Community e a Toxicidade Obrigatória da Televisão

C

Entre 2009 e 2015 existiu essa série de comédia chamada Community. Ela durou seis temporadas, e para a raiva dos fãs de meme, nenhum filme. Exibiu 110 episódios, e apesar de terem rolos sobre quais pontos são ruins ou não, da saída controversa do seu criador Dan Harmon na quarta temporada e seu retorno na quinta, do cancelamento, do descancelamento, da saída de membros do elenco no meio da série e da sua temporada final ter sido produzida pelo stream do Yahoo, que é um serviço de streaming que ninguém assinou no mundo, apesar de tudo isso o saldo geral da série é mais que positivo e eu posso falar que me diverti do começo ao fim, e que tenho carinho até mesmo pelas temporadas consideradas ruins.

A série se concentra nas aventuras desses sete amigos, que frequentam a universidade comunitária Greendale e formam um grupo de estudos para estudar juntos. Eles formam laços entre si e apesar de muita confusão, manipulação e desentendimento eles se tornam algo muito mais poderoso que um grupo de estudos. Eles se tornam uma família.

E essa família é mais tóxica do que veneno de rato.

Os membros do grupo de estudo são uma família disfuncional e tóxica, eles fazem o mal um para o outro constantemente, eles tiram o pior um do outro, eles pioram os ambientes que eles frequentam com a sua presença e eles sempre se perdoam e fazem as pazes, pois eles precisam ficar juntos, mesmo sendo um bando de escrotos.

Por que eles ficam juntos mesmo sendo ruins? Porque eles são personagens de televisão. E é pra isso que a televisão serve, para mostrar gente tóxica. O formato televisivo exige que a maioria das séries de comédia mostrem relacionamentos tóxicos e esconda a toxicidade por trás da noção do perdão. É assim que a televisão funciona.

E o que Community tem de especial nisso? Que Community serve para apontar isso. Usando sua marca registrada: a meta-linguagem.

Esse texto será sobre isso. Como a meta-linguagem de Community ajuda a expor e trabalhar a maneira como a televisão exige que as relações sejam tóxicas.

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Esse texto é feito em homenagem a todos que apoiam o blog, e que moram no meu coração. Sou grato a tudo o que fazem por mim, e espero que vocês gostem desse texto.

Agora vamos falar de sitcoms:

Como funcionam as sitcoms:

Sitcom, um encurtamento de situational comedy, é um gênero de comédia televisiva que existe desde os anos 1940. Sitcoms se distinguem por serem comédias pautadas na rotina de pessoas comuns, que dividem constantemente o mesmo ambiente. Com cenários recorrentes, câmeras fixas, tradicionalmente gravado na frente de uma audiência para poderem gravar as reações da plateia, mas hoje em dia só usam um som padronizado de risadas para inserir em um episódio (e algumas já estão evitando usar essas risadas de fundo). Sitcoms sustentam seu humor com base na interação dos personagens, e na maneira como suas personalidades se chocam. Geralmente usando sua premissa básica para fazer pessoas com pouco em comum dividindo o mesmo espaço com muita frequência, para gerar conflito, briga, mal-entendido e reconciliação.

Sitcoms também são por sua tradição, episódicas, os episódios costumam ter final feliz, e todos os conflitos que surgem no episódio vão ser resolvidos no próprio episódio (ou em uma eventual parte 2 em casos de episódios especiais). Apesar de inserirem personagens novos aqui e ali e outras mudanças estruturais quando muito necessário, idealmente as sitcoms têm pouca continuidade e um status quo muito bem definido, e isso ocorre para que os episódios possam ser transmitidos fora de ordem em reprises.

O gênero foi inventado na Inglaterra, com a série Pinwright’s Progress, mas foi popularizado como um dos formatos de mais sucesso da televisão com o sucesso estrondoso de I Love Lucy nos anos 1950.

As primeiras sitcoms costumavam mostrar famílias. Casais de marido e mulher ou então famílias nucleares com um pai, uma mãe e filhos. Mas ao longo de 70 anos em que o gênero se desenvolveu, o mesmo formato conseguiu se aplicar a escolas, grupos de amigos ou ambientes de trabalho. Seinfeld essencialmente codificou o estilo de sitcom focada em alguns amigos só curtindo o dia a dia, e depois Friends oficializou esse como o novo estilo oficial que fariam menos sitcoms sobre grupos familiares serem feitas. The Office por outro lado firmou o ambiente de trabalho como algo igualmente carismático, embora sitcoms em ambiente de trabalho já existissem antes, como por exemplo Cheers.

Mas não importa se não colegas de classe, parentes, colegas de trabalho ou grandes amigos, toda sitcom é sobre família! Toda! E se a família não for literal, a série vai insistir muito na ideia de que aqueles personagens se tornaram uma família entre si. Independente do ambiente, no final de uma sitcom os laços que unem os protagonistas são os laços mais importantes das vidas deles. E aquelas pessoas são as pessoas fundamentais de suas vidas.

Toda sitcom é uma família. Toda! E essa família é unida por amor, por hábito, por identidade de grupo e por perdão.

Amor, pois eles todos se amam. Mesmo os mais brigões do grupo.

Hábito, pois eles todos não podem se livrar um do outro. Eles convivem juntos. Eles se veem todos os dias, pois eles são parte da rotina um do outro. Quando é a família, eles moram juntos. Quando é trabalho é porque eles trabalham juntos. E mesmo quando são só amigos, se eles não são colegas de quarto, eles são vizinhos.

Eles não têm a opção de não se verem quase diariamente, pois eles estão conectados ao mesmo espaço. Obviamente isso é importante por motivos práticos. A sitcom precisa que o elenco inteiro apareça todo episódio no mesmo cenário. Em todo episódio de How I Met Your Mother a gente tem que ver os cinco protagonistas, e a gente tem que ver o apartamento do Ted, e o Pub onde eles bebem (com exceções de episódios em que a gente não vê, mas é o padrão), então três dos cinco tem que morar no apartamento por default, para só dois precisarem visitar. E eles visitam o tempo todo.

E a série vai minar qualquer tentativa de mudar isso. Se a Lily terminar com o Marshal e ir embora, ela precisa voltar no fim do episódio, pois no fim do episódio ela tem que frequentar o apartamento diariamente.

Se o Dennis de It’s Always Sunny in Philadelphia, resolve achar outro trabalho, ele tem que voltar pro pub no fim do episódio, pois os cinco precisam frequentar o pub todos os dias.

A vida dos personagens não pode mudar o suficiente para eles saírem daquele ambiente eventualmente. Pois é estarem todo dia naquele ambiente que une eles. Eles são pessoas que tem o hábito de se verem diariamente.

E eles não podem se livrar um do outro nem colocar a vida deles em um ponto que exista outro foco maior do que esse grupo. Pois eles se unem por essa identidade.

Os personagens se reconhecem como uma turma separada. Em uma sitcom geralmente a distinção entre protagonistas e secundários não é somente uma tecnicalidade da produção. Ela é reconhecida internamente. Os personagens estão cientes que eles são uma turma e que os demais estão fora da turma.

E eles são protetores uns dos outros nesse quesito. É muito comum vir um episódio em que um estranho faz alguma babaquice que outro personagem já fez, e eles impõe que “nós podemos fazer isso entre nós, mas você é de fora do grupo”.

Inclusive é um plot recorrente de sitcoms o episódio em que eles testam a possibilidade de um novo membro pra turma e expulsam o membro novo no fim do episódio.

As crianças de South Park fazem uma entrevista de emprego para achar o Novo Kenny.

E muitos episódios focam em como a amizade de um dos membros da turma com outra pessoa vai destruir a dinâmica da turma. Com um sentimento muito forte de um elemento de fora o grupo. Pois a turma de protagonistas tem uma identidade de grupo forte.

E por último, são unidos pelo perdão. Pois no final de tudo, eles se perdoam.

Por sitcoms geralmente quererem fazer suas tramas ocorrerem em espaços relativamente pré-definidos, e centrar muito na personalidade dos personagens. Mais vezes do que não o episódio vai girar em torno de dois personagens em conflito. O que pode ser dois personagens diretamente brigando, e se recusando a ceder em uma briga. Ou pode ser um personagem mantendo uma mentira do outro que ele acha que vai afastá-los se vier a tona. Ou podem ser dois personagens com perspectivas diferentes de como lidar com um problema querendo provar seu ponto. O grupo pode brigar com um personagem de fora do grupo que é um personagem de um episódio só. Mas é sempre choque de personalidades.

E para a comédia florescer esses personagens em choque tem que ter um número grande de defeitos.

De pessoas imaturas, com ataque de raiva, autocentradas ou muito obsessivas com prazeres imediatos, ou pessoas de pouquíssima inteligência e incapazes de se responsabilizar por mancadas até pessoas altamente problemáticas cujos hábitos envelhecem feito leite, como o predador sexual Barney Stinson. Essas pessoas têm defeitos fortes nelas que vão ser a base de vários episódios.

Mas no final do episódio elas não vão melhorar, elas não vão realmente repensar suas ações, elas vão ser perdoadas, pois tudo vai voltar ao normal.

Então Homer Simpson comete uma imbecilidade que coloca o casamento dele com a Marge em crise, mas no final ela perdoa ele, e ela está perdoando ele faz 33 anos e ele nunca melhora, mas ela sempre perdoa ele de novo. E esse casamento já está começando a parecer um casamento meio estranho, dependente da esposa engolir um sapo todo mês e fingir que não se incomoda com a falta de responsabilidade de seu marido.

Se Barney e Lily brigam, no final eles fazem as pazes.

Se Fred e Barney deixam de ser melhores amigos, no final eles voltam a ser melhores amigos.

No final tudo volta ao normal.

E isso significa, que as babaquices que os personagens cometem são todas resetadas, pelo poder do perdão, do um gesto de redenção, e de que no fim tudo volta ao normal, e nenhuma mágoa ou rancor fica pro próximo episódio.

Aliás, é importante estabelecer aqui: o lance de esses personagens serem constantemente perdoados por defeitos que eles não vão trabalhar pra melhorar, e a maneira como os danos que babaquice atrás de babaquice tem nas amizades são só temporários e não deixam rancor nem mágoa, não têm o objetivo de normalizar e defender esses comportamentos na sociedade.

Talvez tenha a consequência, dependendo do impacto da série. E isso pode ser estudado, o quanto isso é normalizado, mas o objetivo não é normalizar. Vale a pena se debater essa normalização olhando caso a caso. Mas lance é uma questão de formato. Precisa ser assim, pra manter o status quo.

Agora. Sitcoms não só podem, como muitas vezes vão ter pequenos arcos com uma ligeira continuidade, mais vezes do que não, que ocorrem com a troca de temporadas. Fazendo com que no começo de uma temporada um personagem novo surja, um personagem consiga um trabalho, ou então fazendo os personagens se pegarem.

Muitas sitcoms não familiares, se sustentam muito em shipping, e em tensão sexual entre seu elenco. O que significa que os personagens se pegam, namoram, terminam, namoram outras pessoas, terminam, tem uma recaída com a primeira namorada… e rola esse ping pong, mas uma coisa não muda. Eles são família.

O que significa que no final de toda sitcom, sempre tem dois ex-namorados concordando em ter um laço de serem parte das pessoas mais importantes um da vida do outro pelo resto da vida. O que longe de ser errado, esse blog não é contra ser amigo de ex. Acho ótimo quando exes ficam amigos, conheço alguns que são e sou amigo da minha.

É só que a dor e a mágoa de um término impedindo a amizade de voltar a florescer (sem nem entrar no mérito de evoluir ao nível de segunda família) é uma situação identificável em escala maior do que o que rola nas sitcoms, em que depois desse malabarismo romântico, quase sempre envolvendo o término sair de mentiras, traições e mágoas, eles declaram que o grupo deles é uma família inseparável, e alguém vira família inseparável com um ex e seu novo parceiro.

No final de The Office, Andy e Angela são família e dividem entre si o laço mais forte e importante do mundo por serem parte do mesmo grupo, independente do quão desconfortável normalmente seria para os dois reestabelecerem um laço depois do que passaram.

E isso vem do poder do perdão.

A pessoa foi traída com o melhor amigo durante um relacionamento sério? Tudo bem, eles vão fazer as pazes e eventualmente vão voltar a ser família, e o rancor não será alimentado.

E isso é o status quo que rege a televisão. A ideia de que as dinâmicas dos personagens serem familiares e reconhecíveis por qualquer um que pegue o episódio é mais importante do que a maneira como os eventos dos episódios impacta eles, pois nenhum impacto dura. Não pode durar, tudo deve voltar ao normal.

Essa é a espinha dorsal da televisão.

Ser reconhecível, ser familiar, ser algo estável, quando sua vida é caótica e instável, você relaxa vendo alguém que é a mesma pessoa faz 30 anos, Bart Simpson. E isso te acalma. A não-mudança é o apelo.

Muitos roteiristas estão cientes disso. E muitos tentam brigar com essa característica da televisão.

Alguns fazem comédias de sociopatas, em que todos os membros do elenco serem pessoas destrutivas, tóxicas, indignas de perdão e disfuncionais, é a fonte de humor, e por isso o público deseja que eles não fiquem melhores pois o público quer ver o trem desencarrilhar e o mundo ficar pior. Nessas séries temos It’s Always Sunny in Philadelphia, Arrested Development ou Archer.

Mas esse texto é sobre como Community encara essa característica da televisão.

Community e a televisão:

O pilar central por trás de Community é a televisão. Community é uma série de televisão escrita com uma noção muito forte de como televisão funciona, é estruturada e como essas estruturas afetam personagens fictícios de maneiras que não afetariam pessoas comuns e brinca disso o tempo todo.

Quando falamos de metalinguagem em Community instantaneamente pensamos no personagem Abed Nadir, um jovem com alguma neurodivergência nunca explicitamente diagnosticada, que não consegue se conectar com pessoas normalmente, então ele usa seu conhecimento de televisão, filmes e tropos narrativos para preencher as lacunas sociais que lhe faltam.

Abed age como se estivesse em um programa de televisão o tempo todo. Pois ele acha o mundo da televisão mais fácil de entender do que o mundo real. Mas não se enganem, Abed sabe que o mundo real é diferente da televisão. E quando ele tem uma crise que torna ele incapaz de distinguir a realidade, essa crise é o foco do episódio. Quando não é uma crise, o Abed somente projeta o seu desejo de que o mundo fosse mais parecido com a televisão para ser mais fácil de entender.

Pois o mundo da televisão é padronizado e previsível e esses são elementos que Abed aprecia, e a vida real é caótica e não satisfatória.

Por isso Abed está sempre fazendo piadas metalinguísticas sobre os tipos de tropos que o episódio está usando. Mas não deixem ele ser o para-raios desse texto. Abed é definitivamente parte de como a metalinguagem de Community trabalha os pressupostos do que faz a televisão funcionar. Mas vários elementos da série trabalham metalinguagem o tempo todo, pois a série é escrita por um sujeito viciado em metalinguagem chamado Dan Harmon.

Dan Harmon e as convenções de roteiro:

Dan Harmon é um roteirista de televisão estadunidense, que é famoso especialmente por ter criado Community e por ter co-criado Rick and Morty, junto de Justin Roiland. Essas são as coisas pelas quais ele é famoso. Mas ele também é conhecido pelo seu podcast Harmontown, pelo programa em que celebridades jogam RPG Harmonquest, e pela maneira como ele adaptou a Jornada do Herói de Joseph Campbell em uma estrutura televisiva para fazer episódios de sitcom chamada O Círculo da História.

E o Dan Harmon é um homem que adora estrutura de roteiro, como exemplificado na maneira a qual ele é diretamente associado em sua carreira a uma técnica de estruturar roteiros que ele projetou. E sua obsessão por estrutura é algo visível nos principais projetos em que ele encosta.

Community não é o único lugar onde o Dan Harmon brincou com a metalinguagem. Rick and Morty, é extremamente metalinguístico também, e o próprio Harmonquest não só é metalinguístico, como também quebra algumas convenções de como deveria ser uma aventura de RPG, para substituir por convenções de storytelling televisivo. Pois embora todos ali estejam só jogando na frente das câmeras, o Harmon se importa muito com o ato de contar histórias. E ele pensa muito na parte estrutural.

E eu acho que isso é uma marca muito clara da escrita de Dan Harmon. Nem todo roteirista é fissurado com estrutura, e não tem um jeito certo ou errado de escrever, ele pensar muito em estrutura não torna ele melhor nem pior. Mas torna ele a si mesmo. Pensar em estrutura de roteiro é parte dele, e por isso, é parte dos personagens que ele escreve. Pois ele, como a maioria dos roteiristas, coloca as coisas que possuem um triplex em sua cabeça na sua escrita e nos seus personagens.

E isso não se resume só ao Abed ou ao Rick. Os universos que o Dan Harmon cria são sempre fascinados com:

– Convenções narrativas que facilitam a vida do roteirista sendo diretamente apontadas pelos personagens e reconhecidas assim que aparecem.

– Convenções narrativas que soariam muito estúpidas na vida real sendo imediatamente reconhecidas e faladas de maneira a deixar o personagem que propôs o clichê com vergonha..

– Imitações, homenagens e paródias de filmes e subgêneros famosos reconhecendo a si mesmo como as paródias que são, e assumindo a repetição de roteiro, ao mesmo tempo em que dão os próprios twists.

– Personagens fazendo alusões a eventos que nunca vimos acontecer, para deixar o expectador momentaneamente confuso achando que perdeu algo, para enfatizar que o show não mostra todas as aventuras dos personagens, e eles seguem se metendo em confusão mesmo quando não vemos.

E com isso tanto Community quanto Rick and Morty, não deixam que a gente esqueça sequer por cinco minutos que nós estamos vendo televisão (ou streaming). Quase como se o Dan Harmon precisasse desse nível de metalinguagem para poder lidar com o fato dele colocar elementos e jargões não-naturais em um universo em que tudo precisasse ser natural.

Pois esse é o estilo dele. Ele entende a estrutura e nem sempre segue ela, ele não obedece ela, mas ele entende ela e está sempre dialogando, aceitando as vezes, subvertendo as vezes, mas é sempre sobre isso. E com esse conhecimento e essa noção de quando subverter e não subverter que ele acha o humor das séries.

Por isso que Community inevitavelmente acaba sendo sobre televisão. Pois não só os comentários do Abed. Toda a série se baseia em expectativas de que as coisas ali se comportem como se os personagens vivessem na televisão, uma tragédia que os personagens inevitavelmente não conseguem fugir, eles vivem.

Dan Harmon também leva a sério ter as emoções dos personagens no centro do episódio. E isso ajuda muito ele, pois não importa o quão meta ele vá, ou quão longe ele vá com as homenagens a outros gêneros, e brincadeiras com o formato, os episódios sempre estão ancorados em sentimentos sobre os personagens, e em fazê-los olhar para os próprios sentimentos. Que são sentimentos familiares pra nós, mas que mesmo assim precisam ser trabalhados e isso ajuda nosso senso de familiaridade.

Não importa que eles sejam personagens de G.I Joe, eles ainda são os personagens de Community e não por imitar piadas, mas pela carga sentimental.

E também importante firmar que apesar de metalinguagem constante por elementos de estrutura de roteiros que o autor da série pensa muito sobre, a série ainda insiste em não querer se passar no mundo da televisão. Com vários episódios terem twists essencialmente pautados em personagens querendo e esperando que uma resolução-de-televisão ocorra, mas em vez disso, alguém de maneira anti-climática ou desafiando expectativas propõe uma resolução normal e questiona o estado mental de quem achava que viria um desfecho televisivo.

Então Community fica eternamente na corda bamba, de um show que tenta não se passar no mundo da televisão, mas que muitos personagens agem e se portam como personagens de televisão para consequências desastrosas.

Esse último ponto é fundamental. Pois faz Community ser um show sobre televisão, por ser um show sobre um grupo de amigos se portando como se eles fossem personagens televisivos. E como se portarem como se estivessem dentro da televisão tornasse eles manipuladores, autocentrados, narcisistas, e amigos ruins. E como isso contamina todo o ambiente deles.

O exemplo mais clássico disso é. A insistência deles em se manter juntos. O grupo de estudos não quer se separar, e eles meio que se alternam entre turnos para ver qual vai ser o personagem que vai surtar e fazer algo escroto com medo de que se não fizesse nada o grupo se separaria. Pode ser o Jeff, pode ser a Annie, pode ser o Abed.

Ou podem ser todos os sete, como no episódio em que eles todos brigam sobre como nenhum deles queria ser dupla do Todd., em uma aula de biologia em que não os deixaram fazer um grupo de sete pessoas.

O que fez o Todd surtar e dar um dentre vários discursos escancarando o quanto o grupo de estudos é uma merda. O surto de Todd evidencia que o que a gente estava testemunhando só era divertido pra gente, mas que in-universe aquelas pessoas são malucas e assustam quem está próximo deles. E isso é um comentário meta. Pois te faz perceber como nós, enquanto audiência, só tomamos o lado dos protagonistas por conta de convenções narrativas que fazer a gente ignorar o quão tóxicos eles são em seu dia a dia.

Então falemos desses protagonistas e dos problemas de relacionamento deles.

A Família dos Sete de Greendale:

O Grupo de Estudos se formou quando o protagonista Jeff Winger contou uma mentira na tentativa de transar com a bonitinha da aula de espanhol Britta Perry e se viu como parte de um Grupo de Estudos formado por 7 pessoas que por algum fracasso pessoal foram parar em Greendale. Uma universidade comunitária que é um lugar ruim, para onde você vai depois que sua vida saiu dos trilhos, e onde você em teoria devia passar dois anos e depois sair de lá para recuperar a sua vida de volta.

Dois anos na vida real.

Mas uma série de televisão deve ser renovada infinitamente o máximo que puder. E isso significa que os personagens não devem sair de Greendale nunca. Para a série não acabar.

E isso significa que os personagens não vão recuperar o que perderam e sair desse purgatório em vida que é Greendale.

E por que eles não saem de Greendale? Porque eles gostam de ser parte de um grupo de estudos, é algo que tem significado pra eles. E eles dependem de Greendale pra ser uma família.

Então eles se manipulam, se sabotam, se chantageiam, e fazer babaquices enormes para impedir que as demais pessoas ali tenham um futuro, pois se eles deixarem de ser um fracasso, eles saem da família.

Pois o laço deles vem de seu fracasso.

E ao mesmo tempo a conexão deles com Greendale, um lugar onde ninguém deveria querer ficar mais tempo que o mínimo necessário, era uma conexão ruim. Pois a identidade de grupo deles constantemente estragava a experiência dos outros alunos na universidade.

O grupo se sentia especial, e Greendale validava isso, pois eles eram os favoritos do reitor. Eles desenharam a bandeira, eles monopolizaram a biblioteca por seis anos. Eles faziam toda aula ser sobre eles. E eles estragavam todo evento que não girasse em torno deles.

E sempre que uma pessoa menos canalha se juntava ao grupo, era questão de tempo até elas adquirirem essa canalhice e narcisismo uma vez no grupo.

As convenções da sitcom exigem que a evolução de um personagem seja gradual, lenta, e que ele não perca seus principais defeitos para manter um senso forte de familiaridade para o expectador pra sempre. E a resposta de Community é que uma família construída com essa base seria necessariamente tóxica em qualquer perspectiva realista. Mas em vez de esfregar essa toxicidade na nossa cara como It’s Always Sunny in Philadelphia ou Archer fazem, o Dan Harmon transforma essa toxicidade em twists.

Geralmente a revelação e que o Grupo de Estudos não tem a simpatia dos demais, e são vistos como um bando de escrotos pelos outros alunos e professores vem na forma de subversões da narrativa, e de maneira de negar ao expectador o que ele espera. A gente nunca espera que o grupo vá ser repreendido pelo nível da amizade deles, mas isso acontece o tempo todo.

Eles são tóxicos, e tudo o que eles tocam se torna tóxico também.

O que eles têm não é saudável.

E quanto mais clichês de sitcoms eles seguem, menos saudável fica.

E isso é mais visível que nunca na vida amorosa do protagonista Jeff Winger.

…que lembrando, uniu todos eles quando ele mentiu para tentar levar Britta pra cama.

E depois de admitir a mentira, confessar suas motivações e continuar tentando, ele enfim conseguiu transar com Britta.

…e eles não viraram um bom casal. Eles nem sequer viraram namorados.

Eles viraram uma grande bagunça, onde nenhuma das partes em nenhum momento se apaixonou. Mas que ocasionalmente se pegaram, e eles terem se pegado trouxe defeitos enormes deles à tona, e fez Britta ficar uma coleção bem grande de podres do Jeff no repertório dela.

E mesmo depois de Jeff se provar um ficante meia-boca e um boy lixo, ela continuou sendo família de Jeff. Pois ela não podia se afastar dele, da mesma maneia que se afastou de todos os outros exes.

Mas em paralelo ao Jeff percebendo que ele ficar com Britta foi um rolê todo errado e de onde nada de bom saiu. A grande dinâmica de romance da Sitcom que percorreu todas suas temporadas foi o romance de Jeff e Annie.

Jeff e Annie ao longo da série sentiram muita atração um pelo outro. Tanto atração sexual, quanto uma conexão pelo quanto eles tinham em comum e pelo quanto eles se davam bem. Jeff e Annie desfrutavam da companhia um do outro em diversos níveis, e ambos queriam elevar esse prazer por estarem próximos ao nível romântico e ao nível sexual, e isso estava claro e verbalizado.

Mas eles nunca fizeram nada além de uma meia dúzia de beijos.

O motivo para isso é que Annie é 12 anos mais jovem que Jeff e apesar dela ser uma maior de idade e a questão legal não ser uma questão, a diferença de idade deixava os dois desconfortáveis. O tempo todo era apontado que Jeff soava mais uma figura paterna pra Annie que qualquer coisa, e eles tinham noção de que se eles ficassem juntos seria problemático.

Mas os dois queriam…. queriam e não ficaram mesmo querendo.

Enfim, sitcoms costumam usar um tropo chamado “Will They or Won’t They?”, que traduziria pra “Mas eles vão ou não vão?”, esse tropo descreve a maneira como sitcoms costumam nos vender muito forte, geralmente desde o primeiro episódio a ideia de um casal que é o casal principal da série, mas eles vão demorar muito pra ficar juntos. Imortalizado com Ross e Rachel em Friends. Mas isso é Ted e Robin, Jim e Pam, Leonard e Penny, Meredith e Derek, Jake e Amy, Erik e Donna…. o casal é estabelecido logo de cara, e você sabe que eles eventualmente ficam juntos, mas eles ainda não ficaram. E aí vão ter vários momentos em que eles quase ficam, eles obrigatoriamente vão ter que ver o outro flertar com alguém, ter crise de ciúmes, ter triangulo amoroso, aí eles ficam juntos, aí eles se separam, aí eles ficam juntos de novo. E no final eles ficam juntos pra valer. E esse vai e volta mas sem nunca fechar o assunto para no final nos entregar o que queríamos ver desde o começo se chama Will They or Won’t They? (“Mas vai ou não vai?” traduzindo pro português)

E Community blefa para nós que o deles era Jeff e Britta.

Que no final não foi nada além de uma série de transas sem amor.

E o verdadeiro Will They or Won’t They foi Jeff e Annie… que era o que todos os fãs queriam, que fazia sentido e que você sentia que o amor era genuíno pra cacete.

Mas no final eles não ficam juntos. Annie consegue uma oportunidade boa de um emprego bom e uma vida boa, e o Jeff, vai estar preso a Greendale, pois ele trabalha ali depois de se formar. Ele está preso aquele ambiente bosta, mas ele não vai deixar Annie ficar ali, então eles não ficam juntos.

E a ideia é de que mesmo eles não ficando juntos nem nunca terem dormido foi o final feliz. Poderia ter funcionado? Sim, mas o grupo precisava se separar, para eles terminarem suas jornadas. Eles são tóxicos, e a série não podia acabar com eles juntos, pois cada um ia para um lugar melhor.

Juntos eles nunca estariam em um lugar melhor.

Community não acaba com os personagens ficando juntos pra sempre, mas enfim recuperando suas vidas e podendo ir realizar seus sonhos, em uma situação em que insistir em ser uma família seria uma autossabotagem.

Eu acho inclusive irônico. Que o penúltimo episódio da série: Wedding Videography seja justamente sobre isso. Sobre como eles todos são pessoas piores quando estão juntos e tornam os ambientes deles piores. No episódio, eles estragam o casamento de dois colegas de sala que eles nem sequer consideram um amigo, e na tentativa de arrumar a situação eles revelam que os dois na verdade são primos se casando. E na auto-reflexão eles concluem que se não fosse o grupo eles não dariam esse tipo de mancada.

Com exceção do Chang, que passou 4 temporadas fora do grupo, como um vilão e um completo psicopata, e ele comenta que ele é uma pessoa melhor como membro do grupo, em uma completa inversão. Ele é também quem salva o casamento mandando os primos casarem e foda-se.

Mas o episódio coloca as diversas camadas de toxicidade deles em primeiro plano completamente, e mostra como nenhum deles é uma pessoa melhor, mas Frankie e Elroy, os dois personagens que entraram no grupo somente na temporada final agora são pessoas piores. Eles estragam quem escolhe conviver com eles.

E desse episódio vamos imediatamente pro final, quando eles se despedem. O grupo que havia decidido transformar Greendale em uma faculdade aceitável conseguiu, supostamente, metarmofosear a faculdade em algo digno, e agora eles se vão. Elroy, Abed e Annie vão sair de Greendale, Fazendo Jeff perceber que o grupo não deve durar pra sempre e que ele tem que aprender a se desapegar do grupo.

Com Troy, Shirley e Pierce tendo saído do grupo no passado já, sobrou somente Britta dos sete originais, e o grupo que se formou em volta dos dois oficialmente se foi. E ele vai continuar em Greendale, agora um lugar salvo, e ele vai guiar novos grupos que também irão acabar e nada ali deverá ser permanente, pois ali é um ponto de parada para pessoas que Jeff vai ajudar, tirando elas dali.

No penúltimo episódio o grupo seguia imaturo e tóxico. Mas no último episódio foi sobre desapego e aceitar que o grupo vai acabar, e mais que isso, que eles não vão continuar se vendo fora de Greendale, que Jeff não vai mais ver Annie e que eles não vão eventualmente namorar, casar e ter um filho.

O final é maduro e é sobre o fato de que todo mundo ali evoluiu muito, cresceu, e agora eles precisam se separar para esse crescimento ter algum significado.

Mas no penúltimo episódio eles tavam um caos puro.

Pois a televisão isso. A televisão é sobre renovação. Se tivesse uma sétima temporada, ninguém se desapegaria, e passaríamos mais um ano de manipulação, toxicidade e narcisismo. Mas agora que a série acabou, eles enfim ganharam o direito, de deixar de ser uma família.

E apesar de se amarem e de se despedirem com um emocionante abraço. Ao dissolver o grupo a série enfatizou que um final feliz é o grupo não junto. Mas pelas regras da televisão, isso significa que um final feliz só existe quando ele é um final. Se a série se renova, ai tá na merda, aí é mais um ano de relações falhas.

Eu gosto que no fim, apesar de todos os tropos apontados, todas as paródias e todo o resto, Community até o final tenha feito os personagens, especialmente o Jeff, baterem o pé e mandarem o Abed admitir que eles não estão dentro da televisão, que eles vivem no mundo real. Pois embora eles vivam na televisão. Isso permite que a série não normalize a toxicidade das relações de televisão.

Como a televisão serializada de status quo incentiva a toxicidade dos relacionamentos, corre-se o risco de se normalizar. Os personagens têm defeitos, pois serem pessoas ruins tornam eles engraçados. Mas a gente se projeta nas relações desses personagens. E isso fica pouco dito.

Inclusive deixo aqui um vídeo sobre a misoginia nos personagens de Big Bang Theory e a maneira como a série ao não questioná-la, normaliza o comportamento dos protagonistas como um comportamento normal. E isso é importante, ser normal não quer dizer que você não critica na vida real, quer dizer só que você acha normal. Que está dentro do esperado, e que é a conduta da pessoa é parte natural do mundo ser como é.

Mas Community por ser meta, nunca faz nenhum episódio soar natural, soar como “pessoas agindo do jeito que se age”, eles esfregam na nossa cara que eles são personagens de televisão fazendo coisas de televisão, e essas coisas são tóxicas, pois sitcoms obrigatoriamente são tóxicas.

Eu não diria que Community desconstruiu a toxicidade da televisão, mas acho que nenhuma outra sitcom expôs ela melhor. E eu acho que isso é parte do Dan Harmon, porque em Rick and Morty sim ele foi e desconstruiu ela. Mas pra isso já teve texto.

Sobre o autor

Izzombie

Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

Sobre o autor

Izzombie

Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

Alertas

  • – Todos os posts desse blog contém SPOILERS de seus respectivos assuntos, sem exceção. Leia com medo de perder toda a experiência.
  • – Todos os textos desse blog contém palavras de baixo calão, independente da obra analisada ser ou não ao público infantil. Mesmo ao analisar uma obra pra crianças a analise ainda é destinada para adultos e pode tocar e temas como sexo e violência.

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