Roteiro vazado de Powerpuff Girls Live Action – Não é o que a franquia precisa, mas é o que ela merece.

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Vamos começar esse texto com uma história boa.

Estava eu de boa, passeando pelas redes sociais e de repente me aparecem três prints que soltaram de um suposto roteiro vazado do primeiro episódio dessa série Live-Action das Powerpuff Girls que estão fazendo. Com diálogos envolvendo ameaça de vazamento de nudes na brincadeira, a Bubbles (Lindinha) falando pro pai que queria ser uma piranha que nem a Baby de Dirty Dancing (não vi o filme, não sei se o julgamento da Bubbles confere), a Buttercup (Docinho) dando seis orgasmos para uma aleatória que ela achou no bar, e uma menção casual ao fato da Blossom (Florzinha) ter matado o Mojo (Macaco Louco) no passado.

O tweet original foi deletado, mas o bagulho se espalhou.

Ou seja: uma catástrofe que circulou pelas redes sociais. Todo mundo riu e depois pediu pra passar detergente nos olhos para poder “desler” a atrocidade.

Mas era tão tosco, tão ruim, tão mal feito, que na moral era fácil olhar e falar “não, estão de sacanagem, alguém do 4Chan escreveu isso para zoar, não é possível esse ser o roteiro.”, em especial quando surgiu um quarto print fazendo referência ao Harambe. Aí não dá, tem que ser fake.

Então os produtores pediram para apagarem os tweets e tirar do ar.

E eu tava ali “mas espera aí, isso não prova que essa bomba é realmente o roteiro de verdade. Eles podem estar só querendo minimizar o constrangimento.”

Aí anunciaram que o primeiro episódio ia atrasar para sair, pois reescreveriam o roteiro para deixar menos brega com base na reação online.

Fodeu! Confissão na cara dura. Era tudo verdade! O remake ia ser isso mesmo, um overload de referências a memes, personagens infantis em suas versões adultas, transantes e violentas que falam da maneira que um Baby Boomer pensa que uma pessoa de 20 anos fala.

E eu que tava ali só rindo dos prints, contemplando o fato de que aquilo não só era real, como aquela versão não iria mais ao ar, pois seria alterada por conta do feedback negativo, vi nisso então um documento histórico importante do que poderia ir ao ar se não fossem as críticas. Na hora peguei o PDF do roteiro e li de cabo a rabo.

E agora quero falar sobre o que eu li.

Então, inaugurando agora a minha primeira “análise de roteiro vazado”, eu quero falar um pouco sobre quais são as nossas expectativas para esse live-action da CW, sobre porque esses prints foram mal-recebidos, sobre qual é a proposta dessa série da CW e sobre o estado das Powerpuff Girls enquanto franquia.

Pois a verdade é: eu não achei esse roteiro o fim do mundo não, após ler ele inteiro. Já vi muita coisa pior acontecer com as Powerpuff Girls, mas eu não sei se a CW está vendendo essa série pro público certo. Nem se a CW sabe o que eles têm em mãos. O roteiro que eu li, na minha visão, faria mais sentido em outro espaço para outro público.

Então vamos começar falando sobre o roteiro.

O Piloto:

O episódio piloto da série que no roteiro se chamava The Powerpuff Girls, mas no IMDB se chama Powerpuff, foi escrito pela vencedora do Oscar de melhor roteiro (por Juno), Diablo Cody, e pela roteirista de dois episódios da série que sabota todas minhas tentativas de fazer ego-search (iZombie), Heather Regnier.

O roteiro é um roteiro do que é muito claramente uma série de comédia, o que é estranho, pois as 60 páginas de material divididos em seis atos sugerem que vai ser uma série de episódios longos. Já fui ensinado muitas vezes a fazer de cabeça a conta de que uma página deve estimar aproximadamente um minuto de cena, que vai funcionar 90% das vezes, e ter uma margem de erro nas outras 10%.

E bem, não existe série com episódios de 60 minutos na televisão, pois com o espaço pros comerciais as séries de uma hora acabam ficando com 44 minutos de episódio. Que é onde eu acho que essa série está mirando…Será que vai ser um episódio duplo por ser o piloto? Mesmo assim, a conta não fecha bem. De qualquer jeito, muito longo para uma série de comédia que por tradição dificilmente passa de 22 minutos um episódio, mas vamos que vamos, não sou eu que produzo ou que vou questionar isso.

A história do piloto, e portanto da série, reimagina as meninas como meninas em uma relação abusiva com seu pai, o professor Drake Utonium, que no roteiro é referido pelos personagens e pelas descrições de cena exclusivamente pelo nome “Drake”, que é um nome que não existia na série original, mas depois eu conto de onde esse nome saiu. Voltando ao ponto, o professor criou as meninas e administrou a carreira delas como super-heroínas, em moldes que parodiam a maneira como os pais de celebridades mirins exploram os próprios filhos. Ele podava qualquer tentativa das meninas de mudarem os traços mais reconhecíveis de suas personas públicas, exigia que elas fizessem aparições midiáticas, e administrava uma exploração pesada da imagem das filhas como heroínas que incluía venda de bonequinhos e liberação de direitos para um desenho animado…

que é o desenho que a gente assistiu na infância. Aqui ele é descrito como uma versão higienizada das aventuras que elas viviam, que omitia o abuso e os traumas e, especialmente, que fez white-washing nas personagens. E que foi lançado como uma maneira de capitalizar em cima das meninas.

E conforme as meninas foram crescendo, essa atitude do Professor Utonium foi entrando em conflito com a tentativa das meninas de se descobrir, e de formar uma identidade com o passar da adolescência. Isso tudo culmina quando na adolescência, por culpa da exposição midiática que elas recebiam, Blossom comete um erro e mata o arqui-inimigo delas, Mojo (que aqui é um ser humano, não um macaco), e numa mistura de pânico, culpa e raiva do pai, ela foge de casa. O que marca o fim das Powerpuff Girls enquanto time.

Enfim, isso tudo é o prólogo.

A história começa quando elas estão prestes a fazer 25 anos. E portanto, prestes a poder legalmente sacar o dinheiro da venda de imagem delas que é delas por direito. E para isso elas voltam pra Townsville por um único fim de semana só para poderem fazer essa formalidade legal e nunca mais pisar nessa cidade pelo resto da vida.

Blossom (novamente, a Florzinha) agora é uma acadêmica, doutora, que mora com o namorado e que faz muita terapia pra lidar com o quão merda foi a sua infância. E que passou uns dez anos interagindo com as irmãs o mínimo possível.

Bubbles (novamente, a Lindinha) é uma celebridade do passado tentando crescer em Hollywood que vive completamente de capitalizar no seu status de ex-criança-celebridade. E que está filmando um documentário de si mesma. Sendo acompanhada por um cameraman em toda cena.

E Buttercup (novamente, a Docinho) é uma bombeira. E um meio termo entre as duas irmãs, tendo um rancor imenso da vida de criança-celebridade que viveu, mas muito confortável com seus poderes, e tentando ser uma heroína de uma maneira mais discreta… e também é lésbica, assim como no headcannon de 70% do fandom que já imaginou ela adulta (20% fizeram headcannon dela como homem trans, e os 10% que faltam shipparam ela com algum garoto de outro desenho).

Pois bem, mas o que elas não sabem é que quem está se planejando pro retorno delas à cidade é o prefeito de Townsville, Jojo. O filho de Mojo.

é sério, eles pegaram o macaco Mojo Jojo e dividiram em dois humanos, o pai chama Mojo e o filho chama Jojo. E o filho tem um macaco de estimação, uma crush na Blossom, e o sentimento de que ele não é um prefeito popular pois sofre de racismo reverso. Isso aconteceu.

Enfim, as Powerpuff Girls tiveram seu combate aos monstros criminalizado quando Blossom matou Mojo. E agora Jojo acredita que se ele provar que elas continuam sendo uma ameaça à sociedade, ele pode faturar sua reeleição.

Por isso ele contrata Henrietta, uma menininha que assassinou os próprios pais e constrói taturanas robóticas que entram no cérebro das pessoas pra controlá-las. E ela decide que ia controlar as Powerpuff Girls.

Enfim, o professor tenta manipular elas a voltarem a serem heroínas agora que elas voltaram pra cidade, elas tentam não morder a isca, mas mordem mesmo assim, pois percebem que existe uma conspiração de controle de mente na cidade, descobrem que o professor torrou todo o dinheiro delas com investimentos fracassados, as taturanas do mal infectam o professor, elas salvam o dia, inocentando o próprio pai. E o episódio termina com elas decidindo voltar a morar em Townsville. E com Jojo fingindo que fez as pazes com as meninas, mas planejando novas sabotagens.

Esse roteiro é bom? Nossa, não, nem de longe. Mas eu, como fã de longa data da franquia, não me incomodei com esse roteiro não. Ele é… complicado. Mas vamos lá.

O arco de personagem das três meninas é o mesmo. Elas tem que querer ser heroínas nos próprios termos. A Blossom tem que parar de fugir da vida de heroína, pois é isso que ela é, e é algo no qual ela é boa e que faz a diferença no mundo. Mas a Bubbles tem que parar de achar que o que elas fizeram na infância foi algo além de exploração e canalhice e que ser heroína é algo que não tem nada a ver com o que o professor fez com elas. E a Buttercup já tava com o coração no lugar certo desde o começo, o arco dela foi essencialmente dar seis orgasmos pra Macy e convencer as irmãs de que ela estava certa. Por isso o episódio é pra convencer elas a voltarem a ser as powerpuff girls.

O arco é esse. E ter um arco não significa que a série é séria. Como o Judd Apatow fala pra mim na propaganda do Master Class antes de qualquer vídeo do Youtube que eu tento ver, um bom roteiro de comédia precisa ser um que se você remover todas as piadas continua funcionando como um roteiro de drama. Ou seja, as piadas têm que girar em torno de uma história com conflitos e personagens e arcos normais.

O humor da série, por outro lado, mira em vários pontos.

Temos o deliberado contraste de vermos as meninas em suas versões +18, xingando, falando de sexo, indo pra cadeia e não sendo nem um pouco fofas da maneira como lembramos delas. Essa justaposição gera humor.

A outra fonte de humor são as constantes piadas de metalinguagem, em que, ao satirizar a maneira como o professor tratou elas como uma franquia e não como filhas, a série satiriza a maneira como o Cartoon Network explorou a franquia delas de forma completamente imbecil por anos. Culminando no reboot de 2016 que ganhou texto aqui assim que estreou. Apontar os paralelos entre a situação da franquia e um pai abusivo gera humor pra quem conhece os bastidores das séries.

Outra fonte de humor são as referências, a analogia com Dirty Dancing, um comentário sobre o Harambe, uma zoeira que não zoou muito bem o Elon Musk e a running gag de que pra convencer a Blossom a fazer algo com as irmãs, as irmãs precisam cantar Breakaway da Kelly Clarkson.

E as piadinhas normais de série de humor. Personagens sendo hipócritas, sendo provados errados no instante em que falam algo, comentando algo nada a ver, ou mesmo o bom e velho slapstick cartunesco. Temos de tudo.

Tem tipos variados de piada, mas no fim a maioia pende pra referências meta, referências à cultura pop, ou contrastar as protagonistas de um desenho infantil com sexo e violência.

E aí você pensa “pô, nada a ver fazer isso. É personagem de criança, ninguém vai rir de ver elas falando fuck, bitch e life is one big hate boner (foda, puta e ‘a vida é um grande tesão-de-ódio.’ respectivamente), ninguém ri disso. É desenho infantil.”

Mas já existiu uma época em que fazer isso era muito legal e popular. E as pessoas rachavam o bico de pegar um personagem infantil célebre de poucas décadas atrás e recolocá-los em um contexto incrivelmente inapropriado…

No [Adult Swim], lá nos primórdios do canal.

Quando o [Adult Swim] estreou ele se estabeleceu justamente por pegar personagens lembrados dos anos 1960/1970, e colocá-los em um contexto completamente diferente e vulgar e vê-los reagir. Space Ghost Coast to Coast foi ainda um teste de limites, então só tentava ser estranho apesar das piadinhas de sexo aqui e ali, mas em Harvey Birdman Attorney At Law foi exatamente essa a ideia por trás das piadas. E depois tivemos The Brak Show, Sealab 2021 e eventualmente Venture Bros. Todos desenhos que buscavam contrastar a nostalgia da Hanna-Barbera e do senso de infância que os personagens tinham com uma extrema vulgaridade, pra tirar humor dessa justaposição.

Eram desenhos que usavam sua nostalgia como chamariz, mas eles não estavam ali pra alimentar sua nostalgia, estavam ali pra desafiá-la. Para fazer o Boo Boo (Catatau) ser um terrorista anti-corporações. O Quick Draw McGraw (Pepe Legal) ser um defensor do armamentismo. E fazer o Grape Ape (João Grandão) usar anabolizante. Era pra chacoalhar a imagem bonita desses personagens para fazer comentários. E essa era a força desse tipo de programação.

E essa justaposição está visível nesse roteiro do piloto que vazou. E está mais explícito que nunca quando Bubbles ia falar um palavrão, até lembrar que ela não pode falar palavrão em público por conta de sua imagem e se corrigir. Elas xingam pois sabem que uma Powerpuff Girl não pode xingar. E essa dicotomia é a base da história desse piloto.

Ou seja, a ideia desse piloto é uma ideia que estaria muito em seu lugar no [Adult Swim] e até faria sentido, pois, se o Cartoon Network é a casa de The Powerpuff Girls, então o [Adult Swim] seria a casa do tio creepy e estranho delas. É tudo família. Mas a CW não é de fazer esse tipo de paródia e deboche. A CW é mais… como dizer?

vamos falar da CW?

CW:

A CW (cuja sigla é uma junção das duas empresas que se juntaram pra formar o casal: CBS e WarnerMedia) é o quinto canal mais assistido dos Estados Unidos e um dos maiores produtores de séries da atualidade. E as séries da CW são famosas por serem séries de drama adolescente com personagens descolados, onde jovens soltam tiradas cômicas enquanto intercalam uma aventura com triângulos amorosos e problemas de jovens. Na pegada de Buffy, the Vampire Slayer. Os exemplos mais famosos da atualidade do que eu estou falando seriam Veronica Mars, Supermatural, Riverdale e todas as adaptações live-action de heróis da DC. No passado tivemos Smallville, que entra no pacote das séries live-action da DC mas veio antes dos crossovers com o Arrowverse.

Séries da CW costumam ter uma trama que se estende, tem vários subplots rolando, plot-twist atrás de plot-twist, e um senso de que os personagens têm muito a perder quando chegam no season finale. Mas aí você entra no reddit pra ver o debate e é uma quantidade imensa de fã brigando por conta de shipping. Pois o lado novelão sempre é o que mantém seu público fiel.

Essas séries são descontraídas, bem-humoradas, e todo mundo ali sempre tem uma resposta espertalhona pra tudo, mas elas são primariamente dramas. E o foco primário é nos fardos emocionais que esses personagens sofrem.

Mas eu estou aqui insistindo que esse roteiro de Powerpuff Girls é uma comédia… isso significa que vai quebrar a norma?

Não! Não significa!

Isso significa que um roteiro é um material incompleto. Ele não é feito pra ser lido por quem não é da equipe da série. Pois ele não é uma obra pronta. Muito do tom da CW vai vir de todo o resto da produção que vai deixar bem mais claro o gênero.

Por exemplo, no roteiro o tempo todo, o tempo todo, as situações supostamente dramáticas ou sérias são subitamente cortadas com uma piada que te lembra que aquilo é idiota. O vilão do episódio (e presumo que da série inteira), Jojo, é o mestre disso de ter qualquer senso de perigo que ele passe cortado pelo fato de que ele é um personagem cômico e que não passa senso de ameaça, tipo um vilão dos Muppets.

Mas eu não sei como isso vai se traduzir quando o diretor dirigir o episódio. E na direção, na fotografia, no pacing, na arte, muito do tom será dado, e talvez o tom dele fique menos comicamente estúpido do que ficou na minha cabeça.

Eu não sei que cenas do roteiro seriam cortadas do corte final do episódio (isso caso o roteiro não fosse mudado), o produto pronto ia ter a cara do produto pronto. E eles podiam deixar com mais cara de drama.

Mas pra mim eu juro, o roteiro é humor. E mais que humor. Um humor cartunesco, a série não disfarça suas origens na animação.

Digo, as tentativas deles de manter o rastro-tricolor de quando as três voam ao mesmo tempo no formato live-action, isso só pode existir pra ficar engraçado, não é uma estética que fica legal fora da animação. É uma série com um tom de galhofa. A descrição do céu perfeito ensolarado de Townsville soa tão artificial que é claro que o tom deve ser irônico.

E mesmo as mais descontraídas da CW, como The Flash ou iZombie, não realmente funcionam no sentido da galhofa. Eles se levam a sério internamente.

Mas dito isso, o roteiro claramente tem as sementinhas da CW ali. Obviamente foi construído um shipping do Jojo com a Blossom, vai existir todo um subplot do professor voltando ou não com a ex-esposa que é a Srta Bellum, porque foda-se, e vemos que claramente foi construído esse arco dos personagens reverem seu relacionamento.

Então a situação está na real 50/50. Metade parece um show do começo do [Adult Swim] querendo deliberadamente enfiar sexo na sua infância em busca de humor, e desconstruir as bases de desenhos de 30 anos atrás. E a outra metade parece encaminhada para ser a série típica da CW só que com mais humor.

Mas eu acho que a distribuição muda agora. Pois a reação ao roteiro foi péssima, todo mundo debochou pra caralho do quão estúpido, brega e campy era a situação inteira. E a CW declarou que vai reescrever pra ficar menos campy, e mais realista.

artigo completo:
https://tvweb.com/powerpuff-girls-live-action-reboot-reshoots/

E é esse “realista” que me pega. Essa palavra não encaixa bem.

Pois o piloto que eu li não é realista. Claro, ele explora um setting de “isso não é o desenho, é o mundo real” com as garotas putas com o pai, e tem seus shippings, mas assim, é The Powerpuff Girls. O conflito do episódio envolve uma taturana robô tentando e falhando em entrar em ouvidos. E isso é bom, o lado campy do roteiro era onde estava na minha opinião o seu maior apelo, pois é o que permitia não levarmos aquilo muito a sério e vermos como o deboche que é. Os personagens mesmo pareciam ter dificuldade em levar as coisas que eles ouviam a sério.

Se for realista, aí vai virar The Flash. Aí vai virar Riverdale, e aí sim vai entrar no território em que a Blossom flagrar a Buttercup na cama com uma aleatória fica estranho.

E eu fico com receio de que esse realismo meio que dilua o aspecto mais interessante: a metalinguagem em relação à história da franquia, que é um tema não só interessante de se trabalhar na Era do Reboot, mas especialmente interessante de se trabalhar com as Powerpuff Girls mais do que com qualquer outra série do Cartoon Network dos anos 1990.

The Powerpuff Girls enquanto uma franquia:

Powerpuff Girls sempre foi o desenho de onde o Cartoon Network mais se esforçou pra tirar cada centavo que conseguisse da fonte de dinheiro. Ordenhar essa vaca até o limite máximo. E o único que se compara a isso é Ben 10, nenhum outro teve uma relação tão forte com o próprio apelo comercial.

Mas apesar de ser uma série muito fácil de vender, ela não é tão fácil assim de entender. Não por ser cabeça nem densa, pelo contrário, é ridículo de tão simples de se acompanhar um episódio. Mas é difícil de entender, porque o que o Cartoon Network queria vender não era o que seu autor Craig McCracken, um dos maiores mestres da animação de seu tempo (e seu tempo ainda é agora, vão assistir Kid Cosmic na Netflix), estava fazendo.

The Powerpuff Girls era fortemente vendida como uma franquia de menininhas, que vendia boneca, estojo cor-de-rosa, mochila cor-de-rosa, e cuja publicidade esbanjava o estereótipo de feminilidade que se esperava de uma menininha dos anos 1990.

Mas a série era uma série de comédia e paródia que não tinha um público-alvo feminino. Que zombava com muita galhofa do gênero super-herói, com heroínas com idades ridiculamente baixas (a gente esquece, mas elas são pré-escolares na série original, a ideia é que elas tenham por volta de 5 anos. A escola delas tinha hora da soneca), um arqui-inimigo cujo estilo de fala era uma paródia do quão repetitivas e redundantes eram as dublagens de anime, e que não perdia a chance de cagar completamente em cima de um gênero estabelecido de heroísmo só pela zoeira.

Mais do que uma série divertida, Powerpuff Girls era uma série da zoeira extrema. Sejamos sinceros, o desenho original era um enorme shitposting. E que como tudo o que rolava na época da Renascença, testava muito os limites do que eles podiam pôr ou não no ar. Com um episódio dedicado só às garotas aprendendo a complexidade e os diferentes usos da palavra fuck (que no episódio é devidamente bipada, mas não fica a menor dúvida de quais são as palavras sendo ditas); com um personagem sendo literalmente o Satanás em uma versão que zomba da binaridade de gênero; com os socos delas arrancando dente e sangue dos vilões; com aquele episódio em que elas surram o palhaço injustamente e a gente fica pensando “mas o quê?”… a série não era exatamente feita de Açúcar, Tempero e Todas as Coisas Boas.

E essa tava na abertura de todo episódio.

A gente agora acha um absurdo ver elas adultas falando de sexo em uma série. Mas porra, na série original quando o professor tá se arrumando pra um date e as meninas tão ajudando, tem um momento da Buttercup colocando camisinhas no bolso do professor. E ela tá certa. Se ele fizer uma quarta irmã sem poderes vai deixar tudo meio estranho na dinâmica familiar, muita inveja viria dos poderes.

E tem um episódio que consiste só em metáforas de sexo sobre a Srta Bellum fazer favores sexuais pro Prefeito.

O desenho era um desenho onde imperava o vale tudo. E não só pra episódio fazendo piadinha de sexo ou de palavrão. Mas pra episódio que experimentava mesmo, tem um episódio completamente musical sobre priorizar a liberdade individual acima da segurança, que foi feito pra criticar o Ato Patriota da Era Bush e é famoso por ser o episódio censurado, que teve sua exibição proibida nos EUA. Tem um episódio em que 80% dos diálogos são letras de músicas dos Beatles. Tem episódios em que o estilo de arte muda de acordo com qual menina está sendo a perspectiva do episódio. Ou um episódio em que elas são linchadas por uma cidade realista onde o estilo delas de combate ao crime não funciona. A série permitia espaço pra todo tipo de episódio.

E tinha muito episódio que zoava, especialmente, elas mesmas.

O icônico episódio em que elas estão presas em casa por causa da chuva, e decidem que vão brincar de Powerpuff Girls, e na brincadeira ninguém quer ser a Bubbles, e a Bubbles chora que njnguém quer ser a Bubbles. Ou o episódio em que elas questionam por que tem um cachorro falante em Townsville. Elas também permitiam uma auto-zoeira.

Inclusive uma coisa que elas avacalharam duas vezes foi a própria relação com a sua venda de produtos. Eles têm dois episódios críticos à maneira como a série se sustentava em uma venda de produtos canalha.

Um em que um colecionador de bonecos sequestra as meninas, pois quer ter as originais em sua coleção de tanto que é colecionador.

E um em que um cientista maligno rouba Elemento X pra fazer versões picaretas das meninas e vender pra outros países, fazendo um exército particularmente perturbador de meninas deformadas.

Que era o que o Craig McCracken sentia que faziam com a série dele, com o foco tão desproporcional que a série recebia em venda de produtos em comparação a desenhos como Dexter’s Lab e Cow and Chicken.

Essa raiva do criador culminou no filme das Powerpuff Girls, que foi essencialmente um Zack Snyder’s Powerpuff Girls. O autor fez a história deliberadamente mais sombria, mais violenta e mais pesada do que ele costumava fazer na série pois ele queria fazer uma separação radical da série do tom de rosa que os produtos da série vendiam. E Snyderzou completamente, só ver como o filme ficou escuro.

Enfim. Por isso que quando eu falo que as adaptações não entendem que a série era um espírito livre, caótico, aberto a experimentalismos, e principalmente de deboche, que parodiava tudo a torto e a direito e estava sempre do lado da zoeira com outros gêneros, é porque eu sempre sinto que quem queria adaptar a série queria adaptar a sua linha de produtos. Não queria o shitposting, não queria o deboche, não queria ir pra um lado sombrio e violento, queria adaptar o cor de rosa.

Porque nessas toalhas não tem deboche nem nada. E é isso aqui que o pessoal do reboot curtiu.

Quando saiu aquele anime de Garota Mágica, o Demashita Powerpuff Girls Z, o anime estava sendo exatamente aquilo que PPG estava tirando sarro. Era um anime de Garota Mágica levado a sério, em que garotas combatem monstros e super-vilões como num anime normal. Não era um deboche da galhofa clara que existe no absurdo de fazer uma garota enfrentar um kaiju. Era isso feito com sinceridade. E bem, o anime não teve uma boa recepção no Japão, o mangá foi cancelado em 2 volumes, e o anime deu mais certo se exportando pro exterior do que em audiência dos japoneses mesmo.

Aí vem você leitor falar “mas o anime era mó legal”, mas se você acha isso é irrelevante, ele não achou um bom público. E eu acho que isso tem a ver com ele querer ser justamente o que PPG nunca quis ser.

Aí depois tivemos aquele curta CGI com o Ringo Starr que foi mega estranho, era feio, e a história era uma merda. E não parecia uma série de humor, parecia somente uma história ruim.

E por último veio o péssimo reboot de 2016, que até apelou pro humor, mas era um bagulho fora do tom, e demasiadamente substitutivo. No sentido de que ele queria criar os próprios elementos pra substituir os elementos da série original pra permitir que os bonequinhos vendessem mais. Então fizeram poderes novos alinhados à linha de brinquedo. Inventaram uma quarta irmã pra URSURPAR o LUGAR DE DIREITO da Bunny como quarta menina.

Quem a Bliss acha que é pra usar roxo? O roxo é da Bunny, usa qualquer outra cor aí, sua nojenta! Enfim, diferente da Bunny e da Bullet, a Bliss foi uma completa jogada de Marketing pra vender produtos, como tudo nesse reboot foi. O reboot queria repaginar a brand das personagens pra vender mais e vender melhor.

Nem Bunny nem Bullet tiveram pelúcia.

E essa falta de sinceridade em não pegar as personagens pra se divertir e fazer uma enorme palhaçada com tudo o que super-heroísmo tem de absurdo e imbecil, e em vez disso tentar deixar elas mais palatáveis e serem mais próximas do que elas zombam, pra vender melhor, é a marca de toda adaptação delas.

E eu falo. The Powerpuff Girls, tem muito mais em comum com um Teen Titans Go da vida do que tem em comum com o anime ou o reboot.

O maior azar da série e a maior sorte da série foi ela ter sido incrivelmente eficaz como venda de produtos. Permitiu o alcance gigantesco da série original, mas colocou a série original na sombra de algo que ela lutou pra não ser.

E aí eu leio esse roteiro da CW, zombando explicitamente desse aspecto da vida delas. E fazendo as personagens tentando não ser um produto comercializável e se libertar de um pai que tratou elas como franquia mais do que como filhas. E eu sinto que esse roteiro está mais em sintonia com a série original que qualquer outro desses reboots.

Ah, mas no roteiro ali falou que a Bubbles já usou drogas.” sim, e se drogas fossem um tema menos arriscado nos anos 1990, eu não acho que essa seja uma piada que nunca daria as caras na série original.

Digo, elas tem um episódio sobre como os doces do prefeito deixavam elas felizes, mas também deixavam elas viciadas e agressivas.

Eu acho que essa proposta do live-action tem mais em comum com a série original do que qualquer outro reboot que a série já teve. Justamente por isso, porque brinca com o que é impróprio, está completamente desinteressado na sua nostalgia, quer fazer a justaposição constante entre o adorável e o problemático, e essa era a alma da série.

Esse piloto descartado também me pareceu um reboot inclusivo, ou seja, o oposto do reboot substitutivo que eu acusei o reboot de 2016 de ser. Em vez de procurar elementos para cortar fora, ele procura elementos das outras séries para agregar a si. Um exemplo é que eu mencionei, o professor vai se chamar Drake Utonium. E a série que deu a ele o nome de Drake foi o anime japonês. A história do Mojo ser o ex-assistente do professor vem do flashback original dele na série. E o plot delas sendo criminalizadas pela cidade vem do filme. Temos as outras meninas usando o sopro gelado, originalmente exclusivo da Blossom, que nem vimos no curta do Ringo. Então, é, eles tentaram olhar pra coisa de todas as encarnações e brincar com todas as encarnações.

 

Aì você vem e fala: “Mas o original era a coisa mais acalentadora do mundo e agora querem deixar tudo que era fofo dark. Isso é coisa de fã da DC. Me deixa ter minhas fofura terna.”, e o original constantemente era sobre como elas perdiam rápido a noção da violência e se tornavam abusivas com as pessoas por pouca coisa.

Porra, lembra quando elas invadiram a prisão para espancar o Mojo Jojo pra poder roubar as balas dele? Aquilo foi pesado. E impróprio. E a série queria isso, queria colocar uma menininha de 5 anos sendo incrivelmente imprópria e violenta.

Foi até ele chorar.

Tipo não é um episódio ou outro, tem uma tonelada de episódios delas tendo que lembrar que elas não podem espancar inocentes sem motivo só porque elas querem muito. Acalentador é o que elas são nos livros de colorir. Não na série.

Na série elas espancaram o palhaço.

Aí você vem e me fala: “Mas no original o professor não é um pai abusivo.”, sim, mas assim, tem um motivo pelo qual elas chamam ele de Drake mais que de professor, marcando ele como o único personagem que não é chamado pelo mesmo nome que era no desenho. Para falar sobre como a franquia foi explorada pelo seu guardião (O Cartoon Network), as personagens obviamente seriam exploradas pelo seu guardião.

E eu não acho isso um defeito. Pois eu não acho que o objetivo dessa série é em nenhum momento recuperar o aspecto da dinâmica familiar do desenho original. Eu acho que o objetivo é resgatar o aspecto mais satírico mesmo.

E também tem que acabar o cânon! No caso o professor foi a única vítima. Mas fidelidade à caracterização é um conceito de relevância relativa à proposta da série. Especialmente uma releitura que quer mostrar uma outra abordagem, a nova abordagem envolve remodelar um personagem. Essa série obviamente não é cânon! Ela não tem que se restringir ao cânon!

O chefe do Birdman não era abusivo que nem o chefe do Harvey Birdman, essa era parte da piada. Assim como as fadas de Maleficient são muito mais burras e escrotas que elas são no filme Sleeping Beauty, pois esse é o ponto.

Enfim.

Conclusão:

Na real, eu estou defendendo aqui, mas esse roteiro não é bom não! Pois a história não é boa! E vamos ser sinceros, eu defendi aqui falando “é comédia”, “é humor” e “não é pra ser levado a sério”, e entendendo que humor é relativo, eu admito que não achei realmente engraçado não. Eu só reconheci que são piadas, mas elas não são boas piadas, tem umas bem merda.

Mas eu acho que esse roteiro está com o coração no lugar certo. E ele entende o que realmente era The Powerpuff Girls, não era um desenho fofo e acalentador pra reforçar valores como amizade-entre-irmãs, família, amor. Era uma paródia ácida, sobre os absurdos do vigilantismo em crianças. Que fazia piada de sexo, de violência, e que abertamente debochava de super-heróis. Eu repito, o desenho original era um gigantesco festival de shitposting. E o problema era que os reboots levavam a sério e tentavam reproduzir o que elas faziam sem a galhofa.

E isso já torna ela mais digna de existir que o reboot de 2016, mas eu arrisco dizer que a premissa da série é, mais que qualquer coisa, uma resposta ao reboot de 2016.

Pode não ser a melhor coisa pra se fazer com as personagens agora. Mas é o que a franquia merece. Ser uma paródia de sua própria situação como a segunda animação da renascença que mais foi prostituída (a primeira é Spongebob Squarepants). E se, desde a série original, até nos vídeos paródias da internet a gente debochava de como o próximo passo era envelhecer elas, pois era a demanda que faltava. A gente zoava e zoava que só faltava envelhecer elas. Pois bem, agora que liberaram a série que envelheceu elas, é nesse formato que tem que vir, como uma autossátira. Com uma família disfuncional fingindo ser funcional na frente do público pra poder continuar vendendo brinquedos de si mesmos.

E acho que esse rumo, essa breguice, essa distorção do personagem do professor, isso tudo é a resposta natural e a resposta digna pra ideia dessa série ter sido encomendada em primeiro lugar.

Os defeitos do roteiro são que ela usa referências especialmente ruins (Harambe? Em 2021?), o plot do episódio em si é bem bosta. E as piadas são bem bosta. E, principalmente, que tem um espectro nele que é o legado da CW, que indicam que isso vai ser uma série com subplots de dramalhão romântico, e as últimas cenas indicam construções de arcos que podem afastar a série da enorme paródia de si mesma que o roteiro apresentou.

Mas ser brega, campy, vergonha alheia, ou…. É cringe que a galera tosca está falando? Enfim, nada disso é o defeito do roteiro, pelo contrário. E corrigir isso que vai estragar tudo.

A CW prometeu deixar tudo mais realista.

Mas não sei se a série devia apostar no realismo.

O defeito da série não é nos lembrar que as meninas têm vida sexual. O defeito vai ser que a reação a esse vazamento vai fazer a CW soltar a mão da galhofa. 

E sem galhofa, isso aí vai virar outro Smallville.

E esse roteiro acabou se tornando a reação perfeita ao fenômeno que a franquia Powerpuff Girls se tornou ao longo de 23 anos. E uma tentativa de parodiar a si mesmas. E isso não tem nada a ver com a CW. Talvez tenha sido completamente acidental (o mais provável), ou talvez tenham encontrado uma brecha pra zoar os chefes. Não importa mais, pois não vingou..

Eu não sei qual vai ser a mudança real que a CW vai fazer no roteiro, mas eu tenho certeza de que não vai ser nas partes ruins de verdade. Na parte que realmente tava tosco. Vai ser no que ficou estranho, desconfortável, e over-the-top.

E pra mim isso vai resultar em um gigantesco efeito-Sonic. Em que pra fins de comparação todo mundo que se revoltou com esse script vai ver o episódio reformulado. Vai pensar “É, não foi tão ruim assim.” e a série vai se consolidar entre um fandom que vai se envolver demais no shipping do Jojo com a Blossom. E vai ser só mais um reboot, aquém do que poderia ser. Se tornando exatamente aquilo que poderia estar satirizando.

A real mudança por mim era: resume essa história aí pra ser metade disso, faz só o subplot do Drake torrando o dinheiro das meninas em merda e deixa as taturanas-robô pro episódio seguinte. Fazendo isso ser curto, então manda esse roteiro aí pro [Adult Swim]! E pronto! Sucesso!

Porque não é que a Buttercup falando sobre não se depilar não tem espaço nesse mundo. Não tem espaço na CW, no mundo de Riverdale e Charmed, onde isso tem outro tom. Mas definitivamente tem seu espaço. Mas isso é muito “e se…”, a verdade é que queimaram essa largada já. Esse roteiro já foi usado pra acender a lareira de algum engravatado por ali. Ele não existe mais. E sei lá como que vai vir o episódio de verdade. Mas vai vir pior.

Mas como a CW já tá com as garras nas Powerpuff Girls… Será que ainda dá tempo de fazer exatamente isso, só que com o Ben 10? Eu deixo essa dica aqui pro pessoal do [Adult Swim]. Um desenho do Ben 10 adulto, lidando com a infância e adolescência de celebridade infantil explorada, como um paralelo à maneira como o Cartoon Network fez mil reboots do personagem pra nunca interromper a venda dos bonequinhos. Ele xinga, ele bebe, e ele é o BoJack Horseman. Mas ainda sendo o Ben 10…

Eu assistiria.

Sobre o autor

Izzombie

Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

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Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

Alertas

  • – Todos os posts desse blog contém SPOILERS de seus respectivos assuntos, sem exceção. Leia com medo de perder toda a experiência.
  • – Todos os textos desse blog contém palavras de baixo calão, independente da obra analisada ser ou não ao público infantil. Mesmo ao analisar uma obra pra crianças a analise ainda é destinada para adultos e pode tocar e temas como sexo e violência.

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