Mythic Quest: Mostrando que videogames são arte.

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No meio dos anos 2000 o famoso crítico de cinema Roger Ebert se tornou uma figura notória entre os gamers por declarar diversas vezes que videogames não são e nunca serão arte, e colocando videogames enquanto uma mídia artística, como algo inferior ao cinema e outras formas de arte já estabelecidas como cinema e e literatura. A afirmação obviamente gerou reações, respostas e debates de toda a comunidade gamer.

E esses debates sempre vão para uns caminhos de vir explicar quanto imput criativo os profissionais de videogames colocam ali. E quantas mensagens um game pode passar. E a direção de arte e música e o quanto é uma mídia completa de storytelling capaz de produzir obras excepcionais. E tá tudo bem essa linha de raciocínio.

Mas eu gosto de ser mais simples. Minha definição pessoal de arte é simples: arte é tudo aquilo que é feito por um artista. E artista é qualquer um que se expresse criativamente através de uma atividade de ordem estética e criativa a ser apreciada por um público. Qualquer um que faça algo, ache bonito e queira mostrar pros outros o quanto aquilo é bonito, é um artista, e o que ele fez é, por extensão, arte.

E eu acho que arte é um bagulho que se debate muito mal nos tempos atuais.

Todo o debate sobre se videogames são arte ou não, quando entra na pauta, vai para um território em que parece que o questionamento original “games são arte?” trouxe outros dois subquestionamentos que são o que realmente se debate: “games são bons?” e “games são capazes de serem apreciados como atividade intelectual?” E bem, além do fato de que a resposta pra todas essas perguntas obviamente é: “sim, por que não seriam?”, elas também trazem consigo o sentimento implícito de que buscar o rótulo: “arte” é buscar um adjetivo de qualidade.

Porque assim: arte ruim também é arte. É fácil ficar tão positivamente impressionado com algo, que se fala: “isso é arte”, mas o complicado é pegar Transformers e admitir que aquilo é arte, pelo mérito do Michael Bay ser um artista. Pegar um Zack Snyder da vida e falar que ele é um diretor de cinema autoral e, portanto, um artista, independente da qualidade dos filmes. Essa é a parte complicada do debate.

E que quando eu falo que o J. J. Abrams não é um artista eu não estou falando que o que ele toca fica ruim. Afinal LOST não ficou. LOST é a maior série da história. Mas eu estou falando que a relação dele com as obras que saem dele não é uma relação de um artista com seu produto. Que o desejo do Abrams de agradar executivos seguindo uma checklist do Reddit o impede de criar algo onde ele tenha colocado algo dele ali.

Mas apesar disso esses debates, geralmente giram em torno de um lado querendo reforçar a dicotomia entre “Arte de Alto Nível vs Coisas Que Não Tem Nível Para Serem Arte”, e o outro lado tentando mostrar que as coisas têm nível sim para serem arte. Quando o debate fica assim, é ruim, pois reconhece uma noção de alto nível que a palavra “arte” presume. Eu não gosto disso.

O motivo pelo qual eu insisto em definir arte como “qualquer coisa que seja feita por um artista”, é que eu quero centrar o debate na única coisa essencial para se definir arte: um artista. Arte não surge sem um artista.

Lembram o episódio de Doug? Em que o Porkchop e a Stinky “pintam” um quadro que todo mundo acha belo, pela técnica complexa. Mas o pintor profissional olhou e falou “Técnica? Técnica você pode ensinar para um cachorro.” E elogia o quadro que a Patti pintou de sua avó, pois era o que continha sentimentos. E é verdade, a natureza pode fazer as imagens mais bonitas do mundo, mas somente um artista é capaz de colocar sentimento, expressão e visão naquele trabalho. Não se faz arte sem um artista, e por isso o pintor de Doug cagou pra complexidade do quadro que um cachorro fez por acidente.

Isso tanto é verdade, que tem gente que acha que a beleza da natureza e a capacidade do humano ser capaz de retirar significado dessa beleza são evidências da existência de Deus. Pois se a natureza for uma obra e arte, então a existência de um artista fica implícita. E existe gente que justifica sua fé assim, presumindo que a beleza do mundo prova a intencionalidade de um autor. Pois de fato, não existe arte sem artista.

Até o presente momento, um robô não é capaz de produzir arte. Embora um robô seja capaz de produzir imagens. Pois um robô ainda não é capaz de se expressar.

Por isso, sempre que o debate de se algo é arte ou não é arte vem à tona, eu quero pensar: “existe a figura do artista?”.

E a palavra “artista” também sofre suas banalizadas.

E hoje em dia as pessoas tentam chamar de arte tudo como maneira de dar uma gourmetizada em trabalho duro. Outro dia mesmo, eu fiz um treinamento para um novo formulário de pesquisas, pois esse ano eu comecei a trabalhar com pesquisas de mercado, ligando pros outros e fazendo entrevistas para saber a opinião delas sobre coisas. E nesse último treinamento, soltaram ali “o entrevistador é um artista.” … e putz, eu não me sinto um artista ali, em um trabalho onde eu não coloco nada de mim, e onde nada do que eu faço é pessoal e eu não posso transparecer personalidade, pois o entrevistador deve ser neutro sempre, é parte das normas. E isso não é ruim, é um trabalho honesto e na moral, nem sempre, mas as vezes eu pego umas pesquisas que eu penso: “uau, isso é importante e as pessoas não dão o devido valor quando divulgam esses dados.”, mas assim, não é arte, eu não estou sendo artista ali.

E isso não é nada perto de funcionário de fast food sendo chamado de Artista do Sanduíche para tentar fazer parecer um trabalho com mais identidade e menos exploração. Enfim, é um absurdo ir em um trabalho roteirizado, onde a ideia é você não se expressar, onde você é altamente substituível, e falarem que “seu trabalho é ser um artista”, para fazer eu me sentir bem comigo mesmo. O trabalho onde eu me expresso, me comunico e me exponho ao público é esse daqui, é escrever nesse blog.

E isso tudo também é para lembrá-los que esse blog é financiado pelo público. Pois o Dentro da Chaminé tem uma campanha de financiamento coletivo no apoia.se, para as pessoas que quiserem apadrinhar o blog poderem fazer uma doação financeira da quantia que acharem justa. Quem escolher não apadrinhar não perde nada. O maior apoio que eu recebo é vocês lerem e darem seu feedback nos comentários e nas redes sociais do blog. Mas quem quiser contribuir tem minha eterna gratidão. E os que não quiserem se comprometer com uma doação mensal, mas quiserem ajudar, pode passar um pix de qualquer valor também pra chave franciscoizzo@gmail.com.

E aproveito que entrei no assunto para deixar um abraço gigantesco para Maria Cavalcante, Alberto Nunes, Guilherme Magalhães, Darlan Lima, Ruan do Nascimento e Gabriel Almeida, meus apoiadores aos quais eu sou grato demais. Significa muito pra mim ter vocês me dando essa força.

E eu peço isso aqui, porque esse blog opera sem fazer uma parceria com o comércio. Meus textos não estão à venda, o blog não tem lojinha e não tem uma empresa financiando-o em troca de controle criativo dos meus textos. Mas muito trabalho artístico tem, e é normal ter. Pois a arte depende desse fator pra existir. A gente odeia isso, mas na real sempre dependeu.

E é nesse ponto que eu quero chegar: se for existir uma única dicotomia para se analisar na hora de olhar a arte, seria a do artista com o comércio. A necessidade da arte poder ser comercializada para o artista poder comer. E o fato de que quanto mais despida de significado, mais fácil é comercializar a arte, faz com que muitas vezes, o valor comercial da arte entre em conflito direto com o valor de expressão da arte. E esse é o real conflito por trás do conceito de arte. Que pode parecer ter tudo a ver com Alta Cultura vs Coisa do Povão, mas não necessariamente. Pois a alta cultura também é um comércio. E artistas sacrificam ideias para ter mais apelo com a Alta Cultura de maneira igual.

Vou contar uma história pra vocês.

Em 1934 o empresário, milionário, futuro político e colecionador de arte da Alta Cultura, Nelson Rockefeller comissionou do artista renomado Diego Rivera que este fizesse uma pintura para ficar no mural do lobby do Rockfeller Plaza. Diego Rivera foi um dos pintores de maior importância do muralismo mexicano, um movimento que fazia pinturas públicas em muros da cidade, de cunho político. E o prestígio de Diego Rivera foi o que fez uma arte popular, pública e altamente ideológica tenha adquirido o status de Alta Cultura o suficiente para um milionário que coleciona arte se interessar em ter um desses em seu saguão.

Nelson Rockefeller.

Pois bem, Diego Rivera pintou no centro do Rockfeller Plaza uma pintura chamada Man at the Crossroads, uma obra que representava a divisão entre comunismo e capitalismo no mundo atual. Rockfeller havia gostado do conceito e do esboço, mas no trabalho final ele ficou revoltado com a presença de Lênin desenhado na parte da pintura que representava o comunismo.

Diego Rivera se recusou a remover Lênin da pintura, pois ele argumentou que a presença dele era importante para o que ele queria passar com a pintura. O engano de Rivera foi achar que a pintura era dele. Sua discussão com Rockefeller foi encerrada de maneira cínica. Rockefeller o pagou pelo trabalho, deixou-o terminar. Porém quando o mural estava pronto, ele ordenou que a obra fosse destruída completamente antes que pudesse ser exposta.

A história é famosa e lembrada. E foi ficcionalizada em dois filmes, Frida e Cradle Will Rock, esse segundo um dos meus filmes favoritos de todos os tempos. E essa história é memorável por ilustrar bem a natureza da relação entre arte e comércio. O artista só existe se o comerciante o financia, e a partir desse momento, ele é limitado pelo comerciante. Pois o artista não é dono de sua arte. Rivera pode pintar o que ele quiser, mas ele não tem o poder de fazer suas pinturas serem vistas, o homem que pagou ele tem a autoridade para destruí-las sempre. Arte é algo que tem dono, e o dono não é o artista.

Ao mesmo tempo, em que existe essa briga, existe também uma dependência forte. Um empresário não pode fazer arte sozinho, ele precisa de um artista. E um artista não vende a arte sozinho, ele precisa de um patrocinador. Então apesar da briga, um não existe sem o outro, tornando a relação entre arte e comércio uma espécie de ying e yang.

O empresário nem sempre precisa ser o vilão da história. Eu mesmo já dediquei um texto para falar dos méritos de Fred Seibert de saber apostar no cavalo certo no que diz respeito a animação. Mas eu enfatizei. Ele não era um artista, e é importante saber fazer a distinção, de quem são os artistas. Você pode ser parte positiva do fenômeno e não ser o artista. Você pode ser parte negativa do fenômeno e ser o artista. Tem exemplo pra tudo. O importante é que o ying e yang da arte do comércio se equilibram, mas também um constantemente tenta consumir o outro.

Enfim. Em 2020 estreou uma série de televisão, feita pela turma do It’s Always Sunny in Philadelphia. E a série consistia em uma workcom (workplace comedy, comédia em ambiente de trabalho) normal, de mostrar relações cômicas em ambientes de trabalho, com o diferencial de ser ambientada em um estúdio de videogame produzindo o MMORPG mais popular do mundo, chamado Mythic Quest, que também é o nome da série.

E essa série não é nada além de uma grande desculpa para falar desse ying e yang que eu comentei. A série gira em torno de artistas tentando se expressar através de um videogame, que tem a responsabilidade de continuar sendo popular. E é uma das maiores reflexões a respeito de arte que eu já vi na televisão. Usando videogames como o cenário para desencadear todo o tipo de discussão a respeito de arte.

E a série se deleita em explorar todas as contradições e conflitos do mundo da arte. Sob o maior número possível de perspectivas.

Ele não é bom. Ele está mentindo.

O conflito central da série está na rivalidade eterna entre Ian Grimm e Poppy Li. Ian é o diretor criativo do jogo. Ian Grimm é um homem de ideias, ele não programa, ele não desenha, ele não é bom de negócios. Mas ele é um cara que tem ideias, e ele é o criador do jogo e a figura central do jogo. Quem executa suas ideias é Poppy uma programadora genial, que luta para colocar suas próprias ideias no jogo também. Ao longo de duas temporadas Ian gradativamente aprende a ceder mais espaço para as ideias de Poppy e a dividir o projeto com ela, mas sem deixar o jogo deixar de ser dele. Os dois brigam muito quanto ao que eles querem, e no episódio final da segunda temporada é bem claro que eles se enxergam como o pai e a mãe de Mythic Quest.

Ian era o responsável pela ideia do jogo, pela vibe dele e pela identidade temática, mas era Poppy quem criava a mecânica do jogo, e o grau de interação do jogador que dava força ao jogo. E o contraste entre criar a ideia do jogo e criar a jogabilidade do jogo é retratado na série como dois artistas, que vivem de sua criatividade em uma guerra de egos.

Mas esse não é o único ponto da série focado na perspectiva do artista.

Ainda no elenco central temos C.W. Longbottom, um premiado escritor de ficção científica, que roteiriza a história do jogo. C.W. é um autor fora de seu tempo, que constantemente objetifica mulheres em suas obras e não tem tato nenhum para lidar com assuntos e raça e sexualidade. Mas que mesmo já tendo perdido o bonde de uma época em que o perfil dele era socialmente aceitável, ele ainda trabalha motivado puramente por um amor pelo que ele faz. Inclusive é notável, que as histórias dele sexualizam mulheres, pois é essa a visão de mundo dele, que é relativamente alheio ao impacto social do jogo. Mas gente  como ele se mantém no jogo, pois o sexo que ele enfia no jogo vende bem, em uma decisão tomada por gente muito ciente do impacto social do jogo.

Ele próprio, nos anos 1970, quando era um escritor novato, se deparou com o jogo pong, e viu ali o futuro, e previu que videogames revolucionariam a maneira como histórias seriam contadas. E ele se juntou a equipe de Mythic Quest pelo mero prazer de poder escrever para um videogame.

A série aborda o preconceito entre mídias. C.W. sente que ele ter ido escrever para um videogame vai fazê-lo ser malvisto na comunidade literária, mas uma antiga amiga de sua juventude, e uma escritora muito mais renomada do que ele jamais conseguiria ser, compra o jogo Mythiic Quest só para explicar pra neta, com orgulho, que esse jogo era um antigo amigo dela concretizando uma ambição antiga.

Porém C.W. apesar de escrever por amor. Era um escritor medíocre, ele não era grande coisa em seus livros, só ganhando um prêmio pois literalmente teve o Asimov se voluntariando para fazer ghostwriting de seu livro. E também era um roteirista de games medíocre, admitindo que ele nunca vai fazer algo comovente como o que os grandes videogames já fizeram. O que só reforça. C. W. ser um artista não significa que ele é um bom artista. Mas, mesmo assim, ele é um artista, e ele vive da sua arte. E ele se conecta pessoalmente com o que ele cria.

Ainda no elenco protagonista, temos Dana e Rachel. Que testam o jogo. Trabalhando na base da pirâmide alimentar da empresa, como as funcionárias menos respeitadas, elas constantemente buscam se envolver em algum projeto maior do que somente testar o jogo. Em determinado momento elas são designadas a tarefa de criar um jogo pra celular. Porém brigam, pois Dana quer um jogo simples, sobre um bode fazendo doidera, focado em divertir rapidamente, e Rachel acha que o jogo precisa ser socialmente relevante, e usasse o bode para debater crueldade animal no capitalismo. O jogo foi cancelado, pois a empresa não queria se envolver com mensagens relevantes, e as duas voltaram a testar o jogo. E esse momento não demarca que a ideia de Rachel tinha mais arte do que a ideia de Dana. Nem menos, somente que elas queriam expressar sentimentos diferentes. As duas tinham perspectivas diferentes, mas as duas ocuparam uma posição de artistas, tentando cair nas graças do comércio para terem permissão de criar algo.

Ainda no elenco protagonista temos Brad. O encarregado da monetização do jogo. Brad está ali, como o representante do comércio ali e demarcado como a antítese máxima do artista. Ele obriga o jogo a possuir um cassino onde os participantes possam gastar dinheiro de verdade por itens, o que revolta Ian e Poppy, pois o cassino não tem realmente nada a ver com o tom do jogo e não agrega nada a ele. Ele também obriga Poppy a desenvolver contra a vontade de Ian um sistema Battle-Royale para aumentar o número de crianças jogando. E pensa no jogo como nada além de uma ferramenta que existe com a única função de extrair dinheiro de seu público.

A relação da existência do Brad como a antítese do artista é exemplificada acima de tudo no episódio especial Everlight, onde a equipe do game faz todo um ano uma festa a fantasia com o único objetivo de celebrar o universo ficcional que eles todos criaram, e que Brad se recusa a festejar, pois ele despreza aquilo tudo. E seu sonho era fazer esse tipo de celebração nunca mais ser realizado. A pessoa que financia o jogo abertamente despreza toda a mitologia do jogo, e não suporta ver gente se envolvendo emocionalmente com seu universo.

Apesar disso, de Brad ser um personagem vilanesco e ganancioso, que acha que games devem ser máquinas de manipulação para crianças gastarem o dinheiro dos pais. ele nunca é retratado como um inimigo de Ian ou Poppy. Pois ele é um mal necessário. Não importa o quão maligno e deturpante suas ideias seja, todos estão perfeitamente cientes de que sem a presença de Brad o jogo não é capaz de se pagar, e que jogos como Mythic Quest só existem enquanto forem convenientes para gente como Brad.

Completam o elenco protagonista, David, o produtor executivo, que apesar de supostamente ser o chefe, não tem assertividade nenhuma e não consegue liderar, deixando que Ian e Brad façam tudo o que querem e permitindo espaço para o balanço entre arte e comércio florescer. E Jo, uma mulher cruel, maligna e indiferente que se junta a equipe pois ela é atraída por posições de poder e quer trabalhar em uma indústria poderosa. Ela começa a série como assistente de David, até descobrir que ele não tem poder nenhum e decide ser assistente de Brad em seu lugar.

Esses são os protagonistas. Mas tem outros dois personagens que eu quero muito chamar a atenção: Doc e Beans.

Doc e Beans protagonizam o episódio A Dark Quiet Death, o único episódio sem a participação de nenhum dos protagonistas. O episódio é um flashback, se começa poucas décadas antes dos eventos da série, nos anos 1990 e só se conecta com a série pelo fato de que Doc e Beans eram os antigos donos do escritório onde os protagonistas estão fazendo Mythic Quest.

Dito isso, A Dark Quiet Death, é o melhor episódio da série, é o que mais abre o debate sobre o artista, a arte e o comércio. E ele ajuda muito bem a definir o tom da série toda. Ele vem relativamente cedo, é o quinto episódio da série e eu nem estava devidamente acostumado com todo o elenco quando o elenco desapareceu por um único episódio para serem substituídos por esses dois.

Doc e Bean, que se apelidaram assim em homenagem ao Dr Robotnik e seu raio de depressão, se conheceram em uma sessão de videogames a venda. Beans não tinha interesse em comprar nenhum deles, ela adorava videogames, mas ela era uma gótica com uma visão de mundo muito pessimista e ela não sentia que nenhum videogame ali dialogava com ela. O que Doc concorda, ele a escuta descrever o tipo de videogame que ela gosta e responde na hora: “Bem fora de moda.”

Então ele faz a seguinte proposta: “Já que você acha que o jogo ideal pra você não existe, por que você não cria ele?”, e se introduz como um produtor de videogames. E assim começa não só uma parceria profissional, mas também um romance.

Os dois fundam o próprio estúdio e fizeram um jogo chamado Dark Quiet Death, onde um jogador com uma lanterna usa a luz para afastar os monstros, sem matá-los, como uma metáfora pro medo da mortalidade, em um jogo em que não se vence, somente se joga o máximo de tempo possível até uma hora vacilar e o monstro te pegar. É um jogo sombrio que passava a personalidade sombria de Beans, e era algo que não existia no mercado, era o jogo dela. E mesmo assim o jogo vendeu bem.

Mas para o segundo jogo, o marketing do jogo queria vender ainda mais. Pois os números têm que sempre crescer, e para isso forçaram Beans a dar ao público o que o público queria: armas para poderem matar os monstros. Beans é contra, pois isso alteraria o conceito do jogo, mas Doc achava importante fazer essa concessão para trazer mais gente pro jogo. E Doc venceu, eles liberaram armas. Porém o foda é que as armas atrapalhavam a lanterna, então tiraram a lanterna e a escuridão…

…e essencialmente Beans teve que ficar protestando, mas sendo ignorada, enquanto Doc permitia que mais e mais alterações ao conceito fossem feitas para trazer mais público. E quando Beans tentou proteger alguma coisa para ela ainda sentir que ela estava fazendo um jogo que ela jogaria, ela levou um pé na bunda de Doc, que começou a namorar a atriz que interpretava a protagonista da adaptação para cinema de Quiet Dark Death…. produzida pela Disney. Com isso Beans abandonou o projeto completamente e deixou tudo nas mãos de Doc.

Mas Doc não era um completo vendido, ele tinha uma linha que ele não cruzaria. Ele não ia permitir que o jogo ganhasse um mascotezinho para vender pelúcias e atrair crianças. Doc disse que nesse ponto ele não iria ceder. E bem, ele foi removido do projeto pela equipe de marketing.

E o episódio termina com Doc e Beans se reencontrando por acaso numa loja de videogames, fazendo as pazes, e se conectando com o fato do quanto eles odeiam a franquia que até hoje paga as contas deles, e sobre o sentimento de sentir que não tem nada ali que eles queiram jogar.

O episódio é extremamente pessimista e cínico quanto ao papel do marketing em um jogo. Em especial porque eles não têm conexão real com o que eles vendem, e só se importam com dados e estatísticas que dizem o que vende mais. E o que vende mais é o que agrada mais gente. O que significa que a indústria do entretenimento não é feita para quem não se sente igual todo mundo. Beans achava nunca produziriam um jogo pro perfil dela. Ela foi convidada para mudar isso e não produziu, obrigaram um jogo feito para ela sentir que suas ideias tinham espaço, a deixar de ser isso para se tornar um jogo pra todo mundo. Beans era diferente, e portanto, ela não tinha valor para pessoas que só se importam com o que “todo mundo” gosta, e ela não teria valor nem se ela fosse a criadora do jogo.

A lei da oferta e demanda não opera para ajudar o artista. Ela opera para guiar o artista a servir só ao mais popular e a negligenciar artistas e públicos que tenham qualquer outro tipo de perfil.

E o motivo pelo qual o que aconteceu com Beans não acontece com Ian, e os criadores de Mythic Quest tem muito mais liberdade de colocar seus sonhos no jogo são vários.

Mas o principal é o narcisismo de Ian Grimm, que enfatiza tanto no marketing do jogo que o jogo é seu e um resultado de sua genialidade. Literalmente, a primeira cena da série é uma propaganda do jogo que na verdade é uma propaganda pro Ian.

E o resultado visível disso é uma associação do público do jogo a figura do Ian. O Ian não pode mais ser excluído da equação, pois o público já associa o jogo ao seu criador primariamente. Quem critica o jogo critica Ian, quem elogia, elogia Ian.

O que é uma coisa que muito artista autoral faz, de não permitir que o público esqueça quem é a mente por trás da obra por nem um segundo, serem eles próprios a brand principal de suas obras, para impedir que eles sejam vistos como descartáveis ou substituíveis pelo setor comercial da obra.

Quero ver se tem algum produtor que acha que dá para fazer um filme do Tim Burton sem o Tim Burton.

Ninguém gosta de narcisismo. Mas saber ir além do básico na hora de assinar a obra é bom pros negócios. Pois torna mais difícil tirarem a sua arte da sua mão na hora de vender.

A relação dos artistas com Brad também é bem menos agressiva do que foi a relação do marketing com Beans. Quando ele força Ian a permitir um cassino, todo mundo acha extremamente de mal gosto. Mas Ian se adapta rápido a situação, transforma o cassino na base do vilão que ele queria promover, e continua centrando a narrativa no que ele queria fazer: trabalhar o Homem Mascarado. Brad não fica no caminho, se ele souber que vai conseguir convencer algum adolescente a enfiar dinheiro de verdade no jogo. E Brad e Ian abertamente não gostam um do outro, mas sabem trabalhar juntos.

Porém enquanto Brad não realmente escreve a história de Ian, pois ele não é o artista, ele só quer dinheiro. Ele se envolve criativamente de maneira muito mais pesada em um projeto paralelo, que aqui é que fica interessante. Brad resolveu financiar um streamer oficial de Mythic Quest fazendo a testadora Dana abrir um canal para fazer streaming do jogo.

O que faz a série trabalhar o streamer e o produtor de conteúdo como um artista. O que é um take que eu não vejo muitas pessoas fazerem. Mas a série faz justamente por colocá-lo em uma relação ying e yang com o comércio. O streamer cria um personagem de si mesmo, tenta expressar sua individualidade enquanto transmite, se expõe, mas para poder realmente ganhar a vida, depende de patrocínios, e financiamento que tem o poder de limitar o que o streamer pode ou não fazer e falar. Dana por exemplo era obrigada a divulgar os itens de Mythic Quest que Brad tinha mais interesse em vender.

E Brad chama C.W. para ajudar nos roteiros dos vídeos de Dana, e faz todo um trabalho que enfatiza quanta criação, quanto esforço e quanto comércio tem nesse segmento também. Porém os vídeos de Dana falham no instante que o seu público descobre que ela é financiada pelo próprio jogo. O que é uma questão importante da arte: a legitimidade.

Todo mundo sabe que o dinheiro que faz a arte vem de algum lugar, mesmo assim, o público espera que o artista fale com a própria voz. E as vezes o artista está em uma situação em que ele tem uma voz, e as vezes o artista está em uma situação em que não tem.

E no mundo moderno a distinção entre arte e propaganda está cada vez mais difícil de notar. Brad criou um canal de propaganda, disfarçado de canal de conteúdo para iludir o público, e isso revoltou o público. Ninguém gosta de saber que está vendo propaganda. Então a propaganda usa a arte para fazer as pessoas verem entretenimento e esconder publicidade ali. Todo mundo gosta de ver entretenimento. Mas quando que o entretenimento passa a ser propaganda? Onde está a linha? Brad criou um canal de propaganda, mas Dana estava feliz de verdade com o espaço que ela tinha para se comunicar com o seu público, então a expressão dela era legítima.

Brad não ativamente impede Ian e Poppy de terem suas ideias e colocarem sua marca nas ideias. Ele só quer realmente poder usá-las pro mal. Pois o Brad em si não tem muitas ideias. Ele precisa da ideia dos outros, e ele não desincentiva os outros de terem ideias, desde que possa distorcê-las

Agora, Brad não é um artista e não se vê como um. Mas ele é afetado por arte. Arte tem um papel na vida dele que vai além da sua fonte de fortuna.

Pois mesmo o Brad que não cria nada e só vê o mundo sob o prisma do lucro e da posse, ele se vê particularmente inspirado pelo Scrooge McDuck (Tio Patinhas), e se sente motivado pelo desenho dos Ducktales. Ele ainda deixa a arte dos outros encostar nele e inspirar seus objetivos.

Apesar do Brad ser claramente uma pessoa vilanesca…. no tom de vilania que uma comédia de ambiente de trabalho permite, pois ele não é o Darth Vader, é só um cuzão. Enfim, apesar de Brad ser um antagonista, a série também não pinta um cenário de que o segredo de tudo é sempre deixar o artista vencer todas.

Quem pinta isso sou eu. Por mim derrubava todos os Brads do mundo. Mas a série vai com um pé um pouco maior na realidade ao nos mostrar que o mais importante é ter alguém competente sabendo a hora de dar corda pro artista e a hora de dar corda pro comércio. E que a turma de Mythic Quest vai até o fim com sua bagunça e permitem um ambiente não-profissional (que é simplesmente essencial em qualquer workcom), pois eles não têm um chefe de fato, negociando quando que a bola tá na mão do Ian e quando ela tá na mão do Brad… em vez disso, eles têm o David.

David é nada assertivo, não consegue se opor a Brad nem a Ian, tem dificuldade de tomar lados. E ele costuma justificar isso dizendo que isso significa que ele não serve de obstáculo pro artista e que isso é bom. E ele está só meio certo.

Porque ele também não foca o artista. Que muitas vezes precisa de alguém pra colocar os pés no chão e falar que ele não precisa fazer o jogo mais perfeito concebível pela mente humana, e sim fazer o melhor que pode dentro de um orçamento e dentro de um prazo. Porque de fato, se deixar todo mundo ter ideia nova e perder o foco o tempo todo, o projeto triplica o custo e não sai pois não fica pronto nunca. E nessas horas ter alguém menos emocionalmente apegado com o projeto final tomando as decisões é saudável para a arte poder ser feita.

Eu mesmo, preciso me dar uns tapas e falar que se eu sempre adiar um texto quando descobrir um novo exemplo de obra abordando um assunto, eu não público nunca. Mas aqui eu tenho que ser esse cara comigo mesmo. Em obras que serão comercializadas, temos um David, que supostamente tem que guiar o pessoal. Mas ele não guia nem a própria assistente.

Como David não guia ninguém todo mundo tem carta-branca para passar a perna em todo mundo e isso permite que os conflitos de Mythic Quest floresçam para o conflito máximo, que é o que queremos em uma série de comédia.

Mas a falta de lados mais do que permitir que Ian brigue com Brad, permite que Ian brigue com Poppy. Agora o lance de Poppy é o mais específico, pois ela quer se sentir uma artista, mas o trabalho dela não lhe dá esse espaço. No sentido de que ela programa o mundo de Ian, mas ela quer programar as próprias ideias no mundo de Ian, e ela tem tantas ideias, e nunca dão para ela esse espaço, o de ser criativa no próprio trabalho. Em vez disso Ian a faz se sentir como uma completa ferramenta.

O relacionamento de Ian e Poppy servem de espelho para Doc e Beans, algo que Ian reconhece literalmente, quando ele conta a história de Doc e Beans para Poppy e percebe que ele não quer negligenciar a pessoa que transforma tudo o que ele sonha em algo palpável. E ele a promove a parceira dele e permite que ela planeja a próxima expansão em pé de igualdade com ele.

Mas o curioso é que a parceria não é realmente o que a Poppy precisava. Pois o jogo que ela queria transformar Mythic Quest não era o que Mythic Quest era, nem algo em que o jogo conseguiria se transformar. Mais do que somente aumentar os pitacos dela no jogo do outro. Precisou de mais uma temporada toda pro Ian entender que ela deu pra ele um jogo dele. Um jogo dele que era tudo o que ele sempre sonhou. E agora ele queria retribuir o favor, ele queria dar pra ela, o jogo dela.

A jornada de Poppy de estar rodeada por criação e querer ser parte disso, deixar de dar forma ao sonho dos outros e ter alguém que dê forma aos próprios sonhos, não é algo que somente Poppy tem. É algo que Rachel tem também, que depois de duas temporadas insistindo que queria poder criar e ser ouvida, confessa não ter uma real ideia do que quer fazer. Mas após isso ela enfim se inspira quando um escritor que ela despreza por ser misógino, comove ela com seu livro. E ela decide que esse poder de comoção, em especial um que venha mais do poder das palavras em mexer com as emoções mais do que venha dos valores do autor é o que ela queria fazer a vida. Causar esse tipo de comoção.

E esse sentimento é importante. Ian se irritava pela maneira como Rachel não tinha realmente nada que ela queria por pra fora. E admira que Dana tenha, mesmo que ele ache Dana péssima. Pois o que importa é o sentimento. O sentimento de ter algo que você quer lançar pro mundo. De ter algo no qual você quer investir seu esforço, mesmo se todo mundo odiar, pois é o que você fez e você quer que todos vejam.

E esse sentimento move Ian, move Poppy, move Dana, move C.W, a noção de que você tem algo que você simplesmente precisa por pra fora.

E mesmo um streamer completamente desagradável como Pootie Shoe guiava todo o conteúdo que ele produzia no sentimento reprimido dele de querer ser notado pelo seu pai. Criar é sobre sentir, é sobre por pra fora.

No youtube de vocês, aparece muito a propaganda do curso do MasterClass do Scorsese, ou é só pra mim? Pois é exatamente isso que ele fala no começo da propaganda antes de aparecer o botão que te permite pular.

“Se você está interessado em fazer uma carreira como diretor de cinema essa aula não é pra você. Mas se você precisa fazer filmes. Um filme. Se você sente que não consegue descansar até ter contado essa uma história em particular usando imagens que se movem e som. Aí eu estou falando com você.” – Martin Scorsese.

Não importa o que se esteja criando. Pode ser um videogame, mas pode ser literatura, pode ser música, pode ser um filme. E a série faz um bom trabalho justamente na maneira como estabelece escritores e roteiristas de games vivendo no mesmo mundo e só não percebendo.

Mythic Quest é uma série sobre a indústria dos videogames, e ao longo de suas duas primeiras temporadas a série lida com os mais famosos problemas que infestam a indústria. O excesso de toxicidade dos fãs, o crunching, a falta de espaço na indústria pra mulheres, como lidar com a parcela nazista do fandom, o poder de crianças de 14 anos com canais no youtube em fazer um monte de empresário se curvar a eles pela maneira como eles movem a opinião pública, entre outros exemplos que mostram que a série quer realmente focar nesse tipo de indústria e em como ela funciona.

…. obviamente simplificando todos esses problemas especialmente para a maioria deles conseguir algum tipo de solução até o fim de um episódio. Isso ainda é uma sitcom.

Mas mostra a maioria desses problemas sendo percebidos na perspectiva de artistas, e no fundo o que eles mostram da indústria de videogames, é que ela é composta por um monte de artista tendo conflito de ego e batendo cabeça a respeito de visão.

E aí eu volto ao Roger Ebert, e a todo debate a respeito de se videogames são ou não são arte.

Como que não vai ser arte? Com tudo isso de artista envolvido? Como não vai ser arte, se o comércio tem um poder claro, de remover seus méritos artísticos? Só se pode perder o que já se tem.

E acho que o argumento central para se defender a décima arte não precisa ser explicar que isso tem o potencial de te tocar. Porque com todo o respeito, uma mancha na parede tem o potencial de tocar alguém. Claro pode ir por aí também, importante quebrar esse preconceito, admitir que pode tocar suas emoções. Mas acho que a série fez o melhor argumento possível. Pois mostrou o quanto os bastidores dessa indústria envolvem artista artistando.

E assim. Se algum leitor das antigas está lendo isso, deve estar pensando. “Porra Izzombie, você nem é dos games, como você sabe que a série não tá inventando isso tudo e na real não tem arte nenhuma.” E eu penso muito nisso desde antes da série, pois eu conheço gente que trabalha com games que é exatamente isso que eu descrevo.

Então eu quero dedicar esse texto ao videogame feito por um grande amigo meu, um joogo do qual eu ouço falar já tem muitos anos, acompanho as notícias desde o começo, e nossa, vai esforço, vai amor, vai desespero vai a alma dentro desses projetos para eles conseguirem sair do papel e serem lançados. Como que um projeto criativo feito nessa energia não vai ser arte? E o jogo lançou esse ano inclusive. Chama Fish Person Shooter, é um FPS estilo Doom baseado em One Piece, em Kubanacam e no quanto arpões são fodas. Aqui o link na Steam! Esse texto é uma homenagem a esse jogo pelo qual eu tenho um grande carinhos e também é uma homenagem todo mundo que põe o suor e o sangue nesse mundo e não recebe o devido reconhecimento como os artistas que são. Eu divulgo esse pois esse eu vi os bastidores, mas eu homenageio todo jogo indie que eu não vi os bastidores também.

Sobre o autor

Izzombie

Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

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Izzombie

Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

Alertas

  • – Todos os posts desse blog contém SPOILERS de seus respectivos assuntos, sem exceção. Leia com medo de perder toda a experiência.
  • – Todos os textos desse blog contém palavras de baixo calão, independente da obra analisada ser ou não ao público infantil. Mesmo ao analisar uma obra pra crianças a analise ainda é destinada para adultos e pode tocar e temas como sexo e violência.

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