Black Sails: o realismo, a ficcionalização e o Rei dos Piratas.

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Sabem o que eu adoro? Piratas! Piratas são um dos conceitos mais fascinantes do mundo. Bandidos em navios, saqueando. Amo. Me põe uma história de piratas na minha frente e eu já logo quero acompanhar.

Eu sou fanboy de tudo o que está nessa imagem e tudo que está nessa imagem eu fui atrás só porque eu sabia que eu ia encontrar piratas ali… exceto o Tintin, esse eu já acompanhava antes de saber dos piratas.

Pois bem, e o pirata é uma figura muito mais famosa pela sua versão romantizada pela literatura e pela televisão do que pelas figuras que eles eram de verdade. A gente vê um pirata a gente meio que espera certos elementos deles, como papagaios nos ombros, bandeiras com caveiras, tapa-olho, perna de pau, ganchos, mapas do tesouro, tesouro enterrado, garrafas de rum, prisioneiros andando na prancha, códigos de honra e um estilo de falar com muitos “arr” e gírias marinhas.

E também esperamos certa personalidades, esperamos que sejam pessoas cruéis, valentes, violentas, impulsivas, gananciosas e selvagens. E não esperamos que eles demonstrem sensibilidade, que eles sejam grandes estrategistas, e nem que sejam bons negociadores.

E algumas coisas dessas eram verdade, mas de uma maneira diferente da que pensamos e outras coisas dessas não eram verdade mesmo.. Mas esse se tornou o pirata ficcionalizado, um fanfarrão, beberrão, cruel e egoista procurando um tesouro enterrado com um papagaio no ombro. Pois bem, essa imagem do pirata fictício vem de essencialmente dois piratas fictícios muito famosos: O Capitão Hook (ou Gancho) de Peter Pan e Long John Silver de Treasure Island, ambos os vilões centrais de obras clássicas que já foram adaptadas para literalmente todo tipo de mídia que existe com seus personagens sendo reinterpretados a exaustão.

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Enfim, porque Treasure Island e Long John Silver são exemplos de cultura pop tão grandes sobre o que é o estereótipo do pirata, que eu achei muito curioso quando a série Black Sails, uma prequência de Treasure Island com Long John Silver em um dos papéis protagonistas, veio meio que com o objetivo expresso de tentar mostrar uma pirataria mais realista. Sem tapa-olho, sem perna de pau, sem papagaio, sem ninguém falando “arr”, e com a maioria dos personagens sendo piratas que existiram na vida real (embora com mudanças radicais na história deles, em especial de por quais anos navegaram e como morreram, foi necessário um anacronismo pra permitir as interações).

Black Sails me soou desde o começo como o Game of Thrones da pirataria e parecia estar dedicado a fazer com Treasure Island o que Game of Thrones fez com a fantasia medieval. Mostrar uma visão pouco glorificada e mais crua do que foi esse período e qual a mentalidade das pessoas envolvidas nessa vida. E também usando isso como desculpa para muita cena de sexo, filmado em uma maneira a privilegiar mostrar o corpo feminino ao masculino, de maneira que nem disfarça que o propósito da cena é agradar um público masculino sob a desculpa de “mostrar que os personagens transam”.

Digo, o protagonista de Black Sails é gay… Ou bi. Tem muito debate sobre isso e não sou eu quem vai desempatar esse debate. Mas o Capitão Flint é apaixonado por um homem que é o único amor de sua vida, e todas as suas ações na série inteira derivam da lealdade imensa que ele tem por esse homem. Apesar disso, os beijos do protagonista com o amante que é o centro de sua motivação são escondidos, a câmera corta pra fora deles um segundo depois dos lábios encostarem, enquanto os beijos entre duas mulheres a série são intensos, recebem muito foco e mais vezes do que não, terminam com elas tirando a roupa. O protagonista não chega a ter uma cena de sexo com seu amante, somente uma cena dos dois seminus na cama conversando não sobre o amor deles, e isso é um contraste imenso da quantidade absurda e detalhada de cenas de sexo hétero e sexo lésbico na série.

Enfim, nenhuma surpresa que apesar de Black Sails ser essencialmente sobre um pirata gay que resolveu destruir o imperialismo inteiro, por ser gay, tenha sido Our Flag Means Death que ganhou a alcunha de série do pirata gay. A linguagem de depender muito de fazer o público ver mulheres peladas cagou tudo. E eu só trago isso a tona aqui, pois eu acho que isso é a série precisando ser comparada a Game of Thrones para receber publicidade positiva no boca-a-boca, em uma época em que essa era uma série de prestígio, antes de ser famosa por um final ruim. Que bom que hoje ninguém quer parecer Game of Thrones. Que bom que foi só uma fase.

A série também empresta muito de sua narrativa de Game of Thrones, as temporadas são essencialmente sobre diversas autoridades piratas diferentes articulando alianças e se traindo por novas alianças a respeito de quem é que colocaria as mãos no ouro do Urca de Lima, um tesouro tão colossal de ouro espanhol que ajustando para a inflação, seria mais ou menos um bilhão de dólares em moedas de ouro. E conforme esses piratas se traem e se aliam e se traem e se aliam por esse desejo imediato, é constantemente comentado e apontado uma ameaça maior do imperialismo inglês que um dia vai invadir a cidade de Nassau para tentar extinguir a pirataria. E quando esse ataque vier, todas as picuinhas e inimizades entre eles não vão significar nada perante a o terror que é a colonização britânica, que só poderá ser enfrentada se todos eles esquecerem que são mesquinhos e se aliarem.

Sim, essa série literalmente falou “nossos White Walkers são o imperialismo colonizador da Europa”, e só isso já é brilhante e merece muitos elogios. Eles não eram uma metáfora para um problema, eles eram um literal problema que até hoje muita gente tem vergonha de apontar o dedo na televisão e falar “tá aí os grandes vilões dessa era da história: a colonização”.

Enfim, apesar dessa proposta de realismo, e de um objetivo muito visível de quebrar mitos sobre como a pirataria funciona, Black Sails, sem nunca dizer essas palavras exatas também compensou bastante se sustentando muito em uma grande romantização sobre a pirataria, que coexiste em paralelo e é muito menos comentada que o estereótipo da perna de pau e papagaio, que é o mito de um “rei dos piratas”.

Nesse texto eu quero falar sobre a romantização do “rei dos piratas”, sua relação com o pirata cruel beberrão, como Black Sails equilibra esse tema com sua proposta realista e como a série aborda os motivos pelo qual as versões romantizadas e ficcionalizadas de piratas substituem a humanidade real por trás dessas pessoas.

Antes de irmos pro assunto central, eu também quero explicar que o Dentro da Chaminé é um blog que é mantido com trabalho, dedicação e paixão vinda de mim, Izzombie, em um projeto pessoal que já tem vários anos. E que também é financiado pelos leitores, em uma ajuda para a qual eu sou muito grato. Por isso eu gostaria de convidá-los a apoiar o blog no nosso financiamento coletivo no apoia.se, com o valor que achar justo. Além da minha eterna gratidão, eu tenho grupos no telegram com meus apoiadores, que eu ofereço de recompensa pelo apoio, e sem esse grupo e as conversas que surgem nele eu não teria tido a ideia de fazer esse texto específico. Se não quiser se comprometercom um financiamento mensal, também é possível apoiar o blog fazendo um pagamento únivo via pix de qualquer valor na chave franciscoizzo@gmail.com que você igualmente terá minha gratidão.

Por isso esse texto ainda mais que os demais, é feito em homenagem a todos os meus apoiadores, para quem eu devo tanto e que fazem tanto bem para esse blog de várias maneiras. Eu agradeço por tudo, e espero que gostem desse texto.

E vamos começar ele indo logo pro ponto mais importante. O que é o Rei dos Piratas?

O Rei dos Piratas:

Se você for um fã do Anime/Mangá One Piece, você pode reconhecer esse título daquilo que Luffy almeja ser. O sonho dele é ser o Rei dos Piratas. Mas One Piece não é a única obra de ficção que surge com esse termo. Na franquia Pirates of the Caribbean, no terceiro filme nove lordes piratas elegem entre eles um Rei dos Piratas para ser acionado em tempos de necessidade. O filme The Pirates in na Adventure with Scientists usa esse título jocosamente, com um pirata vestido de Elvis se nomeando o Rei dos Piratas e ditando o código de conduta dos piratas.

Essas são as três obras sobre pirataria que deliberadamente usam a expressão “Rei dos Piratas”, que eu estou pegando aqui pra nomear esse tipo de romantização, porém mais obras usam o conceito. Como tanto a série quanto os livros de Game of Thrones, e também a série de livros Liveship Traders e na própria série Black Sails.

E fora do uso do tropo no significado que eu procuro, várias séries usam o termo Pirate King ou Pirate Queen para indicar nobres e membros de realezas que acabam indo para uma vida de pirataria em algum momento, ou para um pirata tão, mas tão pimpão que quer ser chamado de rei, mesmo sem ter mais autoridade que qualquer outro capitão. Se traduzíssemos, teríamos o Rei Pirata e não O Rei dos Piratas, mas o termo Pirate King é usado para todos esses casos, independente do contexto. E o motivo talvez seja porque a expressão Pirate King realmente soa bem. Tem muita pompa em se chamar alguém assim.

A expressão “Rei dos Piratas”, vem do pirata da vida real Henry Avery, que realmente recebeu essa alcunha. Os grandes méritos de Henry Avery que tornam ele uma lenda entre os piratas e digno do seu apelido, é ter realizado o mais lucrativo saque documentado que um pirata já tenha cometido, e ter se aposentado para gastar essa fortuna toda sem morrer em batalha… piratas que conseguiam se aposentar não eram muitos, a maioria tinha em média dois anos de pirataria antes de morrer em batalha ou serem enforcados pelo governo.

Então Avery só foi considerado o Rei dos Piratas por ser mais pimpão que os demais. Ele roubou uma quantidade imensa e se safou, tudo o que ele roubou nunca foi recuperado, e ele envelheceu no anonimato, com a gente não sabendo nem sequer quando e do que ele morreu.

Mas o tropo e o título são muito usados pela ficção pela necessidade de ter uma figura que uma todos os piratas do mundo, e que os lembre de que eles são uma classe. De que todos os piratas têm em comum o fato de serem piratas e serem odiados pelo mesmo grupo de pessoas. Piratas são criminosos odiados pelas autoridades, e essencialmente não tinham direitos legais que os protegessem de abusos da justiça. E a maioria das histórias que eu mencionei acima reforçam bem esse fato.

A presença do Rei dos Piratas reforça uma noção de nós contra eles. E eles é sempre o governo, esse é o grande inimigo dos piratas que vão atrás do Rei dos Piratas. A noção de um inimigo comum em forma de um governo autoritário e injusto que una todos os piratas em torno de uma figura lendária que lidere essa união é uma parte fundamental de One Piece, dos segundos e terceiros filmes de Pirates of the Caribbean e de Black Sails.

E a romantização de que Avery foi esse tipo de pirata, e portanto esse tipo de rei, começou graças a um livro chamado A General History of the Pyrates, escrito por um tal de Capitão Charles Johnson, que é pseudônimo de alguém cuja real identidade nunca veio à luz, mas provavelmente não foi um capitão de verdade..

Livro esse que faz uma aparição em Black Sails.

Aliás, importante falar: No mundo de documentos de estudos sobre a pirataria temos muitas fontes questionáveis, e fatos se misturavam com lendas desde aquela época. Os piratas obviamente não tinham documentos, e não tiveram certidão de óbito, a maioria deles tem histórias contraditórias de como morreram. Muitos trocaram de nome e confundem historiadores quanto a serem uma ou duas pessoas. E a real é que sobre a maioria dos maiores piratas do mundo sabemos muito pouco e temos como base muitas fontes suspeitas.

Diz a lenda que quando Jack Rackham foi capturado, ele se trancou na sua cabine sem lutar, e que Anne Bonny foi a última pirata de pé, que protegeu a porta trancada de Jack de ser invadida até o final. A narrativa dos piratas é descrita como se fosse a narrativa de um filme até hoje.

E a principal fonte sobre a pirataria, e também a mais suspeita era esse livro A General History of the Pyrates, que eu repito, escrito por ninguém sabe quem, e é até hoje a principal referência para a biografia dos principais piratas que existiram, com a maioria dos historiadores modernos completando ou desmentindo esse livro, mas nunca realmente ignorando-o.

Pois bem, o livro tenta vender a ideia de que uma utopia anarquista foi fundada lá perto de Madagascar. Que foi fundada ou por Thomas Tew, ou por James Mission, esse último um pirata fictício que nunca existiu. Essa utopia chamava Libertatia (ou Libertalia, quase todo nome envolvendo piratas tem duas ou três grafias, todas verdadeiras) e era uma democracia direta sem autoridades ou líderes, ou opressão onde tudo era dividido. E embora seja consenso que Libertartia nunca tenha existido, muitas pessoas tentam conectar Henry Avery com a fundação dessa utopia, como uma maneira de legitimar seu status de Rei dos Piratas com a literal fundação de uma nação.

Isso inclui o livro The King of Pirates, de 1719, que pode ou não ter sido escrito por Daniel Defoe, autor de Robinson Crusoé, que declara Avery o Rei de Brincadeira de Madagascar. E também inclui o videogame Uncharted 4, que diz que Libertaria foi fundada por Thomas Tew e Henry Avery.

E vocês ficariam surpresos com o grande número de pessoas que acham de verdade que Avery foi o maior líder anarquista do mundo usando como fonte primária o jogo Uncharted 4.

Achei esse aqui no r/HistoryMemes

Enfim, indo direto ao ponto, os piratas não eram exatamente a classe mais unida do mundo. Essa noção de se reconhecer como todos um inimigo coletivo do governo é balela, a maioria dos piratas trabalhou para o governo sempre que conveniente, como Corsários, piratas com permissão legal de saquear navios de países inimigos ao governo que os contratou. E o próprio Avery foi um corsário. Piratas também eram conhecidos por aceitar perdões reais na maioria das vezes que eram oferecidos. Eles não exatamente se saqueavam entre si, mas nada indica que houvesse uma noção clara de que “macaco não mata macaco”.

A única república de piratas que existiu de verdade foi Nassau, que hoje é a capital do Bahamas e tem um turismo enorme baseado em seu tempo como república pirata, que por presença massiva dos piratas na ilha fez suas autoridades fugirem, transformando a ilha em uma terra sem lei, onde os piratas podiam operar em paz. Porém essa república acabou em parte porque tinha muita pouca união entre os piratas da república, e especialmente, pois a Inglaterra ofereceu perdões reais para todos os piratas da cidade, fazendo com que a maioria dos piratas ali se aposentassem e aceitassem o retorno de Governadores na ilha.

O que foi um plano do inglês Woodes Rogers que por ter acabado com a pirataria em Nassau tem uma estátua em Nassau até hoje.

Por fim, a ideia de uma autoridade unindo todos os piratas é risória com o estilo de vida dos piratas. Em Nassau não existia um pirata exercendo mais autoridade que os outros. A república pirata não elegeu um representante em nenhum momento. E em um navio, o capitão tinha a autoridade que sua tripulação lhe dava, uma vez que capitães são todos eleitos por voto direto, e uma nova eleição podia ser chamada a qualquer momento para substituir um capitão que abuse de sua autoridade (essas eleições são chamadas de motim e ocorriam com menos violência do que os filmes sugerem). Os piratas eram homens livres, e até onde eles entendiam, se eles quisessem um tirano torturando-os, eles voltavam pra Europa. Eles não trocaram seis por meia dúzia ao decidir deixar o império britânico para virarem piratas, e isso se manifesta em como eles lidavam com autoridade dentro do próprio navio. Navios piratas eram muito democráticos, e famosos por divisões igualitárias de saque independente de quem foi pra luta e quem ficou no navio.

Por isso a própria noção de que um Rei dos Piratas existiria é um paradoxo, um pirata é por definição um homem que não possui um rei e que não daria essa autoridade a outro homem.

Lembram em Game of Thrones em que os habitantes das Ilhas de Ferro eram os únicos que elegiam seu rei por votação, e ao mesmo tempo elegiam um rei com aquela descrença, uma vez que o rei não teria autoridade no navio deles? Isso é, até um pirata mais carismático que a média chegar fazendo barulho, fazendo promessas e prometendo uma guerra em que eles iriam desafiar o trono de ferro? Isso é o rei dos piratas.

Mas é isso. Essa é a história do Rei dos Piratas, figura lendária que lideraria os piratas como uma força ativa de ataque ao governo e fundaria uma nação utópica de anarquistas. Uma figura dessas nunca existiu, mas muita gente quer projetar sua existência em um pirata lendário que foi chamado de Rei, essencialmente por ter ficado muito rico e se safado.

Agora vamos para Black Sails.

O Rei dos Piratas em Black Sails:

Black Sails conta a história do Capitão Flint, notório e lendário pirata do livro Treasure Island, que era famoso por sua crueldade, violência e por ter enterrado o tesouro mencionado no título e morrido antes da série começar. Na série ele é um pirata de Nassau na época em que a cidade era uma república dos piratas, e o seu objetivo primário é liderar uma aliança entre todos os demais piratas que consiga derrubar o Império Britâncio e assegurar que Nassau siga sendo uma república dos piratas. E para poder comprar a lealdade desses homens e financiar essa guerra ele deseja roubar o ouro do Urca de Lima, um tesouro incrível em um navio espanhol que ele conseguiu descobrir a localização.

O Capitão Flint definitivamente deseja se tornar o rei dos piratas, ele deseja unificar todos os piratas de Nassau para firmar uma nação independente do imperialismo europeu e se opor ao Império Inglês. Mas seguindo o já apontado tom realista da série, Flint está meio que com problemas de apoio, a maioria dos outros piratas não está procurando um rei dos piratas, e ele precisa convencer os demais piratas da validade de seus ideais. E essa dissintonia evidencia que Flint e sua tripulação não veem o mundo com os mesmos olhos, pois Flint veio de uma alta educação e posição de privilégios na alta sociedade britânica antes de virar a casaca, e a maioria dos piratas sequer eram alfabetizados. Eles não vinham do mesmo mundo e não estavam na mesma página

E é aí que entra a parte interessante. Pois Flint está perfeitamente ciente de que a ideia de que possa existir um rei dos piratas é um mero mito. Seus interesses em uma guerra contra o Império Britânico, é pessoal. Ele quer vingança pelo seu amante Thomas Hamilton. Thomas era um aristocrata inglês com a ideia radical de perdoar todos os piratas de Nassau, para eliminar a pirataria ali. Por esses ideais ele foi visto como covarde e como um traidor, já que a política da Inglaterra era a de tolerância zero com piratas e de tratá-los como a escória, e eu volto nessa parte daqui a pouco. Enfim, como ser progressista não era um crime na Inglaterra, os demais aristocratas silenciaram sua visão de mundo denunciando algo que era crime: ser gay. E por ser gay ele foi sentenciado a um manicômio, onde ficou implícito que ele recebeu maus tratos até se suicidar. E na última vez que ele viu Flint ele pediu para Flint fugir da Inglaterra e começar uma nova vida em outro lugar sem ele. E Flint quer o troco, ele quer aplicar todo dano possível de ser aplicado ao Império Britânico em vingança.

Mas ele não pode chegar pra sua tripulação pirata e falar: “Eu quero que todo navio inglês afunde, pois eles mataram meu namorado.” Mas uma coisa que a série reforça em vários pontos é que qualquer pessoa que odeie o Imperialismo tem uma facilidade enorme em achar um inimigo em comum. E agora sim se aprofundando nesse ponto, a Europa pegava muito pesado com piratas.

A literal primeira coisa que vemos na série é um texto, antes da primeira cena, enfatizando que os piratas eram considerados hostis humani generis, o que significava inimigos da humanidade em latim.

E isso é verdade, esse termo é um jargão legal que foi realmente usado contra os piratas e essencialmente significava que os piratas não possuíam nenhum tipo de proteção legal e podiam ser punidos por nações que não foram atacadas por eles. Isso pois um pirata, por ser um pirata, era uma ameaça a todas as nações do mundo simultaneamente, e por isso qualquer oficial da lei de qualquer país tinha a responsabilidade de garantir que qualquer pirata com o qual ele se encontrasse morresse. E justamente, lembrando, pois isso foi verdade, não importa se você roubou uma moeda ou o tesouro real, ser um pirata te garantia a pena de morte independente de qualquer coisa, e ser cúmplice de um pirata também. Mais vezes do que não em um enforcamento público. E julgamentos muitas vezes eram uma formalidade que eles podiam pular ou fraudar, pois eles não tinham direitos. Eles eram piratas.

E Flint usava esse fato do qual todos estavam cientes para criar aliados. Flint fortalecia em seu bando e seus colegas de profissão a ideia de que era necessário um Rei dos Piratas, como uma resposta ao fato de que a Europa já havia criado uma narrativa sobre eles. A de monstros, de criaturas sanguinárias. De pessoas vis, sádicas e cruéis. Pessoas incivilizadas que pela sua natureza maléfica não servem para viver em sociedade. E era fácil para Flint vender essa ideia, pois era verdade, tudo isso era realmente dito sobre eles.

Agora a coisa curiosa é. Eu citei um monte de obras que tratam os piratas como uma classe em guerra contra um governo tirano unidos por um rei que representaria a liberdade e a antítese do imperialismo. Mas Treasure Island não é uma delas. Treasure Island é um livro em que os piratas são os vilões. Jim Hawkins, o protagonista de Treasure Island não é um pirata. Long John Silver, o pirata central do livro é o vilão do livro, e o Capitão Flint o pirata póstumo no livro que enterrou o tesouro é descrito como um homem cruel e ganancioso. Notório por ter matado todos os homens que enterraram o tesouro junto dele, e usado o cadáver de um deles para apontar para onde o tesouro está enterrado. E Silver não é menos cruel do que ele, embora Silver seja um personagem carismático, em partes por criar laços com Jim. Mas o grande ponto de Silver é que mesmo gostando de Jim, ele está disposto a atacar Jim pelo tesouro e vai matar qualquer um que se coloque em seu caminho.

Então reorganizando aqui o que eu quero dizer. Os piratas da série são piratas realistas, não realmente identificados como uma força política, mas seu protagonista, Flint, quer convencê-los a se tornar uma força política, sob o argumento de que se eles não forem lembrados por ser uma força política eles vão ser lembrados pela maneira como o próprio Flint foi lembrado em Treasure Island. É uma guerra de narrativas. A série retrata um grupo de personagens que estão com muita força tentando controlar como é que a história do que foi a pirataria em Nassau será contada. O vilão das histórias infantis é uma das opções, o líder político é outra.

Se o pirata realista não é uma romantização, é só um cara fodido em um navio fazendo o seu melhor fora da lei, o pirata realista de Black Sails existe em um evento histórico em que eles sabem que no futuro eles vão ser uma história contada por alguém, e eles querem o controle de qual essa história.

E para isso que Flint tenta com muita força que essa história seja a do Rei dos Piratas. Pois ele precisa, por motivos pessoais que a história da pirataria em Nassau seja lembrada como uma história de resistência contra o imperialismo.

Black Sails e a ficção:

Black Sails faz os piratas fictícios memoráveis Capitão Flint e Long John Silver dividirem seu tempo de tela com notórios piratas da vida real, alguns dos mais famosos, os principais deles Charles Vane, Jack Rackham, Annie Bonny, Benjamin Hornigold e Edward “Barba Negra” Teach. Com isso a série faz a mistura perfeita de realidade e ficção, fazendo piratas fictícios e reais coexistirem.

Mas o que tem de curioso em adicionar Flint e Silver nesse Hall da Fama da pirataria é que dentro do universo de Black Sails, o Capitão Flint e Long John Silver são os dois personagens fictícios também.

O nome verdadeiro de Flint é James McGraw, e Flint foi um personagem que ele inventou e uma performance que ele criou para poder se tornar uma força simbólica capaz de mobilizar os piratas enquanto uma classe. Ele copiou o nome de um bandido que o assustou no passado e moldou uma personalidade que criaria uma reputação e uma lenda. O Flint da série é uma ficção, e tanto é uma ficção, que a série brinca com o conceito de que se James McGraw conseguisse achar paz interna e ser feliz, o Capitão Flint iria morrer, mesmo que McGraw continuasse vivo. Essa hipótese é explorada.

As ações de Flint são todas calculadamente performáticas, ele está sempre sendo o personagem em vez de a si mesmo.

Long John Silver por outro lado não inventou a si mesmo. Digo, John Silver era um oportunista, que dizia qualquer coisa que qualquer um quisesse ouvir para estar sempre no lado que está ganhando. Na primeira cena vemos ele mentir para todos que ele era um cozinheiro e nunca soubemos o que ele de fato era. No penúltimo episódio da série Flint reforça que ele nunca realmente conheceu Silver, e que as histórias sobre a própria infância que Silver contou eram todas mentiras. E Silver reforça seu desejo de nunca se abrir sobre seu passado. Então existia alguma ficção em Silver.

Mas o Long John Silver, com o “Long” na frente do nome foi inventado por Billy Bones. Billy Bones é um antigo aliado de Flint que se tornou gradativamente mais rancoroso com ele devido a atos de crueldade que ele viu Flint fazer. Então quando ele resolve unir o povo de Nassau em torno de um pirata lendário, ele infla a reputação de Silver e atribui a ele mortes que ele não causou, para criar essa lenda. E adiciona o Long na frente de seu nome, que ele vai aceitar e manter pelo resto da vida, vivendo para honrar essa reputação.

Os outros piratas pareciam pouco preocupados em se identificar por nomes criados para inspirar medo. O apelido de Jack Rackham “Calico”, nunca é mencionado na série, e o apelido Barba Negra é usado com Teach somente em sua primeira aparição, para estabelecer que o público o reconheça, e depois ele é referido somente como Teach. Mesmo não querendo ser esses personagens imensos, eles entendem que a reputação deles é algo de valor e se esforçam muito para ter o controle das suas narrativas, e para garantir que o que vão falar sobre eles nas ruas é o que eles querem que seja dito.

Isso é retratado no perfeccionismo de Jack de como ele quer a sua bandeira, o que é um link com o fato de que foi Jack na vida real quem desenhou o design mais reconhecível e icônico de bandeira pirata na história.

E esse é o real poder de Flint e de Silver no meio dessa gente. Eles não são grandes por seus talentos na espada, habilidade de ler o vento, boa mira ou força bruta. Digo, eles têm tudo isso, mas isso todos os capitães da série têm. O que torna essas duas figuras notórias em conseguir o que eles querem, são seus talentos como contadores de história. Suas habilidades de contar uma história grandiosa que faça toda a tripulação seguir adiante em um objetivo é demarcado como um diferencial desses dois e como um poder que os tornava perigosos.

E é constantemente dito que enquanto Flint e Silver fossem aliados, eles conseguiriam o que quisessem, mas se um dia eles ficassem inimigos, um ia ser um problema na vida do outro justamente por isso, pelo poder de moldar a realidade através de contar a melhor história.

E com o Flint vindo de um lugar das elites e tendo recebido boa educação, e com Silver sendo um golpista que tentou se disfarçar de pirata temporariamente e não conseguiu sair da vida, ambos conseguiram tirar qualquer noção de que eles eram impostores no meio onde estavam contando boas histórias sobre o que a tripulação deveria fazer.

A existência de ambos era uma boa história.

O que culmina no climax. Quando a aliança entre os dois se torna inimizade e o conflito chega no seu ponto máximo. Nós não vemos o que acontece entre os dois quando Silver retorna da ilha de mãos vazias. O que sabemos é a história que ele contou, e sendo Silver um mentiroso de mão cheia, a história pode ser verdade ou mentira. Mas não importa. Pois a história é o que vai seguir circulando, se a verdade for diferente da história, ninguém vai ficar sabendo da verdade.

Para a frustração de Madi, uma filha de escravos que liderava um grupo de ex-escravos e estava muito emocionalmente investida em lutar a mesma guerra que Flint, pelos inimigos comuns deles.

E Black Sails tem esse núcleo também, que é bem forte, o dos Maroons. Os Maroons são um grupo de ex-escravos que escaparam e se agruparam nessa ilha chamada Ilha Maroon onde eles esperavam viver em comunidade sem contato com pessoas brancas, faz conseguindo transportar alguns itens do continente americano graças a alguns agentes infiltrados no comércio de Nassau. Aparentemente eles são inspirados em resistências de escravos que realmente rolaram e são parte importante da história da Jamaica, mas essa não é uma história que eu vou saber contar.

Enfim, os Maroons servem como a quarta grande força interferindo no que foi a disputa pelo destino de Nassau, entrando em um conflito que estava sendo protagonizado pela Inglaterra, pelos piratas e pelos comerciantes de Nassau. E eles servem como um ponto interessante para se comparar aos piratas.

Os Maroons assim como os Piratas não são inclusos naquilo que a Inglaterra chama de “civilização”, a palavra civilização é usada com muita força durante toda a série, e ela é usada significando a Europa. Quando um europeu fala, ele fala para demonstrar sua prepotência e arrogância, mas quando um pirata ou um Maroon fala, eles falam com desprezo por tudo o que a Inglaterra representa. Então ambos os grupos são excluídos do projeto que foi nomeado de civilização. E naturalmente a série não quer deixar implícito que esse retiro de ex-escravos ou Nassau não eram lugares civilizados, muito pelo contrário, a ironia fica clara para o expectador, de como em diversos aspectos, Nassau e os Maroons tinham mais estrutura, ética, respeito aos códigos que os europeus, que podiam recorrer a atitudes particularmente selvagens quando as coisas não saiam do jeito deles. E é visível que a Inglaterra usa a palavra civilização para representar uma série de valores que eles não representam.

Enfim, assim como os piratas eles não tem uma mentalidade única. Diversos Maroons tem opiniões muito diferentes a respeito de se é do interesse deles ou não se juntar à guerra de Flint. Alguns acham que Flint é um inimigo, outro acha que é um aliado. Alguns desconfiam dele por ser um pirata, outros por ser Flint. Alguns querem se manter escondidos e outros não acham que eles deveriam se esconder. Porém eles têm uma unidade grande na sua noção de grupo. Os Maroons não concordam em várias opiniões, mas eles têm opiniões que valorizam a existência do grupo, eles não querem as mesmas decisões, mas todas as decisões deles tomam em conta os Maroons enquanto coletivo, e as pessoas negras no geral, pois o sentimento se aplica aos escravos em Nassau.

Essa variança de pensamentos é presente em toda a série e é parte do que torna a série interessante, não reduz nenhum personagem a meramente seguir o grupo e faz todos os personagens terem pensamentos independentes capazes de interpretar a situação onde o grupo em que eles estavam se encontrava. Digo, o arco de Charles Vane foi justamente migrar do inimigo jurado de Flint, individualista e egoísta, para alguém que acredita completamente na necessidade de união contra o Imperialismo.

Quando Madi passa a liderar os Maroons, Madi que tinha interesse na guerra e na destruição do Império Britânico tanto quanto Flint se alia com ele, e na prática isso faz com que Flint tenha convencido mais ex-escravos do que piratas para lutar a sua guerra. Pra Flint tanto faz, como eu disse, odiar a Inglaterra faz você achar aliados baseados em inimigos comuns em vários lugares diferentes.

Mas a pirataria teve uma relação complicada com a escravidão, e com complicada eu quero dizer que eles atacavam muitos navios negreiros, e se eles iam recrutar os escravos para serem piratas, e, portanto, homens livres, ou se eles iam revender os escravos, podia ir pra qualquer uma das duas direções, eles faziam as duas coisas. Muitos piratas famosos foram escravos libertos, e dizem relatos que o pirata negro não era discriminado, mas eles não exatamente foram uma força anti-escravidão e muitas vezes lucraram com a escravidão. E a série reconhece essa dualidade como parte da falta de confiança que os Maroons têm nos piratas.

O que é importante sobre os Maroons é. Eles não são tão conectados com a noção de uma narrativa por trás nem pela noção de que história vão contar sobre eles. Eles são práticos e são focados em que futuro as decisões deles vão carregar pra comunidade deles. E senso forte de identidade coletiva deles, faz com que eles percam pouco tempo em promover os seus como figuras lendárias, pelo contrário, o Sr. Scott foi o rei dos Maroons por anos e ficou em anonimato em Nassau operando nas sombras querendo que seu povo jamais fosse descoberto. E o Sr. Scott visivelmente desmerecia qualquer tentativa de Flint de impressionar a Srta Guthrie com uma história grandiosa de guerra e glória.

Os piratas não tinham essa identidade coletiva forte, e eles dependiam dessas lendas para criarem uma. Diferente dos Maroons, eles só conseguiam enxergar a ideia de que todos os piratas de Nassau eram uma classe resistindo ao que a Europa chama de civilização, se uma lenda fosse apresentada a eles, pois o individualismo de cada capitão ainda fala mais alto.

Ficcionalizarem a própria narrativa era algo que unia os piratas, e sem uma história para trás, tinha pouca coisa unindo eles. E de fato, a gente os vê se traírem entre si muito mais do que vemos europeus ou Maroons se traindo. Mas piratas se traem o tempo, por rivalidade, birra pessoal ou ganância.

Conclusão:

Alguns registros reais dizem que a violência dos ataques piratas era um boato que eles próprios espalhavam. Eles queriam ter a reputação de ataques sanguinários e violentos, para que o inimigo ao ouvir essas histórias, escolhesse render-se sem lutar. Um saque por rendição é melhor pros negócios, o navio precisa do máximo possível de tripulantes vivos, e não gasta pólvora e munição que são valiosos. Piratas querem economizar recursos. Então eles sabiam que se eles estrategicamente selecionassem bem alguns ataques para serem cruéis e sanguinários, e deixassem a história se espalhar, os próximos ataques seriam sem resistência, e rendição é o ideal.

Em uma cena na segunda temporada, vemos um comerciante se render, por saber como funciona, mas para o azar dele, quem invadiu seu navio foi Ned Low, um pirata notório por seu sadismo, por torturar vítimas e por ser mais cruel que seus pares. Então esse comerciante se fodeu. Ele não estava errado, ele só deu azar de pegar um pirata que não estava alinhado com a maneira tradicional de se operar, pois não era obrigado. No fim do dia, cada capitão pirata era uma pessoa diferente.

Piratas foram pessoas que viveram de suas reputações, do quão reconhecível eram suas bandeiras e seus navios, de sua teatralidade. O Barba Negra supostamente colocava fogo na barba durante os ataques, e eu não sei no que isso ajudava, mas deixava uma impressão, virava uma história pra ser contada, e tanto virou que passaram 300 anos e eu estou contando essa história. Alguns piratas foram definidos por reputações firmadas por eles próprios, outros pelo que a Europa dizia deles, outros pelo tal do Capitão Charles Johnson, seja ele quem for. Alguns piratas não foram considerados piratas por muita gente, pois foram heróis de guerra ou figuras políticas heroificadas.

Porém, três séculos se passaram, e hoje é muito difícil estudar uma figura como Edward Teach sabendo diferenciar fato de ficção. É verdade que ele foi emboscado bêbado por um marinheiro com superioridade numérica e mesmo assim não caiu morto até levar o quinto tiro e o vigésimo corte de espada? Ou isso é feito para inflar a reputação do mais famoso pirata que existiu? Eu sei lá. O hype das pessoas da época se misturou muito com os relatos.

O navio de Teach se chamava Queen Anne’s Revenge, e tem quem afirme que antes de ser um pirata ele foi um militar que lutou m nome da Rainha Ana. Existem provas disso? Não. E como 80% dos piratas operavam sob nome falso, para não permitir que seus parentes fossem perseguidos pelo governo, não temos como saber o nome verdadeiro do Barba Negra para saber se ele já se alistou em algum exército na vida.

A verdade é que sobre os piratas, uma boa parte do que se sabe não é verdade, e uma boa parte do que é verdade não é sabido. E quando Black Sails assumiu a tarefa de fazer uma série de piratas realistas eles abraçaram essa contradição com força, decidindo que eles não iam tentar separar fato de ficção, mas sim incorporar que eles serem um grupo que foi ficcionalizado como parte do que foi a história deles.

E para isso a história acompanhou dois notórios piratas fictícios, que essencialmente definiram a figura estereotípica do pirata, como se tivessem sido parte da pirataria em Nassau. Mas fizeram eles trocarem o estereótipo. A série não contém um único tapa-olho, um único gancho, uma única perna de pau e nenhum papagaio. A série trocou esse estereotipo por um ausente em Treasure Island, a noção romantizada de que os piratas eram uma força politizada e unida. E transformou o conflito entre Silver e Flint em um conflito não sobre ganância, mas sobre política.

E enquanto a série reconhece que os piratas não realmente foram uma força política antigovernamental. Ela segue um personagem que viveu tentando fazer eles serem. Que se dedicou a tentar transformar isso em uma realidade.

E o que podemos tirar disso, na real, é que justamente, muitos bandos piratas podiam não se expressar como uma força política da maneira que as histórias com Reis dos Piratas querem vender. Mas é tão fácil projetar isso neles, pois muitos aspectos neles são invejáveis até hoje. Pois a memória deles e a ficcionalização deles podem ser uma força política até os dias atuais.

Navios Piratas eram democracias. O capitão era decidido por voto, e podia ser deposto por voto durante uma viagem. Ser um bom capitão significava estar sempre prestando atenção na sua aprovação dentro do navio, pois a impopularidade de um capitão removia ele de seu posto. E uma decisão do capitão, quando não carismática, passava pelo voto de seus tripulantes.

Um membro do bando, chamado contramestre era também eleito pelo voto da tripulação. Ele mediava os excessos do capitão como um representante da tripulação e resolvia disputas internas entre as pessoas no navio. Ele era visto como a segunda maior autoridade no navio e não era subordinado ao capitão, e sim aos interesses coletivos da tripulação.

Todo membro do navio é um igual. O que significa que todos recebem uma porção igual do saque. Que ninguém vai contar quem deu mais tiro que quem. Ninguém vai falar que o cara que não foi atacar e ficou cuidando das velas trabalhou mais ou menos. Todos recebem uma parte igual, exceto pelo capitão e contramestre que recebiam uma parte levemente maior.

E esse tratamento vale pra tudo, ninguém recebia um pedaço melhor da carne de propósito, ninguém recebia menos comida que os demais em tempos de crise. Todos eram iguais e tinham o direito do mesmo tratamento.

Existiam compensações. Se um pirata perdesse um braço ou uma perna em um ataque, então uma parte do saque era dado a ele como compensação antes da divisão. E se dois membros da tripulação estivessem em um relacionamento (lembrando que mulheres eram proibidas a bordo), caso um dos tripulantes morresse em um ataque, seu parceiro ganhava a própria parte do saque e também a parte do amante falecido. Não tinha proibição de sexo entre tripulantes em um navio pirata.

Aliás, só de curiosidade, toda a ideia de “proibido ter mulheres a bordo” era para evitar que dois tripulantes brigassem por ciúmes e disputassem a atenção feminina em alto-mar. Mesmo motivo pelo qual apostar em um navio era proibido na maioria dos navios, as regras do navio queriam evitar qualquer coisa que pudesse fazer um tripulante socar o outro em alto-mar, quando a cooperação era tão importante.

E isso tudo era um contraste enorme para soldados da marinha britânica ou trabalhadores assalariados que não escolhiam seus superiores, não tinham a autoridade de depor seus superiores e não recebiam nada próximo de um salário justo. E os piratas podiam não vender esses pontos de seu estilo de vida como propaganda positiva, mas os seus inimigos viam. Os navios mercantis e navios do governo viam que a maneira como eles operavam era diferente.

E isso é parte do motivo pelo qual muito soldado da marinha abandonava seu posto pra virar pirata, pelo qual escravos viravam piratas, pelo qual membros da tripulação de um navio invadido ofereciam seus serviços para o capitão invasor. Pois a vida pirata é sofrida e penosa, mas era justa, e a concorrência muitas vezes oferecia uma vida tão penosa quanto e com menos justiça.

E isso é parte do motivo pelo qual eles viraram monstros. Criaturas da Terra do Nunca que são uma ameaça para todos ali. Seres de pura vilania e diabos encarnados.

E talvez o Rei dos Piratas não tenha existido para fundar a república anarquista de Libertatia, e talvez o período em que Nassau foi uma república pirata tenha sido mais um golpe de sorte que falhou pois muitos deles queriam o perdão e estar em paz com o governo. Mesmo assim, até hoje os moldes de igualdade e democracia pelo qual eles viviam é invejável. Até hoje não conseguimos nada parecido.

A ideia de todo empregado ficar com uma parte igual dos lucros da empresa é algo que você não encontra em anúncio de emprego nenhum atualmente. Isso era revolucionário 300 anos atrás e se alguém propusesse hoje seria revolucionário também.

E a maioria das pessoas não sabem nem imaginam que os piratas tenham sido ideais de tratamento igualitário. Pois a maioria das pessoas que escrevem histórias de piratas escrevem histórias sobre monstros. Sobre bandidos cruéis e sem caráter. E é em resposta a essa imagem, do pirata assassino e cruel, que se faz a projeção do rei dos piratas e da resistência piratesca.

Black Sails não só inseriu essa disputa de narrativas na sua proposta de piratas realistas. Ela fez essa disputa de narrativas ser a sua proposta de piratas realistas. Fez o realismo ser um grupo de bandidos normais tendo que olhar pro futuro e decidir como eles iriam ser lembrados, como monstros ou como uma força política. E o quanto apesar deles não terem mãos limpas, e matarem estuprarem e torturarem. Além de punir quebras de códigos de conduta com a morte. Apesar de tudo isso ser verdade, existiu uma nobreza e uma humanidade neles. E os piratas da série podiam ver que essa nobreza ia precisar ser glorificada, pois iam tentar apagá-la.

Fazem muito pouca ficção sobre piratas atualmente. Não lançaram outros filmes de pirata para tentar surfar a onda do Pirates of the Caribbean, One Piece não inspirou nenhum outro mangá de piratas, Black Sails não inspirou cópias de Black Sails, e não estou otimista quanto a Our Flag Means Death conseguir inspirar mais gente falando sobre o tema, embora eu queira a segunda temporada. Mas de tudo o que saiu, não tem nada que seja mais a essência do que é um pirata do que Black Sails, independente de qual é a sua referência do que é pirataria, o pirata real, o monstro ou o revolucionário, a série é sobre os três.

Sobre o autor

Izzombie

Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

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Alertas

  • – Todos os posts desse blog contém SPOILERS de seus respectivos assuntos, sem exceção. Leia com medo de perder toda a experiência.
  • – Todos os textos desse blog contém palavras de baixo calão, independente da obra analisada ser ou não ao público infantil. Mesmo ao analisar uma obra pra crianças a analise ainda é destinada para adultos e pode tocar e temas como sexo e violência.

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