Dissecando a “Desconstrução do Canalha” na Animação Adulta.

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Olá, vocês estão bem? Eu não estou. Digo, não vamos ser super-dramáticos, pois todos nós passamos por 2020, um ano que foi marcado por desgraças que não foram embora em 2021, e tem muita gente com problema de verdade em meio a uma pandemia em um planeta tomado pelo neofascismo. Eu estou na verdade muito bem nos limites do quão dá para ficar bem e ser bem informado ao mesmo tempo. Mas ainda sim estou me reservando o direito de ficar bem chateado pois cancelaram o meu desenho animado favorito de todos os tempos The Venture Bros.

E eu fiquei pensando muito em como homenagear The Venture Bros nesse blog. Como prestigiar o rei? Esbocei uns quinze textos, um mais fanboy que o outro. Até chegar nesse aqui, um que fala do maior legado que Venture Bros deixou, que foi ter marcado as regras e padrões do gênero que eu acredito ser o grande gênero da animação adulta atual, e é um onde Venture Bros foi pioneiro uma década antes de seu zetgeist. Quero dedicar esse texto a analisar o gênero de séries de animação adulta que eu chamo de “Desconstrução do Canalha.”

O texto de hoje vai ser para explicar esse gênero, como ele funciona, no que ele se sustenta, suas diretrizes, e porque como apesar de terem temas centrais e estilos de humor diferentes, The Venture Bro, Archer, Rick and Morty, Bojack Horseman e F is for Family, tem muito em comum e passam algumas ideias muito parecidas. Inclusive em meu primeiro texto de Bojack Horseman eu flertei um pouco com essa ideia, mas eu ainda não tinha entendido essas cinco séries em particular como parte de uma unidade temática, pelo contrário, achei erroneamente na época que Bojack rompia com algumas dessas séries que ele na verdade complementa com outra perspectiva.

Uma série de Desconstrução do Filho da Puta, é uma comédia, em meus exemplos, todas comédias animadas de animação adulta, pautadas em um protagonista que seja o mais desagradável possível. O que é por si só um grande chavão da animação adulta. Um homem central cujos defeitos sejam mais notáveis que suas qualidades, e cujos defeitos geralmente sejam: egoismo, arrogância, ganância, falta de noção, e canalhice em geral. E o humor venha da exploração deles. É assim desde os Flinstones que eram uma animação com adultos como público-alvo apesar da censura livre e de ter envelhecido com um público infantil com o passar das décadas.

Você conta nos dedos quantos desenhos para adultos se sustentam nas costas de uma pessoa com bom-senso que só queira o melhor para sua família e/ou amigos.

Pois bem, a chave é essa. Seja o Fry e o Homer em uma escala menor e fácil de empatizar, seja o Eric Cartman e o Peter Griffin em uma escala extrema em que o personagem é um monstro. Seja o filho da puta do Duckman. Uma série de animação adulta se sustenta num protagonista cuja presença na vida do restante do elenco seja algo negativo na vida deles. As vezes o resto do elenco é tão arrombado quanto o protagonista e as vezes não, mas a ideia é sempre tirar humor de canalhice, e usá-la como gatilho para desencadear o humor que rompe com as normas de “televisão bonita”, que é a marca da animação adulta.

Esse é o pilar central desse nicho da mídia. E é isso que vai ser desconstruído.

Mas antes vamos falar dessa pequena palavrinha, que eu gosto muito, mas a internet cagou tanto nessa palavra, usando como se fosse uva passa na ceia de natal, socando a palavra em tudo o que podiam. Até todo mundo ganhar raiva do uso da palavra banalizado e soando como sinônimo de “É do gênero, mas é diferente.” que fez o uso dela parecer tosco. O que não me deixa usar em vão. Vamos definir o que é uma desconstrução.

E porque metade do que é chamado de desconstrução, as vezes não é.

Eu gosto de pensar na criação da ficção da mesma maneira que os alquimistas de Fullmetal Alchemist vêm a alquimia. Ela consiste em três etapas. Compreensão, desconstrução, e reconstrução. Na compreensão a gente entende quais são as convenções de um determinado gênero ou tropo, e reproduz sabendo que funciona. Por exemplo, você está escrevendo um filme noir, Aí você introduz uma mulher sexy, misteriosa que não deixou claro de que lado ela está, para abordar o detetive e fazê-lo se envolver no mistério. Pois sabemos que elas são uma constante no gênero que ajuda a ditar o tom do filme. Você entende o tropo, e o usa da maneira adequada pois sabe que funciona.

Aí vem a desconstrução. Na desconstrução, você em vez de só reproduzir as convenções, você questiona ela. Decompõe ela para analisar cada partícula independentemente, de uma maneira que você entende melhor como cada partícula se encaixa e o que significa o encaixe delas. Porém no processo você destruiu o objeto desconstruído.

Pensem em um relógio. Se você desmonta para ver quantas engrenagens têm, e como cada engrenagem encaixa, e apreciar a complexidade desse jogo de engrenagens, no processo, você não vai poder ver as horas com essas engrenagens todas em cima de uma toalhinha. Esse estudo das engrenagens impede que o relógio atue como um relógio.

O que isso significa na prática, aplicando isso ao conceito de storytelling? Significa alterar a maneira como um clichê ou convenção se apresenta de maneira diferente. Igual o suficiente para ser reconhecido, mas diferente o suficiente para subverter a sua expectativa, E no processo ele quebra o gênero.

Game of Thrones certamente é uma fantasia medieval em todos os sentidos da palavra. Mas ele certamente não atende as expectativas do que uma pessoa quer ler, quando eles pensam “porra, caia bem agora ver uma série de fantasia medieval.”.

Isso muitas vezes é interpretado como “deixar mais realista”, mas não necessariamente. Colocar consequências da vida real para dar uma rasteira em convenções é uma maneira de desconstruir, mas não é a única.

Por exemplo, o Kyubey. Ele pode logo na sua aparição, pela sua aparência e por estar dentro de um anime de garotas mágicas, ser identificado como o arquétipo claro dos mascotezinhos de animes, iguais o Kero de Sakura Card Captors. Porém sua personalidade inemotiva combinada com a natureza sinistra dos contratos de garotas mágicas, tornam ele um análogo do diabo em uma história faustiana. E essa quebra de arquétipo jogou a obra para as cucuias, fez a gente perceber que aquela não era a história de garotinhas realizando o sonho de ter magia e fazer o bem, como o gênero deixa implícito. É sobre garotinhas vendendo a alma ao diabo e percebendo a merda que isso é. A gente quebrou a engrenagem do mascotezinho, e permitiu ao expectador ver o impacto que isso tem no tom do gênero inteiro. Mas no processo de dar essa compreensão ao expectador, negamos ao expectador o anime normal de garota mágica que a abertura indicou que ele poderia ver. Claro que Kyuubei não foi a única engrenagem que o anime alterou para mostrar que o relógio não vê mais as horas. A Mami em seu arquétipo de mentora, a Sayaka como a heroína idealista, e mesmo a Madoka como protagonista que deveria percorrer a jornada do herói. Sobre esse último ponto tem até texto aqui explicando essa desconstrução.

Dito isso, a desconstrução é isso. Ela mais ou menos mata o gênero. Tipo, ela não faz a obra deixar e ser parte de seu gênero, mas ela tira da sua boca o sabor que ele geralmente deixa. Neon Genesis Evangelion é certamente um anime de mecha. Mas ele não soa como um anime de mecha, ele deixou um gosto diferente na sua boca, pois os clichês não operaram da maneira que esperávamos, e isso jogou o tom da obra em outra direção. Por outro lado Scream é frequentemente chamado de desconstrução, mas justamente, ele soa como um slasher, ele subverte suas expectativas, mas ele é um slasher legítimo que passa exatamente a vibe de que ao final você viu um slasher. Isso é importante, pois é um gancho para a terceira parte.

Eles mencionarem os próprios tropes, não faz essa cena perder o impacto de cena icônica do terror no cinema.

A reconstrução, deveria em teoria ser o objetivo final do processo. Parar no processo de desconstrução, só funciona se você pretende deixar o expectador baqueado no final da obra. Sentindo que de fato ele teve uma certa vibe implícita retirada dele e substituída por uma vibe que ele não pediu (embora possa ser, e nos bons casos é, uma vibe que ele queria e apreciou). Se o ponto é devolver o gênero pro expectador no final da sua obra, então temos a reconstrução.

Na reconstrução, você devolve as engrenagens zoadas pro relógio, mas agora o relógio voltou a ver as horas quando remontado, pois você fez elas se encaixarem de maneira perfeita. O que significa que agora você tem uma noção de como esse relógio muito superior do que a que você tinha só em compreensão, pois você sabe manter ele funcionando com qualquer alteração.

Como o próprio Scream, em que apesar das subversões de gênero, não perdeu a vibe Slasher, a mudança do arquétipo da garota final virgem, do sabe-tudo vulnerável, e do namorado tentando salvar a relação. Apesar dessas engrenagens serem quebradas, elas foram substituídas por engrenagens novas e o filme se manteve na rota slasher, e mostrou o quanto o gênero se mantém funcionando com suas convenções quebradas, pois elas não estavam se quebrando de verdade, elas estavam só se atualizando. Preparando as convenções para uma nova época para serem mais atuais e menos datadas.

Em especial com como a Sidney reinventou o tropo da Final Girl.

Frozen é um bom exemplo também. A Rainha Má é na verdade a heroína, o amor verdadeiro é o amor entre irmãs, o animal falante está sendo dublado pelo seu dono. O interesse romântico é um cara rude e grosso, e o príncipe encantado não tem encanto nenhum. Apesar disso o filme inegavelmente soa como um filme de princesa Disney do começo ao fim, de dando a exata mesma vibe de um filme de princesa. Você sente ele diferente por ter subvertido clichês, mas não sente que teve a experiência de ver uma princesa Disney quebrada.

O que Scream e Frozen tem em comum? Eles chegaram em um momento em que o expectador já havia deixado de levar os gêneros a sério e que suas convenções já haviam cansado o público e se tornado motivo de chacota, e deram luz nova para o gênero ao mostrar o quanto ele se adapta em volta das convenções. Isso fortalece suas estruturas e reforça ao expectador o que é que realmente tornam esses gêneros fortes, e guiam uma nova série de sucessores.

E muitas obras começam indicando uma grande desconstrução de gênero para reconstruí-lo em seu climax, nos mostrando mil subversões, mas fazendo as peças estranhas se encaixarem bem na reta final. 20Th Century Boys faz isso muito bem.

Bom, essa é a definição da palavra que eu uso. Eu não estou citando o livro de ninguém, devem ter acadêmicos teóricos que dão outras definições para desconstrução. Mas é assim que eu uso a palavra. Não saiam por aí falando que eu dei a definição oficial que é a correta do que é desconstruir, pois eu não tenho nada de oficial, sou só um blogueiro, pensando nerdice na internet, mas enfim:

Uma volta enorme, só porque eu não quero usar a palavra desconstrução em vão. Então vamos lá o que é a desconstrução do patife?

Segundo minha definição a abordagem dele tem que nos quebrar o tom e a função que existiria antes da desconstrução. Ou seja, o protagonista patife teria que ser alterado, e sua alteração altera o tom e o sentimento de maneira que não soa mais como soava. E qual foi essa alteração do tom? As séries da desconstrução do patife, que recapitulando são The Venture Bros, Archer, Rick and Morty, Bojack Horseman e F is for Family nos apresentam uma análise de como certas personalidades se formam e perpetuam que adicionam nuance no típico protagonista de animação adulta, mas roubam de nós os conceitos de escapismo e também de perdão e redenção. Vamos começar pelo segundo.

Perdão e Redenção:

Vamos falar de Sitcons. Sitcons são o maior referencial de comédia televisiva dos EUA, e por culpa do imperialismo cultural que os EUA exportam, de boa parte do planeta. Sitcons, abreviação de Situational Comedy, costumam ser comédias pautadas em um elenco diverso de pessoas com personalidades não só diferentes, como contrastantes, que convivem uma com a outra diariamente (geralmente por motivos de serem família, mas funciona com turma de amigos, trabalho, e outras opções), e as histórias giram em torno do seu cotidiano, com episódios consistindo em um personagem propondo alguma novidade que abala a normalidade da turma, e a normalidade sendo restaurada depois de 22 minutos de risadas, e complicações.

Sitcons são séries tipicamente otimistas, em que o retorno a normalidade atingido no fim do episódio é tido como uma boa notícia. “tudo voltou ao normal, e isso é ótimo, pois o normal é ótimo”, é a mensagem implícita por trás da série. Os personagens estão felizes sendo quem eles são, pois eles são unidos e felizes juntos, e essa felicidade é o que vende a série. Por isso que família é o tema central das sitcons, pois mesmo nas que não são sobre família são sobre grupos que na prática se vêm como uma família e projetam no grupo a força de uma família para tornar a noção do grupo, belo.

Pois bem, dito isso, os personagens de Sitcon geralmente tem falhas. Que ajudam a começar o episódio. O quarteto de Seinfeld era formado por extremos narcisistas. Barney Stinson é um misógino problemático. Sheldon também, mas isso se manifesta de outra maneira. Will Smith era malandro e safado e Carlton Banks era um privilegiado otário. E Charlie Harper era o Charlie Sheen. E esses defeitos geram atritos entre os grupos, pois os personagens de sitcons estão sempre colocando as diferenças de suas personalidades em choque direto toda vez. E no fim desses conflitos, eles se perdoam.

Um dos personagens fez merda, começou um conflito, e em 22 minutos o conflito é resolvido e a merda é perdoada, pois essas pessoas se amam. E o amor redime. E desde que eles sigam sendo uma família e sigam sendo felizes um com o outro, ninguém realmente vai guardar rancor. Pois tudo bem quando acaba bem.

Esse perdão e esse amor são fundamentais pra promover o conceito fundamental da não-mudança. Que é o principio da televisão. Que quer séries que possam ser séries reprisáveis por anos, e se beneficiam dos personagens nunca mudando quem são. Então, eles precisam se perdoar e perdoar os defeitos dos demais, para enfatizar que o personagem problemático não precisa mudar. Existe todo um tropo catalogado no Tv Tropes chamado We Want Our Jerk Back, justamente sobre o clássico episódio em que o personagem desagradável tem uma mudança de coração e vira uma pessoa decente, e os demais personagens acham que ele ficou muito chato, e o corrompem pra que ele volte ao normal. Enfim. e esse formato é tão atrelado a noção de não mudar nada jamais, que o formato muitas vezes é invocado, invadindo uma história em outro formato, justamente quando quer mostrar o estado psicológico de um personagem que desesperadamente quer negar uma mudança importante em sua vida. E deseja não aceitar mudanças.

E na sitcon animada, muito mais propensa a colocar um enorme filho da puta no elenco principal, esse perdão e redenção baseado no amor e na unidade familiar se mantém. O Bender nunca vai cruzar uma linha que faça Fry e Leela cortarem laços com ele, embora alguns episódios nos mostrem que devesse. A Marge vai sempre perdoar o Homer. E os Griffin vão sempre se perdoar entre si, mesmo Peter e Lois sendo seres humanos horríveis. E isso serve para que nos sintamos bem, satisfeitos de que os problemas não duram mais que 20 minutos e os laços são mais fortes que os problemas.

E não importa o quão lixo humano o protagonista seja, isso se mantém. É como dito por Chef sobre Eric Cartman “Crianças, o Cartman é seu amigo. Vocês gostando dele ou não”.

O que acontece com os protagonistas da desconstrução do arrombado, é que eles ao mesmo tempo passam por um processo de humanização de sua personalidade, ou seja, a gente ganha uma visão clara dos traumas e dores que essas pessoas egoístas carregam e de como uma criança normal se fechou para o mundo de maneira tão cruel. E conforme somos capazes de empatizar com como eles se tornaram as pessoas horríveis que eles são, a série nos remove o poder redentor dos laços desse personagem.

Esses personagens não merecem ser amados pois eles passaram dos limites, mas como a audiência é capaz de ver que o personagem precisa de laços, mas não consegue merecê-los por sua personalidade podre e quebrada, a gente vê a tragédia dele. Vê o quão triste, é sua situação, mas também o quanto são eles mesmos que fecham as portas pra si msmos. E vemos o ciclo de toxicidade e alienação que os personagens não tem o poder de quebrar.

E através da continuidade, os laços familiares que unem esses personagens vão ficando progressivamente mais fracos com o passar as temporadas, mostrando isso como consequência natural dos abusos do protagonista.

Dr. Thaddeus “Rusty” Venture, por exemplo. Em sua infância ele foi uma criança aventureira, crescendo em ambientes hostis, sendo obrigado a testemunhar e praticar violência desde pequeno, e sofrendo com seu pai abusivo e tóxico. A infância de Rusty o quebrou de uma maneira que afetou suas habilidades sociais, e sua capacidade de funcionar na sociedade. Isso deu a ele um rancor enorme com o mundo dos super-aventureiros e com o mundo geral que ele constantemente sente que o mundo lhe deve algo para compensar os anos de trauma. Ele ganha a vida explorando a herança de seu pai morto, pois não tem a capacidade de fazer nada próprio.

Porém a apatia e rancor com o mundo de Rusty se projeta em seus filhos, que sendo filhos de um super-aventureiro, também estão tendo uma infância de bosta por conta do pai tóxico e abusivo. Então ele reproduz o mal que lhe foi causado, e por mais que tenhamos pena dele pelo que ele passou, ele se tornou parte do problema e do ciclo, e nossa simpatia está para que seus filhos escapem do ciclo que ele não escapou. A família e os laços familiares não redimem Rusty, pelo contrário são o sintoma claro do monstro que ele é. E a gente torce de verdade pra Hank e Dean conseguirem não virar o que ele virou.

Se Rusty tem rancor do mundo pela sua infância problemática. Sterling Archer aparenta compensar a péssima infância que ele teve com abandono paterno, negligência materna, violência física e traumas, vivendo uma eterna síndrome de Peter Pan, como se tentasse fazer sua vida adulta ser uma infância feliz, já que a dele não foi. Ele mostra isso tratando seu trabalho como a realização de uma fantasia infantil, se portando com extrema imaturidade e trabalhando para sua mãe, mantendo-a como centro de autoridade em sua vida. A postura de Archer no trabalho aliena seus colegas, alvos de seu bullying imaturo, e que honestamente vivem o auge de suas carreiras sempre que Archer sai de cena.

Archer e sua mãe não tem uma boa relação como adultos, eles não se dão bem um com o outro, e um tira o outro do sério. E sempre que parece que eles demonstram que no fundo eles se amam por ser família, a cena ganha um subtexto incestuoso edipiano que serve só pra nos lembrar, a conexão deles não os redime. Nenhum dos dois. E no fim do dia, ninguém está feliz de ter Archer por perto, e ele não foi perdoado pelas suas ações.

No caso de Rick Sanchez não temos uma noção clara do que quebrou sua alma e o transformou no cínico apático indiferente ao caos do universo que ele é. Mas alguma coisa foi, pois já vimos flashes do passado dele, e sabemos que ele já demonstrou alguma vulnerabilidade emocional para formar a amizade com Birdperson e Squanchy e também no nascimento de Morty. Também sabemos que a maneira como ele se fechou completamente pro mundo foi pra se proteger de seus próprios sentimentos, o que indica que ele passou por algo. O show evita dar forma e nome pros traumas de Rick, mas não esconde o fato de que ele obviamente tem traumas. E isso me manifesta na maneira como ele intensifica a toxicidade da família Smith, transformando o que deviam ser seus afetos em um jogo de poder. Manipulando-os, controlando-os, e fazendo reféns de seus medos para se safar sem se comprometer.

A questão do ciclo do abuso foi proposta inclusive num curta-metragem japonês sobre Rick and Morty que trabalha a teoria de Rick ser o Morty do futuro em um eterno ciclo de Mortys virando Ricks para cuidarem de Morties. Igualmente, Rick não tem redenção e não é digno de ser perdoado.

BoJack é um caso interessante, pois diferente dos exemplos anteriores, tudo o que eu acabei de falar está em primeiro plano e nos holofotes. O ciclo do abuso, de BoJack ser uma presença tóxica por ter tido uma mãe tóxica ganha uma camada a mais quando vemos a infância da mãe de BoJack e o pai tóxico que ela teve. E a tentativa de BoJack de ser perdoado por atrocidades que ele não pode desfazer, é uma das motivações mais constantes dele.

E por último, temos Frank Murphy, o explosivo patriarca da família de F is for Family que nunca teve uma boa relação com sua família ou uma boa infância, e é um pai incrivelmente abusivo com seus filhos e um péssimo marido. Com explosões de raiva intensas.

Diferente de quando Bender dá mancada, ou de quando Stan Smith dá mancada. No episódio seguinte, esses protagonistas não estarão em uma relação melhor com sua família/entes queridos do que estavam, e as bostas que eles fizeram não vão voltar ao normal. Eles são tóxicos, e o amor que eles sentem pelas pessoas próximas não redime eles. Rick amar Morty não redime Rick, e não faz a companhia dele boa pra Morty. Essas famílias são famílias desfuncionais que não deviam existir. E as séries corroboram isso.

Essas séries nos negam o conforto de saber que tudo está certo pois essas pessoas ainda estão na vida um do outro, pois seu protagonista não aprende com seus erros e não se torna uma pessoa melhor. O que faz todo o ambiente que outrora adoraríamos ser parte soar uma merda.

O que é um gancho pra outra parte do gênero que é quebrada nessas séries.

Escapismo:

Essas séries se passam em cenários muito específicos. Que remetem a gêneros, conceitos, lugares e épocas que alimentam as nossas fantasias de onde gostaríamos de escapar.

Venture Bros, se passa no mundo dos aventureiros, onde existe super-cientistas, super-heróis, desbravadores de terras desconhecidas, batalhando super-vilões. Uma sociedade que parece ter sido desenhada para que adultos não precisem crescer e possam fazer uma carreira e uma vida adulta que seja um grande jogo de mocinho e bandido.

Archer se passa no mundo da espionagem. Onde tecnologia de ponta coexiste com a União Soviética e a KGB ainda sendo forças políticas relevantes. E onde nossos heróis combatem pessoas que querem dominar o mundo, ciborgues, yakuzas e mercenários.

Rick and Morty se passa no mundo da ficção científica. O universo e o multiverso estão livres pra serem explorados pelos heróis, sem limite pro que a ciência pode produzir.

Bojack Horseman se passa em Hollywood, um lugar glamoroso onde a mágica do cinema e da televisão acontecem, e ele está profundamente inserido nessa vida, sendo rico, e conhecendo muitas celebridades.

F is for Family se passa nos anos 70, uma época em que crianças brincavam na rua, o Rock’n’Roll psicodélico estava em ascensão, os jovens se drogavam pra cacete, e o mundo fez a virada social dos anos 60 em pautas femininas e raciais.

Todos esses personagens vivem em um mundo mais que convidativo. Um mundo que já estávamos familiarizados, das histórias que nos fascinavam da nossa infância. O mundo da Marvel, do James Bond ou do Back to th Future, não são mundos ao qual precisamos ser introduzidos quando somos jovens adultos. Podemos reconhecer da nossa infância de quando por um momento a gente quis ser parte dele. E o mesmo vale pro glamour das estrelas de cinema que a gente aprecia pela televisão, e da infância idealizada de nossos pais, que crescemos ouvindo eles falando sobre como na época deles as coisas eram diferentes, geralmente sob o prisma da nostalgia de tempos mais simples.

Mundos fantásticos, onde podemos imaginar que neles a vida é mais fácil que a tragédia que é a nossa vida, onde temos contas, responsabilidades, burocracia, e depressão.

Mas o fato dessas séries terem um protagonista profundamente deprimido e quebrado, nos rouba desse escapismo. Pois se na infância a gente imaginou que podia viver num mundo especial, e que lá, a lição de casa, o seu primo mimado e o deslocamento na escola não seriam um problema, que nem não foram em Harry Potter. Agora adultos, nossos desenhos os falam que esses lugares não são capazes de curar a depressão de nossos protagonistas.

Muito pelo contrário, são esses lugares que causaram essa depressão. Esses protagonistas são reflexos claros de que tipo de pessoa aquele tipo de ambiente está produzindo. E suas características negativas são incentivadas e trazidas a tona por aquele mundo, que não soa tão diferente do nosso quando olhamos de perto.

O pessoal de Venture Bros vive uma vida de aventuras e super-poderes, mas lidam com as burocracias diárias, os vilões são parte de um sindicato, que os protege da cadeia, Dr Venture tem dificuldade de pagar suas contas com super-ciência. A vida dele deu errado, e por isso ela não é diferente da de qualquer pessoa que deu errado, exceto por ele ter gadgets que não arrumam sua vida.

Esses mundos não te protegem do que nos faz infeliz, então não podemos escapar pra eles. Mas esses mundos, reproduzindo os problemas do nosso mundo, criam pessoas podres. E eles criam as mesmas pessoas podres. É notável como um protagonista de uma animação de Desconstrução do Homem Asqueroso são um amontoado dos mesmo defeitos apesar de serem de mundos diferentes.

Os Defeitos do Canalha:

Apesar de terem sua individualidade em suas personalidades. Os cinco protagonistas das cinco séries que eu escolhi analisar eles tem muitas semelhanças.

A mais notável é que eles tem vícios em substâncias de maneira não romantizada. Frank Murphy apesar de constantemente beber na série nunca chama atenção pra isso, ele é uma exceção. Mas Archer, Rick e Bojack são os três explicitados como alcoólatras, e a série não deixa passar o constante ato deles beberem como algo que não seja um literal vício e abuso de substância.

Dr. Venture não bebe, mas tem histórico de abuso de substâncias com outro tipo de drogas que é igualmente não romantizado.

Geralmente em animações adultas, o amor e devoção de seus personagens ao álcool é um motivo de humor e que torna eles simpáticos aos nossos olhos.

Mas nesse tipo de série o uso exagerado de álcool pode até ser engraçado pelo exagero, mas é sintomático dessas pessoas, como pessoas que bebem para afogar suas mágoas.

Bojack e Rick também se envolvem ocasionalmente com abuso de drogas como maneira de lidar com suas depressões, embora não sejam vícios recorrentes. Digo, Bojack fica viciado em determinado momento em remédios para diminuir a dor. Mas não é o caso de Rick.

Mas tudo isso evidencia um hedonismo que vemos no ponto seguinte.

Archer, Rick e Bojack além de um grande consumo de drogas, também tem uma grande libido que eles colocam muito em prática. Sendo mestres em sexo casual.

Dr. Venture adoraria ser também, mas ele é impopular, e geralmente as mulheres que se atraem por ele são psicologicamente instáveis. Ou pelo menos são no período que se atraem por ele. Sally Impossible tentou um relacionamento com Rusty no auge de sua depressão e impulsividade. Mas o relacionamento saudável que ela estabelece com J.J a faz superar qualquer atração por Dr. Venture.

Naturalmente Frank é exceção desse também, no sentido dele não fazer sexo casual e nunca ter traído Sue. Embora ele tenha uma libido potente e as vezes desnecessariamente gráfica. Eu não precisava ver ele transar na minha frente tantas vezes com a esposa.

Para esses personagens, álcool e sexo são hedonismo, e hedonismo são felicidade instantânea, que os distraem de suas depressões, e os fazem acreditar que suas vidas tem sucesso. Porém álcool e sexo não curam trauma, porém as vezes dialogam com traumas.

As vezes ver os efeitos posteriores das aventuras sexuais de Archer, vemos que ele tem um claro fetiche em bater nas garotas com uma raquete de ping pong. E eu não quero fazer nenhum tipo de shaming em quem curte S&M, o Archer parece um cara que entende a importância de consenso. Mas é notável que a gente sabe que sua mãe batia nele com uma raquete de ping pong na infância, e ele trás esse trauma a tona em seus fetiches, para que suas parceiras lidem com eles.

E em Bojack é notável que no instante em que ele goza, ele perde qualquer interesse se a garota com quem ele está deitado ainda está lá, e larga ela pra dormir sem nenhum tipo de carinho ou intimidade com a garota, além de um grande convite pra ela voltar pra casa no meio da noite, que ele incentiva. Ele é um cara nojento, que afasta os outros, e ele escapa disso no sexo, mas esse lado dele volta no instante que o sexo acaba.

A relação problemática desses personagens com sexo, geralmente vem deles virem de um ambiente que incentivava a masculinidade tóxica. Onde eles eram incentivados a serem durões, viris e não-emotivos. Geralmente com os adultos-modelos em sua vida, sendo pessoas que expressam uma masculinidade problemática, com infidelidade, objetificação feminina, supressão de sentimentos e violência.

E esses personagens são impulsivos. Eles são auto-centrados, só se interessam pelas próprias ideias e vontades, e geralmente correm atrás delas sem consultar as outras pessoas em suas vidas que arcam com as consequências de seus impulsos. Eles são são incentivados a refletir e hesitar, mas a agir. Pois é isso que ser homem é.

E eles são agressivos. Eles são intimidados por aqueles que estão acima deles, mas intimidam a fazem bullying com os que estão abaixo deles. Frank é o mais visivelmente agressivo, por constantemente gritar com sua família. Mas todos os outros são famosos pelo seu sarcasmo afiado que eles sempre usam para desmerecer as pessoas ao seu redor.

Quanto por surtos de raiva em que eles tentam prejudicar os demais por uma raiva mesquinha e impulsiva.

O canalha deliberadamente sabota o amor das pessoas que tentam se aproximar deles. E aqui quero ainda fazer um detalhe. São as pessoas que entendem que ele é uma pessoa difícil e com traumas, e que tem algo quebrado dentro deles, e querem se aproximar mesmo assim, por saber o potencial pro bem que eles tem. E o canalha sabota o amor dessas pessoas.

E isso é normalmente explicado como eles subconscientemente tendo medo de serem amados, pois eles não se acham dignos. E afastam as pessoas, para não ter que lidar com a eventual rejeição delas quando o conhecerem completamente.

O canalha é completamente dessensibilizado pela violência e pelos abusos humanos que fazem parte de seu cotidiano sendo incapazes de se chocar com eventos que chocam outros personagens. E eles normalizam características horríveis de sua rotina, pois tem que lidar com elas desde muito tempo.

O canalha é particularmente desconectado de seus pais, e sente dificuldade de ter uma relação saudável com sua família, pela falta de bons modelos paternos. Sendo particularmente incapazes de exercer uma paternidade saudável e notáveis por terem comportamento inapropriado na frente de crianças das quais eles deviam ser responsáveis,

O canalha balanceia a rejeição interpessoal que ele recebe de seus pares em resposta aos atos de canalhice que ele comete, com uma blindagem prática que ele recebe da sociedade, por ser um homem branco. Ele não é o elo mais fraco da corrente e ele não percebe e/ou não se importa que isso não se aplique aos demais.

Curiosamente Rick é latino, e um perseguido político tanto pelo governo intergaláctico quanto do governo dos Ricks quanto do governo dos EUA. E sua blindagem é literal. Ele se torna intocável com tecnologia de ponta pra não arcar com consequências.

E o mais importante. O canalha é parte de um círculo vicioso. Ele é quem é, pois ele foi criado pra ser quem é. E agora ele é uma força ativa para fazer outra pessoa ser quem ele é, a menos que o ciclo se quebre.

E podemos ver o efeito que a companhia dele tem para criar mais pessoas que nem ele.

Uma animação sobre a desconstrução do lixo humano normalmente flerta com a ideia do personagem tratar seus problemas por terapia, o que é sempre apresentado como uma solução que funcionaria. E o personagem pode ser visto indo a terapeutas em episódios isolados, que não se tornam personagens recorrentes, pois justamente por ser uma solução, o trabalho de terapia é interrompido.

Em resumo, o canalha é um homem, sarcástico, sexista, e tóxico, que foi criado assim, pois os homens em sua vida lhe ensinaram valores asquerosos, e porque o ambiente em que eles vivem, exigem essa demonstração de masculinidade tóxica para funcionar, incentivando esses defeitos. Eles foram feitos por trauma e falta de amor que geram um buraco que eles preenchem com hedonismo, na forma de drogas e mulheres, mas não são capazes de formar relações significativas, sem um esforço sobre-humano dos entres queridos para relevar a dificuldade do canalha. E esse esforço é raramente recompensado, pois o canalha sabotará todo o amor que receber. Reproduzirá o tratamento absurdo que ele recebeu, e será uma força para as crianças ao seu redor, crescerem pra ser canalhas também.

Conclusão:

As séries de Desconstrução do Bostolão nos apresentam um mundo especial. Um mundo que estamos habituados a ver romantizado, associar a um escapismo dos problemas cotidianos, e onde podemos projetar uma vida mais divertida. Porém a série quebra nosso escapismo nos mostrando que esse mundo tem duas coisas que ainda existem no nosso mundo.

A burocracia, as dificuldades da vida adulta, a conta pra pagar, o ticket do estacionamento que temos que validar, e todas as insatisfações que nos tornam adultos.

E o homem branco médio, que perpetua o cíclo do abuso que construiu ele e transforma a vida dos outros ao seu redor em uma tragédia.

E quebrando o escapismo, e a possibilidade do protagonista se redimir (embora ele seja capaz de ser humanizado e seja digno de nossa empatia), essas séries quebram a magia da televisão que se sustenta em escapismo e em perdão, desconstruindo, o fato de que em 20 minutos tudo volta ao normal.

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Quando Fievel Mousekewitz foi para a América haviam prometido para ele que na América não existiam os gatos que expulsaram todos os imigrantes de seus respectivos lares. Mas quando os ratos descobriram que os EUA eram infestados de gatos, eles perceberam que eles precisavam expulsar os gatos de lá no chute pra fazer um país bom, pois não existia um país sem gatos pra onde se mudar.

Quando Imperator Furiosa descobre que o lugar verde pra onde ela queria fugir não existe, ela entende que a única maneira digna de viver, é tirar Imortan Joe da cidadela, pois não existe um lugar bom pra onde fugir, eles tem que arrumar o que tem de errado com de onde saíram.

E no fundo o que essas séries nos ensinam é isso. Não existe pra onde se mudar, e imagnar uma vida melhor, se imaginarmos nossa sociedade e as pessoas que essa sociedade produz se mudando junto. Não é uma falta de super-poderes, riqueza glamorosa, acesso a tecnologia, a falta de um emprego legal ou nossa época. O problema é o denominador comum a tudo isso. E não temos pra onde fugir.

O objetivo da desconstrução é estudar as peças que fazem a televisão funcionar. Mesmo que no processo, ela deixe de funcionar. E a televisão funciona pela aceitação da não mudança. A televisão é uma celebração de uma vida que não muda, onde tudo volta ao normal.

Mas quando analisamos o que quebrou o mundo, vemos que a não mudança é tóxica, e o motor que mantém o mundo da televisão precisa parar de funcionar na nossa frente, para vermos o que é que o mundo tem que mudar.

E quais ciclos precisam parar de girar.

E essa exposição do ciclo da masculinidade tóxica, e repensar o romantismo do canalha no qual a animação se sustenta, The Venture Bros foi o que chegou primeiro. Um desenho que esteve literalmente dez anos a frente de seu tempo, e honestamente, não recebe muitos créditos por isso.

Descancelem The Venture Bros!!

Sobre o autor

Izzombie

Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

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Izzombie

Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

Alertas

  • – Todos os posts desse blog contém SPOILERS de seus respectivos assuntos, sem exceção. Leia com medo de perder toda a experiência.
  • – Todos os textos desse blog contém palavras de baixo calão, independente da obra analisada ser ou não ao público infantil. Mesmo ao analisar uma obra pra crianças a analise ainda é destinada para adultos e pode tocar e temas como sexo e violência.

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