O que torna os filmes da Disney anti-sequel:

O

Quero começar esse texto abordando o título que eu dei pra ele. Filmes Disney? Anti-sequel? “Nossa Izzombie, que droga você usou? A Disney é um conglomerado de franquia que só faz filme se souber que vai rolar sequência e que firmou que sequência e valor de franquia são tudo o que importa em filme de boneco. Como você fala uma merda dessas?”, se você é um leitor que pensou isso… parabéns, você está muito lúcido.

A Disney já tem mais de dez anos é um dos grandes sinônimos com essa praga que é a necessidade de todo filme ser uma franquia, e isso corrompe tudo em que eles tocam. Com a loucura que foram eles comprando a Marvel e Star Wars e vivendo se drenar cada centavo que eles podem.

Mas não é dessa Disney que eu quero falar hoje. Quando a gente fala da Disney a gente pode estar falando da empresa cujo crescimento predatório é um perigo. Mas a gente também pode estar falando de uma série de filmes animados produzido pelos Estúdios Disney, em um processo que começou com Snow White and the Seven Dwarves e dura até hoje com Encanto. É desses filmes Disney que eu vou falar.

Não que a Disney enquanto práticas comerciais fosse uma santa antes. Não era. Mas seus defeitos imensos não se concentravam em franquias. Então em vez de falar de práticas comerciais arrombadas do passado ou do presente eu vou falar só de filmes dessa vez.

De filmes que te fazem pensar em castelos, em fadas e na música When You Wish Upon a Star, e de como muito antes da Disney comprar a Marvel ou Star Wars, ela já estava tentando fazer seus clássicos renderem mais dinheiro com sequências.

Com a popularização do VHS nos anos 1990 simultaneamente a Disney revivendo seu prestígio com a crítica graças ao Renascimento da Animação que a indústria inteira e o estúdio estavam experimentando, a época soou boa para o estúdio brincar de tentar fazer o sucesso de seus filmes renderem. E de 1994 a 2008 eles passaram 14 anos fazendo mais de 30 filmes derivados de seus filmes de sucesso, e as vezes derivados de filmes sem grande sucesso.

Nessa época eles também investiram muito em transformar seus filmes principais em séries de televisão, para ser exibido no Disney Channel que foi criado no fim dos anos 1980, mas também explodiu nos anos 1990.

E por esse período de uns 15 anos mais ou menos, a grande maioria dos filmes famosos da Disney ganharam projetos que completam a história….

…e esses projetos são todos uma grande merda.

Em The Fox and the Hound 2, a amizade entre Todd e Cooper é abalada quando Cooper entra em uma banda country e Todd se sente abandonado pela fama do amigo….
….essa é a história. Sério.

“Puxa Izzombie, mas até aquele ali que eu gostava de ver quando criança”, sim, até esse daí. Desculpa. Mas ao mesmo tempo o texto não é pra vir para dizer que esses filmes e séries eram ruins porque foram projetos picaretas de fazer uma história render, alguns foram feitos com mais coração que outros. Mas o ponto que eu quero levantar, é que esses projetos estavam fadados ao fracasso. E tinham objetivos tão difíceis de serem concluídos, que se o Hércules conseguisse fazer 12 sequências boas e satisfatórias de filmes Disney ele era aceito no Olimpo.

Então menos julgamento em quem tirou algo do que gosta desses filmes e séries e mais uma análise sobre os obstáculos em se continuar a história de um clássico Disney e porque eles são montados para não dar pra fazer uma boa sequência. Eu sou Izzombie, o Homem Dentro da Chaminé, e peço que venham comigo nessa reflexão sobre o que torna os clássicos Disney filmes anti-sequel.

Antes de começar, gostaria de avisar que o Dentro da Chaminé é um blog focado em analisar filmes, séries e mangás, que é financiado por um financiamento coletivo no apoia.se, e que se você gosta desses textos, e quer ajudar a incentivar esse tipo de conteúdo, eu te convido para se tornar um apoiador contribuindo com o valor que achar justo. Se não quiser fazer contribuições mensais, também pode apoiar o blog com uma contribuição única, fazendo um pix de qualquer valor para a chave franciscoizzo@gmail.com, que a ajuda é igualmente apreciada e agradecida.

Esse texto é feito em homenagem a todos os que já apoiam o site. Uma galera firmeza que me ajuda muito a manter o site aqui, não só com o incentivo, mas também me ajudando a ter ideias por os pensamentos em dia.

Esse texto mesmo, é parte de um projeto de dois textos, a respeito de duas armas narrativas que eu acho que ajudam a consolidar os filmes Disney como os grandes clássicos eternos que são para serem consumidos geracionalmente com um amor tão intenso. Eu fiz uma enquete com meus apoiadores para ver qual dos dois textos viria primeiro e esse venceu, o segundo texto vocês podem esperar como o primeiro texto de Junho. Quero espaçar um pouco o debate, sem muito texto consecutivo de Disney.

Ah sim, e fica o aviso aqui, spoilers liberados para todos os 60 filmes do assim chamado Walt Disney Animated Canon.

Enfim. Vamos começar falando da primeira sequência Disney direto pra VHS que saiu, que também é a minha favorita. O The Return of Jafar de 1994. Especialmente por ser minha favorita, como eu reforcei, eu quero menos cagar na ideia de que alguém se atreveu a trazer o Jafar de volta e mais pensar em que elementos de Aladdin não estavam favorecendo a existência dessa continuação.

Aliás, quero tentar falar em tons neutros o texto inteiro. Tipo, tem filmes da Disney que eu adoro e filmes que eu odeio e eu vou citar exemplos dos dois grupos sem querer diferenciar de “mas aqui fez bem-feito e aqui fez mal feito”, pois eu vou partir da tese de que a maioria dos filmes Disney funcionam, mesmo que alguns não tenham feito grande bilheteria e outros não tenham funcionado para mim. A grande maioria deles funciona o suficiente para ter seu lugar no imaginário coletivo do que é um filme Disney até hoje. E nenhuma sequência realmente pertence a esse imaginário, mesmo as sequências que têm fãs.

Enfim. Na primeira cena de The Return of Jafar, um grupo de ladrões do deserto está roubando uma coleção de tesouros, e devolvendo eles aos pobres. Aladdin aparentemente é vigilante nas horas vagas, pois passa a impressão de que esse não é o primeiro ladrão do reino que ele intercepta, e ele segue vestido igual ele se vestia quando era um mendigo. Ele fica com um dos tesouros para dar de presente para Jasmine que não sabe que Aladdin ainda é um ladrão, e os dois são surpreendidos com o retorno do Gênio. E o gênio voltou com esse design.

Mas foi embora com esse design.

Não se concentrem somente na ausência de algemas. Tem também o fato de que a metade de baixo do gênio livre nunca vira uma fumaça, pois a fumaça serve pra conectá-lo à lâmpada, sem essa conexão, somente pernas para ele.

Já deu pra notar para onde eu estou indo com isso, né? No final de Aladdin, o Aladdin liberta o gênio, e quando este se liberta somem de seus pulsos as algemas douradas que eram seu símbolo de escravo. Mas aí quando ele espontaneamente decide que mesmo livre o que ele queria mesmo é ficar usando sua magia para fazer favores pro Aladdin que é seu único amigo, ele volta com as benditas algemas.

Por quê? Porque as algemas são parte integral do design do gênio. O gênio não é o gênio sem as algemas… mas idealmente não é pro gênio ser o gênio mesmo. Pois o gênio é um escravo e no fim do filme ele está livre. Assim como no fim do filme o Aladdin não é mais um ladrão, pois ele se casa com a Jasmine…. só que não, em The Return of Jafar eles só estão namorando. E… ele ainda é mendigo? Por que ele ainda se vestiria como se vestia quando era um? Porque é o design do Aladdin. A roupa dele não deve indicar quem ele é, deve te ajudar a reconhece-lo em todas as vezes como uma âncora de familiaridade.

O filme está desesperado para apelar para os elementos reconhecíveis do filme. O Aladdin é um ladrão pobre mentindo pra Jasmine, o Gênio é o seu amigo mágico que resolve seus problemas com mágica. Os dois tem o visual padrão deles que não tem motivo pra mudar. Ah, e apesar do Jafar ser um gênio, o visual que ele usa na maior parte do filme é esse aqui:

No final de Aladdin muita coisa mudou, mas em The Return of Jafar é importante que o mínimo possível tenha mudado, para o filme ser reconhecido. O Gênio foi embora, o Jafar virou um gênio e o Aladdin teve ascensão social? Não! Desfaz tudo isso, pois sem isso não seria Aladdin.

O final do filme foi desfeito, pois o final do filme quebrou um status quo. Mas a sequência não pode continuar o fim do filme. Pois depois do fim do filme não existem os elementos que tornam Aladdin, icônico. Não tem lâmpada, não tem a divisão de classe, não tem o dilema do Aladdin sustentar seu status por uma mentira.

Os elementos icônicos de Aladdin somem no fim de seu filme. Pois a perda desses elementos é o que fecha a narrativa de Aladdin. Ele libertou o Gênio. O Gênio não é mais gênio de ninguém. Esse final dá sentido ao filme.

Mas vamos pensar em outro exemplo. Em The Little Mermaid 2, Return to the Sea, a história gira em torno da irmã da Ursula fazendo um pacto com a filha de Ariel para torná-la uma sereia. O que força Ariel a se transformar de novo em uma sereia e ir até o oceano enfrentar uma bruxa que é metade-mulher e metade-polvo. Então apesar da história ser sobre Ariel enfim conseguindo deixar o oceano e se tornar humana, no filme seguinte ela precisa voltar a ser sereia, pois ela é a pequena sereia mencionada no título. Ela tem que ser uma sereia.

Que nem no Jungle Book 2, é o que? O Mowgli se enfiando na selva com Baloo e Baguera para enfrentar o Shere Khan…. DE NOVO. Como se isso não fosse algo superado.

E o que é que rola em Beauty and the Beast, the Enchanted Christmas, ah, esse não continua a história, esse é uma midquel, que se passa quando Belle ainda era prisioneira no castelo, e Adam ainda era uma fera. E a maldição ainda existe e o filme é reconhecível pelos elementos de antes da maldição ser quebrada.

E sabe a série animada de Tangled que estreou? Como ela começa? Ah sim, com o cabelo de Rapunzel crescendo de novo, ficando mágico de novo e ficando loiro de novo, para ela recuperar o visual dela tradicional.

Vocês estão vendo aonde eu quero chegar. No final dos filmes a situação muda, e o filme deixa de ser o que ele era no poster. Mas aí os filmes precisam fazer o filme ser sobre o que ele é no poster, no trailer e no seu miolo. Sejamos sinceros, alguém te encarrega de fazer uma sequência para Pinnochio, você institivamente vai pensa que na sequência ele tem que ser um boneco de madeira e vai incluir uma cena sobre o nariz dele crescendo quando ele mente. Se ele for um menino de verdade ele não é o Pinnochio.

E é o reconhecimento é sempre o objetivo final. Qualquer continuação da Disney tem uma obrigação quase que contratual de trazer de volta o máximo possível de personagens secundários, pois o sentimento que eles querem é justamente o da extrema familiaridade. O que nem sempre casa com o final do filme.

Quem que encerra o filme se recusando a trabalhar pro Imperador mesmo?

Então vamos falar sobre como os filmes da Disney acabam, pois esse é o cerne da questão.

Os filmes Disney e os dois mundos.

Na hora de se debater sequels, especialmente na hora de se criticar sequels é muito comum alguém vir no debate e fazer o seguinte argumeto: “Para que continuar Who Framed Roger Rabbit ? A história acabou. O filme tem um final.” E bem, esse argumento na real é muito vago e puxa todo um debate sobre o que é um final? Quando uma história realmente acaba? O mundo de Who Framed Roger Rabbit é um mundo em que os personagens não podem simplesmente viver outra aventura ou começar outro caso? Quando que o potencial para que um grupo de personagens viva uma aventura realmente acaba?

Seria correto dizer que Godfather ganhou uma sequência pois não teve um final conclusivo? Eu acho o primeiro filme um filme bem completo, mesmo tendo espaço pra continuar.

A gente adora jogar a palavra desnecessário para explica que sequels são ruins. Mas assim, todos os filmes do mundo começam desnecessários, por definição. Chamaram Toy Story 4 de desnecessário e eu defendi.

Então não quero tomar esse caminho fácil de falar que se o final é fechadinho então a história não deve continuar, até porque honestamente, é por causa desse pensamento que um monte de filme que mira em virar franquia começa a fazer um monte de filme de final aberto e história que não fecha de verdade. E isso é uma bosta. Você pode fazer um final fechadinho e fazer uma sequência, sabe?

E se a sequência nunca chega fica tudo com aquele tom de trabalho incompleto. Mas não importa o tamanho da franquia, um filme deveria tentar ser o trabalho completo.

Então o lance da Disney é menos uma noção de “Mas The Little Mermaid fechou uma história”, pois mais que fechou uma história. Fechou um ciclo.

Eu já mencionei antes em outro texto, mas vou repetir aqui que o centro de boa parte dos filmes Disney é a dualidade de um protagonista que experimenta o contraste de dois mundos.

Fonte

Ele pode se deslocar de um mundo pro outro. A Branca de Neve foge da vida dela de limpar a escadaria da rainha má e vai pra vida nova dela de limpar a casa dos sete anões. A vida como serva e a vida com os sete anões tem um contraste. Da mesma forma, os gatos em Aristocats se perderam de casa e estão explorando um mundo boêmio diferente de tudo o que eles conhecem. E a Terra do Nunca que Wendy e os irmãos estavam só visitando contrastava a vida familiar que eles tinham em Londres com as pressões de crescer.

Ou o personagem pode viver uma vida dupla. Mulan ao intercalar a sua identidade de Mulan com a de Ping, transita entre o mundo masculino e o feminino. Assim como Arthur oscila entre a sua vida doméstica lamentável e as lições que ele tem com Merlin, ele vai e volta. Oliver tem duas casas, uma com o mendigo Fagin e uma com Jenny em uma mansão. E Tarzan vive simultaneamente uma rotina de Gorila com sua mãe e uma rotina aprendendo a ser humano com Jane.

O personagem pode ter duas formas. Ariel tem a forma sereia e a forma humana. Kuzco tem a forma humana e a forma de Lhama. Tiana se divide entre sapo e humana. E Kenai entre um urso e um humano.

Ou o filme pode se basear no encontro e na necessidade de cooperação de suas pessoas que viviam em mundos diferentes e que nunca se encontrariam se não fosse a circunstância da premissa, além de terem (inicialmente) planos de se separarem quando conseguirem o que querem. É o caso da hikikomori medieval Rapunzel e o ladrão Flynn Rider. Também é o caso de Vanellope e Ralph, assim como Judy e Nick em Zootopia, e o Bolt e a Mittens em Bolt.

Em Raya, existe um mundo que Raya ouviu em lendar que deixou de existir, sendo substituído por desertos cheios de monstros, e o filme foi sobre ela trazendo esse mundo de volta.

Alguns são sobre várias dessas dualidades ao mesmo tempo. Alguns são sobre um personagem transformado em um ambiente não familiar sendo auxiliado por uma pessoa que não pertence ao seu mundo.

Mas assim. Esses filmes não são sobre o protagonista dominando os dois espaços. Eles são sobre o protagonista conhecendo duas vidas muito diferentes, para no final ele escolher uma delas que vai ser a sua vida definitiva.

Bom escolher pode não ser a melhor palavra…. peguemos a Pequena Sereia por exemplo. A escolha não é dela, é de Triton, que tem que escolher entre ter sua filha por perto ou ter sua filha feliz. A gente sabe que Ariel prefere viver como humana do que como sereia, mas no final do filme ela estava melancólica aceitando que não estava em seu alcance, até Triton escolher deixar a vida de humana ao alcance da filha.

Mulan por outro lado teve uma escolha direta. Depois de provar para toda a China que ela era uma excelente guerreira e uma heroína, ela é convidada para ser membro do círculo interno do imperador, para realmente viver de ocupar uma posição de heroína integralmente, uma posição que certamente nenhuma mulher alcançou na vida, mas ela recusa. Ela não lutou a guerra por títulos. Ela voltou para casa como a flor que demorou pra desabrochar, e que por isso, é a mais linda de todas elas, e trouxe seu futuro marido com ela. Ela priorizou ser uma filha e ocupar o papel de mulher na família Fa a ocupar outro lugar tradicionalmente masculino e seguir servindo seu país continuando o que ela começou.

Simba escolheu voltar pras Pridelands e ser o rei. E Tarzan escolheu viver entre os gorilas e não ir pra Londres.

O filme não tratou como se Pocahontas tivesse uma opção, mas mesmo assim, no fim ela se despede de John Smith e fica com seu povo. E no final de The Fox and the Hound, os dois se despedem, sabendo que eles nunca mais se reencontrarão. A Todd vai viver na floresta e Copper vai viver com seu dono.

Tiana escolhe ser um sapo, para ficar com Naveen em vez de voltar a ser humana sem ele, mas ela volta a ser humana mesmo assim por sorte. Já Kenai escolhe ser um urso, e vai viver entre os ursos.

Cada filme tem seu contexto. As vezes o protagonista fugiu de um mundo ruim para um mundo bom. As vezes ele se perdeu de um bom pra um ruim. As vezes a moral do filme é ele rejeitar a mudança e voltar pro que ele tinha e as vezes a moral do filme é rejeitar o que ele tinha e abraçar a mudança. Cada filme toma uma postura.

Mas todos esses filmes se passam em uma janela de tempo muito específica. O mundo dos aliens e o Havaí são mundos separados, que ganharam uma intersecção temporária quando Stitch caiu na Terra, e no fim do filme os mundos se separaram de novo, os aliens deixam a Terra e Stitch precisava decidir em que lado ele estava. Se ele vai com os aliens ou fica na Terra. E o filme deixa claro, essa não é uma decisão que ele vai poder repensar daqui a um mês, era uma janela de tempo fechando e o que fosse decidido ficaria. Assim como o navio não ia ficar ali pra sempre esperando Tarzan e Jane se decidirem e qualquer decisão que fosse feita, aquele navio não ia voltar.

Esses filmes são sobre isso, são sobre dois cenários que não coexistem, entrando em choque porque seu protagonista (ou seu vilão) está misturando os dois cenários, mas eles começam o filme separados e terminam o filme separados, e o filme não é sobre os dois mundos se fundindo em um só (mesmo que alguns personagens secundários possam trocar de lado). O filme é sobre onde o protagonista vai ficar quando essa intersecção acabar e tudo se separar novamente.

A linha que separa a aldeia dos homens da selva é clara. Onde o Mowgli vai é uma decisão dele, mas é uma decisão que ele vai tomar somente uma vez, e daí acabou.

E assim…. talvez em casos como se no cair da última pétala da rosa, o Adam vai ficar humano ou fera, estejamos de fato lidando com algo completamente irreversível pelas leis cósmicas do universo, pois é um poder mágico que vai dissipar depois do prazo limite e nunca mais terá efeito.

Mas no caso do Mowgli não é magia. Não tem uma força mágica ou física que impeça ele de só sair da aldeia dos homens e voltar pra selva. Mas a decisão dele é final porque esse é o ponto do filme. De todos os filmes. Essa decisão tem que ser final, pois esses filmes, assim como 90% dos filmes do mundo, são filmes sobre identidade.

Protagonistas da Disney e identidade:

Todo protagonista da Disney está na exata mesma jornada. Eles querem responder duas perguntas essenciais, que a maioria das pessoas pergunta a si mesmo em seus anos formativos: “Quem eu sou?” e “Aonde eu pertenço?”. Não por coincidência, os filmes Disney são protagonizados em sua maioria por personagens que estão em fases de transição na vida no que diz respeito a sua idade e seu envelhecimento.

Muitos dos filmes começam com o indicativo de que a vida dos personagens vai começar a mudar, pois eles chegaram em determinada idade. E se for uma princesa isso vem na forma de um “você já tem idade para noivar”. Pocahontas começa com o pai de Pocahontas noivando-a, Aladdin começa com o Sultão começando a sondar casamentos pra Jasmine e Mulan começa com ela indo na casamenteira. Triton não falou nada em noivar Ariel, mas o filme começa com ela sendo apresentada para o reino todo como uma jovem de 16 anos, e todo mundo sabe pra que propósito os nobres acham que com 15/16 anos é hora de dar um baile para todo mundo no país saber que a sua filha sobreviveu a puberdade.

Para além de pais casando suas filhas. O clímax de Beauty and the Beast acontece no aniversário de 21 anos da Fera. E o de Sleeping Beauty no aniversário de 16 anos de Aurora. Mais da metade de Tangled se passa no aniversário de 18 anos de Rapunzel, que ela acreditava que por ser o de 18, seria o de sua independência. Emperor’s New Groove também se passa no aniversário de 18 anos de Kuzco. No começo de Brother Bear Kenai faz o ritual de sua tribo para ganhar seu totem, no começo de Peter Pan, vemos Wendy desconfortável que ela já é vista como velha demais pra manter seus hábitos, segundo seus pais e no começo de Frozen Elsa tem a cerimônia de sua coroação.

E no aspecto mais vida do jovem adulto, no começo de Princess and the Frog Tiana termina de juntar dinheiro pra comprar a casa onde será seu restaurante, e Judy Hopps está em seu primeiro dia de trabalho em Zootopia. Em Atlantis – Lost Empire, Milo está preparando seus papeis, para poder apresentar um projeto de pesquisa para um museu na esperança de ser aceito.

Não importa se é o momento em que você está velha demais para dividir o quarto com seus irmãos, se é seu baile de debutante, se é seu aniversário de 18 anos, se é sua visita a uma casamenteira, sua coroação, seu primeiro emprego ou você enfim comprando seu primeiro imóvel. Todos esses são ritos de passagens, passagens de uma fase da vida para a fase seguinte, uma fase em que você deixa algo de sua juventude pra trás e ao completar essa fase você cresce.

Ah sim, e eu não deixei isso claro… mas os protagonistas dos filmes fracassam completamente nesses diversos ritos de passagem.

A pesquisa de Milo foi recusada, Elsa se exilou do reino por causa da sua coroação fracassada, Wendy briga com seus pais, Ariel falta seu baile de debutante, Mulan fracassa com a casamenteira…. esses personagens estavam prestes a fazer algo que é parte de um protocolo, um caminho traçado, que várias pessoas fizeram antes deles, várias farão depois, e é parte da vida que eles deveriam ter, e na vez deles tudo dá errado.

Eles falharam em crescer no caminho tradicional.

E isso é parte do que joga eles em uma divisão entre dois mundos. O fato de que eles não são adequados o suficiente para o mundo onde eles nasceram. O fato de que eles não passam pelos ritos de passagem tradicionais da sua idade com sucesso. O fato de que eles sentem que eles não estão em seu lugar.

Por isso apesar de seus inimigos externos ditando a direção da história, a jornada dos personagens é introspectiva. Quasimodo precisa descobrir quem ele é e onde ele pertence. Ele tem que perder a noção de que ele é um monstro, e que seu lugar é na torre, e quando ele remove essas amarras ele completa sua jornada em andar lado a lado com os demais cidadãos de Paris, o que sempre foi seu sonho.

No fim o que os heróis Disney precisam para triunfarem sempre esteve dentro deles e só precisava ser acessado. Simba precisava assumir a responsabilidade pelo reino e parar de fugir de seus problemas, no caso ele precisava de um sentimento. Mas mesmo quando precisa-se de um objeto, Cinderella não provou que ela era a dama que dançou com o príncipe vestindo o sapatinho de cristal que caiu na escada, mas sim mostrando que ela guardava o outro pé com ela. Ao contrário do que a gente pensa, ela nunca prova o sapatinho que ficou com o príncipe. A prova que ela era a moça do baile estava com ela. E foi ela que ofereceu uma prova ao duque, ao contrário do Duque que testou-a em uma teste em que ela passou.

E o Dumbo acreditava que a pena o fazia voar, mas não, era ele mesmo que tinha o poder dentro de si. Assim como Rapunzel achava que sua magia existia somente em seu cabelo, mas após perder o cabelo, ela viu que a magia estava dentro de si.

E Aladdin é claro, tinha que entender que ele não precisava ser ninguém além dele mesmo para impressionar Jasmine. E que ele já a havia conquistado, quando a conheceu, sendo ele mesmo.

Os conflitos centrais desses filmes quase sempre são introspectivos. São situações que o herói poderia resolver sozinho sem um vilão, mas o vilão dá um empurrãozinho, colocando perigos reais e ameaça que forcem os personagens a lutarem para escapar de um mal horrível. Jafar expõe Aladdin e o força a enfrentar sua insegurança perante sua origem. Scar seca o reino e força o Simba a ver a consequências de sua fuga. Clayton é um macho tóxico e força Tarzan a rejeitar a masculinidade humana e a se considerar um gorila. Esses personagens estão todos se conectando consigo mesmos e com quem é a pessoa que eles querem ser perante o mundo e qual o papel que eles querem ocupar.

A bronca de Shan Yu com Mulan é porque ele a reconhece como o soldado que o derrotou. Mas Mulan não tem nada contra Shan Yu a nível pessoal. Ao vencer ela, o conflito é dela sendo ela mesma. Aqui simbolizado por ela estar lutando sem o seu disfarce.

E aí os mundos se separam novamente com a derrota do vilão e vem a escolha.

Simba e Tarzan escolheram o mundo em que eles nasceram. Aladdin conseguiu ir para um mundo melhor. Stitch vai ficar na Terra. Quasimodo não vai se esconder. Rapunzel assume seu cabelo moreno curto e volta para o palácio de seus pais ser a princesa ao lado de Flynn que reassumiu seu nome de nascença, Eugene e larga a vida de ladrão.

Esses personagens terminam o filme tendo certeza de quem eles são. Eles perderam suas dúvidas, eles sabem seu valor e sabem que lugar é deles e eles se encaixam no mundo com orgulho de serem quem são.

E aí a grande pergunta é. Que tipo de história você dá para um personagem que sabe exatamente quem é? Tipo, falando sério, é difícil escrever história sobre gente feliz e segura.

Tipo, vamos lá… a Mulan começa o filme literalmente se olhando no espelho com o rosto dividido por não saber o que ela deve fazer. Ao longo do filme ela cria uma identidade falsa, para adentrar um mundo novo. Ela então é expulsa desse mundo novo em sua identidade falsa, volta para ele em sua identidade verdadeira, triunfa tudo, ganha o reconhecimento de seus aliados e inimigos, e quando o imperador a convida para uma vida de títulos e honra, ela recusa. Ela fala pro imperador o que é que ela acha que deve fazer e vai embora para casa com um possível noivo que ela conseguiu sendo ela mesma. A pergunta é. O que você faz com a Mulan depois disso?

Faz ela entrar em outra guerra? Isso nem faz sentido, ela serviu na guerra, mas ela não é uma militar. Fazer ela se disfarçar de homem de novo? Pra que? Ela não precisa disso, o valor dela é plenamente reconhecido mesmo ela sendo mulher. A Mulan está completa enquanto pessoa, e a guerra foi um evento temporário que acabou. Então o que sobra?

Mas o filme já abre com as meninas indo espiar Mulan treinando artes marciais, como se essa fosse continuar sendo a vida dela.

Bom, tem uma infinitude de aventuras que dá para fazer a Mulan passar em uma nova etapa de sua vida. Mas guerra, hunos e disfarçar-se de homem é um assunto que já acabou. Seu objetivo primário de servir sua família, e o seu dever de servir a China se misturaram temporariamente por causa da guerra e se separaram de novo, e ela escolheu sua família. Ela pode agora enfrentar novos desafios a respeito de sua família.

…. mas o filme é famoso pela guerra. Então a continuação vai transformar ela em um agente do imperador em uma missão secreta lado a lado de seus colegas de campo de batalha. Porque é claro que vai. Pois o filme Mulan não é Mulan sem conflitos políticos.

E é aqui o erro.

A sequência quer voltar a misturar os dois mundos, mas se o personagem já sabe quem ele é, ele não precisa mais dos dois mundos. Ele escolheu o seu mundo.

No fim de Tarzan, Jane passa a vestir uma tanga. Mas na série ela mostra que ela não quer ter que vesti tanga. Eles também moram em uma casa humana longe dos gorilas, em vez de irem morar com os gorilas.

Aí eles vêm e fazem o que? O Stich vai ficar do mal de novo? Não. A sua dúvida entre ser o alien perigoso ou o pet da Lilo acabou. Ele escolheu ser mascote da Lilo. Esse ciclo se fechou. O debate era criação vs natureza, e a criação venceu. Mas pra sequência deram uma sobrevida extra pra natureza pra ter round 2, pois sem esse debate, como que seria Lilo and Stitch?

Mas é isso. Quando o personagem decide seu lugar e resolve sua crise de identidade, voltar a esse assunto soa como tentar rasgar de novo uma peça que você enfim terminou de costurar.

Que é o que muitas sequências soam. Como regressos. O Mushu precisando destruir a vida pessoal da Mulan para obter títulos e status, soa como um passo pra trás, pois ele já conseguiu seu status no fim de seu filme, e precisou perdê-lo pra virar um escroto.

E esse regresso soa como uma quebra de um clichê que não é muito bem-visto, mas é essencial para como contos de fadas funcionam e pra como a Disney funciona.

Felizes para sempre:

Essa frase é uma frase que raramente é levada a sério. É o motivo pelo qual contos de fada são usados de maneira pejorativas, e são um dos grandes alvos das paródias, sátiras e desconstruções desse tipo de narrativa.

Aproveito pra falar que acho muito estranho essa música ter sido cortada do filme de Into the Woods, mas ao mesmo tempo o filme é ruim, então dane-se.

Mas em termos de storytelling esse tipo de final tem uma importância. Por mais que a implicação de que alguém vá viver feliz para sempre seja difícil de se acreditar realisticamente, pois a Ariel e o Príncipe Eric vão provavelmente ter muitas brigas de casal, um dia ela vai quebrar a perna, e eles vão ter infelicidades que se esperam de pessoas normais.

Apesar disso eles vão viver felizes para sempre, pois eles merecem. Pois eles enfrentaram seus obstáculos. Eric empalou a bruxa do mar, e salvou a vida da mulher que salvou sua vida. Eles lutaram muito para ficarem juntos e agora eles merecem descansar.

E é isso que felizes para sempre significa. Que esses personagens não precisam mais sofrer, pois já sofreram o filme inteiro, e agora nada pior do que inconveniências do dia a dia vai atormentar eles. Definitivamente não serão atormentados por demônios internos mal resolvidos ou vilões retornando querendo vingança.

…exceto a Tiana. A Tiana será definitivamente atormentada pela crise de 1929. Uma mulher negra operando próprio negócio do sul dos Estados Unidos? Vish, ela é o elo fraco, o restaurante dela vai embora rapidinho, e talvez ela tenha que ir viver na Maldonia pois os EUA vão estar foda.

Mas assim, apesar disso a ideia ainda é permitir que os personagens desfrutem sua vitória achando paz. E essa paz é uma recompensa, e é um encerramento, então o filme faz questão de nos dar esse tom.

Filmes Disney quase sempre acabam em uma música, e essa música mais vezes do que não será uma reprise em forma de um coro triunfante da música mais importante do filme. Um tom elevado de comemoração. Um foco genuíno para como todo mundo está feliz. Com sempre alguma ênfase nos personagens secundários celebrando junto e demonstrando que a felicidade dos protagonistas é a felicidade deles (e as vezes fazendo eles realizarem seus sonhos durante essa música triunfante de encerramento).

E se algum personagem tiver morrido ou se separado, e nesse momento que recebemos algum lembrete de que eles estarão sempre olhando pelos que ficaram, sempre zelando pelos protagonistas.

E isso pode parecer brega. Aliás, os próprios produtores da Disney têm esse receio. Eles quase não colocaram o coro para reprisar Part of Your World no fim de The Little Mermaid, por medo de serem bregas. Mas olha, isso ajuda muito na catarse. Na sensação de que a gente viu uma jornada grande. E de que os personagens merecem essa felicidade que estão tendo, pois suaram e sangraram por ela.

Por isso que a ideia de que tem novos conflitos esperando eles só virando a esquina soa ruim. Agora é a hora deles descansarem, eles já viveram a aventura da vida deles, pois o filme original foi a aventura da vida deles. Essa foi a grande história que tinha pra ser contada. Eles não são super-heróis, que vão combater o mal toda semana.

A Mulan vai contar pros netos sobre como ela se vestiu de homem pra salvar a China. Mas ela não vai contar mil histórias de mil guerras que ela lutou.

Muitos filmes infantis acabam justamente com essa impressão. De que agora o protagonista começa uma vida de aventuras. A maioria faz isso já preparando terreno para uma sequência, mas muitos somente acham que esse tipo de final é divertido. De que agora o protagonista achou uma rotina mais empolgante em uma vida de aventuras.

O final de Kung Fu Panda, Monsters vs Aliens, Madagascar, How to Train Your Dragon, todos passam a impressão de que o protagonista saiu do mundo medíocre e entrou em um mundo onde ele vai viver uma vida de emoções e aventura. O final da Dreamworks favorece a noção de que depois do filme é que a chapa esquenta.

E na Pixar, muitas vezes o final do filme deixa implícito que coisas divertidas ainda acontecerão na vida dos personagens, o que desperta a nossa curiosidade, pois afinal, os filmes da Pixar sempre têm mais mundo para se explorar. A gente não viu todos os brinquedos do mundo em Toy Story, e o Nemo não navegou todo o oceano do mundo.

Mas na Disney não. A Disney passa uma sensação forte de que foi isso. Esse ciclo acabou. A aventura foi um miolo da vida, um miolo causado por maldições, erros, traumas e injustiças, e isso tudo foi superado, e o que aguarda o futuro é uma merecida paz depois de superar isso.

Existem exceções, existem. The Rescuers acaba com o tom de que Bernard e Bianca vão ter várias outras missões, e talvez isso tenha ajudado eles a terem a única sequência respeitada de toda a Disney. The Great Mouse DetectiveBig Hero 6 também acabam em clima de “No futuro, mais aventura”. Mas são exceções. A maioria quer passar em seu final a sensação de vitória e de paz.

Olha pra essa turma e vê se eles tem cara de que vão partir em uma segunda viagem de submarino arriscando a vida?

E isso mais que bloquear sequels, é o que ajuda essas histórias a ficarem com a gente. É parte do motivo pelo qual alguns desses filmes tem um impacto tão grande. Pois eles trabalham o tema da memória.

Seu período morando com um homem fera não é uma situação que Belle vai viver pra sempre, mas sim uma que ela vai lembrar pra sempre.

E Pocahontas não vai viver com John Smith, ela vai lembrar de John Smith, e John Smith vai lembrar dela.

Todd nunca vai esquecer Cooper, mesmo que eles nunca mais se vejam.

E sempre que Jim Hawkins olhar pro céu ele vai pensar em Silver.

Simba nunca vai se esquecer que seu pai vive dentro dele.

E Tiana nunca vai se esquecer do período que ela passou sendo um sapo.

Pois essas aventuras não foram pra ser um test-drive da nova vida do personagem, foram para criar um contexto, de grande risco, grande perigo e muito investimento emocional, que desse o empurrão para eles enfim amadurecerem, fazerem a passagem pra sua próxima etapa da vida e serem quem eles precisam ser, e é por isso que essa aventura é uma aventura que vale a pena ser lembrada.

E é por isso que ela não é somente “a primeira aventura de muitas de uma pessoa aventureira”, e sim um evento isolado, que representa uma fase da vida do personagem, uma fase que após superada dá a ele o direito de atingir a paz.

E o problema é essencialmente que essa fase… é a parte divertida do filme. Tipo, você até pode fazer um filme sobre o personagem vivendo a sua paz. Cinderella 2 é isso. São historinhas cotidianas sem conflitos grandes da vida de uma ex-plebeia se adaptando ao palácio real… Cinderella 2 não é muito ruim. Mas é muito chato. É muito desinteressante. Nada divertido rola no filme.

Muito mais divertido que Cinderella 2, é Cinderella 3, onde temos a volta da magia, viagem no tempo, a Lady Tremaine volta a se a vilã, e temos que ver Cinderella e principalmente o príncipe encantado suar e batalhar para reconquistar o final feliz que eles já tinham conquistado mas agora em uma aventura maior e com mais riscos.

Cinderella 3 é uma das sequências mais populares da Disney, pois retoma o que Cinderella já era com uma dose de humor extra, de comentários autodepreciativos, de ação e de aventura.

Mas um pouco é isso. Um reforço de que a história só tem o interesse do público se ela for sobre o assunto do primeiro filme, e o assunto do primeiro filme acabou, a menos que você enfie viagem o tempo na história.

Falando sério. A Rapunzel passou a vida inteira acreditando que o único valor que ela tinha estava em seu cabelo mágico, pois sua mãe adotiva só queria ela por perto por sua magia e passava dia fazendo gaslight na menina para ela se achar uma incapaz desengonçada que só serve pela sua magia. Quando Eugene corta o cabelo de Rapunzel, ele liberta ela, mas ao mesmo tempo ele tira dela algo que ela foi educada para acreditar que era onde estava todo seu valor. E então ele acorda, olha para ela agora com cabelo curto e castanho e só fala: “Rapunzel, eu já te comentei que eu tenho uma queda pelas morenas?” é um grande momento. Pois é a libertação final de Rapunzel, ter seu novo cabelo validado desse jeito.

Mas de que serve isso, se ele não é validado pelos fãs? Se ela tem que recuperar o cabelo original pra história avançar? Pois o filme foi sobre a fase em que a Rapunzel hiperbolicamente cabeluda, que coincide com a fase que ela foi uma prisioneira. E ela cortou o cabelo para ser livre, coincidentemente, no seu aniversário de 18 anos, para poder começar uma vida nova, como uma pessoa evoluída. Mas para a gente, a gente sente que o que ela tem de marcante é o cabelo.

E justamente a moral de que a parte aventureira da vida dela já passou, e que agora vem a fase feliz, entra em conflito direto com a noção de que a gente não quer ver ela feliz, a gente quer que o cabelo volte e com isso volte conflito, aventura, perigo e drama. Pois vida feliz não rende história.

A Disney desfaz as características que mais chamam a atenção do personagem no fim do filme por um motivo, mas as sequels atropelam esse motivo.

Conclusão:

Uma das narrativas mais antigas do mundo se chama Odysseia, ou A Odisseia, e é um poema épico que narra os dez anos em que seu protagonista Odysseus ficou perdido no mar tentando voltar para sua casa em Itaca e para sua esposa Penelope. É um conto poderoso e influente que até hoje é homenageado em diversas narrativas. Seu impacto pode ser observado na própria palavra odisseia que entrou no vocabulário nosso como uma jornada longa, quando o poema é meramente nomeado pelo seu protagonista.

Pois bem, em determinado ponto do poema, Odysseus encontra-se com fantasma do profeta Tiresias. E esse explica para Odysseus que depois que ele voltasse para casa e recuperasse a sua esposa, que ele deveria pegar um remo de seu barco, e andar em direção ao interior, ele deveria andar até achar uma região em que ninguém nunca tivesse visto o mar, onde ninguém sequer colocasse sal na comida. E então, quando um estranho olhasse para o remo de Odysseus e confundisse com uma pá de espalhar grãos, aí Odysseus terá chegado no ponto em que ele deveria deixar o seu remo cravado na terra, e naquele momento ele enfim terá encontrado paz e a jornada terá acabado.

A jornada de Odysseus é altamente definida pelo mar, ele enfrenta tempestade, enfrenta sereias e acima de tudo enfrenta a ira do deus Poseidon, o Deus dos Mares. E a conclusão é que para a jornada enfim acabar e Odysseus poder descansar de tudo o que ele passou, ele precisava deixar o mar para trás. O mar esteve no centro dos dez anos em que a vida de Odysseus foi uma tragédia que o obrigou a ser um herói, mas não vai estar no centro dos anos de paz em que ele vai deixar esses eventos desastrosos para trás.

Assim. Enquanto eu acho que o apelo dos filmes da Dreamworks está em seu escapismo, na maneira como seus heróis todos tem o poder de mudar o mundo a sua imagem de semelhança, e como a vida deles é uma vida de aventuras; e o apelo da Pixar está em sua humanidade, em seus personagens muito complexos e fáceis de se conectar emocionalmente e universos vastos onde vemos várias perspectivas de como viver no mesmo mundo fantástico; eu sinto que os filmes da Disney tem em seu apelo a imortalidade de uma lenda. Um sentimento obviamente ajudado pelo fato de eles escolherem personagens famosos do domínio público para recontar essas histórias.

São histórias sobre eventos que ocorrem uma só vez no mundo, em que um herói para salvar o mundo precisa solucionar a si mesmo, e quando ele fizer isso, ele decidirá quem ele é, e após essa decisão o mundo voltará ao normal, o evento que ocorreu se dissipará e o que ficará com a gente é a paz da decisão que os personagens tomaram.

E isso pode não ser a história mais fácil de se projetar do mundo. Independente de é projetar quem você é, ou quem você queria ser. Mas é uma história fácil de se querer contar de novo. De se querer repetir, e de se lembrar delas. De usar como metáfora para pensar em outras histórias, e de se carregar a diante. No final os personagens sempre vão lembrar dessa aventura e nós também iremos.

E esse tipo de história simplesmente não tem espaço para continuação. A continuação tiraria a paz do protagonista, diminuiria o poder das suas decisões, e tiraria o aspecto singular do filme original de retratar um evento que não ocorre todo dia. A continuação inevitavelmente quer fazer a gente reviver os eventos do primeiro filme, mas pro filme funcionar eles precisam ficar pra trás.

Inevitavelmente vão trazer a Cruella de volta, e se a Cruella ainda tá na cola deles, de que valeu qualquer coisa?

Walt Disney além de ser uma das piores pessoas que já viveram, e de personificar alguns dos piores traços do capitalismo, algo que a empresa Disney mantém muito bem em seu legado até hoje, foi também um pioneiro da animação. E pioneiro significa que ele não estava imitando ninguém. O primeiro curta de animação sonorizado é da Disney, o primeiro longa animado também, Fantasia foi um projeto tão a frente do seu tempo, que era essencialmente videoclipe pra música erudita. A empresa estabeleceu o seu poder liderando o caminho do que seria o padrão do cinema de animação, e aos demais animadores tinham duas opções, imitar o Disney ou contrariar o Disney, mas ser um pioneiro fazia ele ser referência.

E eu não sei se eu sinto esse poder no estúdio hoje. Digo, eles são o maior gigante da mídia atual, um mastodonte imenso de propriedades intelectuais e monopólios que vai eventualmente destruir toda a cultura pop. Eles têm dinheiro e tem impacto. Mas eu não sinto que ainda existe algum desejo de ser pioneiro. De ditar a tendência em vez de seguir a tendência.

Se antes as sequências podres vinham direto pra DVD, hoje elas estreiam no cinema e são chamadas de filmes de verdade mesmo sendo tão toscas quanto as que vieram nos anos 1990/2000. E eles tentam tanto absorver o estilo de outros estúdios atualmente para copiar o que dá certo, que mal está sendo possível distinguir Disney de Pixar hoje em dia.

É sério, as vezes eu olho Encanto e Turning Red e confundo qual dos dois era o Disney e qual era o Pixar, pois os dois vem muito visivelmente do mesmo lugar para representar o mesmo tipo de filme.

E a Disney está cada vez mais querendo abrir seus finais para investir em sequências e séries. Os produtores de Encanto já estão flertando com a ideia de uma sequência, e o filme definitivamente terminou permitindo uma, pois os elementos icônicos do filme todos seguem sendo parte da vida da protagonista no final, mais fortes do que nunca. E isso não torna Encanto ruim, assim como animações não-Disney não são ruins.

Mas me faz pensar se a Disney não está se rendendo demais as sequels. Digo, eles já têm a Marvel e Star Wars, não é como se eles precisassem que tudo vire franquia. Olha o desastre que foi Frozen 2. Péssimo filme.

Mas aí sou eu. No começo de junho eu pretendo voltar aqui falar de outro elemento fundamental no que dá poder pros filmes clássicos da Disney. E nós nos vemos ali. Deixem nos comentários quais filmes Disney vocês acham que tem o melhor final, o meu pessoalmente é o de Tarzan.

E nos vemos no próximo texto.

Sobre o autor

Izzombie

Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

Sobre o autor

Izzombie

Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

Alertas

  • – Todos os posts desse blog contém SPOILERS de seus respectivos assuntos, sem exceção. Leia com medo de perder toda a experiência.
  • – Todos os textos desse blog contém palavras de baixo calão, independente da obra analisada ser ou não ao público infantil. Mesmo ao analisar uma obra pra crianças a analise ainda é destinada para adultos e pode tocar e temas como sexo e violência.

Artigos recentes

Categorias

Parceiros

Blog Mil

Paideia Pop

Gizcast

Arquivo