Tarzan e a desnaturalização da masculinidade.

T

Atualmente Tarzan divide com The Hunchback of Notre Dame o título de meu filme favorito da Disney e qual dos dois eu prefiro é algo que eu dou uma resposta diferente dependendo do dia. E aqui eu quero falar sobre a maneira como esse filme trabalha a masculinidade de Tarzan, ou mais especificamente, a maneira como o personagem Tarzan entende a própria identidade e o conceito de ser um homem, tendo como base o fato dele ter sido criado sem contato humano.

O filme é a enésima adaptação do livro de Edgar Rice Burroughs e a enésima releitura do personagem que é o mais famoso exemplo do tropo de personagens fictícios que apesar de humano cresceram sem ter noção alguma de civilização.

E esse texto não é para comparar a versão da Disney do Tarzan com nenhuma das outras versões, porque eu não as vi. Assim como eu não li o livro. O Tarzan da Disney é o único Tarzan que eu conheço. O que significa que tem a chance de eu estar dando méritos pra Disney para algo que outro cineasta pensou antes, é possível, mas um google bem rápido me faz ter certeza de que o recorte que eu vou fazer não está nos livros. Que aparentemente são muito criticados por racismo e machismo, o que não é nada surpreendente, vindo de algo escrito por um inglês branco em 1912.

…uau, o livro foi escrito no século XX? Eu jurava que ele era do XIX, porque o Professor Porter menciona a Rainha Vitória duas vezes ao longo do filme, e ela só viveu até 1901. Então o personagem em si tem só 110 anos? Achei que ele era mais antigo que isso. O Tarzan é só 7 anos mais velho que o Gato Felix. Perdão, eu não esperava essa, esperava muito mais. É isso que eu gosto de escrever aqui, aprendo coisa nova todo texto. Dito isso, a ideia não é comparar com os livros, mas tem personagens no filme que eu sei que existem nos livros, que eu vou mencionar se alguma mudança de caracterização estiver dialogando com o tema.

Enfim. Esse texto, pensando bem, acaba servindo como um sucessor espiritual do meu texto de Jurassic Park, por focar em retratos diferentes de masculinidade na cultura pop do final dos anos 1990, e por explorar a maneira como o vício de linguagem que se usa muito de usar “homem” como sinônimo de “humanos”, acaba colocando uma perspectiva de que a masculinidade dos personagens não existe em contraponto à feminilidade das personagens mulheres e sim em contraponto a natureza e a vida longe da civilização, pois a dicotomia que os filmes apresentam e a do “homem contra natureza”, e é sempre notável o quanto esses filmes usam pouco a palavra “humano”, mesmo sendo sobre a relação entre duas espécies.

Então antes de começar eu quero fazer o humilde pedido de que considerem apoiar o blog financeiramente na campanha de financiamento coletivo que o Dentro da Chaminé tem no apoia.se e ajudem a valorizar os textos e o trabalho que eu coloco neles com o valor que achar justo. Dentre as recompensas para quem apoia, tem a possibilidade de poder sugerir textos, e esse próprio texto foi escolhido por votação por alguns dos que já apoiam o blog.

Esse texto é feito em homenagem e agradecimento a todos os meus apoiadores, e deixo aqui minha homenagem a eles e o lembrete de que se não quiser se comprometer com um apoio mensal, pode também fazer um pix de qualquer valor para a chave franciscoizzo@gmail.com que também terá meu agradecimento e minha homenagem. Esse blog é um trabalho muito prazeroso, mas é um trabalho, e eu agradeço de coração toda a ajuda, gente.

Mas vamos falar de Tarzan.

Tarzan é um filme sobre identidade. Um número muito grande dos filmes da Disney são. Mas Tarzan é de um jeito muito diferente.

A maioria dos filmes da Disney envolvem um personagem querendo se encaixar. Que sabe quem é, que sabe o que quer, mas que simplesmente não está em um lugar que o valide. Então o personagem quer encontrar um lugar aonde pertença. A maioria dos filmes envolvem um momento em que o protagonista canta a música como I Want Song, em que o personagem se descreve como alguém incapaz de se expressar sendo quem é no lugar onde está. O personagem sabe quem é, ele só precisa achar pessoas que o valorizem sendo a pessoa que é.

O Tarzan também precisa achar gente que valorize ele. Mas ele especialmente precisa descobrir quem ele é. Ele não tem a menor ideia de quem ele é. Ele passa o filme tentando formar a sua identidade. Ele treina para poder imitar todos os animais que ele conseguir, para achar suas forças e descobrir quem ele é por tentativa e erro. Ele não é que nem os outros gorilas, então ele tenta descobrir o que ele é.

E é assim que ele cria o seu icônico grito, após mostrar que ele sabia imitar qualquer animal, sua mãe, Kala sugere que ele crie o seu próprio som. Ele não é que nem nenhum outro animal, então cabe a ele determinar quais são as suas características.

Ele cria a sua lança inspirado em rinocerontes. Ele usa a inteligência para facilitar a vida dos demais gorilas, ele cria a própria forma de se locomover pelos icônicos cipós. Ele encontra validação e um jeito de ser funcional na sua vida na selva, quando ele acha o próprio jeito de ser e de viver, sem se limitar a imitar os gorilas.

Mas tudo isso vai pro espaço quando ele conhece a Jane. Ele descobre novos seres humanos e pela primeira vez na vida dele um espelho. Pessoas iguais a ele, que ele pode ser igual, pessoas que podem validá-lo por saber as regras de como ser um ser humano.

…que são as regras de como ser um homem.

Mas antes de falar sobre a chuva de valores que invadem a vida de Tarzan do instante em que ele conhece Jane em diante, vamos analisar como era a vida de Tarzan antes de conhecer Jane, quando ele vivia a lei da selva.

Os gorilas, a selva e gênero.

Vamos lá. Na selva gênero não faz a menor diferença. E a vida de Tarzan na selva não corrobora nenhum valor de gênero. Apesar de Kershak ser o líder da família, e ser um macho, na primeira cena do filme, a Kala enfrenta o leopardo Sabor em combate e vece o mesmo leopardo que no meio do filme dá uma surra no Kershak, então Kershak não era necessariamente mais apto ao combate que as fêmeas da família, nem necessariamente tinha melhores instintos de sobrevivência.

Inclusive… tem todo um lance quanto ao sexo de Sabor. O personagem veio da leoa que aparece nos livros que é descrita como uma fêmea, e mudaram para leopardo, pois leopardos de fato são predadores dos gorilas, mas não importa. Pela inspiração do personagem ser fêmea, muitos fãs presumiram que era um leopardo fêmea. Mas o jogo Kingdom Hearts credita como um leopardo macho.

O louco é que eu sempre considerei um leopardo fêmea desde a infância, não só porque um artigo da Disney Explora na época tratava Sabor no feminino (não guardei a edição, nunca achei que iria precisar), como a dublagem brasileira claramente trata o personagem no feminino. Mas eu fui rever o filme agora para poder escrever esse texto e nenhuma menção ao gênero de Sabor. Outras dublagens, como a de português de Portugal definem Sabor como macho. E as wikias oscilam entre as que consideram macho e fêmea.

Doidera. Então eu tava pronto para falar que logo de cara o filme a gente via uma luta mortal entre duas fêmeas, mas… não está confirmado, no final vai valer se você leva mais a sério a dublagem nacional ou Kingdom Hearts, eu não quero me meter com nenhum desses dois fandoms.

O importante é que contrariando estereótipos, do que a gente imaginaria de uma tribo de animais liderados por um Alpha, Kala não é submissa a Kershak, ela as vezes o obedece, pois o respeita. Mas ela explicitamente questiona e desafia a decisão de Kershak de não permitir a adoção de Tarzan. E tudo bem, Kershak gritou, bateu no peito, mas eventualmente cede a discussão e permite que Kala faça o que ela quer sem fazer nada contra ela. Kershak não lidera pela força, e não impõe sua autoridade com base em força física ao longo no filme.

Quando ele vai proibir os gorilas de ver os humanos, é visível que mesmo Tarzan, o pior gorila na perspectiva de Kershak, tem uma voz no debate, ele é ouvido e tem o direito a sua visão, mesmo que a ele Kershak não ceda e ordene que Tarzan não veja os humanos.

Os dois melhores amigos de Tarzan são Terk e Tantor. Terk é a prima de Tarzan, e apesar de ser um gorila fêmea, sua personalidade é a da tomboy, forte, impulsiva, agressiva, assertiva que prefere esconder seus sentimentos em vez de demonstrá-los pra ser durona. Traços de personalidade comumente atribuídas a personagens masculinos. Ela foi diretamente adaptada do personagem Terkoz nos livros, que é um gorila macho, mas a decisão de adaptar para uma fêmea veio da decisão de escalar Rosie O’Donnel como a dubladora.

Em contraste com a personalidade agressiva de Terk, o elefante Tantor é um elefante macho que é tímido, sensível, sentimental, medroso e empático. Ele é o único que não era contra o Tarzan ver outros humanos, pois sentia que ele estava feliz. O que é uma personalidade que não exatamente reproduz o arquétipo masculino, embora o caso de Tantor, se existisse em um vácuo, seria uma exceção, visto que ele é alívio cômico, e homens sem traços de personalidade tipicamente masculinos são constantemente usados como alívio cômico pela Disney.

Agora uma coisa que o filme quebra de fato, para um filme de animais falantes, são as decisões de design de não criar caracteres sexuais terciários para demarcar a distinção de animais machos e animais fêmeas.

Sabe a maneira como as orelhas da Lady em Lady and the Tramp são os longos cabelos dela, para ela ser mais feminina?

Ou a maneira como a raposa fêmea de The Fox and the Hound tem cílios maiores, para demarcar que ela é fêmea.

Ou como a esquila de The Sword in the Stone tem curvas que distinguem a silhueta dela da do Arthur.

Ou seja lá o que fizeram com a coelhinha em Bambi.

E nada disso é antropomórfico. Não é a mesma lógica que a Lola Bunny, não são animais que andam de pé usando roupas. São animais normais, que na natureza um leigo raramente distinguiria um macho de uma fêmea só de olhar, mas no filme eles colocam insinuação disso, de seios, de maquiagem ou de cabelos para fazer a nossa associação.

É todo filme? Não. Mas é a maioria, e nas raras exceções, são animais em que é muito fácil para um leigo diferenciar é macho ou fêmea, pela presença de juba ou presas.

Aliás, o que eles fizeram em Tarzan foi tão não-intuitivo, que eles literalmente na sequência Tarzan 2, dão uma barba para um macaco novo, para antropomorfizá-lo. É coisa do primeiro filme mesmo.

O visual a Terk é indistinguível de como seria um gorila macho, e metade dos gorilas no fundo não dá para apontar se são machos ou fêmeas. E isso é porque não faz diferença, eles são gorilas, suas relações de gênero não existem, essa separação é tipicamente humana.

Em nenhum momento do filme, ele parece corroborar nossas visões de dinâmica de gênero da maneira como compreendemos na sociedade humana. Por exemplo, em The Lion King, apesar de leões de verdade copularem com todas as fêmeas, o Mufasa tinha Sarabi, uma fêmea específica e mãe de Simba que atuava como esposa de Mufasa. Mas em Tarzan, eu quando era criança sempre fiquei muito confuso quanto a relação entre Kershak e Kala. No começo do filme eles tinham um filho juntos, dando a entender que eram um casal. Mas após seu filho ser morto por Sabor, nunca ficou claro em que pé eles estão. Ela é a fêmea dele? Eu não sei biologia de gorilas, o líder do bando tem uma fêmea fixa? Eles nunca mais tiveram uma interação significativa, e a Kala não parecia amar o Kershak, parecia somente respeitá-lo como líder da família. A situação deles esfriou com a morte do bebê e eles são exes que mantiveram a amizade? O filme não toca no assunto.

Apesar de falarem, demonstrarem sentimentos muito complexos e terem debates e obviamente serem racionais, pro filme funcionar. Eles evitaram antropomorfizar os hábitos dos gorilas, e nisso é difícil identificar as nossas estruturas sociais nos animais do filme. O que é uma distinção grande de como esses animais são retratados em The Lion King, The Jungle Book ou 101 Dalmatians. Apesar do grupo do Tarzan ser coletivamente uma família, não entendemos direito o laço de parentesco entre eles. E sequer entendemos se Terk é literalmente prima do Tarzan, ou se ela só chama Kala de “Tia Kala” como uma modernização de vocabulário de uma jovem falando com a mãe do amigo.

Mas o ponto é. Nem a selva nem a família de Tarzan reproduzem nossas estruturas sociais, a família de Tarzan não aparenta ter uma divisão real de tarefas, mais do que “todo mundo pega comida pra todo mundo”, não parece ter uma cadeia de comando além do Kershark ser o líder, e é difícil entender como o casal Kala e Kershark funciona. E entre essa estrutura não reproduzida está a divisão de gênero. Em nenhum momento a noção de que machos e fêmeas se portam diferente, agem diferente ou são tratados diferente aparece no filme…

…até a Jane aparecer.

Um dia Tarzan encontra a Jane no meio da floresta.

Contato com os humanos:

Tarzan topa com Jane no meio da floresta e ela está literalmente vestindo seu gênero. Com um vestido com anquinha, salto alto, luvas vitorianas, um lenço amarrado no seu chapéu, e uma flor em seu guarda-chuva. Ela estava explicitamente caracterizada como uma dama vitoriana estaria vestida em um evento social, o que é uma roupa incrivelmente inapropriada para uma cientista usar no meio da selva em um evento não-social.

E não só, ela não veste esse tipo de roupa pelo resto de sua estadia na selva (veste de novo só para embarcar no navio que a levaria pra Londres), usando roupas mais leves e fáceis de se movimentar pela selva pelo resto do filme. Como o filme diretamente aponta o quão ridiculamente imprático é usar esse vestido na selva.

A cena também se destaca por ser o único momento do filme em que Jane é colocada no papel de Donzela Indefesa a ser Resgatada. Um tropo tipicamente feminino em uma época que a Disney já estava começando a evitar usar não ironicamente. 

E temos uma passagem notável em que ela mesmo em perigo lamenta que a humidade da selva deixa seu cabelo feio, demonstrando uma vaidade que igualmente, ela não faz de novo pelo resto do filme.

Tudo isso é a primeira impressão que Tarzan tem de Jane e é uma chuva de pressupostos de comportamento feminino em checklists que ela marca um por um. Ela estava caracterizada o mais feminina que uma mulher de sua época poderia estar para uma situação, com todos os signos. E a primeira impressão de Tarzan que Jane tem é a de alguém que não a trata com os códigos de etiqueta que se espera que um homem tenha com uma mulher. Encostando a cabeça em seus seios, olhando debaixo de sua saia, e se aproximando de seu rosto.

E isso tudo é notado e verbalizado, durante o encontro, como inapropriado, como depois, como uma característica de Tarzan que particularmente marcou Jane, sua ignorância quanto a como se socializar com uma mulher.

Uma vez longe de Tarzan vemos então Jane interagir com seu pai e com Clayton. Onde a distinção de gênero é rapidamente trazida à tona, pois a descrição de Jane de seu encontro com o homem macaco é interpretada pelos dois como um delírio feminino.

E agora temos o Clayton. Ah, nossa, muito para se falar sobre o Clayton. Afinal de contas, eu já fiz uma versão resumida desse texto para explicar porque ele é o oitavo melhor vilão da Disney.

Tarzan foi o filme que fechou a renascença da Disney, um período de alto prestígio que ajudou o estúdio a se recolocar como os gigantes do entretenimento, depois de uma fase de pouco sucesso em que o estúdio chegou perto de falir. E esse período é um dos períodos em que um hábito da Disney que já existia antes ficou mais acentuado que nunca, o queer-coding de seus vilões.

Imagem usada para ilustrar esse artigo.

Scar, Jafar Ratcliff e Hades são todos muito debatidos na hora de se explicar a maneira como a Disney tornava seus vilões homens afeminados, para associar sua performance estranha de gênero, com sua vilania. E o estúdio é profundamente criticado por isso até hoje, muito embora essa crítica não impeça que alguns desses vilões sejam adorados por membros comunidade lgbt. A crítica e o carisma deles ambos coexistem.

Dos vilões da época que não foram codificados como queer, temos Frollo, Gaston, Shan Yu e Clayton. E deixando o Frollo de lado por um minuto, eu acho notável que o Gaston e o Shan Yu são vilões dos filmes que mais diretamente retrataram relações de gênero na história da Disney. Nenhuma reflexão sobre o papel da mulher feita por filmes da Disney foi feita de maneira mais direta e explícita do que em Mulan e Beauty and the Beast. Os conflitos sobre Belle e Mulan são de mulheres lidando com a misoginia de seus pares e isso é bem visível, na superfície do filme, e nesses filmes não cabia a retração de maneirismos pouco masculinos de seus vilões como parte de seus defeitos. Shan Yu não representava nenhum aspecto de masculinidade tóxica, pois o machismo que a Mulan tinha que superar era dos chineses, ele representava só um guerreiro exemplar que a Mulan pudesse derrotar se mostrando o melhor guerreiro. Gaston por outro é o auge da masculinidade tóxica.

Tal qual Gaston, Clayton também possuía uma masculinidade tóxica bem notável. Ele não canta uma música inteira sobre sua visão de mundo como Gaston, mas ele diretamente aponta o fato de Jane ser mulher para explicar a maneira como ela não pensa de maneira compreensível.

E é curioso, que Clayton também, em uma característica perdida na dublagem nacional, adquire o hábito de chamar Tarzan de “boy”, em diversos momentos. Como um tic verbal dele. Chamando a atenção para o fato de serem dois homes em suas conversas.

Clayton se associava a símbolos masculinos, seu design inspirado no galã datado Clark Gable, seu barbear com um facão, seu cachimbo de pai de família, sua presença no filme inteiro foi a de dar a Tarzan uma noção do que é ser um homem.

Motivo pelo qual dos três humanos com quem se relacionou, Clayton foi o que Tarzan escolheu para imitar a postura. Ele tentava caminhar e emular a maneira como Clayton existia no mundo.

Mas o grande símbolo de Clayton era seu rifle. E eu não vou nem entrar no mérito do personagem tomar como seu símbolo máximo um cano longo. Tenho certeza de que todo mundo vai chegar na mesma conclusão de porque ele não podia ter uma arma menos fálica.

O rifle de Clayton é nossa primeira impressão do personagem. A gente escuta o barulho do rifle disparando antes de vermos Clayton pela primeira vez, e quando enfim o vemos, o rifle é quem ocupa o primeiro plano da cena.

Em determinado momento, Tarzan acha que o nome do som que o rifle faz é que se chama Clayton. Clayton trata sua arma de fogo como uma extensão de si mesmo. Ele constantemente dispara a arma só pra fazer barulho e chamar a atenção, e não eram incomuns quadros em que somente o rifle aparecia na tela, indicando a presença de Clayton no plano.

Clayton era para Tarzan um exemplo e uma influência clara do que era um homem. E Jane uma influência clara do que é uma mulher. Mas observar esses dois e a maneira como eles trouxeram normas de gênero da Inglaterra pra selva africana não é a única maneira pela qual Tarzan construiu uma noção de gênero pelo convívio com eles.

Ele foi ensinado diretamente também.

Educando Tarzan quanto ao mundo europeu:

A chegada de Tarzan distraiu completamente Jane e o Professor Porter. Enquanto Clayton via em Tarzan nada além de um instrumento para localizar os gorilas, os cientistas do grupo queriam estudar Tarzan, mas também educá-lo em relação ao mundo de onde eles vieram. De fato, eles passam meses negligenciando a procura por gorilas para poder interagir com Tarzan.

Eles ensinaram Tarzan a falar inglês, ler, sobre astronomia e o sistema solar, eles ensinaram Tarzan andar de bicicleta, ensinaram sobre os princípios óticos da animação e especialmente, ensinaram sobre papéis de gênero. E o Tarzan realmente prestava atenção nessa parte.

Pois o Tarzan ativamente usava as imagens que tinham nos slides dos cientistas sobre como um homem deve interagir com uma mulher, como instruções de como ele deve interagir com a Jane.

O Tarzan queria se aproximar da Jane, e ele foi educado sobre o comportamento humano por um trio de ingleses que lhe ensinaram diretamente que homens se aproximam de mulheres, e que se aproximar de Jane para Tarzan significaria ser um homem. Entender a diferença entre papéis.

E o prisma do gênero cercou ele durante toda a sua atração. Quando Jane recusa seu pedido de que ele fique na selva, Clayton explica para Tarzan que isso era uma questão de homens não entendendo mulheres. E algo que nunca havia sido um assunto na vida de Tarzan, agora era, entender as mulheres. Ser um homem. Entender que o homem dá flores pra mulheres. Entender que homens usam terno e mulheres usam vestido. Entender que homens dançam com mulheres.

Isso era viver em civilização. Mais especificamente, isso era viver na civilização inglesa vitoriana. Que era o mundo da Jane. Se Tarzan queria viver com Jane, ele precisaria ser parte do seu mundo.

Tarzan pede pra Jane ficar na floresta em um gesto que ela possa compreender.

Essa é a grande essência da escolha que Tarzan tem que fazer, pois afinal, é muito transparente que ele não aceitou o convite de ir pra Inglaterra por causa de Porter, Clayton ou das outras pessoas. Ele tem que escolher se vai seguir Jane ou não. Ou seja, ele tem que escolher se ele é um gorila ou um homem.

A escolha de Tarzan:

Kershak havia pedido que os gorilas não se aproximassem dos humanos. Um pedido que Tarzan deliberadamente desobedece, indo visitar os humanos todos os dias, mas também um pedido que ele leva em consideração. Apesar de mil pedidos de Clayton, ele mantém os humanos e os gorilas sem se encontrarem, e faz isso propositalmente.

Mas naturalmente, quando o navio que vai levar Jane chega, Tarzan convence-a a adiar sua partida promovendo o encontro entre humanos e gorilas, sabendo que o interesse primário de Jane era ver os gorilas e achando que se Jane pudesse ver os gorilas ela ficaria na selva. O encontro é um fracasso, pois Kershak flagra os humanos e gorilas interagindo, fica puto, e Tarzan ataca Kershak para proteger os humanos, oficialmente tomando um lado no conflito.

Kala o leva para a casa na árvore onde ela achou Tarzan, e enfim explica para ele as condições de sua adoção. Eu não sei se em algum momento Tarzan suspeitou ou não de algo parecido, especialmente nos meses em que visitou Jane diariamente, não sei se ele enfim percebeu que era adotado, ou só admitiu, mas ele verbalizou a descoberta de uma mãe biológica que não era Kala. Ele entende que ele de fato veio do mesmo lugar que Jane e foi trazido pra selva. E ele escolhe ser um homem.

Isso é simbolizado por ele vestindo um terno e gravata. O que é uma roupa demarcadora de gênero tão forte, que é até overkill. Isso tem três camadas a mais que o necessário pra passar a mensagem. Literalmente, tem três peças de roupa tipicamente masculinas a mais do que as roupas que o próprio pai do Tarzan usava, eu não acho que o pai do Tarzan chegava a pôr o terno e a gravata na floresta.  

Mas usando a roupa mais “homem inglês” que era possível de se usar, ele confirmou quem é que ele passaria a ser: a contraparte de Jane que veio vestida de dama inglesa pro meio da Africa pra estudar gorilas. Naturalmente vai tudo pro vinagre, pois Clayton não pretende zarpar ainda, ele lidera um motim de marinheiros brutos para render Tarzan, Jane, Porter, o capitão do Navio e mais dois caras que sei lá quem eram. Afinal ele quer capturar e vender os gorilas. Clayton que passou o filme inteiro desempoderado respondendo a uma menininha por quem ele tinha pouco respeito e a um senhor gentil e empático, amigo da natureza, mas agora ele estava em seu território. Cercado por homens brutos e sujos, que ele liderava.

Agora Tarzan faz a verdadeira escolha. Ele se despe da roupa de seu pai, volta pra selva, e vai proteger sua família. Ele anuncia a si mesmo com o icônico grito de Tarzan que como lembramos é o grito que ele inventou quando Kala o incentivou a inventar o próprio som em vez de imitar os outros. Esse era o som de sua espécie, ele havia parado de imitar os homens, agora que ele viu quem era o homem que ele mais imitou.

E isso tudo culmina na melhor cena do filme inteiro.

Em que quando Clayton e Tarzan lutam, Tarzan toma o icônico rifle do caçador e aponta para ele. Clayton então intima Tarzan a atirar nele e acabar com aquilo. Ele fala para Tarzan atirar nele, e ele confirma isso com a seguinte frase:

Seja homem!”

E Tarzan em resposta, imita o barulho do rifle. Aquele que ele ouviu mais de trinta vezes no filme. Clayton ao ouvir o barulho tem certeza de que morreu até notar que foi só uma imitação do som. Por que essa cena é genial? Porque conforme estabelecido, Tarzan consegue imitar o som de qualquer animal da floresta, e isso é algo que ele fazia tentando achar sua identidade antes de inventar seu próprio som.

O som do rifle é o som de Clayton. Esse som pode ser ouvido quando Clayton ataca os outros, mas também quando Clayton só quer chamar a atenção para si, quando Clayton quer demonstrar autoridade, quando Clayton quer dar a dica de sua localização. O som do rifle é o som do Clayton, e isso está estabelecido no instante em que Tarzan aprende a palavra.

E ao mostrar que Tarzan sabe fazer o som do Clayton, tanto quando sabe fazer o som de um elefante ou um leopardo, Tarzan reduz Clayton a isso. Para Tarzan, Clayton é só outro animal que Tarzan imitava na tentativa de achar sua identidade. Não diferente do hipopótamo que ensinou Tarzan a nadar.

Depois dessa demonstração, ele destrói o rifle e grita com todas as letras.

Não um homem como você.”

Todos os aspectos de ser homem para Tarzan que significassem ser parecido com Clayton foram enfim rejeitados. Se Clayton representava a primeira impressão e a mais definitiva do que era masculinidade, Tarzan enfim decidiu que ele não precisava de nada disso. Ele não precisava de um terno, de agressividade, de um rifle ou de nada. Ele era o Tarzan. Ele e Clayton não eram iguais.

Inclusive, tentou impedir a morte de Clayton.

Após a batalha Tarzan vai se despedir de Jane, ele já não tem mais a intenção de ir atrás dela e não vai pedir novamente para ela ficar com ele. E aqui é notável, Jane tenta se despedir de Tarzan com um aperto de mãos. Mas Tarzan não se adapta aos códigos ingleses de Jane, ele transforma o aperto de mãos dela em um encontro de palmas, igual o que eles tiveram no dia em que se conheceram. Ele não está mais tentando imitar humanos e se assimilar entre eles, ele está fazendo os humanos se assimilarem ao seu código.

E na perspectiva do romance, existe uma inversão de papéis. Jane decide não voltar pra Londres, por querer ficar com Tarzan, então depois de muita hesitação, ela pula do bote e nada de volta pra África, e ao chegar, ela recita o diálogo final do filme falando em língua de gorila. O Tarzan não vai mais incorporar a cultura humana em sua vida pra ficar com Jane, então se Jane quiser ficar com Tarzan, ela vai ter que incorporar a cultura do Tarzan.

Supostamente “uh uh ih eh uh” significa “Jane fica com Tarzan” em gorilês.

Que é a cena final. Jane vestida com roupas-de-Tarzan, balançando em cipós e surfando em árvores, que nem Tarzan. Terk também começa tentar aprender a surfar em troncos, mostrando que os gorilas também querem imitar o Tarzan. Ele então pela última vez dá seu grito e sobrem os créditos. No fim do filme é isso que ele era, ele era o Tarzan, nem homem, nem gorila, um misto de cada, uma criação dele próprio.

Conclusão:

Sabem, eu fico com pena do Professor Porter. Ele era o líder da expedição e o cientista principal ali. Mas o maior achado antropológico daquele mundo ignorou completamente ele. Toda vez que ele fala com Tarzan, o Tarzan mal age como se alguém estivesse falando com ele. A interação do Tarzan com os humanos consistia em imitar Clayton (e outros homens em fotos), e se aproximar de Jane. Quando ele viu que não valia a pena ser igual a Clayton, ele deixou de tratar Jane como sua motivação primária para fazer coisas, e coube a Jane ir atrás de Tarzan, que já não iria mais segui-la.

O ato de imitar Clayton, um homem, para impressionar Jane, uma mulher, colocou Tarzan em contato com o conceito de performance de gênero, de dinâmicas de gênero e de xavecagem heterossexual, que eram conceitos que não existiam em sua vida na selva. Na selva a interação dos animais não é ditada pelo seu gênero. A única diferença de Terk pros gorilas machos são seus pronomes em inglês.

Portanto no ato de aprender por imitação a se portar como um homem, fez o filme evidenciar as maneiras como as noções de masculinidade são uma construção humana. O que é algo que não é segredo nenhum, que o seu cachorro não realmente se interessa em masculinidade nem com quais atitudes e posturas fazem dele um homem. Mas é algo que a gente esquece.

Afinal sempre que algum ser humano que demonstrar maneiras diferentes e mais diversas de como gênero funciona, é questão de tempo até uma pessoa intimidada por essa ideia recorrer a biologia, falar sobre cromossomo, dna, práticas de acasalamento e terminar em um canal no youtube em que a pessoa aprende lições de como ser masculina o suficiente até ser digna da mesma letra grega que os biólogos dão aos gorilas.

Afinal vivemos em uma época em que muita gente está sendo exposta a conceitos com os quais nunca teve que levar a sério antes e que desafiam fortemente uma visão de mundo na qual elas cresceram muito confortáveis. E elas resistem a esses conceitos. E na hora de se resistir a grupos de pessoas fora da norma, as pessoas adoram voltar se pra natureza, e explicar que a norma foi definida pelo que é natural.

E assim, obviamente se aplica, mas eu não estou só falando de pessoas lgbtqia+ assustando os incel.

Pois além de como pessoas lgbtqia+ enfrentam discursos altamente ignorantes (e mais vezes do que não, inverdadeiros), sobre como a biologia funciona, a noção de que o comportamento masculino é algo simplesmente natural é usado para desculpar e absolver comportamentos masculinos que em outro momento a sociedade poderia ter só relevado, mas estão cada vez mais sendo lidos como inaceitáveis. E muitos homens, que sentem que uma série de práticas masculinas, com as quais eles cresceram e que eles apreciam, podem enfim deixar de ser aceitas, tentam defendê-las com base em sua naturalização.

Conhecem esse escroto? Já escrevi sobre ele aqui.

“Homens são assim”, “Isso é coisa de homem”. Tudo é tratado como se essa série de atitudes, simplesmente estivesse no DNA masculino. Para racionalizar que tudo bem ser assim, pois nada pode ser feito. “Boys will be boys” como é dito em inglês. E aqui eu acho importante enfatizar.

Spoile do fim do texto: Não. É um enorme engano. Não é verdade.
Texto aqui:

Que o ser humano é um animal que vive em sociedade e essa sociedade produz uma cultura e essa cultura opera nas nossas decisões no lugar de nossos instintos. E essa é uma das principais diferenças entre nós e os gorilas. E nós absorvemos nossa cultura de maneira tão poderosa na infância que tendemos a achar que viver de acordo com as normas sociais aos quais fomos expostos é a única opção. Se você se encaixa nessa norma isso pode ser reconfortante, mas se você não se encaixa nessa norma, isso pode te esmagar. Mas conforme crescemos, não é incomum vermos pessoas que desafiam práticas culturais naturalizadas, propões alternativas, outras maneiras de se portar, outras maneiras de se relacionar com o mundo.

E filmes como Tarzan evidenciam, que diferente da nossa natureza animal que a gente não viola, afinal não paramos de respirar, nós podemos repensar a nossa cultura, pois ela não é tão natural quanto nossa necessidade de comer, dormir e tomar água. E nós podemos refletir nela, se queremos ou não tomar parte dela, e nos abrir a novas perspectivas mesmo depois de adultos.

Que foi o que Jane fez.

E a perspectiva como Tarzan evidenciou a masculinidade tóxica e agressiva de Clayton como algo que não vem de sua natureza masculina, e como algo que a natureza não reforça, é algo que merece ser apontado. Mas assim o Tarzan da Disney não inventou a roda ao sugerir que nossas dinâmicas de gênero poderiam soar confusas para um homem que cresceu longe da civilização. O George de George of the Jungle tinha a piada recorrente de chamar sua esposa Ursula de “companheiro”, por não entender como gênero funciona.

Mas ao mesmo tempo não é uma decisão intuitiva, e é fácil ver como essa maneira de retratar os personagens não passou do filme. Na série de televisão que estreou em 2001, Tantor aparentemente confunde Terk com um gorila macho por conta da personalidade dela. Então, os méritos do filme não são os méritos da franquia Tarzan.

Inclusive a série é super estranha. Eu enfatizei que o filme acaba com a Jane falando em língua gorila. Mas na série a Jane super corrige a gramática da Terk por não ser inglês apropriado. Os gorilas da série que falam inglês pra falar com a Jane, e não o oposto?

Um dia eu quero fazer um texto de porque aparecem tantas coisas estranhíssimas quando a Disney tenta continuar as histórias de seus filmes clássicos em séries e sequências, mas esse texto vai ser pra outra vez.

Sobre o autor

Izzombie

Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

Sobre o autor

Izzombie

Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

Alertas

  • – Todos os posts desse blog contém SPOILERS de seus respectivos assuntos, sem exceção. Leia com medo de perder toda a experiência.
  • – Todos os textos desse blog contém palavras de baixo calão, independente da obra analisada ser ou não ao público infantil. Mesmo ao analisar uma obra pra crianças a analise ainda é destinada para adultos e pode tocar e temas como sexo e violência.

Artigos recentes

Categorias

Parceiros

Blog Mil

Paideia Pop

Gizcast

Arquivo