Ok, eu acredito que atualmente nenhuma obra brasileira direcionada para crianças é maior em influência e onipresença do que a Turma da Mônica. Acho que Sítio do Pica-Pau Amarelo chega bem perto, mas com a diferença de que eu acho que muitas pessoas conhecem os personagens, mas nunca leram os livros, enquanto eu questiono muito a existência de uma criança alfabetizada que nunca encostou em um gibi da Mônica.
A maioria das pessoas cresce lendo Turma da Mônica, e depois que cresce, perde o hábito, mas no meu caso, eu não perdi o hábito e continuei comprando, desde os anos 90, até os dias atuais, e vi muita coisa mudar. Vi personagens surgirem, vi piadas internas surgirem, vi personagens secundários tomarem os holofotes, vi mudanças no traço serem feitas, vi histórias fantásticas que achei que nunca veria em um gibi da Mônica, vi um spin-off em “estilo-mangá” surgir, e até descobri a identidade do Mr. B.
Enfim, já tem mais de vinte anos que eu leio Turma da Mônica, e eventualmente na minha infância eu descobri que o Mauricio de Sousa em pessoa já não escreve mais as histórias – exceto pelas do Horácio – então que existe é uma equipe de talentosos roteiristas por trás das historinhas, o que faz sentido, pois são uns seis gibis por mês desde aquela época, é necessário uma boa equipe pra sustentar isso.
Enfim, e conforme eu cresci e comecei a ir atrás de descobrir a diferença entre esses roteiristas e a particularidade das histórias de cada um, eu percebi que havia um roteirista que se destacava por dois motivos. O primeiro é que a sólida maioria das histórias que me marcaram na infância podem ser traçadas de volta pra ele. E a segunda, é que muitas das novidades positivas que eu vi acontecerem que diferenciam o gibi que eu leio hoje do que eu li vinte anos atrás também podem ter traçadas de volta pra ele. Esse roteirista é Emerson Abreu. E possivelmente ele marcou fortemente a sua infância também e você nem sabe o nome dele (na pior das hipóteses, acha que foi o próprio Maurício.) Afinal de contas, nos anos 1990, os roteiristas da Turma da Mônica não eram devidamente creditados por suas histórias.
Mas deixando claro que os demais roteiristas dos Estúdios Maurício de Sousa são muito bons também, dos quais destaco Paulo Back, que é um fodão da porra, mas esse texto é mais para destacar o quanto o estúdio ganhou tendo Emerson como roteirista e quantas novidades geniais estaríamos perdendo sem ele.
Começando pela contribuição mais óbvia e presente nos gibis. A reformulação dos personagens Xaveco e Denise, que nas mãos do Emerson fizeram a transição de secundário-genérico-descartável-tapa-buraco pra segundo-melhor-amigo do Cebolinha e segunda-melhor-amiga da Mônica respectivamente. A Denise em particular era literalmente a personagem mais genérica de toda a turma, ganhando até do Fabinho/Flavinho/Carlinho/Watheverzinho da rua de cima. No caso Denise era um nome dado pra qualquer menina que estivesse do lado da Mônica e da Magali, cuja personalidade e aparência podia mudar a qualquer edição. E no geral as Denises-genéricas apareciam nas histórias em que precisava de alguma menina sendo tosca, ou uma fofoqueira, ou uma esnobe, ou uma mesquinha, e ela servia a essa função desde os anos 1980.
Enfim, então no começo dos anos 2000 Emerson resolveu pegar isso que era mais um conceito do que um personagem e transformar em um personagem de verdade, com toda a dignidade, e essa transição foi marcada por duas histórias roteirizadas por ele que hoje possuem o status de clássicas. São elas, O Concurso das Denises, história de abertura da revista Mônica 190, de Janeiro de 2000, e As Panterelas, história de abertura da revista da Magali nº 313 de Junho de 2001. Ambas já foram muito republicadas depois dessa aparição e ambas podiam ser encontradas no site oficial da Turma da Mônica nos longínquos tempos em que era prático de se ler histórias clássicas no site. Bons tempos que não votam.
Em O Concurso das Denises, a Turma da Mônica no auge da metalinguagem que sempre foi parte fundamental do humor dos gibis, transforma em piada todo o conceito das Denises sem aparência e personalidade definida. Após pagar o pato em uma história, a Denise simplesmente se demite, por não aguentar mais a personagem dela ser tosca, e a turma casualmente reage “outra Denise se demitiu? De boa, a gente chama outra Denise.”, justificando o motivo pelo qual tantas Denises diferentes circularam os gibis. Eles abrem um grande concurso pra buscar uma Denise definitiva, mas no final eles recuperam a que se demitiu no começo da história, cujo nome verdadeiro era Creusa Maria, e a partir dessa história, Denise passou a ter visual fixo, com suas maria-chiquinhas e seu vestido-roxo (embora os desenhistas tenham dado umas escapulidas até esse visual fixar mesmo).
E em As Panterelas, Mônica, Magali e Marina formam esse super-time de espiãs para sabotar a festa da Carminha Frufru, mas no final descobrem que era tudo um plano da Denise, pra sabotar a festa da melhor amiga, estabelecendo sua amizade com a Carminha Frufru, que se não me engano, perdura até hoje, e também sua personalidade.
A Denise que se fixou é uma anti-heroína, sem papas na língua que fala o que pensa, é cheia de gírias, e no geral destrata todos da turma e prioriza seu próprio interesse, mas no fundo genuinamente gosta deles. Quando alguém da turma está sendo tosco ela é a primeira a falar, e quando a história tá sendo tosca, ela é a primeira a tentar pular fora.
Mas o Concurso das Denises não trouxe somente a Denise pros holofotes, em uma piada recorrente na história, muitos falavam sobre o personagem do Xaveco era um personagem raso, que não chove nem molha, não cheira nem fede, o que fez com que ao final o Xaveco liderasse uma greve dos secundários por mais respeito.
Pois bem, essa piadinha foi o começo de uma longa jornada para o Xaveco, pois começou uma onda de percepção de como o Xaveco era um personagem genérico e praticamente descartável em sua insignificância, e as aparições dele começaram a destacar esse fato, o que ficou notável na história clássica do Emerson: Barracos Entre Famílias, publicada na revista do Cebolinha nº211, em Janeiro de 2004. Que também já foi possível de se ler no site oficial quando o mundo era bom.
Na historinha, Cebolinha e sua família participam de um grande concurso na televisão chamado Barraco Entre Famílias, e fica bem nervoso quanto às chances de ganhar, até ver que seus adversários serão a Família do Xaveco, e ele logo concluí que se é o Xaveco o adversário dele, então ele deve ganhar na certa, afinal o Xaveco é um personagem genérico demais pra ganhar o concurso. Mas no final o Xaveco ganha o concurso e a moral é “Não seja arrogante e o sol brilha para todos, até pra secundários como o Xaveco.”
Pois bem, essa história fez um bem pro Xaveco, pois com o concurso, a família do Xaveco descolou uma casa na praia com piscina, que ficou pra mãe do Xaveco no divórcio, e eles conseguiram um sítio também, que ficou pro pai do Xaveco no divórcio. E eles mantém esses prêmios e mencionam o concurso até hoje.
Enfim, desde então o Xaveco começou a se tornar um secundário regular pra ser o sidekick do Cebolinha, embora o Cascão mantenha seu título de melhor amigo. Na história de abertura do Cebolinha nº234, de dezembro de 2005, chamada Caramela, também do Emerson, o Xaveco vai na casa do Cebolinha adotar a chinchila manca do Cebolinha que ele ganhou como prêmio de consolação do Barraco entre Famílias. Eles se divertem cuidando da Chinchila, mas ela morre, deixando uma marca no coração do Cebolinha que ele ainda cita de tempos em tempos, e também marcando um dos primeiros casos de uma longa parceria com o Xaveco nas histórias do Cebolinha.
Esse caso da história Caramela é um caso bom, pois é também o primeiro caso de um mês onde as histórias de abertura das revistas da Mônica eram todas interligadas. Uma ideia do Emerson que se repetiu algumas vezes depois no futuro, e que agrega muito valor a historinhas. Em resumo., a história Caramela do Cebolinha nº234, assim como a história de abertura da Mônica nº234, a história de abertura do Cascão nº455 e da Magali nº391, todas lançadas em Dezembro de 2005, todas se passaram no mesmo dia e ao mesmo tempo, e frequentemente você podia ver a história de um personagem cruzando com a do outro, e no final os quatro se reúnem pra desabafar sobre como foi o dia deles. Genuinamente criativo e divertido, e foi tão bom, que o Emerson fez de novo.
É, lá em maio de 2006, e essa foi ainda melhor, pois as histórias não faziam umas pequenas pontinhas na trama uns dos outros, elas afetavam diretamente. Tudo começou na historinha Uma Aventura no Sítio, na revista do Cebolinha Nº239, onde o Cebolinha vai passar o fim de semana no sítio do pai do Xaveco, e leva o Sansão consigo, pois ele não presta. Então na história Que fim Levou o Sansão? Da Mônica Nº239, a Mônica fica desesperada tentando descobrir onde está o Sansão,acreditando que o Cebolinha não poderia ter roubado, justamente por estar no sítio com o Xaveco. Já no Cascão Nº460 O Melhor Amigo, o Cascão fica frustrado que o Cebolinha tenha resolvido passar o fim de semana com o Xaveco e foi procurar outro melhor amigo. Por último na Magali Nº396, a Xabéu, a irmã do Xaveco, fica como babá do Dudu, que é a história que menos casa com as outras, mas ela tem os momentos que se cruzam com as demais também.
Essa leva de Maio de 2006 foi fantástica, e chamou a atenção. Nessa época, estava começando a ficar em muita evidência o fato de que na Turma da Mônica estava começando a aparecer umas caretas e distorções que mais pareciam um mangá. O primeiro caso dessas distorções de mangá se não me falha a pesquisa foi na história Uma Estranha no Meu Banheiro, do Cascão Nº459. Mas um mês depois atingiu seu auge. O que foi não-intencionalmente vindo do Emerson também, que desenhava essas caretas nos seus roteiros e por um tempo os desenhistas e arte-finalistas resolveram não passar as caretas pras páginas. Mas um dia eles resolveram passar e isso se manteve. Na época eu era parte da comunidade do Orkut da Turma da Mônica, onde aparentemente foi uma decisão polêmica, mas passados dez anos, acho que deu muito dinamismo pras historinhas.
Mas ainda sobre as histórias interligadas, ele ainda fez uma terceira vez com as edições nº6 da Panini das revistas da Mônica, Magali, Cebolinha e Cascão, onde todas aconteciam durante o aniversário da Denise, e após isso nunca mais vi um mês com histórias interligadas. Adoraria descobrir que houve uma quarta e eu que perdi esse mês nas bancas, por que eram genuinamente uma ideia muito boa e gostaria que a prática não fosse abandonada.
Enfim, como devem ter notado as histórias interligadas se focaram somente no quarteto de crianças do Bairro do Limoeiro, mas isso significa que o Emerson ignora o Chico Bento? De jeito nenhum. Como devem ter notado com o Xaveco e o Cebolinha mantendo seus prêmios do Barracos Entre Famílias, o Emerson é um cara que quando possível gosta de por continuidade nos gibis, na medida do que é possível e do que não afasta um leitor não-introduzido ao assunto, mas ainda sim, menções a grandes histórias do passado. Com isso, no Chico Bento, o Emerson fez um conjunto muito bom de histórias que é chamado de A Trilogia do Barquinho, três edições do Chico Bento, que por três meses contaram a mesma aventura, onde Chico Bento, Zé Lelé e Rosinha partiram pra pescar o Barba Roxa, o maior lambari do ribeirão. Foram as edições 27, 28 e 29 do Chico Bento da Panini, que rolou em Março, Abril e Maio de 2009.
Então Emerson trouxe as histórias interligadas, histórias continuadas, uma evolução no traço dos gibis, jogos criativos com as capas das historinhas, e deu o holofote a dois personagens ignorados que hoje são grandes entre os fãs dos gibis. O que mais falta, ah, sim, os personagens que ele mesmo criou do zero.
Diversos personagens da turma tiveram sua origem na cabeça do Emerson, boa parte deles, são da vertente non-sense no plano místico da Turma da Mônica. Temos a vilã da Magali, Bruxa Viviane; temos a Leleala, a Legião dos Porcos Alados; temos a Jumenta Voadora; Cumulus, um vilão do Cascão; A Boneca Tenebrosa, vilã da turma inteira, e por último e não menos importante, temos a Fabulosa, porém desconhecida, Madame Creuzodete, a vidente do bairro que diversas vezes aconselhou a Mônica.
Desses pro pessoal que deixou de ler no comecinho dos anos 2000, acho que a Bruxa Viviane e a Leleala são os mais fáceis de resgatar da memória. Aliás a Leleala era uma garantia de zoeira nas histórias que pra ficar mais non-sense do que com eles, só colocando o Louco.
Além dos personagens sobrenaturais, é de autoria dele, as de pouca participação, porém populares, Meninas do Bairro das Pitangueiras. O trio de meninas malignas que vive no Bairro das Pitangueiras e competem com Mônica, Magali e Denise.
Inclusive estou até hoje esperando elas brigarem no anunciado “Barraco entre Bairros” que eu nunca vi dar as caras. Esse quadrinho me gerou um hype da porra.
Enfim, Emerson Abreu é atualmente um dos quatro roteiristas da Turma da Mônica Jovem. Desses quatro só dois escrevem tanto pros gibis normais quanto pra turma jovem, sendo o outro deles o Flávio T. de Jesus. O Flávio basicamente faz as edições comemorativas, como as primeiras edições, ou o casamento da Mônica com o Cebolinha, ou a edição especial da Comic-Con, etc… então as histórias são em sua maioria feitas ou pela Petra Leão, ou pelo Marcelo Cassaro ou pelo Emerson Abreu.
As edições da Petra e do Cassaro que ocupam boa parte das histórias, consistem em transições entre slices-of-life e ficção científica, cobrindo a vida amorosa da Mônica, os dramas pessoais dos alunos do limoeiro, videogames realistas, e recorrentes ataques de robôs e criaturas. Nessas histórias é bem normal a turma interagir com personagens novos, como Maria Mello, Sofia e Irene, em histórias slice-of-life ou com os agentes da Di.Na.Mi.Ca, uma agência paranormal estilo homens de preto, nas histórias de ficção científica. No geral são aventuras independentes de no máximo 3 partes que as vezes referenciam aventuras do passado, mas se sustentam bastante independentemente.
As do Emerson quebram completamente esse padrão sendo uma literal voadora de dois pés pra quem está acostumado com o formato que descrevi acima. Exceto pela Turma da Mônica Jovem Nº5, todas as histórias que ele escreveu são partes de uma grande história maior chamada de Grande Saga do Fim do Mundo, onde vilões clássicos da turma retornam em releituras mais sinistras em ataques que tem todos relação um com o outro e que está nos preparando para uma batalha com essa entidade que manipula todos chamada de A Serpente que mais parece ser outro nome para Satanás.
As histórias do Emerson para a turma jovem, possuem seu humor non-sense e escrachado que são a marca do roteirista, mas com um pé forte no terror, cheio de imagens perturbadoras e de conceitos demoníacos. Mas não é só isso, são uma cavalgada da continuidade. Ao contrário da Petra que criou inúmeros personagens pra interagir com a Mônica, o Emerson não criou um sequer, tudo que ele usou foi resgatado dos confins dos gibis normais para ganhar uma nova vida. E não é só nos personagens, chovem referências às histórias clássicas da turma pequena, mas o tempo todo, e o Emerson ainda tira vantagem do fato de que ele ainda escreve roteiros para a turma normal, para lançar historinhas na turma normal que intercalem com a história da turma jovem. É um serviço completo.
E lembram que eu mencionei lá em cima, que os personagens que ele cria são em sua maior parte sobrenaturais? E lembram que eu mencionei que as histórias dele na turma jovem são mais pro terror, então é nessas horas que as duas características se casam e os personagens do Emerson encontram seu auge, transformando seus personagens sobrenaturais cômicos em entidades completas com papeis na construção de universo da Turma da Mônica. Não dá pra ler Umbra e não repensar tudo o que sabíamos sobre a Jumenta Voadora.
Enfim, a Grande Saga do Fim do Mundo é disparado o que a Turma da Mônica Jovem tem de melhor qualidade, com maior número de camadas de leitura e de maior relação com a turma clássica e de fonte de nostalgia com o leitor clássico. Embora eu goste de muitas histórias da Petra e do Cassaro (a que o Cebolinha vai pro futuro é particularmente foda.)
Mas o ponto e o propósito desse texto é: a Turma da Mônica nunca estagnou, e eu acredito que esse é parte do segredo do sucesso desse gibi. Você pega uma edição dos anos 70 é notável o quanto os quadrinhos evoluíram, para chegar aonde estavam nos anos 90, e dos anos 90 eles seguiram evoluindo pra chegar aonde estão hoje, e isso ajuda fortemente aos quadrinhos ficarem interessantes, a noção de que não tem uma fórmula bonitinha e definida que vai manter os gibis iguais por anos. Saber que eu passei 20 anos lendo um gibi despretensioso e de público-alvo infantil que me surpreendeu diversas vezes ao me apresentar algo que eu não esperava, e de fazer isso por décadas e até hoje me fazem acreditar que eu ainda não vi a Turma da Mônica atingir seu auge em humor e aventura nos quadrinhos. E atualmente o Emerson é parte forte dessa característica dos gibis da Turma da Mônica.
Os gibis da Mônica evoluem desde o dia em que foram impressos pela primeira vez até hoje, não é um conceito que o Emerson inventou, mas nos últimos 20 anos, eu sinto que as mais interessantes mudanças narrativas e estilísticas dos gibis podem ser ligadas a ele, e eu acho que é um roteirista que honestamente marcou a infância de um número de pessoas bem maior do que os que conhecem o nome dele. Pois não só o Emerson, todos os roteiristas estão ralando lá escrevendo umas histórias fodas pra caralho da Turma da Mônica, mas só ano passado que começaram a colocar o nome deles nos créditos das historinhas e admitiram pras crianças que ainda não sabiam que o Mauricio de Sousa em si só escreve história do Horácio.
Afinal quem não lembra até hoje do Além do Obvio Ululante que Pulula nas Mentes Humanas? Aquilo era fenomenal. Sério, essa história é do caralho.