I Care a Lot – Como os valores trumpistas se escondem em um filme.

I

Meus amigos. Se eu ganhasse um real cada vez que eu vejo um filme que aparenta ser uma crítica ácida e precisa contra algo que realmente precisa ser criticado, mas, na verdade, é um filme que debaixo de sua maquiagem, passa uma mensagem conservadora que já é perigosa e se torna mais perigosa ainda em tempos pós-entrada-de-Donald-Trump-na-política por dialogar com debates intensos que rolam nos EUA na época que o filme estreou, e que contam com uma atriz de grande carisma no papel principal, promovendo o filme inteiro em seu starppower, e possuem o Peter Dinklage no filme por algum motivo e acaba faturando um globo de ouro na temporada de prêmios… eu teria dois reais.

O que não é muito, é só estranho que tenha acontecido duas vezes… acho que eu compraria um Twix bem pequeno.

Enfim. A primeira vez, foi Three Billboards Outside of Ebbing Misouri e não ganhou o próprio texto nesse blog, embora eu cutuque sempre que posso, pois fico indignado, pois sinto que esse filme chegou realmente perto de faturar um Oscar.

I Care a Lot não corre esse risco, pois não está indicado a nada, mas eu quis escrever esse texto justamente, porque eu fico cabreiro com o quão fácil é para filmes surpreendentemente conservadores se esconderem entre filmes de mensagens relevantes.

Um filme sobre passar um pano do tamanho do mundo pro Ratzinger. Parece que está nos mostrando que o Papa Francisco é daora e o futuro, mas só mostra que pela conexão com a igreja ele tem muito mais em comum com os outros papas do que ele tem em comum conosco.

Não só filmes trumpistas necessariamente. Pois o pensamento conservador e perigoso é muito maior do que a imagem do Trump, e os artistas são incrivelmente autoconscientes. Eles sabem o que é que eles não podem dizer diretamente, pois apesar do país ter conservador pra cacete, Hollywood é um antro de democratas, e pra esse perfil de branco rico progressista e democrata, você só pode ser reacionário se colocar a maquiagem certa no seu filme. E os cineastas sabem bem passar essa maquiagem, que confunde o espectador acostumado a ver tudo pelo valor da primeira camada somente.

Você quer falar que a Marvel faz propaganda militar e eles na hora reclamam “Ah é? Então por que o filme Winter Soldier faz críticas aos militares?” Porque é exatamente isso, um comentário, de preferência um bem explícito no texto e verbalizado com todas as palavras, blinda o espectador da ideia de que o subtexto do filme jamais faria uma defesa da mesma exata instituição. A impressão de que tá batendo em dois lados, quando tá claramente promovendo um.

Nesse texto eu quero pegar de exemplo o filme da Netflix I Care a Lot, que deu a Rosamund Pike um globo de ouro de melhor atriz de comédia ou musical, e mais que apontar um enorme dedo pra esse filme e acusá-lo de ser trumpista, pois honestamente, eu acho que esse filme é insignificante, eu quero usá-lo como exemplo, para apontar as maneiras como os valores trumpistas podem se infiltrar em uma narrativa não-intuitivamente conservadora. E como perceber os valores que os filmes reforçam pra nós.

Pois todo filme é politico. Isso já está estabelecido.

E outra coisa a ser estabelecida, embora, não necessariamente pra esse filme que se passa no presente, mas todo filme é sobre o presente também. Todo filme de época que sair esse ano vai ser sobre o ano 2021 e como vemos o passado sob o prisma do presente atual. Como já debatido na última vez que eu peguei um filme Trumpista vencedor do globo de ouro aqui pra analisar

Então recapitulemos o filme:

I Care a Lot conta a história de Marla Grayson. Uma mulher cruel e imoral, que acusa idosos de serem incapazes de tomar conta de si mesmos para se tornar guardiã legal deles, e vender suas posses para pegar o dinheiro, largando-os na negligência imensa que são as casas de repouso onde eles perdem o contato com os filhos e o mundo exterior.

A primeira coisa que Marla sempre faz é remover o celular de suas vítimas.

Um dia Marla pega uma vítima errada. O que ela achava que era uma mulher muito rica e sem família que fez uma fortuna trabalhando honestamente, uma vez nas garras de Marla se revela uma pessoa com quem ela não devia ter metido. A senhora era a mãe de Roman Lunyov, um mafioso russo cruel e brutal que persegue Marla e a ameaça de todas as formas até ele ter a sua mãe de volta aos bons tratos.

O que se inicia então é um grande jogo entre Marla e Roman em que um tenta estar um passo a frente do outro, para que Marla pegue ele antes dele pegá-la e consiga no processo drenar a mãe de Roman de cada centavo que a velha tiver.

A princípio isso parece uma grande crítica ao quão abusivo e negligente é o tratamento das supostas instituições de acolhimento com a população idosa em que as casas de repouso mais parecem prisões feitas pra removê-los do mundo. E I Care a Lot não seria o primeiro filme a falar sobre isso. posso citar Cloud Atlas para dar um exemplo fácil na ponta da língua porque eu gosto do filme, pois não é o mais memorável do filme. E tem também o A Cure of Wellness que não é um filme bom nem famoso, mas é um filme que eu já vi que fez a mesma crítica.

E pela semelhança no tratamento e estrutura dos dois tipos de instituição, filmes que critiquem abusos contra idosos em casa de repouso sempre rimam muito com filmes de crítica a asilos e aos maus tratos de pessoas sob tratamento psiquiátrico, com o mais famoso deles sendo One Flew Over the Cucko’s Nest, e acho que o cinema tem o poder real de nos poder fazer pensar nesses problemas reais, pois esse tipo de instituição fica muito longe do nosso olhar e é fácil esquecer que isso rola.

E a crítica é precisa, o filme expõe bem o número alto de pessoas na burocracia que permitam que Marla faça as atrocidades que ela faz por um pedaço da torta e quantos graus de cumplicidade de pessoas tratando idosos como uma fonte de renda sem direitos humanos são necessários pra fazer a máquina funcionar. Então a crítica está lá, e ela é uma crítica importante sobre um mal discreto e escondido na nossa sociedade que é muito operante.

Mas quais são os valores do filme? O filme é em seu cerne sobre o trato dos idosos? Certamente que não, uma vez que os idosos são retratados como vítimas indefesas, mas nenhum deles é tratado como um personagem de verdade, exceto a mãe de Roman. O crime contra os idosos é o crime selecionado para dar contexto à batalha entre Marla e Roman que é o que importa.

E aqui vem a primeira coisa que temos que ver para entender os valores de um filme, que é:

O que os personagens têm em comum?
E o que eles tem de diferente?

Caracterização nos filmes se dá por contraste. Ou seja, os atributos importantes para repararmos em um personagem só se mostram importante ou na presença de outro personagem notável por não tê-los, que permite observarmos então na presença ou ausência desse atributo a diferença entre esses dois personagens. Ou então na presença de outro personagem com o mesmo atributo, o que permite que esse atributo seja a cola que une dois personagens diferentes.

Se todos os personagens do filme fossem idealistas, ou se idealismo não fosse algo mencionável, então o idealismo de Luke Skywalker não seria uma característica relevante de sua caracterização. Ela se torna notável por ser um dos fatores que o distinguem de Han Solo, um cínico com quem Luke é contrastado em vários momentos

Então por exemplo. A Marla está constantemente fumando um vaporizador. Isso não diz muita coisa sobre ela que não seja estética. Uma marca de um grupo social, mas nada que passe muito quais são os valores do filme ou que torne a caracterização dela positiva ou negativa sem contexto. E no caso nenhum outro personagem é um anti-fumante, ou um fumante tradicional ou um fumante de vaporizador para dar contexto e significado pra essas cenas. Esse aspecto é a mera estética de Marla, que passa uma imagem para ela, mas se é positivo ou negativo, é subjetivo do espectador, mas o filme não diz nada.

Por outro lado, vocês lembram de The Shape of Water, de como a menina transando com o peixão é uma cena poética e bonita em que parece que eles estão dançando, mas o vilão do filme transando com sua esposa é super feia parece um animal sem amor fazendo sexo? Pois é, contrastar sexo bonito e sexo feio para diferenciar boas pessoas de más pessoas é algo que o cinema faz muito. E diferenciar bom cigarro de mal cigarro. E diferenciar jogo ético de jogo injusto. Mas isso só funciona se tem dois personagens moralmente diferentes, fazendo o mesmo ato de maneira diferente.

Vejamos assim, temos Marla e Roman os dois lideram organizações criminosas complexas de enriquecer com base no sofrimento alheio, são pessoas desprovidas de qualquer empatia por quem eles não vejam como seus entes queridos mais próximos, e estão dispostos a cometer qualquer tipo de crime por dinheiro.

Essa semelhança é importante, pois marca o filme sem um lado certo, é uma batalha de mal vs mal, e os dois são muito claramente malignos, cujo único ponto de redenção ser a capacidade de amar as pessoas mais próximas deles, o que como os dois têm, é irrelevante pra desempatar quem é mais mal. Os dois são pessoas igualmente asquerosas, e o final do filme deixa isso claro.

Mas o perfil de maldade que eles praticam é diferente. Roman é um mafioso tradicional, ele falsifica documentos e usa laranjas pra esconder seus crimes. Faz os subordinados sujarem as mãos por ele, e quando alguém fica em seu caminho ele segue a progressão, primeiro suborna, se não aceitar suborno quebra as duas pernas e mata um contato próximo, se a pessoa continuar resistindo, ele mata e faz parecer um acidente.

Ou seja, coisa normal.

Marla porém é outro tipo de maquinação. Aquela que é protegida pela lei. Marla usa do fato de que todos os papéis dela estão sempre em ordem, e de que todas as instituições que ela está usando são legais, e de que todo o abuso que ela comete são os direitos legais dela, que passam batido, pois as autoridades simplesmente são cegas e desinteressadas em relação aos abusos que os idosos sofrem. Ou seja, tecnicamente, exceto por mentir em corte, Marla não realmente cometeu nenhum crime. Ela só preda em uma população vulnerável, rouba seus pertences sem seu consenso e os abandona pra morrer antes que eles possam tomar providências. Em um sistema quebrado que deu um jeito de fazer nada disso ser ilegal.

O embate entre Marla e Roman é o embate entre o vilão do passado e o vilão moderno. Um homem podre que está vendo na sua frente uma maneira de cometer vilania que não é como se fazia na época dele.

E agora, isso é importante. Então como eu falei lá em cima, os velhinhos não importam de verdade pra narrativa, eles são só um exemplo que o filme deu pra mostrar um perfil de criminoso. O do criminoso legalizado, que simplesmente tem uma papelada e um carimbo do juiz autorizando todos os abusos e roubos que ele fez. E o filme denuncia esse tipo de vilão moderno contrastando ele o filme inteiro com um vilão clássico, e mostrando como Marla não perde pra Roman em nada, e triunfa sobre ele no final.

Agora já que o filme usou o abuso dos idosos como mero exemplo pra nos mostrar quem é a vilã moderna totalmente legalizada. Temos que ver: mas afinal, quem é a vilã moderna totalmente legalizada?

Quem é a vilã moderna totalmente legalizada? Ou seja: o que é que o filme quer te mostrar?

Um dos primeiros aspectos que vemos sobre Marla é o de que ela é uma feminista. No começo do filme, após vencer um processo em que o filho de uma paciente a processou por agir contra os interesses da mãe, o filho em questão com raiva dela vomita um discurso misógino pra ela.

Ela responde o discurso afirmando que na verdade esse filho irado só estava com raiva de ser perdido pra uma mulher, e que toda a raiva que ele sente dela não é nada além de machismo. Isso quando ela está deliberadamente mantendo a mãe dele prisioneira.

Também, a maneira como Marla dá bastante foco na diferença de genitais na hora de explicar diferença de gêneros, faz com que seja fácil associá-la ao feminismo radical. Uma das vertentes do feminismo mais fáceis de usar para fazer espantalho.

E Marla faz isso ao longo do filme inteiro, em que ela rebate as críticas que ela recebe quanto a sua ética e quando a ser uma pilantra, expondo o machismo implícito de seu interlocutor, desarmando-o, transformando tudo em uma questão de gênero.

Vilãs feministas que distraem a atenção de seus crimes, nos lembrando de que elas são mulheres tentando triunfar em um mundo patriarcal, não são novidade. Mas como eu disse, caracterização funciona por contraste. Quando Femme Fatale tentou fazer um discurso feminista pra colocar as Powerpuff Girls do lado dela e contra o prefeito da cidade, as demais mulheres da cidade ensinaram teoria feminista pra que elas entendessem onde está a falácia do discurso de Femme Fatale sem negar a opressão que de fato existe.

A comparação do feminismo das Powerpuff Girls com o da Femme Fatale tinha em comum que todas elas reconheciam a existência de uma desigualdade entre gêneros e de uma figura patriarcal negativa. Porém elas se distinguiam, porque uma tentou tirar vantagem do discurso pra praticar o mal, enquanto as meninas lutaram por igualdade e pra defender as demais mulheres de Femme Fatale que também atacava mulheres. Ou seja, a Femme Fatale foi retratada como a portadora de um uso interesseiro do feminismo, porque existia a figura do uso não interesseiro, usado pelas Powerpuff Girls, e pelas mulheres que inspiraram elas.

Aqui o discurso de Marla é isolado, nenhum outro personagem aponta qualquer tipo de desigualdade de gênero ou se identifica como feminista. Todas as outras mulheres do filme trabalham para Marla e são parte do abuso de idosos, e de toda a exploração legal pela riqueza e são imorais. A única mulher que não trabalha pra Marla é a mãe de Roman, que não fala nada sobre relações de gênero, mas usa um palavrão notório pela sua conotação misógina para descrever Marla.

Embora eu não saiba as nuances da variação estadunidense da língua inglesa para saber se a conotação misógina segue existindo quando é uma mulher falando com outra mulher, está além do meu repertório cultural.

Enfim. Todas as vezes que Marla usa um discurso feminista ela está mentindo, e se posando de vítima para deliberadamente buscar impunidade e essa é o único modelo de feminismo que o filme retrata e é uma parte essencial do modus operandi da vilania moderna completamente legalizada.

E além de ser feminista, Marla é lésbica, seu braço-direito do crime é sua namorada Fran que é sua cúmplice em todo o esquema.

A história de vilanização de personagens lésbicas em Hollywood também é uma história velha. Com um pé grande na homofobia, como não tem como não ter, mas que também dialoga muito com a noção de que vilãs lésbicas são assustadoras. Pois uma mulher invadindo o espaço de um homem é assustadora.

Lésbicas não eram exatamente omitidas das narrativas hollywoodianas da mesma maneira que os gays eram. Enquanto muitos vilões hollywoodianos considerados gays, foram na verdade o uso do queer-coding, em que deram ao vilão traços lidos pela audiência como gay sem tocar no assunto, as vilãs lésbicas ou bis, geralmente tem sua sexualidade não ambígua, ela gosta de mulheres sexualmente, e isso e parte do texto da obra. Vampiras lésbicas vilanizam filmes B desde muito tempo e elas serem lésbicas nunca foi omitido. E isso dá a ela uma intimidação forte na audiência masculina. Pois o subtexto que esses filmes querem passar pra essa vilã é o de que ela rouba a sua mulher, ela te emascula. Ela rivaliza o homem naquilo que ele se orgulha.

É que nem o uso excessivo de polvo no erotismo japonês… se um polvo não te intimida você não tem noção do calibre do desastre, que esses seres inteligentíssimos, bem camuflados e flexíveis podem fazer. Um dia esses bichão vão ficar um tiquinho ó mais inteligentes do que já são, e aí não vai ser planeta dos macacos não, vai ser planeta dos polvos. E nada prova mais isso, do que os homens de uma cultura que enfrenta esses bichos diariamente por alimentação ter tido uma fixação desde muito tempo, de que esses bichos queriam roubar as mulheres deles. Pois o homem, e por consequência as sociedades patriarcais se sentem intimidados por tudo o que pode roubar as suas mulheres.

Como aliens. O homem em suas histórias escreve os inimigos da humanidade como aqueles que vão roubar nossas mulheres.

Enfim, deixando a brincadeira de lado e falando sério agora. Graças ao código Hays, que proibia uso com conotação positiva de personagens LGBTs, por muito tempo esse tipo de personagem era o único tipo de lésbica ou mulher bi que aparecia na tela grande, porém mesmo depois que o código Hays acabou, personagens icônicas como Pussy Galore e Catherine Tramell são duas personagens icônicas na cultura pop por reforçarem exatamente essa noção. A da mulher que usa do fato dela seduzir mulheres como uma maneira de intimidar os homens ao ocupar seus espaços de suposta dominância.

Marla Grayson não exatamente entrava nesse aspecto. Ela emascula os homens com seu discurso feminista, não com sua sexualidade. Eu não acho que ela representa esse tipo de lésbica maligna, mas ela rima de leve com esse aspecto e com essa simbologia, especialmente porque Marla e sua namorada Fran são as duas únicas personagens lgbt do elenco inteiro.

Eu acho que ela ser lésbica no filme dá um ar de modernidade, pois existe uma visão, adotada pelos boomers de que na época deles eles não viam minorias ocupando espaço, e ver pessoas que ocupam espaços poderem orgulhosamente pertencer a uma minoria, soa moderno e diferente. Claro que tinha muita gente lgbt nos tempos antigos que precisava viver sem nunca mencionar sua sexualidade, justamente para conseguir ocupar espaços, mas na percepção dessas pessoas, é como se não existisse.

Então é uma marca da modernidade. Assim como seu vaporizador, que como eu disse acima não é nem bom nem mal, por não ter contraste, mas é moderno. Ela fuma de uma maneira que só se popularizou faz menos de 5 anos. Ela está vivendo o presente, ela não parece com nada que os boomers estão acostumados a ver. E essa é a marca dela. Ser uma minoria moderna.

E não se enganem, todas as minorias do filme são cúmplices de Marla e parte fundamental de seu plano maquiavélico. E o time da Marla é cheio de minorias. De uma mulher médica que não é nada que chame a atenção da audiência até Marla apontar como o advogado de Roman presumiu que o médico seria um homem. Para Marla que é uma mulher lésbica, a sua namorada Fran uma mulher latina, a um juiz negro que não ficou claro que ele era só cúmplice de Marla ou incompetente demais para fazer o próprio trabalho, mas é claro que o único personagem negro no filme é um juiz cujos vereditos são todos a grande antítese do conceito de justiça.

O lado de Roman não tem nada disso. Nenhuma diversidade, são todos homens, todos brancos, todos russos, e eu presumo que todos héteros, mas isso eu não posso provar. A única exceção é o próprio Roman, que é anão.

E isso é parte do contraste, o mal velho é um bando de homem branco de terno, que vem de um país que já não é mais vilão de filme tem 30 anos, e praticam o mal tradicional. E a vilã moderna totalmente legalizada, são uma equipe muito diversa, de pessoas descoladas, que exploram pautas para triunfar e que aprenderam a cometer roubo escancarado dentro dos limites legais.

E a superioridade da Vilã Moderna Totalmente Legalizada é provada no final quando Marla não só vence. Ela vence do jeito moderno. Ela não mata Roman da maneira que Roman mataria ela, pois ela não é Roman. Ela absorve o Roman, como a Disney faz com seus rivais. Ela e Roman montam juntos um esquema legal que possa foder os idosos do país inteiro e fazer bilhões as custas deles. Roman é seduzido pelos métodos de Marla e se moderniza, causando a paz entre os dois.

I Care a Lot é um alerta para nos ficar estarmos mais atentos ao real mal, que é o mal moderno, o mal que conta com o apoio da lei pra não poder ser combatido em corte. Quando a gente se faz a pergunta de “que tipo de pessoa o filme quer nos mostrar”, o filme não quer nos avisar que a Mafia Russa existe, o filme quer nos mostrar que pessoas como Marla existe.

E qualquer um com percepção básica de realidade sabe que sim, isso é um mal a ser combatido. Que instituições legais, das mais diversas formas, destroem vidas por riquezas e se safam, pois estavam em seus direitos legais. Isso vale pra algumas casas de repouso, assim como também para instituições manicomiais e principalmente pra prisões. E essas críticas são necessárias, e o filme sabe que são. Por isso surfa nessa percepção.

Mas sabem, nada disso é novidade, isso tudo tá rolando já tem muitas e muitas décadas. Mas Marla é pintada com uma modernidade para que associemos esse tipo de mal a uma modernidade que assusta o conservador, e que vem lado a lado com as minorias ocupando seus espaços. E tem muita coisa que assusta os conservadores nesse filme. Que está nos seus valores.

Por exemplo, ainda falamos sobre contrastes. Nesse filme temos dois personagens importantes que amam muito sua mãe. Roman e Feldstrom, do qual vou falar daqui a pouco. Mas Marla odeia sua mãe. E Marla não levantaria um dedo pra salvar a vida de sua mãe, pois ela a odeia. O fato de Marla ganhar a vida destruindo e separando famílias, é colocado lado a lado com Marla não ter conexão nenhuma com a própria. E isso marca família como um dos valores do filme, pois é um valor que é carregado pelos inimigos de sua vilã, e a o valor que a vilã do filme não consegue ter.

Conservadores, se assustam com pessoas que ameaçam destruir a família. Conservadores se assustam com pessoas que não valorizam família, e Marla Grayson é uma inimiga dos valores familiares. 

Mas assim. Marla é do mal, Roman é do mal, e estamos aqui vendo suas características como características que descrevem o mal. Mas não tem ninguém bom nesse filme, não? Eu acabei de mencionar esse Feldstrom não, como um cara que ama a mãe, não mencionei?

Então vamos falar dele.

O personagem “bom”:

A coisa mais próxima de um personagem bom no filme é Feldstrom. Filho de uma vítima de Marla que é usado no começo do filme pra nos ilustrar seus métodos e sua maldade. Marla prendeu a mãe de Feldstrom, vendeu todas suas posses, apossou-se do dinheiro, e a abandonou pra morrer, fazendo o filho assistir impotente sua mãe ser predada e morta por falta de cuidados.

Se ele é uma vítima clara de Marla, porque eu disse que ele é o mais próximo de ser um personagem bom? Bom, primeiramente por que ele é misógino, mas em uma análise mais central, é porque o personagem é construído inteiramente em torno de estereótipos trumpistas. Em especial porque o personagem veste um nada discreto e intensamente ressignificado nos últimos 4 anos, boné vermelho. O símbolo máximo dos eleitores de Donald Trump. Embora não seja o boné de Trump, bonés vermelhos tiveram sua existência completamente repaginada nos Estados Unidos, que nem a camisa da CBF no Brasil.

Em sua primeira aparição, Feldstrom dá um barraco violento em uma casa de repouso, exigindo ver a mãe quando os protocolos não permitiam. Depois ele abriu um processo questionando que nenhum profissional tinha o direito de dizer o que era um tratamento adequado pra sua mãe, e que isso era abuso. E por último, ele saca uma arma e mata Marla no meio da rua a luz do dia.

Sua personalidade indignada e agressiva contra protocolos, e conselhos médicos, infelizmente vieram em um timing ruim, pois embora o filme tenha começado a ser produzido antes da pandemia, é impossível ver ele comprando a briga de que o estado não pode obrigar a mãe dele a cuidar de sua saúde, e não fazer a rima. Pois bem, esse tipo de personalidade no filme é retratado como a reação de uma vítima.

Feldstrom, é uma vítima de Marla, e portando, é uma vítima da Vilã Moderna Totalmente Legalizada, e portanto é uma vítima das instituições que são suas cúmplices. Ele é uma vítima do judiciário, ele é uma vítima do hospital, e ele é uma vítima do feminismo de Marla, pois ela emascula ele com seu discurso empoderador como maneira de cantar vantagem de ter destruído a vida dele.

E quando vemos ele matar Marla no meio da rua, isso é enquadrado como carma, justiça, e as ações dela voltando até ela. Os russos não conseguiram vencer Marla, mas Feldstrom vingou sua mãe.

Enfim, o que faz nós não considerarmos Feldstrom um personagem bom são os insultos misóginos que ele joga pra Marla. Mas o filme estabeleceu uma relação de poder pra esses insultos, do acuado insultando o intocável, o que dilui o insulto. Pois Feldstrom era inofensivo e Marla invencível. E isso enquadra Feldstrom como alguém com nossa simpatia. Isso é reforçado na cena da morte, em que Marta leva um tiro enquanto menospreza a presença de Feldstrom.

E o filme enquadra um homem de boné vermelho, puxando uma arma a luz do dia para matar uma mulher, como um ato de justiça do homem oprimido contra o poder das instituições legais.

E nossa…. Que coisa feia.

Enfim, histórias em que nenhum dos lados é o lado do bem, e que a gente lida com gente podre enfrentando gente podre, nos passa a falsa impressão de que o filme está falando mal de todo mundo. E isso não é verdade.

Pois além de claras escalas de maldade diferentes apresentadas. O filme também manipula a sua simpatia, ele manipula quem merece ser atacado e quem não merece. Feldstrom mereceu ter tido sua mãe morta? Roman mereceu ter tido sua mãe sequestrada e torturada? Marla mereceu que Roman a colocasse em um carro e jogasse do abismo? Só uma dessas situações vem acompanhada de um sentimento de carma e retribuição que agrada os espectadores.

E os filmes sabem usar isso.

Marla é a personagem central do filme. O filme serve para expor ela, mostra que gente como ela existe, como um alerta ao espectador. E também serve para que nos sintamos bem vendo ela pagar pelo que fez.

Mas os russos não são capazes de fazê-la pagar, eles estão datados e desatualizados. Quem pode fazê-la pagar, é o homem agressivo de boné vermelho que anda armado.

E esse é o ponto do filme.

Conclusão:

I Care a Lot, não parece um filme sobre o mesmo sentimento de humilhação e emasculação de uma certa parcela da população estadunidense que geraram os seguidores lunáticos de Donald Trump… mas vamos ser sinceros, que filme parece?

É fácil nos iludirmos de que como a Academia é predominantemente democrata, que filmes Trumpistas não existem, e que os filmes que vão ser usados para estudar o que foi a Era Trump vão ser no geral: críticas ao Trump. É confortável pensar isso. Mas os filmes trumpistas se escondem.

The Greatest Showman se escondeu bem em 2017. Three Billboards Outside Ebbing Misouri não é trumpista. É só anti-black-lives-matter. Mas se escondeu também. Esses filmes passam batido, pois no fundo nós confiamos, de que os valores que permitiram que o mundo ficasse maluco não vão ser expostos de maneira casual e discreta em um filme normal. Mas todo filme é político, e esses sentimentos existem. Eles existem em uma parcela da população grande o suficiente para poder fazer o mundo se surpreender com a estupidez americana, mas nem todo mundo ali é estúpido, e muitos sabem moldar seus discursos em algo palatável.

E a gente tem que abrir o olho e prestar atenção nessas coisas. Porque assim, filmes são feitos de valores de seus autores passando pra audiência, mas se a audiência não se interessa em pensar nesses valores antes, e presume que se o filme agradou, então ele reforça os seus valores, sem questionar o que o filme está dizendo. Então é ali que eles te pegam. E não deixar nos distrairmos e virarmos esponjas para uns filmes doido é uma das missões desse blog.

Uma que eu espero não ter que escrever outro texto em breve. Estou de olho no Globo de Ouro do ano que vem. Porque é sempre ali que essas merdas brilham, depois no Oscar eles são peixe pequeno em meio a candidatos melhores.

Sobre o autor

Izzombie

Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

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Alertas

  • – Todos os posts desse blog contém SPOILERS de seus respectivos assuntos, sem exceção. Leia com medo de perder toda a experiência.
  • – Todos os textos desse blog contém palavras de baixo calão, independente da obra analisada ser ou não ao público infantil. Mesmo ao analisar uma obra pra crianças a analise ainda é destinada para adultos e pode tocar e temas como sexo e violência.

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