Game of Thrones – Como a série menosprezava Westeros.

G

Vamos chutar um cachorro morto? Vou pegar aqui uma opinião fácil, que todo mundo tem e falar que eu tenho também, pois sou um blogueiro covarde e quero vir aqui três anos depois falar que eu achei o final de Game of Thrones ruim.

Pois já tem quase um ano que eu estou aqui remoendo qual é o problema desse final. O que é uma mentira que eu disse agora, pois todo mundo passou três anos inteiros apontando todos, todos, todos os vários problemas do final. O que é um amontoado de problema, um jogo dos mil erros. O que eu quero é na real um texto simples apontando uma questão, que eu identifiquei, que me incomoda em particular, e que eu não vejo ser comentado com tanta frequência. Uma galera deve ter comentado, pois todo mundo comentou tudo o que tinha pra comentar sobre o final. Mas as principais críticas eu não vi caírem no ponto que eu quero trazer.

Eu vi gente falar da Daenerys ficar louca do nada.

Do desperdício de personagem que foi o Jaime.

Da estupidez que foi colocar Bran, o Quebrado como o novo Rei.

Da construção-de-mundo que foi completamente ignorada e de vários nobres que deveriam ser fatores de relevância não serem. Essa aqui aliás eu mesmo enchi o saco quando a série ainda não tinha acabado.

Da chupada de próprio pau que foi inventar que o Sam no final escreveu A Song of Ice and Fire.

Da broxada que foi a Batalha de Winterfell, em que era nada a ver a Arya matar o Night King.

E de um monte de outras estupidezes.

Além é claro de discussões e mais discussões do que significou de verdade o Drogon queimando o Trono de Ferro em um simbolismo muito confuso.

Isso é o que eu costumo ver e se fosse só isso o final seria definitivamente uma bosta, tanto que foi, mas pra mim tem mais um problema. E esse problema é um problema que tá aí desde que a primeira temporada passou, e todo o mundo ainda achava a série o ó do borogodó, e foi só piorando desde que D. B. Weiss e David Benioff começaram a não ter mais as ideias de George R. R. Martin a disposição, então colocaram ideias deles, temperadas com pedaços de spoilers que eles supostamente tinham quanto ao rumo das coisas. E foi só aí que deu pra ver o fantasma do fracasso. Não pela falta de fidelidade ao material original, mas pelo propósito dessa falta de fidelidade. Por qual era o conceito final deles.

O erro que eu quero apresentar aqui é, Weiss e Benioff julgavam Westeros e George R. R. Martin não. E é porque Weiss e Benioff julgavam o mundo, que eles decidiram que no final eles deveriam consertar o mundo. A gente viu essa série como os cidadãos civilizados do século XXI em uma sociedade que substituiu o feudalismo pelo capitalismo já tem muitos séculos. E mesmo vendo o capitalismo decair na nossa frente, no pior dos dias a gente ainda pensa “que bom que eu não estou na idade média.”.

Os personagens de A Song of Ice and Fire tem valores problemáticos. Eles são pessoas medievais, eles não acreditam em várias coisas que hoje nós temos como muito claras na nossa sociedade. Eles não acreditam em democracia, ou em igualdade entre nobreza e povo. Mesmo para as mulheres que lutam por seus direitos na história, a noção de feminismo e luta política da maneira que temos hoje não existem. E mesmo um homem de boa índole em Westeros vai ter visões infelizes sobre lugar de mulher, sobre violência, e sobre morte.

Pois eles vivem onde vivem.

George R. R. Martim escreve os livros da perspectiva de seus personagens, e cada personagem tem sua série de valores, porém do mais progressista ao mais retrógrado, o personagem tem uma visão de mundo comparável ao que se espera de uma pessoa de Westeros tenha. Tyrion que é uma das pessoas mais decentes ali, abertamente é descrito no livro como alguém que considera a noção de um conselho em que todos tem voz uma desinteligência.

Mas a série não é contada da perspectiva dos personagens. É contada da perspectiva de Benioff e Weiss. E a perspectiva deles é a de que aquelas culturas precisavam entrar na linha pra ser aceitáveis. E que não tinha condições ao final da série o mundo continuar uma bagunça de valores medievais.

Um dos diálogos mais debatidos da série é justamente no ponto em que a divergência dos livros ficou mais explícita, depois que Danerys e Tyrion se encontram, um evento antecipado para acontecer no próximo livro, mas que ainda não aconteceu. Ali Danerys explica que Westeros é uma roda em que as famílias da nobreza se alternam, e que ela vai quebrar essa roda. E nos livros ela não faz esse discurso. Mas no instante em que o arco da Daenerys chega no ponto que os livros não mostram, ela faz um discurso sobre como “O feudalismo tem que acabar” e torna esse um dos motores da série.

E isso não fica só no fato deles terem feito uma oligarquia no fim pra substituir o sistema monárquico. Falo além, falo do pessoal das Ilhas de Ferro terem combinado abandonar a parte mais abominável de sua cultura piratesca, e abolir o sequestro e estupro de mulheres, para poderem seguir sendo parte do reino. A série firmou isso, pois um Greyjoy nunca seria um herói aos nossos olhos, enquanto os Greyjoy seguissem a cultura dos Nascidos do Ferro. Eles deveriam seguir a nossa cultura. 

O Martin afirma que não gosta de escrever personagens bons ou maus, mas sim que gosta de criar personagens humanos e nos deixar tirar nossas conclusões, sem certo e errado. Só que apesar dele claramente negar que faz isso, os livros dele ainda tem lado dos protagonistas e lados antagonistas. Ainda simpatizamos mais com alguns personagens e jogamos a outros a conta de vilões. Pois bem, tem outra maneira de frasear isso que eu acabei de dizer.

Apesar dos livros terem sim, personagens que são heróis e personagens que são vilões, o autor nega. O que significa que por mais que ele deixe pra nós chegarmos à conclusão de que a jornada do Jaime Lannister é uma jornada de alguém migrando do lado “errado” para o lado “certo”, o Martin nunca vai dizer isso. Ele não vai colocar esse julgamento na boca dele, e ele, como escritos do livro se manterá neutro a respeito de quem está certo e errado. Mesmo se for óbvio. No livro qualquer julgamento é feito na perspectiva de um personagem julgando o outro. Então quem julga o Jaime pelo personagem que ele era antes de ser capturado somos nós, sou eu, o Izzombie, eu li o Jaime empurrar uma criança da janela, pensei “foda-se esse otário”, mas aí eu vi ele se relacionar com a Brienne e pensei “Não, ele tá de boa.”. E eu cheguei a essa conclusão sozinho. E quem perdoa Jaime somos eu e os demais leitores, somos nós. E eu perdoo pois eu vi os dois lados da história.

O fandom tem um consenso interno de que o Ned Stark é uma pessoa mais heroica do que o Joffrey Baratheon. Mas o livro não tem um narrador te dizendo isso. A gente não é inclinado a tomar o lado do Ned por obrigação, mas por afinidade e carisma. O Martin não é bobo, ele sabe que todo mundo vai concordar mais com o Ned do que com a Cersei, mas ele se sente confortável para dizer “eu nunca disse que o Ned era uma boa pessoa”, pois ele de fato nunca disse. E ele colocou já no primeiro livro pessoas de fora falando mal de Ned e expondo o outro ponto de vista.

Um dos resultados disso é que esses personagens não foram designados para gente. A gente escolhe eles. A gente sente que a gente escolheu torcer pelo Tyrion e achar ele o cara mais legal dali, não que o autor vendeu ele como o nosso herói. E isso aumenta nossa conexão com esses personagens.

A série não faz nada sequer parecido com essa técnica. Ela olha tudo de cima e explica pra gente como nós devemos nos sentir quanto as cenas. A publicidade da série deixa absolutamente claro que Ned é o protagonista sob qualquer perspectiva. Depois da morte de Ned eu admito que a série começou a dividir a publicidade sem dar mais foco em um único personagem central.

Pensemos assim: quando a Daenerys começar a sua espiral de loucura em Westeros, pois vamos presumir que o livro pode acabar narrando os mesmos eventos da série, algo importante de se observar é: o tom emocional da cena dos dragões queimando todo mundo virá do sentimento do personagem que for o ponto de vista. Então imaginando aqui, que o primeiro encontro de Daenerys com o Jaime nos livros, caso seja a exata mesma cena da série, muito provavelmente aconteceria em um capítulo do Jaime. E o horror da cena viria não de uma noção de que a Daenerys é uma vilã por definição, e sim dos traumas de Jaime que ela estaria engatilhando, e veríamos como aos olhos dele, ela é filha de seu pai.

Nos livros, as vitórias de Daenerys soam vitoriosas e épicas, pois vemos na perspectiva dela, e isso é importante, pois nos livros Daenerys é uma das poucas personagens que está ativa na busca pelo trono de ferro cuja perspectiva nós vemos. Então nós vemos os excessos de Stannis pela visão de Davos, que julga esses excessos pra nós; ou vemos as imprudências de Robb pela visão de Catelyn, que julga essas imprudências pra nós; ou vemos a vilania escancarada de Joffrey pela visão de…. muita gente, e todos eles fazem questão de julgar Joffrey como um saco de merda.

Não existem capítulos de Stannis, Rob, Renly, Robert, Balon ou Joffrey….
…mas existem capítulos da Cersei.

Mesmo Cersei, cuja perspectiva nós vemos, também vemos ela sob a perspectiva de outras pessoas o tempo todo pra contrastar o quão esperta ela acha que é com o quão toscos seus planos realmente são.

Daenerys é o único candidato a governante dos Sete Reinos, que não observamos de fora e não vemos como as pessoas abaixo dela a observam. Digo tecnicamente temos sim o Barristan, mas ele começa a ter seus capítulos bem depois, não foi pelos capítulos dele que vimos o que podem ser as decisões mais cruéis de Daenerys. Acho que por isso, novamente, presumindo que a série foi fiel em sua caracterização, a revelação do quão asquerosa ela soa para quem combate os seus dragões será um twist bem-feito nos livros, pois será uma perspectiva que não vimos, mas que observará algo que sempre esteve lá e terá consistência. Conhecendo Jaime Lannister, é muito verossímil ele deparado com um Targaryen incendiando pessoas, não ver nada além de um monstro E o Ser Jorah não teve realmente nenhum capítulo de si testemunhando Dany incinerar os inimigos, para eu ver o que ele vê.

Na série, porém o oposto acontece. A perspectiva de Daenerys é sempre da câmera, e vemos os personagens sem o filtro da percepção de outro personagem. Quem havia falhado em enquadrar a tirania de Daenerys com clareza foram os diretores. Quando Daenerys é rodeada por escravos que a amam, a gente não está vendo o mundo pelos olhos dela, estamos vendo Weiss e Benioff usarem linguagem audiovisual para fazer a gente a ver como um ser especial, uma figura messiânica.

Quem enquadra Daenerys como alguém que decaiu pra vilania e tirania não foram os personagens, foi a câmera e os diretores. E justamente, as atitudes dela em Westeros não soaram como “sob os olhos de outra pessoa, é assim que ela parece.”, soou como ela tendo uma corrupção imensa de repente e sem construção.

O que se manifesta nos dois tentando explicar que a frieza com a qual a Daenerys viu a morte do irmão era para servir de foreshadowing, pois eles esperavam que nós já a julgássemos desde então. Mas não, na época estávamos do lado dela, e vilanizávamos Viserys. Nos livros seria superverossímil essa cena ser lembrada com uma luz negativa se narrada da perspectiva de outro personagem, e isso funciona, mas a série não muda as perspectivas. Então a gente toma o lado de um personagem, mas não porque a gente só está restrito ao que ele vê, e sim porque a câmera tomou um lado ditando o tom da cena, e a gente toma o lado da câmera.

Como a gente ia estranha se a gente estava implorando pra ele morrer também?

E essa é a diferença central da série com o livro. Com a metade da série que adapta os livros e com a metade que se virou com a falta de material para servir de fonte. Pois na primeira metade, a câmera julgou como trágico o que os leitores do livro julgaram como trágico, julgou como heroico o que os fãs julgaram como heroico. Quem leu viu que a morte de Ned foi horrível, então a câmera da série passaria essa mensagem sem precisar de uma perspectiva específica achando isso horrível.

Conforme não tinha mais o livro pra adaptar, somente os fatos que os showrunners ouviam do Martin ou tiraram do cu, os autores mudaram para dar o seu próprio tom, e aí o tom parou de ser como aqueles eventos impactam os personagens e passou a ser como aqueles eventos impactam a visão de mundo de Weiss e Benioff. E entre os dois têm um abismo de valores separando que chacoalha muito a série pra ser algo que você faz da metade pra frente.

Enfim, isso tudo pra dizer que o final da série foram os autores vilanizando conquista de terras por massacre de civis, monarquia, pirataria, feudalismo. Somado a justiças poéticas que deram não só pelo fanservice, mas também para exaltar coisas que talvez não sejam exaltadas no livro. Como o Sandor vencendo o irmão e Arya matando os Frey ambos narrados com aquele tesão de que o mal foi derrotado. E além, é claro, de conquistas merecidas, como Brienne se tornando a primeira cavaleira mulher da história e os nobres do norte todos falando que o status de bastardo de Jon importava menos que sua garra e que ele era digno de Winterfell.

Enfim, que Weiss e Benioff tinham uma dose de julgamento moral em cima da sociedade de Westeros e que rolou uma tentativa de torná-la mais aceitável aos nossos moldes como parte de um final feliz, pra isso não precisa desse texto pra concluir. E honestamente, nem acho isso necessariamente uma ideia ruim, ou uma maneira errada de se adaptar, mas eu vou falar disso mais pro fim do texto. O que eu quero puxar agora é que a relação de Weiss e Benioff com Westeros sempre foi distante e julgona. Não foi uma chave que virou na metade da série. É assim desde a primeira temporada. Eles sempre tiveram um olhar prepotente de que eles estão mostrando um mundo indigno da sua apreciação.

O julgamento, é claro não era moral, mas nota-se que eles sempre se coçaram para tentar diminuir qualquer pompa e hype que Martin desse ao mundo que criou. George R. R. Martin é famoso hoje por desconstruir arquétipos de história de fantasia e por ter nos mostrado um mundo mais sujo e não romantizado que os demais livros do gênero. Com muito sexo, muita violência, amoralidade, e enfatizando que nada ali é bonito. Com personagens humanos e sucumbindo a diversos atos condenáveis, movidos por desejo e ganância. E com o lado justo não sendo o mais poderoso.

Mas ele também se esforçava em criar um mundo épico de fantasia, com lendas, e castelos, e batalhas, e dragões e uma emoção em ver gente poderosa conseguir proezas, para depois humanizar essas pessoas com defeitos. Os personagens eram desconstruídos, pois seus defeitos humanos faziam contraste a epicidade do mundo deles que era genuína.

Mas Weiss e Benioff nunca compraram esse hype.

Vamos voltar lá, pra primeira temporada, lá no começo. Uma das primeiras aparições de um personagem que é um favorito dos fãs: Bronn. Lá no quarto episódio da série, quando Catelyn e Tyrion chegam no castelo The Eyrie, e é comentado que o castelo é impossível de se invadir pelas suas defesas naturais. Instantaneamente o Bronn olhando o castelo fala “me dá 10 homens, e ganchos de escalada, que eu invado esse castelo.”

E é notável que os caras não se aguentaram quatro episódios sem se coçar completamente para questionar o mito do Eyrie. “Impossível de invadir? É mesmo? Mas é só ter um plano que você invade.”, nos livros de Martin tem castelos que tiram vantagem de sua geografia para resistir a qualquer invasão que não seja feita por dragões, mas na série de Weiss e Benioff, esse tipo de mitologia, esse tipo de hype não ter permissão de existir. Tudo é invadível, não existe arquitetura épica ou pomposa, é só os personagens se impressionando fácil.

A exata mesma coisa se repete lá na terceira temporada, no episódio 6, reforço, quando a série ainda era boa e fiel aos livros supostamente. Mas mesmo fiel, obviamente tinha uma cena inventada aqui e ali e isso não é um problema, muita cena boa veio disso. Enfim, aí temos esse momento em que Varys e Littlefinger estão conversando sobre o Trono de Ferro. Varys recita a lenda dele ser formado pelas mil espadas dos inimigos de Aegon, e Littlefinger rebate na hora, que não são mil, que não tem nem duzentas espadas ali, que ele sabe pois ele contou.

E disso a conversa avança para Littlefinger explicando pra Varys que todas suas noções do reino se sustentam em mentiras, como a mentira de que Aegon roubou mil espadas de mil inimigos. Claramente desmistificando os feitos de Aegon pra passar melhor a mensagem, de que o mundo é menos heroico do que aparentava.

O que Martin já desmentiu, ele falou que de fato por questões de praticidade ele entende que a cadeira que fizeram pro show, o trono de ferro da série de televisão tem umas cento e tantas espadas, mas que ele quer que os fãs saibam que no livro o trono é de fato feito de mil espadas retiradas dos mil inimigos de Aegon. O hype por Aegon é real.

Martin também foi particularmente vocal em relação a falta de pompa da cena de Robert caçando. O que é obviamente mais culpa do orçamento que qualquer coisa. Mas ele elegeu como a cena que mais o incomodou, e isso deixa oficial o registro que o que mais incomodou o Martin na série foi a falta de epicidade que um rei merecia.

Vamos ver outra cena?

Ainda na temporada 3, mas um pouco antes, no episódio 4, temos a, também icônica, cena em que Olenna Tyrell deixa claro o quanto ela não leva a sério o símbolo nem as palavras da casa Tyrell. Lamentando que “Crescendo Forte” são tenha a imponência de “O Inverno Está Chegando” ou “Nós Não Semeamos”, e lamentando que rosas sejam um símbolo de otário.

Nessa cena, eu sinto que Weiss e Benioff estavam, mantendo a personalidade rude de Olenna, colocando a própria visão sobre o quanto a casa Tyrell não se sustenta em símbolo fodões, mais do que a genuína opinião de Olenna, que na verdade sempre representou a simbologia dos Tyrell.

Afinal, seu apelido de “Rainha dos Espinhos” mostra que a simbologia da rosa é parte fundamental de sua identidade. E a maneira como ela manipula eventos para obter suas vitórias, não em batalha, mas com golpes discretos, escondidos sob uma fachada de amizade, mostra que ela prefere cultivar uma imagem de paz. Ela não parece o tipo de mulher que iria de fato querer andar numa bandeira de um animal feroz degolando as vítimas com um lema que explica como ela vai matar todo mundo, nem mesmo na caracterização da série.

Quando ela fala que a casa não é fodelona e isso frustra ela, é uma piscadela pra nós. Nós que fomos ver a série motivados pelo marketing que fez grande uso de “Winter is Coming” e “Fire and Blood”, e leões, dragões, cervos e lobos e krakens. E agora vemos que na terceira temporada a Rosa está em pé de igualdade com isso aí. O que é uma inteligência do Martin, de mostrar uma versatilidade grande entre tipos de símbolos, pois não só cada família divide valores e ideais diferentes, como eles também se diferenciam em como marcar uma identidade. Mas na série o público quer que tudo seja agressivo e gritando por poder.

E Weiss e Benioff colocaram essa série comentando diretamente que dar rosas como símbolos é coisa de mané.

Três temporadas depois, temos Jaime explicando que um Lannister sempre paga suas dívidas, e Bronn interrompe deixando claro que ele não aguenta mais ouvir lema de casa. E não é o Bronn que não aguenta, são Weiss e Benioff, que acham esses lemas uma coisa de otário sendo repetida constantemente.

E entre os castelos não terem hype. Os Targaryen do passado não terem hype. As simbologias da casa só terem hype se forem anúncio de guerra, eu me pergunto se em algum momento Weiss e Benioff realmente se interessaram pelo mundo que o George R. R. Martin construiu. Pois me parece que o desejo deles era o de desconstruir a desconstrução, pegar os livros que já eram uma desconstrução da fantasia medieval, e mostrar que mesmo isso, não merece chamar nossa atenção pela pompa das partes que supostamente deveriam ter pompa.

Um que diferente das cenas acima não é só uma cutucada temática, é um de fato ponto relevante da trama, que a série inventou, mas que não tem nos livros. É que as minas de ouro dos Lannisters estão secas faz anos, e os Lannisters na verdade estão falidos, fingindo que ainda são ricos pra se manter no poder. Então nem a vasta fortuna dos Lannisters escapou a desconstrução da desconstrução que o show quis fazer. O poder simbólico dos Lannisters é uma fraude, que nem o trono de ferro, e a invencibilidade do Eyrie.

E esse completo desinteresse em manter a construção de mundo de Westeros se provou fatal, quando, como eu discuti no passado, em determinado momento a série simplesmente parou completamente de usar elementos como famílias nobres secundárias, conselho real, guarda real, ou títulos, e isso enfraqueceu o roteiro da série significantemente.

Então retomando.

O uso de personagens-pontos-de-vista dos livros, tornam os livros uma experiência imersiva acima de tudo. Tudo o que a gente descobre sobre aquele mundo nos é contado da perspectiva de um personagem que nasceu naquele mundo, e que considera aquilo realidade. Não cabe o juízo de valor de “isso é datado”, ou “isso não existe”, “isso é tosco e desinteressante”, ou “isso não funciona no século XXI. O único julgamento que um personagem do livro faz ou não ao mundo que ele vive, é se tal fator vai a favor ou contra os códigos morais do personagem.

Uma curiosidade interessante, é que a anã que se torna parceira de Tyrion nos livros, Penny é considerada uma pessoa de nome feio. Pois não existe o nome Penelope em Westeros e seu nome vem de sinônimo de moeda. O que Tyrion acha insultante. A referência dele não é a nossa.

Ned Stark é contra o uso de carrascos por um código moral, então ele julga o rei por usar um carrasco, e esse julgamento é inexistente na perspectiva de personagens que não são nortenhos.

Toda informação que recebemos daquele mundo é filtrada pela mente que alguém que faz parte daquele mundo, e que sabe que seja uma coisa boa ou ruim, ela é parte da vida deles, é naturalizada, e isso permite ao leitor fazer uma imersão nos livros pesada. E essa imersão é parte da experiência.

Essa imersão é o que permite que perguntas como “Mas Ned agiu certo ou errado?”, ou “Mas Jaime é uma pessoa boa ou ruim?”, ou principalmente “Mas quem merecia a vitória, Robert ou Rhaegar?”, não sejam perguntas com uma resposta clara, e que dialoguem com a subjetividade do leitor, que poderia se imaginar o que ele pensaria disso tudo se ele fosse parte disso.

A série de televisão, nunca teve essa imersão. E esse sempre foi seu maior diferencial dos livros, a gente observa todos os eventos, nada é offscreen pra gente, a gente vê vários eventos que não vemos com clareza nos livros e a gente observa esses eventos da posição onisciente de olho mágico. Nenhum evento da série usa a direção da cena para fazer a gente ver pela perspectiva de um personagem, a gente vê todos os eventos da perspectiva de seres humanos que vivem no século XXI.

Uma perspectiva que diz que alguém ali deveria ter a ideia de inventar a cadeira de rodas pro Bran, mesmo que no nosso mundo elas tenham sido inventadas depois do fim da idade média.

O que significa que a série é sobre o contraste entre nossos valores morais, e os valores morais da série. Que são valores morais horríveis, que devem nos chocar.

E é por isso que a primeira noite de Daenerys e Khal Drogo, que no livro é um indicativo de que Drogo era muito mais carinhoso e compreensível do que ele aparentava ser, mesmo sendo um dothraki, na série é um estupro violento, feito pra nos deixar mal. E sendo um estupro é um lembrete: casamentos como os que aconteceram com a Daenerys são malignos, o que é algo que é o senso comum da nossa sociedade (embora essas coisas aconteçam). Como foi um casamento de natureza maligna, a primeira noite deve ser maligna, para reforçar essa moral. A cena não foi sobre Drogo quebrando as expectativas de Daenerys, a cena não foi sobre a Daenerys em nenhum momento, afinal ela vai se apaixonar por Drogo e nunca mencionar ou parecer ser afetada pela maneira como passou sua primeira noite. A cena foi sobre a série confirmando os horrores do casamento arranjado.

E essa falta de sincronia moral com os valores de nossa sociedade era o que eles sentiam que tinha que ser corrigido na série pra ela ter um final digno. O final da série estava menos preocupado em manter Westeros sendo Westeros, e mais preocupado em julgar.

Em mostrar que a conquista pela força é maligna.

Que a monarquia é um absurdo.

Que pilhar navios é uma prática que tem que acabar.

E usa simbologia do século XX pra ilustrar isso, como as claras rimas com fascismo quando Daenerys conquista Westeros.

Agora vamos lá. Weiss e Benioff terem críticas ao feudalismo e passarem a série inteira debochando e estranhando o feudalismo de uma maneira que o Martin não fez não é o problema em si. Eles mostrarem que essas coisas erradas são erradas não é ruim, pelo amor de Deus. Pois afinal, toda série é uma série sobre o presente. 100% dos filmes que saírem esse ano vão ser sobre os anos 2020. E não só isso inclui os de época, como especialmente vale pros de época. Um cineasta ou o showrunner olha pro passado para pensar no presente.

Ano passado a A24 lançou dois filmes que adaptaram histórias clássicas medievais sobre como o homem que é seduzido pela pompa dos títulos de nobreza, mas é desinteressados em suas responsabilidades e significado, se tornam tiranos…. isso não é uma reflexão sobre como se pensava política em outro século, isso é uma reflexão sobre a política do presente.

E na moral dava para fazer uma excelente de adaptação de A Song of Ice and Fire, pautada em justamente explorar o quão patéticos e zoados os mundos de fantasia se tornam, quando eles seguem sendo modelados aos moldes medievais. E sobre como não existe dragão, magia ou espada lendária que torna viver no mundo medieval algo daora. Super dava para fazer Game of Thrones nesses termos e ser ótimo.

Afinal quantas vezes eu já não insisti aqui de que tem que acabar o cânon? uma adaptação pode, e muitas vezes deve, usar o material original só como base narrativa para se explorar outras ideias, mensagens, morais e críticas. Então eu não vou falar que a série é ruim, pois os autores tinham um julgamento moral pesado demais com Westeros.

Mas deve-se saber o que se está fazendo.

O meu texto mais lido aqui do Dentro da Chaminé, é um em que eu, inclusive, critiquei o renomado mangá Fullmetal Alchemist, por não julgar propriamente o fascismo contido na construção de mundo da obra. E como isso me gera um certo desconforto relendo o mangá no presente, mesmo não tendo gerado no passado. E no próprio texto eu menciono A Song of Ice and Fire, e como o meu distanciamento com a era medieval e o feudalismo me faz ter reações diferentes das que eu tenho com o fascismo, e como é uma coisa que bate em mim diferente dentro da obra. E isso é minha visão pessoal, muitas pessoas podem achar a não compatibilidade moral com os personagens de Game of Thrones pior que com Fullmetal Alchemist. Isso é tudo pessoal.

Enfim. Muita gente veio discordar do meu texto de Fullmetal Alchemist. Alguns levantando excelentes pontos. E um deles é justamente no quão difícil é cobrar de alguns dos personagens, que abertamente peçam por alternativas e levantem resistência contra um sistema que foi naturalizado na vida da sociedade deles por séculos. E que os pensamentos políticos aos quais eu tenho acesso como leitor não existiam ali in-universe. E eu concordo parcialmente com esse argumento. Acho que tem uma ou outra exceção ali, mas acho que esse argumento fala a verdade e abrange uma quantidade significativa de personagens.

E é justamente isso que é estranho ver em Game of Thrones. Eles se esforçarem para ter personagens servindo de representantes da audiência, fazendo comentários sarcásticos sobre o plot, que vem de uma visão moderna daquelas relações. Uma visão que esses personagens obviamente não teriam. Olenna Tyrell satiriza o quão bagunçados ficarão os parentescos da família depois que ela casa seus dois netos com Lannisters, como se esse tipo de politicagem não fosse comum aos olhos dela.

E especialmente com Bronn rindo do nome de Dickon. Claramente um senso de humor moderno. É o oposto de imersão, os personagens vieram a nossa perspectiva para se julgar com um distanciamento do próprio mundo que eles não poderiam ter.

Mas o centro de tudo é que eu não sinto que tinha uma ideia real por trás da desconstrução da desconstrução. Nem que tinha algo que Weiss e Benioff queriam reforçar com suas constantes alfinetadas ao mundo de Westeros. O Martin sabia o que ele estava criando, e ele sabia o efeito que ele queria que a noção moral e ética dos livros teriam nos leitores. Ele sabia que ele ia trazer simpatia para assassino. Ele sabia que ia mexer com nossas noções de quem admiramos e quem não.

A série eu sinto que tinha menos controle. E que tinha um foco maior em só deixar o mundo menos digno, do que em usar isso para passar uma mensagem consistente. E por isso Daenerys parecer uma ditadora nazista não soou coerente com o personagem, pois pareceu uma crítica que veio do nada e não o payoff de anos de jornada. Não parecia que tinha uma ideia real por trás da jornada de Daenerys.

Uma crítica comum ao final é que as decisões de alguns personagens não faziam sentido. Uma das mais comentadas é a decisão de Grey Worm de não vingar Daenerys. Isso ocorre, porque justamente, nos livros, pela neutralidade moral do Martin que escreve sem julgar, os personagens podem a qualquer momento fazer o certo ou o errado, e o mais importante é que o que eles façam seja consistente com quem eles são e o que eles acreditam. E os personagens têm todos bases muito sólidas de quem eles são. Mas na série, apesar dos personagens terem sido introduzidos com personalidades muito sólidas, ao final a decisão deles priorizava um final pacífico e ético, a uma consistência com os valores pessoais deles. Eles fizeram o que o mundo precisava que fosse feito pra melhorar, mas eles não fizeram algo que fariam.

Por isso Jaime voltou atrás em toda sua evolução enquanto ser humano para poder ser devidamente punido por ser um incestuoso. Pois a decisão dele precisava ser uma que o colocava onde ele merecia estar, por ordem do roteirista. E os personagens perderam o poder de agência e de serem tomadores de decisões que marcou a maioria deles na primeira metade da série. E a confusão completa nas decisões, que ocorrem por culpa da série é algo que a série tira sarro também.

E tudo isso culmina no que? No Drogon queimando o trono de ferro no final. Destruindo completamente o símbolo máximo do que é a sociedade de Westeros em si, mas com nenhum fã conseguindo desenhar muito bem qual é o simbolismo ali. Por que o trono foi destruído? Que mensagem isso passou. O objeto de cena mais icônico da série inteira foi destruído e ninguém soube ler o acontecimento.

Talvez a ideia fosse só essa. Só destruir Westeros. Sem significar nada a mais. Somente mostrar o dedo do meio pro trono de ferro. Eu acho que eles queriam fazer isso desde o primeiro episódio.

Mas eu acho que se eles queriam antagonizar Westeros em si, eles precisavam de mais.

Esse foi meu texto, e se você gosta dos textos do Dentro da Chaminé, quero convidá-los a se tornarem apoiadores do blog e ajudarem a financiá-lo. Eu toco esse blog sozinho, e ele demanda bastante trabalho, e além de todo apoio ser bem-vindo, isso realmente me ajuda a poder priorizar o foco que eu dou a esse site. Esse blog possui uma campanha de financiamento coletivo no apoia.se, onde você pode apoiar com qualquer valor que achar justo. Ou se não quiser fazer um comprometimento mensal, você pode fazer uma doação de qualquer valor pelo pix, na chave franciscoizzo@gmail.com, que terá minha igual gratidão e te colocará na lista de agradecimentos.

Esse texto é dedicado aos que já são apoiadores e são os verdadeiros heróis do Dentro da Chaminé. Então quero dedicar esse espaço para agradecer a Alberto Nunes , Lucas Lima Gabriel Almeida, Maria Cavalcante, Gabriel Lemos, Guilherme Magalhães, Darlan Lima, Ruan do Nascimento e Valter Vidigal. E eu agradeço, pois essa ajuda significa o mundo para mim.

E a todos vocês, vejo vocês no próximo texto. E olha, espero que Winds of Winter saia eventualmente, pois eu gosto de falar desse universo, adoraria ter mais material para análisar, mas não tenho a menor vontade de ir ver essa prequel flopada aí que lançaram, a House of Dragons.

Sobre o autor

Izzombie

Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

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Izzombie

Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

Alertas

  • – Todos os posts desse blog contém SPOILERS de seus respectivos assuntos, sem exceção. Leia com medo de perder toda a experiência.
  • – Todos os textos desse blog contém palavras de baixo calão, independente da obra analisada ser ou não ao público infantil. Mesmo ao analisar uma obra pra crianças a analise ainda é destinada para adultos e pode tocar e temas como sexo e violência.

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