Scream e a arte de misturar o whodunnit com o slasher:

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Olá, bem-vindos ou bem-vindos de volta ao Dentro da Chaminé, meus leitores. Nesse texto aqui vou falar de muita coisa. Vou falar de Scream uma franquia de terror que eu amo, conhecida no Brasil como Pânico. Vou falar do maravilhoso subgênero whodunnit e do também maravilhoso subgênero slasher. Vou falar sobre como spoiler funciona e sobre o valor de se reassistir um filme. Enfim, esse é um texto com muitos pontos pelos quais eu quero passar.

E o primeiro de todos é uma errata que eu quero fazer, que curiosamente me traz de volta a última vez que eu falei de filmes de terror aqui no blog. Mais cedo ainda esse ano, eu fiz um texto sobre o gênero do terror, e sobre as várias palavras usadas para tentar separar os filmes “bons” dos filmes de terror. Eu tentei falar que gênero cinematográfico vem de sentimentos, não de clichês de fórmulas, e que gêneros eram só 5, romance, terror, ação, comédia e drama. E eu até brinquei que eles representavam as cinco emoções que aparecem no filme da Pixar Inside Out.

Em uma analogia que se voltou contra mim quando o filme originalmente queria que fossem seis emoções.

Um bom amigo veio até mim e questionou minha divisão, ele falou que faltava o gênero “mistério”, e construiu um argumento de que “mistério” não era só uma palavra bonita para se distanciar de um dos demais cinco gêneros. É uma descrição de um gênero que se baseia na manipulação de um sentimento específico, o da surpresa e da curiosidade. O desejo de se obter uma informação acima de tudo. E que o sentimento que sustenta um filme como Murder on the Orient Express, por exemplo, não seria o sentimento de nenhum dos outros gêneros que eu descrevi.

E eu pensei, pensei, resisti, pensei mais e concordei. Mistério é um gênero sim, que eu omiti quando escrevi o texto lá atrás, e acho que até neguei ser um gênero nas redes sociais quando comentaram o texto, mas eu volto atrás aqui. Eu considero mistério um gênero. Só não muda de ideia quem não tem ideia pra mudar, e quando eu discordo de mim mesmo eu venho aqui e me desminto.

Então no texto de hoje eu quero começar falando do cinema de mistério, sobre os sentimentos que ele manipula de nós, e sobre o seu subgênero mais famoso, o whodunnit.

Antes de começar eu quero sempre lembrá-los de que o Dentro da Chaminé é um blog que é financiado pelos seus leitores. E que se você gosta dos textos, você pode ajudar a financiar o blog pelo projeto de financiamento coletivo no apoia.se que o site tem. Ajudando com o valor que achar justo, com recompensas que podem incluir acesso antecipado aos textos e votos em enquete para escolher textos futuros.

Todos os que ajudam o blog tem a minha gratidão, e esse texto é dedicado em homenagem a esses campeões. Sério, o apoio de vocês me motiva a beça a dar meu melhor aqui. E espero que vocês gostem do texto.

E um último aviso, o texto contém spoilers de todos os cinco filmes da franqua Scream, eu vou falar sem medo a identidade de vários Ghostfaces, então fiquem avisados. Dito isso, vamos falar sobre filmes de mistério.

Filmes de mistério costumam ser filmes que instigam a sua curiosidade, seu desejo de saber a resposta para uma pergunta, que supostamente deve ser o grande fio condutor da trama. E essa curiosidade trás uma satisfação muito específica para ver peças aleatórias se encaixando uma por uma para montar uma imagem na sua cabeça e responder sua pergunta. Essa pergunta pode ser: “Onde foi parar o noivo que sumiu em uma noite de bebedeira?”, ou “Qual é a senha para o cofre, e a propósito o que tem dentro dele?”, ou “Qual dos quatro depoimentos sobre a morte do Samurai é o verdadeiro?”, mas, talvez por uma certa preguiça dos produtores de Hollywood, que talvez seja o que me fez demorar pra reconheces esse gênero, na grande maioria das vezes a pergunta é: “Quem é o assassino?”

E quando não é um assassino em si, é um “quem é o criminoso?”. Geralmente filmes de mistérios são sobre identificar um criminoso. E tem muitas maneiras de se fazer um filme sobre alguém tentando identificar um criminoso. Podemos fazer um detetive querer descobrir quem matou uma prostituta, e a cada nova pista ele percebe que o caso era muito maior, e é parte de uma conspiração que envolve muita gente e muita intriga. Ou podemos fazer dois policiais caçando um assassino misterioso, resolvendo um quebra-cabeça que leve ao paradeiro dele. Nos dois casos, nós vamos sendo apresentados aos personagens secundários aos poucos, e como o foco é no crime mais do que tudo, não faz muita diferença se quando o culpado for pego ele for um personagem que não conhecemos.

Por exemplo, não é um spoiler revelar aqui o rosto do Buffalo Bill de Silence of the Lambs.

…ou podemos fazer um whodunnit. Whodunnit é uma palavra que surgiu na década de 1930, com uns três jornalistas sendo considerados os criadores do termo por diversas pessoas, cada um usando para falar sobre um filme ou livro de detetive diferente. O nome vem da frase “Who done it” em inglês, que inclusive é um mal uso de gramática em inglês. O certo seria “Who did it”, mas por tradição o uso errado da gramática “Who done it” é propositalmente usado, por conta de ser o nome estabelecido do gênero.

Os whodunnits:

O whodunnit se distingue dos demais estilos de história de detetive investigando um assassino pelo seu grande foco nos suspeitos. Quando os detetives de Se7en estão procurando o suspeito, eles não têm uma lista de suspeitos claras, e quando eles acharem o assassino, não se supõe que vamos reconhecê-lo. No whodunnit é diferente. O crime desde o princípio tem uma lista limitada de suspeitos. E eles vão ser trabalhados um a um, na nossa frente e um deles é o assassino.

“O assassino é uma das pessoas dessa festa.” Ou “O assassino é um desses 4” ou principalmente “O assassino é uma das pessoas nesse quarto agora mesmo” logo de cara o leque de possíveis assassinos é um número que pode ser alto, mas é baixo o suficiente pro expectador poder decorar todos os personagens. E a ideia de que desde o princípio sabemos que um deles é o assassino é um convite ao expectador, de ver se ele consegue adivinhar qual deles é o culpado. De preferência, se ele consegue adivinhar antes do detetive, é uma experiência quase interativa.

Tradicionalmente toda pista que o detetive for receber o expectador deverá receber também, com poucos whodunnits sendo resolvidos quando o detetive revela uma pista nova que ele tirou do cu e que a gente não sabia que existia… para fins de manter difícil pra gente, algumas pistas vão ser falsas e nos levar ao suspeito inocente só aumentando a tensão.

Pistas que levam ao criminoso errado são tradicionalmente chamadas de Arenques Vermelhos (Red Hering), que é também o nome do sujeito traduzido no Brasil pra Ruivo Hering em A Pup Named Scooby Doo.

Tradicionalmente também, um whodunnit é investigado por um detetive que não está oficialmente afiliado com o governo. Ele não é um membro ativo da polícia, e sim um agente independente. Ele pode ser um detetive particular, um associado da vítima querendo respostas, um jornalista curioso, mas não um policial. Geralmente a polícia existe nas histórias whodunnit para apresentar uma mentalidade simplista e ingênua que o assassino explora e manipula. E o detetive é não-convencional e capaz de conseguir ler além das pistas falsas nas quais a polícia se ilude. Isso também dá ao detetive o poder de não prender o assassino, caso ele não julgue necessário, pois não é o trabalho dele. Ele é um observador que acha a verdade e no final ele faz o que ele acha certo que as vezes é seguir a lei e as vezes não é.

Por último, os whodunnits são marcadas pela assim chamada “Dupla Narrativa”, que significa que ao longo da história, temos duas histórias acontecendo. O detetive indo falar com os suspeitos e montando um quebra-cabeça é uma história, mas os motivos do crime terem acontecido, e os eventos do passado na vida do suspeito são uma segunda história, e as duas existem em paralelo. Reconstruir a narrativa do crime para entender exatamente o que aconteceu e meramente investigar as evidências e prender o culpado são histórias conectadas, mas são também duas histórias paralelas, se mantendo juntas, pois a narrativa é construída para que o assassino não possa ser revelado se o mais mínimo detalhe da narrativa do crime não tiver vindo a tona.

Eu adoro whodunnits, são filmes que pegam na minha fraqueza, tanto que meu filme favorito de 2019 foi Knives Out. Eu acho fascinante ver o detetive ter que ouvir todas aquelas histórias e ver o que é que não encaixa. Mas os whodunnits tem uma questão grande, que é algo que atrapalha todos os filmes do estilo, assim como atrapalha a maior parte dos filmes de mistério em um geral… os spoilers.

Segurar a informação ao máximo possível é uma tecnica narrativa desse tipo de história e você nota isso nos mangás e quadrinhos de detetive, que separam o detetive apontando para só na outra página vermos pra quem ele apontou, causando a tensão da virada de página.

Claro, spoiler de qualquer filme é um inconveniente, e as pessoas não gostam. Mas de todos os filmes nenhum é impactado mais pelos spoilers que os filmes de mistério. Afinal de contas, se a gente sabe o que vai acontecer, não ficaremos curiosos. E eu mesmo, que raramente me incomodo com spoilers da maioria dos filmes, fico bravo se me contam quem é o assassino do filme de detetive com antecedência. É um dos poucos spoilers que me irritam. Pois eu de fato quero tentar adivinhar, jogar o jogo e ser surpreendido. Tanto que eu avisei ali em cima e aviso de novo, eu vou falar abertamente de alguns assassinos da franquia Scream. Todos meus textos tem spoilers, mas esse spoiler importa mais que os outros.

O lance onde eu quero chegar é: quando um spoiler estraga a sua experiência vendo um filme, isso é na real muito ruim pro filme. Pior pro filme do que é pra você. Pois isso diminui a experiência de reassistir um filme. Quando você revê The Fight Club sabendo os spoilers, o filme segue bom, pois apesar da surpresa ser divertida, a qualidade do filme não dependia da surpresa. Mas como fazer um filme como Murder on the Orient Express ser intrigante revendo se revendo a gente já sabe quais cenas são um mentiroso fazendo a gente perder tempo?

Soylent Green é um dos raros casos de filmes que eu não consegui me divertir vendo unicamente porque eu já sabia o final. Minha conclusão foi que esse filme é ruim. Isso é algo que não é pra acontecer em um filme bem-feito.

É um desafio.

Hitchcock abertamente desprezada whodunnits, e afirmava que eles eram somente construção para uma grande surpresa e que o filme inteiro girava em torno da surpresa, e ele não gostava disso. E o ponto dele é importante. Pois eu reforço, quando o filme depende da surpresa pra ser bom, e de nada mais, um spoiler destrói um filme. E um filme idealmente deveria independentemente do quão impactante é a primeira experiência e do que pode ser partido, continuar prazeroso pra quem assiste sabendo os spoilers.

Essa cena por exemplo, obviamente tem o valor da surpresa, mas eu acho que ela segue poderosa mesmo vista pela décima vez.

Alguns podem dizer que: “é só fazer um filme bom”, pois filme bom sempre vale a pena de se reassistir, mesmo quando já sabemos como eles acabam. E faz sentido, é super verdade isso. Mas acho uma solução vaga. Um filme bom significa coisas muito diferentes pra pessoas diferentes.

Geralmente filmes que se sustentam em um mistério e garantem uma boa experiência reassistindo são os filmes que constroem suas cenas para que você tenha uma percepção dela com informação e outra percepção dela sem a informação, de maneira que quanto mais contexto você tenha, mais você consiga apreciar as coisas.

É muito difícil rever Scream 2 e não pensar que nossa primeira impressão de Mickey é a de um cara que acha que sequels são melhores que o original. Essa cena melhora ao ser revisitada.

Idealmente como filmes de mistério te fazem desejar informação, quando você reassiste eles, você se sente recompensado pela informação que tem e é capaz de, por ter contexto, coletar nova informação.

Enfim, tem soluções, mas é um desafio, só é um desafio que muitos filmes de mistério já responderam. Eu só trouxe isso à tona, porque de fato, filmes de mistério precisam se construir para serem bons de serem vistos depois que você sabe o mistério, ou seja, eles são filmes que apesar de metade deles se sustentarem em uma surpresa no final, eles precisam ser ligeiramente a prova de spoilers e permitir que o cara que tomou spoiler do amigo ainda possa ver um bom filme. E olha… muitos fracassam nisso e de fato tem um conteúdo tão fraco que um único spoiler derruba o filme inteiro.

Hoje em dia todo mundo anda muito sensível por causa de spoiler, mas eu acho que é só um nicho específico de filmes que realmente se tornam impossíveis de apreciar após um spoiler e isso é um defeito do filme.

Mas voltando aos whodunnits. Para esse texto eu quero olhar como o filme Scream encarou esse desafio. E suas ideias originais que elevam o filme dentre os demais whodunnits. E é sobre as maneiras que Scream trabalha o formato, as coisas que a franquia fazem de diferente que eu quero pensar aqui, pois eu acho de verdade que um pouco por falta de concorrência, uma vez que só resolveram fazer uma série de filmes do Poirot agora, e Knives Out é um fenômeno recente, Scream se manteve por muitos anos como a maior série de whodunnits do cinema.

…mas a gente raramente menciona Scream na mesma lista que filmes whodunnit. Pois a franquia pertence simultaneamente a um outro subgênero, um subgênero do terror ao qual ela é muito mais associada. Scream além de um whodunnit, é um filme slasher. E não qualquer slasher é o filme que revitalizou o slasher e impediu o subgênero de morrer. E além de tudo é um filme famoso por ser meta então o filme Scream realmente fez uma combinação boa e inédita de subgêneros e linguagem ali para chegar em um fenômeno único, que até hoje, muitos tentam imitar, mas somente Scream é Scream.

Enfim, o subgênero slasher, é um subgênero de terror, que dependendo da escola de pensamento que você seguir pode ter começado com Psycho, com Peeping Tom ou com Black Christmas, mas que o gênero da maneira como conhecemos foi codificado por um filme que se inspirou pesadamente nesses três que é Halloween e é até hoje a grande referência do que é um slasher. O slasher consiste em um filme em que um elenco de vítimas, preferencialmente adolescentes, e preferencialmente vítimas desagradáveis, despreocupadas em fazer o que deviam estar fazendo e com pouca simpatia do público, são assassinadas uma a uma por um assassino que seja por questão de máscara, por só o vermos de costas nunca vemos seu rosto. E quando vemos seu rosto é um rosto distorcido por cicatrizes ou má formação. A ideia é nunca dar um rosto humano ao assassino, esconder sua humanidade por trás de cicatrizes, máscara ou ângulos de câmera.

O assassino comumente porta uma arma branca que deve cortar ou perfurar a vítima, mortes sangrentas são a prioridade, e após vencer as vítimas uma a uma, a última sobrevivente, mais vezes do que não uma menina, enfrenta o assassino, o derrota e escapa para sua liberdade, exceto que o assassino nunca verdadeiramente morre e volta em uma sequência.

É essencialmente isso. Alguns filmes não cumprem todos os elementos, mas cumprem a maioria deles. E filmes slasher foram gigantes nos anos 1980, até cansarem o público, e eles cansaram o público pois são de fato filmes muito formuláticos, e você pode gostar da fórmula até, mas isso não tira a sensação de que quem viu um viu todos. E eis que entra Scream que revitalizou o Slasher e repensou o subgênero de maneira que ele consegue seguir vivo até hoje com sua nova perspectiva…

O que é um processo que eu chamo de reconstrução e quero dedicar um texto futuro a esse processo um dia.

O meu take aqui, é que slasher e whodunnit são uma combinação muito boa, que não é muito comum, e que o Wes Craven conseguiu usar elementos do whodunnit para reforçar as compensar do slasher, e usar os elementos do slasher para deixar o whodunnit interessante. E com isso fortalecer os dois gêneros.

A mistura de subgêneros:

No primeiro filme Scream, uma série de adolescentes começam a ser stalkeados e assassinados por um de seus colegas, escondido debaixo de uma máscara de halloween. O filme começa como muitos slashers começam. Com um assassinato, que deixe claro para o leitor como o assassino age e que ele está a solta. Mas também é o começo de um filme whodunnit, pois enquanto na maioria dos filmes slashers, o primeiro assassinato raramente é algo do qual os protagonistas têm alguma noção, em Scream o primeiro assassinato desencadeia uma investigação e um mistério. Alguém matou Casey. Quem?

Essa noção é só reforçada, pois a última coisa que Casey faz em vida é tirar a máscara de seu assassino e ver sua identidade. Nada começa um mistério melhor que uma cena em que um personagem vê algo que o expectador não vê. 

E imediatamente a gente entende que foi um dos colegas de sala dela, elevando todo mundo ao status de suspeito. O que é bom. Um dos maiores defeitos de slashers, é que porque a gente vê o filme sabendo que todos vão morrer, a gente não se apega a eles, pois queremos vê-los morrer. A gente pagou o ingresso pra isso, pra ver dois jovens esfaqueados enquanto transam. Então os personagens são construídos para terem sua antipatia e não serem memoráveis.

Mas em Scream eles não são somente vítimas, eles são também suspeitos. O que significa que eles são nosso ponto de interesse, pois queremos saber qual delas é o assassino. Prestamos atenção em se elas deixam pistas em seus diálogos. De repente eles não são somente um bando de otário com tesão, pois um deles é um serial killer só se fingindo de otário com tesão.

E o resultado disso é que Scream tem as vítimas mais memoráveis de qualquer filme slasher que exista. E não falo só do filme original onde Randy até hoje segue como um dos personagens mais populares da franquia, Tatum segue lembrada, e Casey e Stu podem ser referenciados por nome nos filmes futuros que o expectador lembra deles. Mas no quarto filme Kirby é disparada uma das personagens favoritas que desencadeou diversos debates a respeito de se ela estava viva ou não.

Quero só ver se tem algum fanboy se contorcendo no reddit pra se convencer se alguma das mulheres que o Jason matou está secretamente viva.

Inclusive, colocaram no Scream 5 (me recuso a não colocar o 5 no título), um easter egg indicando que Kirby de fato sobreviveu, para deixar muitos fãs felizes. E é isso. É uma das vítimas do quarto filme que tá ali só pra levar facada recebendo easter egg no filme seguinte pelo quão reconhecível ela é.

E o clima de “todos são suspeitos” permite que os personagens ganhem esse status. Todo mundo é importante, pois todo mundo pode ser o assassino em potencial, e vai ser tratado como assassino em potencial enquanto estiverem vivos.

O que também torna dramático quando vemos o personagem de quem suspeitavamos morrerem e se provarem inocentes da pior forma.

….e aí eles vão morrendo.

Um problema real de whodunnits é que, para manter a tensão de que o assassino pode ser qualquer um, eles têm que evitar eliminar suspeitos. Pois se a gente descobre que o cunhado da vítima não é o assassino, então o cunhado da vítima não tem mais nada pra fazer no resto da história. E isso não é interessante, ter muito personagem ocupando espaço sem ter nada a ver com a história. Então a ideia é nunca descartar os personagens como possíveis suspeitos. Mas ao mesmo tempo, se você não descarta ninguém ao longo da história, fica a impressão de que a investigação não está avançando.

Mas em Scream, a gente elimina suspeitos e não precisa manter os suspeitos eliminados ali perdendo nosso tempo, pois eles são assassinados. Olha só que eficiente. Tatum morreu na garagem, bom, ela não era o assassino. Namorado novo da Sidney morreu no segundo filme? Bom, ele tá limpo então. Sabemos que o assassino vai viver o suficiente pra ser desmascarado, então as mortes sangrentas e cruéis das vítimas servem também para nos ajudar a entender quem não é o assassino.

E nos fazer refletir quem poderia ser o assassino, pois vemos o Ghostface matar as vítimas e podemos pensar “quem é que poderia estar nesse local nessa hora?”

O que chega na minha parte favorita. De uma quebra de padrão que Scream quebrou tanto com slashers quanto com whodunnits.

Que são os dois assassinos.

Ter dois assassinos é provavelmente a melhor ideia da franquia Scream. E é uma ideia tão boa que mesmo sendo uma parte da fórmula muito clara e previsível, os filmes não mudam ela. Inclusive o único filme sem dois assassinos, Scream 3, é considerado por muitos fãs (eu incluso) o pior da franquia.

Saber que tem duas pessoas ali secretamente trabalhando juntos aumenta em muito as possibilidades, e ajuda muitos truques para inocentar um personagem ou impedir de se tornarem mais suspeitos. No primeiro filme, Stu liga pra Sidney como o assassino para atribuir um álibi pra Billy e fazer com que acreditemos que Billy não era o assassino. Da mesma forma, Charlie em Scream 4, se passa por vítima para iludir Kirby e matá-la.

Mas o principal é o quanto os dois assassinos criam um contexto novo para se reassistir o filme. Como em cada cena de assassinato o assassino está mascarado, a gente não realmente sabe quem está matando quem nos filmes, até reassistir, e procurar pistas para saber qual membro da turma que pode receber os créditos por cada morte.

Na wikia dos filmes temos reflexões a respeito de quem é quem baseado nas evidências do filme.

Debates querendo saber que foi Billy ou Stu quem matou Casey são bons, e mantém o clima do filme de mistério no filme. A gente pode saber quem era o Ghostface, mas a gente não tem todas as respostas, então a gente reassiste os filmes para procurar mais pistas. Ao mesmo tempo que achar respostas trás satisfação. Qualquer lista sobre quem é o melhor Ghostface ao falar dos méritos da Amber, menciona o mérito imenso que é ter matado Dewey e protagonizado o melhor assassinato de seu filme. Ela estava mascarada, mas revendo o filme a gente sabe quem é quem, e quem estava nos momentos fodas.

E isso destaca Scream perante os outros whodunnits, o ato de que mesmo pra quem sabe o assassino, a gente ainda tem coisas para descobrir sobre os assassinos. Pois são dois deles. E mascarados não sabemos quem é quem, se não prestarmos atenção nas dicas. Dando um valor em reassistir o filme não só por ser bom, mas também para seguir desvendando o mistério.

E um ponto fundamental que ser um whodunnit fez o filme se destacar dos demais slashers: Scream é uma das raras franquias de terror que dá mais foco aos seus heróis que aos seus vilões. E faz isso sem dar palco para golpista profissional que nem a franquia The Conjuring faz. Sidney Prescott é um ícone para todas as Final Girls, e o exemplo da menina sobrevivente ficar gradativamente mais ligada e prevenida contra o assassino e evoluir a sua rival é uma ideia tão boa, mas tão boa….

….que é o que mantém a franquia Halloween forte atualmente, a rivalidade entre Laurie Strode e Michael Myers. Laurie só foi retornar para a franquia Halloween no sétimo filme, em 1998, lançado dois anos depois do sucesso imenso de Scream.

Whodunnits que viram franquia são sobre o mesmo herói desmascarando novos criminosos, e isso está presente em Scream. Inclusive porque Sidney não é a única sobrevivente, o segundo maior nome do time de heróis é a jornalista Gale Weathers. Se Sidney, sendo uma adolescente que na primeira metade do primeiro filme era virgem e andava com um monte de jovem fã de sexo e álcool, era a típica heroína de um slasher, Gale a repórter agressiva com um bom faro para notícias que cola em uma história de assassinato em busca de um furo, é um bom arquétipo de história de detetive.

E você pode dizer que nunca foi uma dupla protagonista e sim um trio. Que o trio protagonista era Sidney, Gale e Dewey. E se você falar isso, você terá a razão. Mas tem algo em Sidney e Gale. Algo que vai além do fato de com a morte de Dewey, as duas serem de fato as únicas que vão aparecer nos seis filmes, já que o sexto filme já foi anunciado. Não é só isso.

É o fato de Billy Loomis, que é essencialmente o pai do Ghostface enquanto ideia, ter sido morto por dois tiros. Um de Gale e um de Sidney, as duas mataram Billy juntos.

Dewey, sempre existiu como um personagem em que apesar de presente e de ser um amigo próximo e quase um irmão pra Sidney, a interação primária de Dewey é com Gale. Com o romance deles. E a dupla deles exemplifica o que eu disse. Policiais são usados em whodunnit para do seu jeito mais certinho e tradicional, contrastar a garra do detetive, aqui representado por Gale. Ela usa a amizade dela com Dewey para investigar de maneira ilegal, e os dois ilustram a maneira como Dewey é mais restrito por protocolos que ela, pois Dewey não é um policial rebelde.

E Gale trás consigo um fortalecimento da metade do whodunnit no filme, pois é ela quem trás a tona a Narrativa Dupla, pois ela entra na história como uma conhecida de Sidney já. Ela é a repórter investigativa que está investigando o caso do estupro e morte da mãe de Sidney, e como Sidney deu um testemunho equivocado que mandou um inocente pro corredor da morte.

O passado dos protagonistas é um elemento que trás a Narrativa Dupla pro filme. Entender quem é o assassino por trás da máscara é entender o que realmente aconteceu com a mãe de Sidney. Apesar de Billy fazer charminho por ser legal não ter motivo, eu acho muito notável que quando ele fala sobre o rancor dele pela mãe de Sidney, o Stu fica surpreso, como se fosse algo que o Billy guardava de segredo até do parceiro, um ódio que desencadeou sua psicopatia.

E no terceiro filme, a história da mãe da Sidney é expandida mais ainda, pois o passado dela é a motivação para os assassinatos de Roman.

No quinto filme entender mais sobre a vida de Billy Loomis antes de morrer é fundamental para entender porque a nova heroína Sam Carpenter é a vítima dos novos assassinos.

O passado é importante na franquia Scream. E isso faz com que o lore da série seja importante também. Muitos slashers apostam que quanto menos você souber sobre os assassinos melhor, mas acho que a maioria dos slashers se beneficiam de um lore sólido. E apesar do mistério ser o charminho do Michael Myers, nem todo vilão consegue ser o Michael Myers.

O Ghostface é um assassino único nos slashers. Único por ser um mero humano de máscara, sem nada sobrenatural guiando ele, mas ao mesmo tempo, por ser um legado tão sedutor capaz de chamar tantos imitadores, ele é tão imortal quanto o Jason. Eu fiz já um texto de como o Ghostface se destaca dos demais vilões dos filmes de terror, mas eu quero reforçar isso aqui, pois Scream realmente é um filme que revolucionou muita coisa.

Mas acho que o mérito maior não é só ter reconstruído o slasher. Acho que o mérito maior foi ter fundido o slasher com o whodunnit de uma maneira que não só fez um subgênero compensar as fraquezas do outro, como mostrou que ambos os subgêneros funcionam em espaços muito além do habitual.

Whodunnits eram aplicados essencialmente em assassinatos estilo Agatha Christie ou em paródias de assassinatos estilo Agatha Christie, e slashers sequer tinham as paródias na época, era só os filmes tradicionais. E agora graças a Scream, slashers se revitalizaram ganharam seu próprio nicho novo, desencadearam novas paródias, novos takes, novas leituras. Muita coisa muito legal foi feita com o subgênero que não teriam sido feitas sem Scream.

E os whodunnits…. bem, temos atualmente uma série de filmes do Poirot, e temos um filmafprço do Ryan Johnson que meio que subverte o estilão Agatha Christie, mas é isso, os whodunnits ainda não foram muito além disso, e seguem meio ausentes do cinema mainstream. Ah sim, e temos também Meitantei Conan (Detetive Conan) no Japão que fez um filme de detetive bater em filme da Marvel e isso deve ser celebrado! Inclusive retiro o que disse lá em cima, acho que Meitantei Conan deve ser a maior franquia de whodunnit do presente.

E dentre os que saem tem uns ótimos, além do Knives Out, eu adorei um que saiu recentemente também chamado Kid Detective, que desconstrói bem todo o tropo da criança detetive, ao observar como seria a vida adulta de um detetive mirim crescido.

Mas mesmo que tenham pessoas dando takes interessantíssimos pro whodunnit atualmente, eu sinto que não são tantos, e que o gênero poderia ter sido mais explorado nos últimos vinte anos, se Scream tivesse inspirado uma nova leva de whodunnits da mesma forma que inspirou uma nova leva de slashers.

Pois o filme é um filme de mistério legítimo. O primeiro filme é até hoje um dos mais legais filmes de descobrir quem é o serial killer. E isso as vezes fica na sombra dele ser um grande slasher. Mas ele é um bom whodunnit tanto quanto é um bom slasher, é os dois.

E acho que a lição que fica é justamente essa. Os subgêneros ficam melhores quando se misturam, todos eles têm pontos fracos, fórmulas, e tropos batidos, que mais do que precisarem de uma subversão só pela subversão só pra deixar as coisas novas, podem só pegar emprestado de outros. A mistura dos subgêneros é uma arte de procurar compatibilidades.

E Scream achou ouro.

Sobre o autor

Izzombie

Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

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Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

Alertas

  • – Todos os posts desse blog contém SPOILERS de seus respectivos assuntos, sem exceção. Leia com medo de perder toda a experiência.
  • – Todos os textos desse blog contém palavras de baixo calão, independente da obra analisada ser ou não ao público infantil. Mesmo ao analisar uma obra pra crianças a analise ainda é destinada para adultos e pode tocar e temas como sexo e violência.

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