessoais. E mais ideológicas. Os conflitos dos heróis com os vilões tem mais a ver com uma visão de mundo a ser provada e um ideal de sociedade a ser implantado, e menos a ver com “você matou meu pai”. Boku no Hero Academia é em muitos sentidos o oposto do MCU. Ninguém vai matar a mãe do Deku em vingança e o Deku não está se vingando de nada. 

E a Marvel é um sucesso estrondoso no Japão, e Boku no Hero é um sucesso enorme nos EUA. Então não é só uma decisão de mercado pra agradar um público, é uma maneira diferente de autores diferentes lidarem com a sociedade.

E essa diferença é muito forte na maneira como Akira vê a sua liberdade e seu ódio do trabalho. Enquanto nos EUA muito do ódio da cultura de escritório vem da parte normal da vida num escritório, como o seu trabalho ser maçante, a comunicação ineficiente e burocrática, as reuniões que podiam ser e-mails, e a ideia de que o escritório é um espaço que te impede de ser o homem dos seus sonhos, Akira lida com questões mais específicas de sofrer abuso no trabalho.

Ele sofre bullying, é forçado a fazer horas-extras não remuneradas e está sofrendo um tratamento criminoso que existe nas brechas de um local em que as leis trabalhistas ainda tem muito o que avançar.

Sério, no ocidente até o centro já começa a falar de jornada de 6 horas e fim de semana de 3 dias, mas no Japão o literal partido comunista ainda está tentando conseguir firmar as oito horas e tornar ilegal a hora-extra não remunerada.

O que significa que se libertar desse tipo de trabalho não é o mesmo que se libertar do conceito de ser um membro ativo da sociedade. Só em outros termos. Não é o Clube da Luta que tentou causar o caos econômico pra instalar a anarquia completa por raiva do cubículo.

A noção do estadunidense se libertando tem muito a ver com o fim das instituições. Com o Tyler Durden explodindo os bancos, com os compromissos sociais extintos.

Em Zombieland, em uma fala irônica por ter sido Jesse Eisenberg, que depois interpretaria o Mark Zuckeberg, os personagens comemoram não terem mais que atualizar facebook. Socializar na internet era parte do mundo que eles queriam se libertar.

Já em Zom 100 tem no item 39 d lista que o Kencho quer conhecer uma garota pelo tinder. Pois usar o tinder era um pequeno prazer que sua rotina abusiva lhe negava.

Akira não deseja o fim da sociedade, pois ele quer viver na sociedade, o problema é que a cultura trabalhista abusiva e criminosa que se normaliza no Japão torna impossível viver na sociedade enquanto ela não entrar em colapso, numa contradição.

Por isso parte do trabalho deles é também formar comunidades pra restaurar alguma comunidade e lutar contra o apocalipse, não investindo em mortes, mas investindo em uma cura.

E acho que o ponto é justamente esse. Uma celebração da liberdade, e de achar tempo pra si e pra correr atrás de seus sonhos no meio do caos, sem ser uma celebração do caos e do fim de tudo, sem rir do fato de não ter presidentes.

E nada contra essas coisas pessoalmente, como eu disse lá em cima, tenho uma simpatia enorme pelo anarquismo, mas e isso não é pra falar que Zombieland é ruim, é só que mesmo assim, eu achei os termos em que Zom 100 lidou com essa liberdade mais interessantes.

Conclusão:

O objetivo dessa comparação não é concluir que uma obra é melhor que a outra, nem de longe. Apesar do meu tom puxar mais a sardinha pra Zom 100, não é esse tipo de análise. O que eu acho é que Zombieland levantou uma bola muito boa não só no subgênero dos zumbis, mas também do subgênero do apocalipse e da história de sobrevivência. Eu sinto que Zombieland começou uma conversa legal sobre como aos sobreviventes, cabe também viver, se readaptar, e mesmo diante da tragédia, desfrutar a liberdade que ela trás, junto do devido luto que ela demanda. Tallahase não esqueceu seu filho, nem desrespeita sua memória, mas ele está mais que focado em só sobreviver no mundo dos zumbis, ele quer viver.

E essa bola ficou mais de dez anos no ar, esperando alguém, até Zom 100 vir cortar e continuar a conversa. E dar o passo seguinte.

Pode existir libertação no fim da sociedade? Claro que pode. Mas pode existir muito mais. Pode existir inspiração. Akira convence as pessoas com quem ele se encontra a viver nos mesmos termos que ele. Pode existir uma comunidade, como a vila dos pais de Akira que está sobrevivendo o apocalipse como uma comunidade autossustentável.

Zombieland: Double Tap, a sequência, zoa da noção de uma comunidade autossustentável, e da maneira como é algo idiota e vulnerável, do qual os protagonistas convencer Little Rock a parar de querer ser parte.

Pra sequência de Zombieland eu não dou mérito nenhum, ela é bem ruim.

Mas é isso.

A vida no apocalipse zumbi, pode ser bem mais que sobreviver, ela pode ser viver, e é importante que ela se torne viver, que os personagens aprendam a achar sua própria rotina, seu próprio prazer e sua própria paz diante do colapso da sociedade, pois afinal, não é como tudo fosse voltar ao normal eventualmente, vai ser a vida deles aquilo ali, e eles precisam transformar isso em vida. LOST nos ensina essa lição muito bem e vale pra tudo.

Eu acho essa lição valiosa.

Mas viver pode ser bem mais que zoar casas famosas, roubar as roupas do Elvis, destruir lojinha indígena e delirar com como você mata os zumbis.

Viver pode ser inspirar os demais, pode ser querer conhecer outras pessoas, pode ser lutar pelo fim do apocalipse e pra restaurar uma comunidade. Pode ser viver como um coletivo, não só você viver, mas ajudar a humanidade a conseguir voltar a viver.

E nisso eu acho Zom 100 importante, eu fui atrás por que falaram que o protagonista odiava trabalhar, e por mais que ele odeie, eu acho que a história foi positivamente muito além disso.

Sobre o autor

Izzombie

Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

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Izzombie

Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

Alertas

  • – Todos os posts desse blog contém SPOILERS de seus respectivos assuntos, sem exceção. Leia com medo de perder toda a experiência.
  • – Todos os textos desse blog contém palavras de baixo calão, independente da obra analisada ser ou não ao público infantil. Mesmo ao analisar uma obra pra crianças a analise ainda é destinada para adultos e pode tocar e temas como sexo e violência.

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