Dia especial aqui Dentro da Chaminé. Muito raro. Hoje é um dia em que eu vou analisar um vídeo-game! Acontece pouco, não vai se repetir tão cedo. Então curtam aí essa análise da franquia foda que é Danganronpa.
E também vou soltar um leve aviso, de que eu vou comparar Danganronpa com alguns filmes… mais especificamente Scream 2, Funny Games e Cabin in the Woods, todos filmes de terror, então esperem por spoilers das quatro obras. Até por que se você se interessar minimamente pelo assunto, são três filmes que eu recomendo bastante, então é isso, se lerem os primeiros parágrafos e pensarem “porra, gosto quando uma história toca nesse ponto.” eu recomendo pausar o texto, ver os três filmes e então voltar ao texto.
Dito isso, falemos do assunto:
O assunto é o seguinte: se você gosta de filmes em que personagens morrem, você é um enorme arrombado. Por quê? Porque a culpa é sua que esses personagens morrem, eles podiam ser fictícios, mas eram seres humanos e foram assassinados pelo seu entretenimento. E eu estou olhando pra você fã de filme de terror! Você não vê Friday the 13th pra torcer pros jovens, você assiste pra torcer pro Jason. Você é um cúmplice do Jason! E cada machadada que ele dá em uma vítima, tua mão está empurrando.
Ok, talvez eu esteja exagerando, talvez você só esteja no sofá vendo passivamente a morte de personagens, e sentindo empatia por eles, e sofrendo por ver os personagens irem embora, e isso não seja entretido. É possível, mas tem filmes que desafiam essa perspectiva.
No passado eu falei sobre In the Mouth of Madness, e a maneira como o filme usa a metalinguagem para aumentar o terror que ele induz, derrubando sua confiança na quarta parede para te proteger dos terrores da tela. E disse que essa era uma de três funções que a metalinguagem serve no gênero. A segunda função é a do texto de hoje, a de fazer você repensar o gênero das histórias de terror como um gênero em que o vilão é o entretenimento, as vítimas são descartáveis e você é cúmplice.
O que também pode ser colocado em forma de pergunta: você, consegue listar suas dez mortes favoritas de filmes de terror, pelo nome das vítimas? Claro que não. A gente mal lembra do nome dos personagens de filme de terror, exceto o assassino. E quando lembramos, é de uma sobrevivente. Eu genuinamente não lembro do nome de nenhum personagem assassinado por Jason ou Freddy. E mesmo Scream, que é minha franquia de terror favorita, eu lembro do nome de um punhado de personagens relevantes, mas muitos dos mortos eu esqueço o nome fácil.
Isso é normal, é porque aquilo ali nem é gente, eles estão lá para morrer. E é aí que a segunda metalinguagem entra, ela evidencia o quanto não nos importamos nem empatizamos com as vítimas, e sim queremos sua morte.
Os filmes fazem isso partindo da seguinte premissa: foda-se que essa gente é fictícia, e um personagem que não existe, isso não importa. Afinal esses personagens, passam a existir, no instante em que eles são escritos, e eles morrem pra te agradar. O autor deu vida a essa gente, para poder tirá-la e te alegrar. Funny Games tem uma fantástica cena em que um dos dois psicopatas aposta com as vítimas que as vítimas vão todas morrer. E fala que elas devem apostar que vão sobreviver. O parceiro psicopata reforça que essa aposta é absurda e não faz sentido, uma vez que não tem nada a ser ganhado, perdido ou arriscado além da vida deles, que eles vão querer preservar de qualquer jeito, e o psicopata que propôs concorda que sim, é uma aposta idiota. Porém ele olha para a câmera e transfere a aposta para nós, nos perguntando de que lado nós estamos, e em quem nós apostamos?
De fato. Apostar que não vai morrer é ilógico, pois se morrermos, não ficamos aqui pra oficialmente perder a aposta. Se vencermos não ganhamos nada que já não tínhamos. A recompensa e a punição é o resultado da situação e não da aposta. Por isso a vítima não pode fazer essa aposta e chamar isso de aposta. Quem apostou fomos nós, nós apostamos a vida desses personagens fictícios com esses psicopatas. E ele olhando pra câmera zomba do fato de que estamos inclinados a torcer pelas vítimas e a contar que ao menos uma vai dar um jeito de escapar.O psicopata zomba, porque não é verdade, não estamos genuinamente do lado da vítima, se nosso entretenimento é a sua tortura.
Se tivéssemos empatia pelas vítimas não veríamos o filme. Não existe motivo pelo qual a gente assistiria ao filme até o final, exceto ver o assassino ter sua profecia cumprida e ver a mulher morrer no final, mas esse é precisamente o motivo pelo qual vemos até o fim, para contemplar a violência cometida. E o filme escancara isso na nossa cara fazendo todas as cenas de violência mais pesadas acontecerem offscreen, nos negando o entretenimento contido na violência, para provar que era isso que queríamos do filme.
Nesse filme, nós somos os cúmplices dos assassinos, e a protagonista é uma vítima nossa, tanto quanto deles.
No filme Scream, fica claro que a maior motivação do assassino vestir a máscara de Ghostface, seja ele quem for, é o público que está acompanhando o filme de terror ao vivo que eles estão vendo. E saber que a cada novo assassino é um novo filme Stab que será produzido. Chegando ao extremo em que os fãs do primeiro filme festejam o assassino matar sua primeira vítima do segundo filme, antes de perceber que não eram dois fãs celebrando o primeiro filme e sim um assassinato de verdade. Em um dos momentos mais icônicos da franquia.
No filme Cabin in the Woods, nós somos chamados de The Ancient Ones e reverenciados como deuses. E se você acha que esse nome de Deus parece lovecraftiano, então você entendeu nosso papel para os personagens de Cabin in the Woods. Deuses extradimensionais, com o poder de alterar a realidade, e com um desinteresse tão grande naqueles personagens, que os lembra de sua insignificância, e cuja mera descoberta da existência desses Deuses pode deixá-los loucos. Isso é o que somos para os protagonistas de filmes de terror, criaturas excessivamente maiores do que eles, sendo fictícios podem compreender. Deuses exigindo sacrifício humano. No filme, um grupo de cientistas encena o contexto de um filme de terror como forma ritualística para matar cinco adolescentes, em um ritual. Se os adolescentes se envolverem em um ciclo de sexo, estupidez e morte, os Ancient Ones ficarão felizes, do contrário, a existência daquela realidade se encerrará.
Quando um personagem se dá conta de que é fictício, ele se dá conta de que a vida dele depende do conforto de uma criatura que reduz tudo o que eles valorizam a um mero entretenimento substituível, e então os personagens notam que suas vidas não importam para nós. E nós somos os monstros.
Eu gosto disso, acho uma boa inversão de papéis que esses filmes sugerem. O assassino trabalha para nós, nós exigimos sacrifício humano.
O que nos leva à visual novel: Danganronpa, onde em cada jogo acompanhamos uma sala de aula de quinze ou dezesseis alunos, desprovidos de suas memórias, e manipulados por um sádico ursinho-robô para assassinarem uns aos outros e tentarem se safar do crime. Após cada assassinato os alunos deveriam realizar um trabalho de detetive para identificar o assassino.
Em uma linguagem que flerta constantemente com a quarta parede e sua fragilidade, a série coloca na boca de Monokuma, o urso antagonista, diversas piadas que não fazem sentido para os personagens, mas fazem pra gente, como se esse urso que está matando nossos personagens favoritos piscasse pra gente sempre que pode, tal qual Frank Underwood faz em House of Cards. Ou Iago faz na peça de teatro Othelo interagindo conosco.Naturalmente tanto Frank Underwood, Iago e Monokuma são os vilões da obra que sabem que vamos nos divertir com a vilania que eles praticarão.
E com isso Monokuma ganha nossa cumplicidade. Nós estamos controlando um aluno que quer deter Monokuma, mas nós em si não queremos, ele é nosso brother, conta piadas. E Monokuma é insistente de que ele quer que os alunos se matem pelo entretenimento dele (e nosso).
A segunda visual novel Super Danganronpa 2: Sayonara Zetsubō Gakuen (Adeus à Escola do Desespero), brinca com nossa cumplicidade com Monokuma no começo, quando o jogo blefa em suas primeiras cenas que ia ser um jogo na vertente oposta do anterior, sobre alunos socializando e fazendo amizade uns com os outros, sem nada de mal acontecer. Até a aparição de Monokuma no jogo anunciar que ele vai mudar o estilo para “alunos se matando.” pois não tem ninguém querendo jogar “alunos fazendo amizade.”
Uma vida sem desespero para essa galera não é uma opção, pois sem isso não tem jogo. E o fã quer o jogo.
O segundo jogo brinca com a repetição também. Apesar de Monokuma ser controlado por uma psicopata chamada Junko Enoshima, e de termos matado ela no fim do primeiro jogo, no segundo jogo Monokuma está de volta, e descobrimos ao final que é porque Junko está de volta, existindo em uma realidade virtual. As soluções que damos ao fim do primeiro jogo, tem que de certa forma serem desfeitas, para Monokuma e Junko poderem voltar no próximo jogo.
O que nos leva a New Danganronpa V3: Minna no Koroshiai Shin Gakki (Novo Semestre de Matança para Todo Mundo), o terceiro jogo da franquia. Chamado de V3 para diferenciá-lo de Danganronpa 3, o anime que fecha as pontas soltas dos outros dois Danganronpas.
Vendido como se fosse um reboot da franquia, existindo em um universo completamente paralelo ao dos dois jogos anteriores, e nos dando a impressão inicial de estarmos vendo algo novo, muita gente não colocou a mão no fogo na habilidade dos roteiristas de largarem mão da continuidade e da Junko Enoshima. Pois bem, na reta final, começaram a vir indícios de que de fato, farejamos bem, pois de alguma forma, era tudo um plano da Junko e ela estava novamente operando o Monokuma.
E então vêm a reviravolta final. Tecnicamente era sim a Junko, mas não, era uma personagem fantasiada de Junko. Eles eram contratualmente obrigados a inventar novas desculpas para a Junko ser a vilã final, pelos fãs, mas não era a de verdade, pois a de verdade não existia. E isso vêm junto da informação de que aquilo ali é só uma obra de ficção, uma nova temporada de Danganronpa, e essa informação é direcionada diretamente aos personagens sobreviventes.
A estilização V3 é, na verdade, um jeito louco de escrever 53, pois estamos jogando na verdade o 53º Danganronpa, que explora o conceito da franquia ter se repetido infinitamente até a exaustão.
Explora também o fã ser iludido e tapeado, pois significa que tem 50 jogos que eu não joguei. O que são 500 assassinatos que eu não testemunhei, e isso prejudica fortemente as minhas listas de top10 mortes mais iradas de Danganronpa, mas estou divergindo.
O ponto é, que no clímax do V3, com os personagens descobrindo que eles na verdade não passam de seres roteirizados exclusivamente para se assassinarem para o deleite de uma plateia, uma sensação de desespero se instala maior do que jamais se instalou. Afinal, não existe mais a possibilidade de matar a Junko e acabar com tudo, rolou 53 vezes e vai rolar pra sempre, Danganronpa nunca deixará de existir enquanto o público quiser ver os personagens se assassinarem, e os protagonistas do terceiro jogo escaparem é irrelevante olhando o quadro geral da tragédia se repetindo ao mesmo tempo.
A solução para isso, que somos obrigados a chegar com o protagonista é o de trair o público, e acabar com a instituição Danganronpa, com uma greve de jogo. Nesse momento, é necessário que nos recusemos a jogar o jogo para a história progredir, e ao não jogar o jogo, não mantemos Danganronpa funcionando. E destruímos esse sistema cíclico de assassinato de adolescentes fictícios para sempre.
O que de certa forma é genial, pois obriga o jogador a cancelar qualquer perspectiva de no futuro termos um quarto jogo… a menos é claro que eles lancem o literal quarto jogo, que cronologicamente se passe antes do V3, que é na era o 53º jogo… mas apesar dessa tecnicalidade, fica bem claro que o V3 serve pra fechar a franquia, manipulando o próprio jogador a escolher assassinar a franquia de vez para poder terminar o jogo.
Mas a real pergunta é: o V3 realmente nos colocou contra Danganronpa? Realmente vimos que os personagens que acabamos de ver e o jogo onde os conhecemos são inimigos, e tomamos o lado do personagem? Eu acho que não, eu acho que apesar de simular essa quebra de nossa cumplicidade com Danganronpa, o jogo na verdade não faz isso, não mais do que jogar com o Sub-Zero te faz congelar as coisas. E o motivo disso não é por não querer trabalhar essa questão metalinguística, porque obviamente queria, e sim, porque queriam tomar o caminho mais fácil, em que não tivéssemos que procurar por um vilão e encontrar um espelho com nosso próprio reflexo.
E é esse o argumento que quero trazer para a roda. Danganronpa trouxe a tona o assunto de cumplicidade do espectador de ficção e dos assassinatos fictícios, e o tema do sadismo que gera a demanda desse tipo de conteúdo em primeiro lugar, e a maneira como o personagem que o espectador realmente apoia é o assassino e nunca a vítima. Porém o jogo faz isso o tempo inteiro sem nunca apontar o dedo para nós. Eles apontam para o espectador e não para nós porque nós não somos o espectador. Então qualquer vilania que o espectador de Danganronpa receba não é direcionada a nós.
Sabe aquele cara que faz parte de um grupo? Aí o grupo faz merda e o cara solta um “putz, os cara é foda.” como se não tivesse nada a ver com ele? Pois é, no sexto caso de Danganronpa V3, nós somos essa pessoa, e o jogo permite que sejamos. Isso se deve ao fato de quem é o nosso olhar.
No começo do jogo nosso olhar é o da garota Kaede Akamatsu, o que eu achei legal, porque depois de dois jogos, enfim eu ia ver uma mulher protagonista na franquia, mas era uma pegadinha do malandro, Kaede morre no primeiro caso e nosso olhar é transferido para o jovem detetive Shuichi Saihara. E isso é importante, porque é a primeira vez na franquia em que nosso olhar é transferido e mudamos de protagonista. Digo, em Danganronpa 2 temos um pequeno momento em que controlamos outro personagem, mas é realmente pouco tempo, aqui trocamos mesmo de olhar, controlamos outro cara até o fim do jogo.
Porém quando veio a revelação, de que aquilo tudo era só um jogo jogado por espectadores sádicos que querendo ver os protagonistas triunfarem grande tragédia, na real criaram a grande tragédia que os personagens tinham que viver. Nessa hora, nosso olhar é trocado novamente. E passamos a ver as coisas pelos olhos de K1-B0, o robô da série. E descobrimos que esse robô é o personagem “protagonista” dentro daquele universo. Ou seja, os espectadores de Danganronpa V3, viram a história inteira na perspectiva de K1-B0 e não na de Shuichi.
E isso traz duas observações necessárias. A primeira é que o jogo que a gente jogou e o reality show que os espectadores acompanharam são duas experiências diferentes, uma vez que a gente viu uma história na perspectiva do Shuichi e os espectadores na perspectiva do K1-B0. Nossa experiência não é a mesma dessa gente sádica, pois nós não somos essa gente sádica. Nós somos legais e diferentes.
A segunda observação é que após a revelação de que existem espectadores que são a real causa de nossa tragédia, momentaneamente passamos a ver o mundo pelo olhar de K1-B0 que é a vítima mais direta. Ou seja, nossa perspectiva é sempre a da vítima. O jogo mudará depois de perspectiva mais duas vezes e terminará no Shuichi de novo, mas o jogo nunca nos dá a perspectiva do espectador, muito embora nós sejamos espectadores. Nossa perspectiva é sempre a da vítima.
Com Kaede foi a mesma coisa. Embora Kaede cometa um assassinato enquanto nós a controlamos, a verdade é que nunca descobrimos o assassinato, pois o jogo não nos permite ser cúmplices da Kaede e ter a experiência do assassino. No instante em que descobrimos que ela é a assassina, nós perdemos o olhar dela e ganhamos o olhar do Shuichi, justamente para podermos condená-la.
Em Cabin in the Woods, nós entendemos que os Ancient Ones somos nós. Em Funny Games está claro como água que nós não podemos ter simpatia pela protagonista e curtir o filme ao mesmo tempo, pois são excludentes. Em Scream sabemos que são pessoas como nós que trazem os assassinatos para o mundo real. Em Danganronpa não, nós temos que controlar o personagem e ver o mundo pelos seus olhos, e por isso nunca podemos assumir o distanciamento que o espectador possuí, nós somos o olhar daquele personagem em suas virtudes, mas quando o personagem fará algo que nos faça ser cúmplice dele, faz offscreen. Isso é, exceto quando é olhar as coleguinhas peladas sem seu consentimento, porque fanservice é algo aparentemente fundamental nesse jogo, mas todos os outros crimes do protagonista são ironicamente cometidos offscreen, embora sejamos o olhar dele. O que impede nossa cumplicidade com o crime. O espectador é o inimigo do Shuichi, mas eu não, eu sou o Shuichi, pois é ele quem eu controlo. Até eu começar a controlar o K1-B0, até voltar pro Shuichi. Mas apesar do olhar mudar de acordo com a história, o olhar nunca se torna o olhar do cuzão, pois eu como jogador não posso ser o cuzão.
E falando sobre a solução que o Shuichi dá para vencer Danganronpa que é o ato de “não jogar.”: ao longo do jogo, temos que jogar vários minigames para chegar até uma resposta que precisamos. E na reta final, o jogo meio que te obriga a jogar esses minigames para manter o espetáculo no ar, e a resposta certa é nos recusarmos a terminar os minigames.
Isso é necessariamente um paradoxo. Pois não existe o ato de se “recusar a jogar um jogo”, se você está apertando “X” feito um doido para ver o fim da história. E é aqui que eu quero chegar. Ao descobrir de seu status como personagens fictícios, os personagens de Danganronpa decidem não jogar o jogo. Mas nós precisamos jogar o jogo pra ver a rebelião vencer, e o ato de não jogar o minigame pra avançar a história ainda é jogar o jogo, por ser uma decisão de jogabilidade com uma alternativa correta para avançar a história. A solução proposta por Shuichi vai na contramão de todas as outras obras que trabalham o gênero. Enquanto é impossível Sidney Campbell escapar do Ghostface, pois sempre existirão fãs que assistirão o filme, e é impossível contrariar os Ancient Ones, pois eles podem apagar a realidade dos personagens (cancelando o filme e o universo nele contido), a única coisa que faria os personagens sobreviverem seria a nossa recusa em assisti-los. Os personagens existem em função de estarmos assistindo-os, então quando ninguém assiste Scream, os personagens não existem e portanto não são assassinados.
Sou da opinião radical de que a única coisa que genuinamente salvaria o Shuichi seria eu desligar o Playstation e me recusar a ver o final do jogo. Pois o final necessariamente seria um final fictício que independente de ser feliz ou triste, manteria Shuichi, K1-B0 e os demais presos no ciclo de Danganronpa. Um final trágico seria trágico, e o final feliz justificaria a tragédia de Shuichi como degrau necessário para o conforto de ver a esperança e amizade vencer no final. A única coisa que libertaria Shuichi disso tudo era eu me recusar a ver o final, impedindo-o assim de vivê-lo. E obviamente eu não ia escolher me recusar a ver o final, afinal de contas, eu paguei pelo jogo, quero jogar até o fim. E é exatamente por isso que eu não posso “ser” o Shuichi, pois meus interesses não são os interesses do Shuichi, pois o meu ato de jogar o jogo, me faz um cúmplice do Monokuma até o fim, e qualquer ideia de evitar isso gera um paradoxo.
Não só isso, como a ideia de que está acontecendo uma recusa de deixar Danganronpa triunfar é notoriamente contraditória com o fato de que esse debate está acontecendo em um Class Trial, justamente a espinha dorsal de Danganronpa. Assim como o show de rock que fez nunca mais existirem shows de rock. A aula que destruiu as escolas e o julgamento que como resultado eliminou o sistema judiciário do mundo, o Class Trial que acabou com Danganronpa é um paradoxo imenso. E é o fato de que Shuichi nunca se recusa a manter o formato de Class Trial durante a batalha final que faz Shuichi não realmente lutar contra Danganronpa. Da mesma forma que Shuichi mantém o Class Trial funcionando, eu mantenho o jogo funcionando, e juntos mantemos Danganronpa funcionando, e a rebelião é ilusória.
O jogo abraça esse paradoxo na tentativa de fazer o comentário sobre o sadismo do espectador, sem fazer eu me sentir na pele do espectador, passando a mão em minha cabeça e me fazendo sentir que eu era diferente, eu estou ajudando o Shuichi a atingir sua liberdade do videogame enquanto aperto X.
O que me dá o direito de assistir o final feliz. Quando Shuichi, Himiko e Maki estão livres para ir para além dos muros de Danganronpa, sem saber se o que existe do lado de fora é um mundo real ou outro mundo fictício, mas certamente não é Danganronpa. Eu não deveria ter o direito de ver esse final, pois sou parte do problema.
A relação entre o espectador e personagem fictício é a relação entre a humanidade e as criaturas de Lovecraft. Somos são mais poderosos e cientes e pertencentes a outra realidade que eles, que independente de torcermos por eles, ou odiarmos eles, ou sermos indiferentes a eles, não importa. A mera noção da nossa existência os enlouqueceria. Não existe a possibilidade de Chtulhu e um cara normal lutarem lado a lado como parceiros, e o mesmo é a minha relação com Shuichi.
E é por isso que seu relacionamento com sua waifu 2D não vai avançar, desculpe ter sido eu a falar, mas temos que aguentar a verdade, não importa o quão dura ela seja. Essa é uma das morais de Danganronpa V3, a de que não devemos fugir da verdade só porque não queremos ouvi-la.
E é essa a impressão que eu acabei ficando. Que o jogo tentou apontar o dedo pros seus fãs, mas não teve coragem de apontar o dedo pra quem estava jogando o jogo na hora, para que não houvesse o desconforto do jogador realmente ver o espelho na hora de encontrar o vilão. Para não fazer o jogador se sentir literalmente como se fosse um monstro incompreensível na perspectiva de nossos personagens favoritos.
Não acho que isso torna o jogo ruim. Nem de longe, pelo contrário, Danganronpa é uma franquia genial, e New Danganronpa V3 é o auge do que eles tem a oferecer, é o melhor jogo em termos de casos, personagens, história, twists e atmosfera mesmo. Só me soou, e soa unicamente por causa das decisões tomadas pela trama no final, incompleto, como se na reta final eles tivessem ido em uma direção excelente e puxado o freio de mão antes de cruzar a linha de chegada, se recusando a terminar o que começaram.
E acho que é um potencial desperdiçado, pois enquanto filmes de terror tem a vantagem ao explorar o quanto na real estamos ali pelas mortes, pelo fato de que os personagens de filmes de terror são escritos para serem desagradáveis e nos fazer desejar sua morte. Os personagens de Danganronpa são escritos para ser agradáveis e carismáticos e para brigarmos com nossos amiguinhos quanto a quem é o personagem mais da hora (brigar com o amigo sobre melhor personagem é saudável, pratiquem.) e supostamente devemos ficar tristes quando nosso personagem favorito mata. Por isso a relevação ganha mais peso quando jogarem na nossa cara que a gente na real quer ver essa gente morrer e que na verdade somos sós que fazemos essa gente legal morrer. Ia ser notoriamente mais poderoso.
Concluo só com a observação de que nunca o aviso de “todos os personagens dessa obra são fictícios.” funcionou tão bem pra gerar drama. Ponto da metalinguagem.
ps. Aos que se ofenderam porque eu falei que você e sua waifu não vão dar certo porque você é o Cthulhu, deixo aqui a dica do livro Awoken, romance Young Adult que retrata a história de amor entre uma garota normal no colegial e uma entidade lovecraftiana, para mostrar que tudo é possível.