Persona 4 vs JoJo Parte 4 – sobre romantizações de cidadezinhas do interior

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Olá leitores, sejam bem-vindos a mais um texto do Dentro da Chaminé. Eu sou Izzombie, o escritor do blog, e se você é o tipo de leitor que lê todos meus textos, talvez tenha notado que existe um ponto cego crucial na minha tentativa de fazer reflexão sobre cultura pop e ficção no geral… eu não sou muito fã de videogame. Eu não sou chegado, não jogo, não tenho consoles em casa, e no geral essa mídia é um grande ponto cego pra mim, pois tudo o que eu sei sobre é por osmose.

Dito isso, as vezes um jogo chama a minha atenção a um ponto em que a minha curiosidade me vence e eu resolvo ir jogar. E foi o caso de Persona 4 Golden, que me foi recomendado como uma boa (e acessível pra mim) porta de entrada para a franquia Persona, que me deixava curioso pelo quanto o fandom de Persona estava em intersecção com vários fandoms que eu percebo.

É a vida, você mexe com otakice tempo o suficiente, e começa a ouvir a galera comentar Persona o tempo todo. Eu fiquei curioso, então aproveitei que dava pra jogar no computador, e fui jogar.

E foi um grandessíssimo deja vu jogar esse jogo. Uma experiência nostálgica cheia de memórias. Revivi muitos dias esquecidos do meu passado nessa.

Pois bem, o jogo é sobre esse moleque chamado Yu Narukami aparentemente (no meu jogo ele tinha meu nome), que se muda para uma cidade rural no interior do Japão chamada Inaba, onde ele vai morar com o tio e com a prima por um ano. E fazer o colegial nessa cidade.

E jogando o jogo foi impossível não levantar paralelos com o período da minha vida em que eu fui morar em uma cidadezinha rural no interior do Chile, chamada Rengo, para fazer a oitava série, morando com minha tia e minhas primas. Incrivelmente específico, mas rimou bastante.

De verdade, ao longo do jogo eu sentia um sentimento nostálgico de que realmente é como reviver um pouco do tipo de vida que eu tinha lá, em especial pela mecânica de Persona que te faz viver o dia a dia da cidade um dia de cada vez, te fazendo jantar com a família toda noite e ir pra escola, frequentar o comércio local e tal.

Pois é, um sentimento gostoso de uma infância que passei em uma cidade diferente com minha família? É legal lembrar disso, certo? Nossa, errado! Eu do fundo do coração odeio Rengo, cidade maldita, que se for possível eu não piso o pé naquele inferno na terra nunca mais. Digo, eu provavelmente vou acabar visitando, por conta de eu ter muito carinho pela família que eu tenho lá. Eu amo minha tia e minhas primas e quero mantê-las na minha vida. Assim como, não foi uma tortura morar lá, tenho várias memórias positivas desse tempo, pois tive dias bons vivendo com uma família que eu adoro. Mas nossa, a cidade foda-se. Eu tenho um ódio genuíno da cidade. Não é um bom lugar de se estar.

Gente conservadora, mente fechada, usar gravata pra ir na escola, ter que rezar no começo das aulas, ser obrigado a raspar o cabelo, pois meu cabelo grande que eu deixava crescer (pois não ligava), não só era proibido, como era genuinamente lido como feminino por todo mundo na escola que nunca tinham visto um homem cabeludo na vida. Uma cidade racista e homofóbica que era um inferno.

Enfim, vocês não vieram aqui ler um desabafo sobre como a vida social e escolar em uma cidade rural da qual vocês nunca ouviram falar é um dos rancores que eu guardo no coração…. Vocês vieram ler análises de cultura pop. Mas mesmo assim, é inegável que jogar Persona 4, mexeu com essas memórias negativamente. O jogo me fazia lembrar de Rengo o tempo todo. O tempo todo mesmo. E lembrar de Rengo é uma merda, mas ninguém no jogo parecia concluir que Inaba era uma merda, quem tava achando era eu somente.

Em especial eu estava achando que o ambiente que era Inaba, e o setting de vida interiorana tinha na verdade um diálogo particularmente ruim com o tema central do jogo, sobre ser seu verdadeiro eu, e o diálogo entre quem você é, como você se mostra e o que você reprime. Para mim não encaixava essa mensagem com aquele cenário.

E eu fiquei cabreiro, pensando que caralho, eu nunca jogo game, e quando eu jogo um eu fico de birra, pois passa numa cidadezinha e boas histórias não acontecem em cidadezinhas, pois cidadezinhas são uma merda. E aí eu lembrei que na real tem uma história sobre vida interiorana no Japão misturando vida jovem com elementos sobrenaturais e busca por um assassino que eu adoro.

JoJo no Kimyou na Bouken Part 4: Diamond Wa Kudakenai, mais reconhecível pelo seu título ocidental JoJo’s Bizarre Adventure Part 4: Diamonds are Unbreakable. Eu adoro a Parte 4 de JoJo. E olha que eu não adoro JoJo, eu tenho críticas pesadas às três primeiras partes, críticas medianas à Parte 5, e nem fui atrás da parte 6 ainda, pois a franquia de fato não é do meu interesse. Eu não sou um fã de Jojo.

….mas eu sou fã da Parte 4. Puta que o pariu, a Parte 4 é uma coisa maravilhosa, perfeição narrativa, incomparável. O mangaka Hirohiko Araki teve um surto e aprendeu a contar história do dia pra noite, foi coisa de louco.

Enfim. A Parte 4 de JoJo tem muito em comum com Persona 4, pra começar, que eles tem esse 4 em comum, os dois são as quartas partes de suas respectivas franquias.

Os dois são protagonizados por estudantes do colegial, que fazem várias amizades entre seus colegas após um incidente sobrenatural invadir a cidade e eles serem conectados por dominarem um poder especial.

E esse poder especial é uma manifestação física da sua personalidade lutando suas lutas por você.

Enfim, essa turma que vai crescendo ao longo da história, se une para investigar um mistério sobre um assassino misterioso escondido na cidade como um cidadão normal, e que está conectado com o fenômeno sobrenatural.

E as duas obras têm um uso pesado do amarelo na identidade visual da obra. O que é uma coincidência bem curiosa.

E principalmente: as duas obras, fazem uma romantização pesada da vida da cidadezinha e do tipo de relações que se formam e da relação dos personagens com suas respectivas cidades, no caso de Persona é Inaba e no caso de JoJo é Morioh.

Mas com o que JoJo fez nesse quesito eu não tenho nenhuma bronca. Nem acho ruim que o Araki tenha romantizado a vida interiorana em JoJo, pelo contrário.

O que eu senti foi justamente que enquanto a trama de Persona trazia na memória os principais defeitos da vida no interior. JoJo trás a tona as maiores qualidades desse tipo de ambiente e os motivos que são o real apelo desse tipo de ambiente.

Então eu quero propor aqui uma comparação sobre quais as diferenças entre as abordagens de Persona e JoJo, e como as duas séries focam facetas diferentes e complementares de uma cidade que poderia perfeitamente ser a mesma cidade se não fossem universos fictícios diferentes.

JoJo e as qualidades da vida em cidade pequena:

JoJo Parte 4, se passa em Morioh, uma cidadezinha no meio do Japão. E essa cidade é um lugar calmo e pacato. Que tem sua paz perturbada quando uma série de moradores ganham super-poderes chamados Stand por conta de uma flecha mágica. Conforme os moradores começam a investigar essa flecha eles descobrem algo mais sinistro.

Conforme a questão da flecha se soluciona, descobrimos que existe um assassino em série vivendo na cidade, deixando vítimas, e que a existência dele perturba a paz e a harmonia da cidade. E então a cidade inteira que fomos conhecendo nesse rolê da flecha, se une em um trabalho em conjunto e comunitário para encontrar esse assassino.

Esse assassino, e também o personagem mais interessante da história se chama Yoshikage Kira, e ele é um psicopata, com um grande fetiche em mãos de mulheres, que mata mulheres e guarda suas mãos. Mas além de ser um psicopata doentio, ele é uma pessoa que valoriza a vida simples. Não tem nada que ele deseje mais do que viver em paz, uma vida pacata, em que ele trabalhe, chame pouca atenção, coma nos mesmos lugares por rotina e de vez em quando dê uma escapada com seus impulsos psicopatas.

A palavra-chave que define tudo aqui é paz. Kira em nenhum momento do jogo de gato e rato que ele joga com os demais personagens foge de Morioh. Pois ele não tem por que fugir, ele gosta da cidade e de morar lá, pois ela é uma cidade pacata e tranquila, que oferece uma vida tranquila.

O nome de seu arco de introdução é “Yoshikage Kira só quer viver uma vida tranquila”, e isso é a base de seu personagem. A sua falta de ambição e seu desejo por rotina e calma.

Kira é apaixonado pelo clima aconchegante e descomplicado que uma cidade pequena oferece. Onde ele pode seguir uma rotina definida e familiar, e acima de tudo, onde ele pode ter paz. Onde ele não precisa ser ambicioso e competitivo, e apressado, e eficiente. Onde ele pode relaxar, e curtir seu hobby problemático em segredo desde que ele consiga manter a máscara da normalidade em público.

Pois bem, Kira curtia um doa apelos da cidade interiorana, que é a paz e tranquilidade que são tão fáceis de se obter quando você se encaixa em um molde. Porém, ele pela sua mera existência, anulava o outro grande apelo desse tipo de cidade. A sua segurança.

Cidades pequenas do interior passam a impressão de serem mais seguras que as capitais. São lugares onde você não se imagina sendo esfaqueado num beco. A cidade consegue essa impressão por uma noção de que todo mundo se conhece, e portanto tá todo mundo se vigiando constantemente, mas não é só isso. Essas cidades também tem um senso muito forte de comunidade. O sentimento de que se existe um elemento invasor que não pertence ali, todo mundo se une para expulsar.

E é exatamente o que ocorre em JoJo. Quando a presença de um assassino em série é descoberta pela cidade, a cidade inteira se une. O protagonista Josuke faz uma aliança com todos os personagens que ele havia encontrado até então. E se liguem, isso é importante, não importando se esses personagens eram boas pessoas ou imensos canalhas.

Pois não importa se você é um golpista que extorque os outros, ou um delinquente rude que destrata os outros. Essas infrações são menores e se resolvem dando uma dura na pessoa. Essas existências não quebram a impressão de que aquela cidade é um espaço seguro em que você não precisa ter os medos das capitais. Mas um assassino em série quebra isso. E nessas horas foda-se, todo mundo está unido.

Uma aliança anti-Kira é formada e eles caçam e encontram Kira. Que no final é morto por um acidente. Os heróis chegam a encurralar ele, mas não o matam, ele morre por vítima do acaso mesmo. O mangá não dá aos vivos a catarse de uma vingança, mas dá aos mortos, com a fantasma de sua primeira vítima aparecendo para nos garantir que a alma dele não vai descansar em paz.

E a violação contra a cidade que ele foi em vida é mostrada no encerramento do anime com mais clareza do que seria em qualquer outro lugar. O encerramento do anime é simplesmente a câmera percorrendo pela cidade, com todos os personagens parados em pontos específicos. E o encerramento é atualizado a cada episódio, para incluir aqueles que conhecemos recentemente, de modo que quando vemos o encerramento pela última vez, nós vemos de fato todo mundo, todos os personagens que já apareceram no anime dão as caras. Todo personagem aparece, exceto o Kira. Pois Kira não pertence àquela cidade. Mesmo tendo nascido, sido criado e vivido ali a vida inteira, ele é uma existência que não pertence aquela cidade, e se a gente vê todo mundo ali ocupando um espaço na cidade, ele não terá lugar nesse vídeo, e por isso a cidade se uniu para tirar ele de lá.

Tal como o que Kira lutou para manter, esse tipo de cidade oferece esse tipo de vida. Descomplicada, pacata e pacífica. Ir sempre na mesma padaria, apreciar sempre o mesmo sanduíche, manter uma pequena rotina e viver uma vida tranquila e não ambiciosa.

Mas essa vida tem um preço. E é um preço que Kira estava mais do que disposto a pagar, até ele não ser mais capaz de pagar.

O preço é que você está sendo constantemente vigiado. Claro, que o mangá foi escrito nos anos 1990, e o leitor desse texto está lendo do século XXI (presumo) e está pensando em como ele se sente constantemente vigiado por câmeras de shopping, e celular alheio, e tudo é uma câmera… mas é diferente. A vigilância aqui, é a vigilância dos seus pares. O olho das pessoas que te conhecem e sabem onde você mora. O preço de viver numa cidade pequena e pacata e gozar de sua tranquilidade, é que você deve entrar no molde daquilo que é aceitável. E todos estão constantemente olhando a todos para ver se não existe ninguém fora do molde.

E para Kira era trabalhoso manter a sua máscara de pessoa normal, ele passava uma parte enorme do seu dia se esforçando para manter essa máscara. Mas não é porque tomava esforço dele, que ele não fazia numa boa. Ele aceitou o preço, pois ele queria essa vida, e ele se esforçava para que seus vizinhos e colegas de trabalho o achassem a pessoa mais normal e dentro dos moldes do mundo.

E por trás dessa normalidade, a sua perversão era seu segredo absoluto.

E eu quase falei agora um “não acho que seja uma coincidência que…”, mas vou ser sincero, eu não ponho a mão no fogo pelo Araki não. Ele é bem do estilo que pensa pouco pra escrever. Então talvez seja uma coincidência, que o prazer que Kira mantém sendo um assassino em série fosse um prazer obviamente sexual. Ele estava escondendo um crime hediondo? Sim, mas ele ao mesmo tempo estava escondendo um fetiche. Um fetiche secreto. Um hábito sexual grotesco que destruiria toda a sua vida se viesse a tona. E bem, tem muita gente que nunca cometeu crime nenhum que esconde seus fetiches nesse tipo de cidade. Esconde de quem? Da vigilância de seus vizinhos e colegas, que estão sempre procurando quem é que não pertence.

E também talvez seja uma coincidência de que quando seu segredo ameaçou vazar, Kira reinventou sua identidade com o que? Um casamento falso, se escondeu por trás de uma família modelo, com uma esposa por quem ele não sentia nada sequer próximo de amor ou carinho, para passar a impressão de que ele era normal e não tinha impulsos sexuais medonhos. Refazer a máscara da normalidade.

Kira quer usufruir dos benefícios, mas usufruir dos benefícios cobra um preço que é cobrado mesmo pra quem não é um assassino em série.

Mas o lance de JoJo é: Kira É um assassino em série. Ele é um vilão perverso dos mais hediondos, e nós devemos sim sentir asco dele. Porém seu amor pela vida pacata é justamente o que o humaniza, e o que nos permite acompanhar sua tentativa de se esconder ali quando era muito mais fácil ele só sair da cidade e se esconder em uma cidade grande.

A noção de que a comunidade é uma comunidade que vigia seus pares constantemente e que a cidade pequena pode ser incrivelmente hostil com quem não entra em um molde de comportamento e não pertence ao lugar, não é retratado no mangá como um aspecto negativo desse tipo de vida. Pois no caso específico de Morioh o molde de comportamento marcado era “não pode matar mulheres”, e é bem fácil concordar que “não matarás” é uma boa regra.

E está aí a facilidade de JoJo de romantizar essa vida. Não só os personagens do bem amam a cidade, pelos benefícios que esse tipo de vida oferece, como o vilão, e o personagem que meio que ficou acuado por essa cidade também amava esse estilo de vida. E todos os aspectos mais cruéis desse ambiente foram enquadrados como aspectos que eliminam os assassinos em série da cidade.

Obviamente estatisticamente em uma cidade dessas, a chance de ter um assassino em série é muito menor do que a chance de termos membros de qualquer uma das letras da sigla LGBTQIA+, mas primeiro que, você pode ser hétero e estar fora dos moldes aceitáveis que a comunidade exige, você pode curtir BDSM, você pode ter dois cônjuges, você pode ser uma mãe solteira dependendo da época em que a história passa. E em segundo lugar não necessariamente só de sexualidade estamos falando, tem muita coisa além de sexo que te tira da norma. Temos a chance da cidade não ser tolerante a certos tipos de carreiras que proliferem ali. As vezes uma pessoa que seja de um determinado gênero ou cor ao procurar um certo tipo de trabalho quebrem o molde. Essas cidades podem ser muito hostis mesmo com quem não mata ninguém.

E se quiserem um comentário mais caricato, porém certeiro de como as cidadezinhas operam nessa noção de vigiar o vizinho, eu recomendo de coração o filme Hot Fuzz, do diretor Edgar Wright.

Então, recapitulando. A romantização dessa vida em JoJo funciona bem, pois os aspectos positivos da cidade pequena são sentidos por todo mundo, e os aspectos negativos só são um problema se você matou 53 mulheres para se satisfazer sexualmente com mãos decepadas. Então funciona, pois a carga negativa desses aspectos não é acentuada pelas decisões dos personagens.

Inclusive a noção de que essa união e vigilância formam uma defesa contra o elemento externo, como um ponto positivo da cidade não é coisa só de JoJo não. Fazemos isso em vários lugares. Já foram ver Bacurau?

Mas e como é que isso funciona em Persona? Onde “seja você mesmo” é um dos temas do jogo?

Pergunta cretina essa que eu fiz. Obviamente funciona com essa contradição aí funcionando a todo vapor.

Persona 4 e o que não funciona em uma cidadezinha do interior:

No jogo Persona 4, nós acompanhamos o ano letivo em que o protagonista mora na cidade de Inaba, que também é o mesmo ano em que uma série de assassinatos ocorre na cidade.

Porém, diferente do caso de JoJo, em que Kira matava suas vítimas com seu superpoder, em Persona o assassino joga a vítima para um mundo paralelo onde elas serão mortas pela própria sombra.

Calma, vamos explicar isso melhor. Os personagens de Persona tem acesso a esse mundo paralelo habitado por sombras. E essas sombras representam aquilo que os personagens reprimem dentro de si. O jogo usa muito o tema de termos uma identidade pública que apresentamos para o mundo exterior, e termos uma identidade privada, que quando contradiz com a nossa identidade pública a gente oprime, afunda ela no subconsciente. E ela se manifesta nessas sombras. Exageros simbólicos e agressivos da parte do seu ser que é negada.

E esse é o gameplay de parte considerável do jogo. Um dos nossos amigos é jogado nesse mundo, e nós temos que resgatá-lo antes que ele seja morto pela própria sombra. Claro que para derrotarmos sua sombra, esse amigo deve enfrentar a si mesmo. Em um processo que envolve primeiro admitir que aquelas características que ele vê são parte de seu ser, e aceitar aquela faceta de sua pessoa. Pois sem admitir isso, não poderá enfrentar sua sombra.

Esse processo que vemos acontecer várias vezes no jogo com vários personagens está diretamente conectado com os dois temas centrais do jogo. Seja você mesmo. E não negue a verdade só porque ela dói. Que são dois temas que dá para fundir ainda em um: “Aceite a verdade sobre si mesmo. Entenda quem você é.”.

E isso enquanto eu jogava me causava um desconforto enorme porque… Inaba não me parecia um lugar onde dava pra você ser você mesmo. E o momento em que isso me bateu pela primeira vez e não parou de remoer na minha cabeça desde então foi com a personagem Yukiko Amagi.

A trama de Yukiko, caso o jogador queira fazer os social links com ela, é que ela tinha o desejo imenso de sair de Inaba. Ela se sentia presa pelo seu destino traçado de herdar a hospedaria da sua família, pro qual ela estava sendo treinada desde sempre. Ela queria viver uma vida longe desse tipo de destino. Ela queria ser uma decoradora de interiores. E ela também queria aprender a cozinhar, o que é um talento que ela nunca desenvolveu ou precisou ter sendo uma herdeira com trocentos empregados.

E é notável que pra ter uma carreira que não envolvesse herdar os negócios da família não era algo que podia ser resolvido só arrumando um emprego em outro lugar, era necessário abandonar a cidade, pois a sua conexão com a sua família, quando sua família é conhecida, te precede. A influência dos Amagi era local, e ela só sairia da aura deles, se ela deixasse o local. E o desejo de sair da influência dos pais para poder realizar o próprio sonho não é um desejo incomum na ficção não.

Muita gente interpreta que o desejo de viver em terra firme de Ariel era por um homem, mas o filme deixa explicito em texto que era pra sair da área onde ela vivia sob influência de seu pai.

E eu na hora, obviamente projetando experiências minhas, achei que o meu papel como jogador era ajudar Yukiko a realizar seu sonho e conseguir sair dali, para ela poder ser quem ela realmente é, e não o reflexo de seus pais. E pra mim fazia sentido, pois se em um ano eu sairia de Inaba também, e eu sabia com antecedência que Yukiko era um dos interesses amorosos, para mim funcionaria se no final Yukiko partisse comigo, para sua liberdade. Achei que o jogo me daria os meios de fazer isso.

Mas não, pois a conclusão da história dela envolvia ela entender o quanto ela se importa com sua família, com a hospedaria e o quando ela não quer abandoná-los de verdade. E que suas ambições de ter uma carreira diferente de herdar os negócios da família eram uma fuga da realidade que ela estava fazendo. Mas Yukiko entender quem ela era, significava entender que ela não quer fugir, e sim ser quem os pais querem que ela seja, mas por opção e não obrigação.

E isso deixou um gosto amargo na minha boca. Quase como se eu já tivesse conhecido pessoalmente mulheres brilhantes que falaram pra mim como elas tinham sonhos ambiciosos de carreira e independência, para depois descobrir que esses sonhos ficaram de escanteio e que elas resolveram ficar o resto da vida em uma cidade onde nada acontece e esses sonhos não existem.

E a história de Yukiko me deixou pensativo.

Me fez pensar na história de Yosuke Hanamura. O melhor amigo do protagonista no jogo. Yosuke Hanamura que nem você não é um nativo de Inaba, ele se mudou alguns meses atrás, porque o pai dele abriu um mega-mercado na cidade, que por ser uma cidade com muitos comércios locais, está meio que cagando a economia local. Muita gente na cidade odeia Yosuke por isso. Pois o pai dele chegou para falir todo o comércio da cidade. E se a cidade odiava ele, ele odiava de volta, lamentava o ambiente rural e não ter nada pra fazer, e senta falta da emoção da cidade grande.

E o arco de Yosuke é justamente o de aprender a amar aquela cidade, pois é a cidade onde moram seus amigos e família, e ele precisa aprender a perder seu preconceito com Inaba, e valorizar a vida que ele tem lá. No final mesmo, o mega-mercado deu emprego pros trabalhadores locais então eles zeraram o atrito de Yosuke com a cidade e ficou tudo bem.

E o que a história tanto de Yukiko quanto de Yosuke me pareceram, eram jornadas para fazer personagens que tinham motivos muito válidos para não amarem aquela cidade, amarem ela. Como se fosse importante que no final todo mundo fizesse as pazes com Inaba. Como se não amar a cidade fosse um defeito, e amadurecer enquanto pessoa fosse a solução para esse defeito. O que torna um tipo de romantização já aí bem diferente da de JoJo.

Enquanto em Jojo todo mundo, do bem ou do mal, ama Morioh, em Persona o jogo nos estimula a antagonizar personagens que não gostem do interior.

O ponto é que eu acho as críticas de Yukiko e de Yosuke à Inaba muito válidas. E o motivo pelo qual os dois resolveram retirar suas críticas e aceitar o local onde eles estavam me fez pensar em outra personagem: Yumi Ozawa.

Yumi é uma personagem de social link que não é uma protagonista, inclusive fazer o social link com ela é completamente opcional. Mais opcional até que a média, pois os benefícios no jogo que você obtém socializando com ela podem ser obtidos socializando com outra personagem se no começo você preferir entrar na banda da escola em vez do clube de teatro. Pois eu escolhi o teatro e conheci a Yumi.

Yumi era uma garota que sonhava em ser atriz, uma área que ela não só tinha muita afinidade como também muito talento. Agora, algo que ela nunca disse ou entrou no mérito, mas desde o começo me deixava pensativo durante as interações era: “como que alguém vira atriz em Inaba, uma cidade sem teatro, sem cinema e sem vida cultural?”, e eu achei que a história dela ia abordar um pouco isso. O quanto as ambições dela eram completamente incompatíveis com o ambiente dela. Mas não, não passa nem perto dessa direção.

A história de Yumi é que seu pai que abandonou a família retomou contato com ela em seu leito de morte, e ela está dividida se perdoa ou não ele, com sentimentos mistos e medo de ser tarde demais.

Ela consegue refazer alguma reconexão com seu pai, embora ainda guarde mágoa, redescobre o significado do seu nome (significa “dar frutos”, pois ela é o fruto das esperanças de seus pais), e após o pai falecer ela abandona o sonho de ser atriz. Pois ela descobre que sua conexão com atuação era só escapismo para esconder os sentimentos negativos de seu abandono parental, e que agora ela não precisa mais disso, pois descobriu melhor quem ela era. E decide que ela vai se dedicar a ficar ao lado de sua mãe.

O que culmina em outra personagem que o ato de ser quem você é, e aceitar a verdade sobre si mesmo significa abandonar os sonhos. E tem uma coisa que eu quero apontar aqui em semelhança com as outras histórias: abandonar os sonhos em prol de ser leal a sua família.

Assim como Yosuke que fez as pazes com uma cidade que ele odiou tanto quanto a cidade odiou ele, pois era a cidade de seu pai, entre outras pessoas.

Eu reforço mais uma vez, reforço quantas vezes eu precisar. Em uma cidade de cem mil habitantes, as pessoas sabem na escola quem é filho de quem. Numa cidade de cinco milhões de habitantes, só se o cara for o filho do prefeito ou do apresentador de televisão ou coisa do gênero. Nesse tipo de cidade a sua família te precede, e de quem você é filho dita em muito pra onde você vai depois que se forma. Se a família tem um negócio, você ajuda no negócio da família. Se você briga com a família, essa briga se torna pública facilmente, todo mundo sabe o que rolou.

Por isso eu não gosto de ver que todo mundo achou o próprio lugar, quando os personagens estavam em uma disputa de braço de ferro entre o que eles gostavam e os pais, e os pais enfim ganharam, culminando neles falando “ah eu só gostava disso porque eu tava com a cabeça em umas paradas erradas”. O jogo enquadra isso como desenvolvimento de personagem, amadurecimento e como uma conclusão positiva do arco deles. Mas para mim, rima como adolescentes tendo as asas cortadas pela família.

E eu confesso que me sinto bolado de que o game me fez simular a experiência de ter amigos no colegial, para depois eu descobrir que ninguém que eu conheci em Inaba tem faculdade como uma opção pós-formatura. Obviamente, não tem faculdade em Inaba, mas justamente por isso. Parece que o ato dos personagens ficarem em Inaba é um limitador de suas opções.

E eu pensava que era um absurdo, que eu queria poder usar meu personagem e meu poder de interação para ajudar esses personagens a saírem de Inaba. Mandar Yukiko pra Tokyo. Mandar Yosuke pra faculdade. Mandar Yumi pra algum grupo de teatro. Deixar eles viverem fora do círculo da família deles para ver como eles se encaixam lá, antes de decidir que esses sonhos eram a cabeça no lugar errado.

Me pareceu o jeito errado de romantizar Inaba.

Pois agora sim. Em JoJo, todos os personagens amavam Morioh porque nasceram ali, e nunca estiveram em oposição com o ambiente, então a romantização faz sentido. Ninguém em JoJo tinha uma ambição fora de Morioh pra jogar fora. E também nunca ficou implícito que eles jogariam, que nenhum deles seria capaz de achar um emprego ou uma carreira fora de Morioh no futuro.

Mas os personagens em Persona tinham atritos claros com seu ambiente, e no final eles percebem que os laços sanguíneos que seguram eles ali eram fortes demais, e por isso fazem as pazes com os atritos. E isso envolve abandonar hobbies e sonhos que não faziam mais sentido se sua vida é sua família.

Mais que isso, enquanto em JoJo, amar Morioh era natural pros personagens bons e maus, pois eles viviam lá e gostavam do lugar onde viviam. Em Persona, gostar de Inaba é uma qualidade e desgostar é um defeito. E esse defeito é usado para enfatizar a perversidade de seus vilões.

Adachi mata como maneira de aliviar o stress e ódio que ele sente de Inaba. Odiar Inaba reforça sua vilania.

Parece que os grandes temas de “seja você mesmo” e “aceite sua verdade”, na verdade são um “Olhe pra dentro de você, esse é seu sangue, é isso que você é, aceite.” Você é filho do dono do mercado? Então você tem que fazer as pazes com a cidade, se quiser ser o gerente do mercado. Se sua personalidade é do tipo que não é compatível com essa vida pacata, aprenda a mudar, entre no molde.

E isso me deixou fazendo careta enquanto eu jogava.

Eu vi personagens aceitando e sendo felizes com a não-mudança e o desapego do que eles acreditavam. E isso é uma limitação de perspectiva pesada.

E torna impossível não pensarmos em dois personagens que se destacam em Persona 4, por conta de um outro debate: Kanji Tatsumi e Naoto Shirogane. Dois personagens que foram deliberadamente escritos para que o subtexto de seus conflitos sejam lidos como uma quebra dos moldes cisheteronormativos, para ter a conclusão de seus arcos como eles enfim aprendendo a ser o que eles são… pessoas cis hétero dentro dos moldes, cujos reais conflitos iam para outra direção.

Então embora os conflitos internos de Kanji tivessem um subtexto claro de uma repressão de sua homossexualidade, incluindo uma queda que ele tinha por Naoto (que ele acreditava ser homem), e uma performance de hiper-masculinidade que parecia não-espontânea e querer compensar algo. No fim Kanji estava somente inseguro por ter um hobbie lido como feminino (costura), e quando confirmou que Naoto era uma mulher, ele confirmou que ele em si não era gay. E com isso ele pode ficar aliviado e aceitar quem é, agora que ele tirou isso do caminho. A informação implícita que todo mundo notou, é que ele pode aceitar quem é, pois ele está dentro dos moldes no fim das contas.

Naoto por outro lado, teve todo um processo de se apresentar como um garoto, uma rejeição a símbolos e roupas femininas. Quando vemos a sombra de Naoto no mundo paralelo, vemos que sua sombra estava tentando fazer o que parecia ser a cirurgia de redesignação de gênero. E o personagem dialogava muito com questões trans. Mas é revelado no jogo que isso era somente um equívoco, que Naoto era uma mulher cis, que acreditava que precisava se passar por homem para ser levada a sério em sua ambição de ser uma excelente detetive. E seu arco é aprender que ela não precisa se passar por isso, com o protagonista (ou seja, o jogador, ou seja: eu e você) recompensando e validando ela sempre que ela se esforça para agir com mais feminilidade, incluindo mudando o tom de sua voz e começando a vestir roupas femininas.

Além de todos os pontos problemáticos desses dois tratamentos que já foram debatidos internet afora pra cacete. E que eu não sinto que eu tenho mais a agregar sobre o que teve de zoado nesse tratamento. Em especial porque aparentemente Persona 4 não é um caso isolado e a produtora tem um histórico negativo nesse debate, e eu não joguei os outros jogos. Além de tudo isso, é difícil não fazer a correlação entre a jornada deles para descobrir que eles não estavam em um armário e eram tão cis e héteros quanto todo mundo ali, com o fato de que cidades rurais não são ambientes famosos por sua tolerância com aquilo que não seja cis ou hétero.

E de que independente de que a resposta da jornada de auto-descoberta dos personagens fosse a conclusão de que eles estavam dentro dos moldes que seus pares esperavam, que esse tipo de questionamento, e toda a moral “seja quem você é”, são ideias que tem espaço definido. Eu não sou gay, eu não falo por mim, e eu também não falo por nenhuma experiência de nenhum possível leitor queer. Só falo da minha observação desses espaços. E eu pessoalmente não imagino que seja fácil ser destoante da cisheteronormatividade de em lugar nenhum. Mas esses processos têm espaço, e os espaços onde existe mais diversidade, são os espaços onde existe uma chance de um processo mais saudável de auto-descoberta. Com mais pessoas que te apoiem e te aceitem, e com mais facilidade de ter onde evitar os grupos que não te aceitem.

Se tem uma coisa que a maioria dos países tem em comum, é que as pequenas comunidades do interior rural são mais conservadoras e menos diversas que as capitais. É assim no Brasil, é assim no Chile, é assim nos Estados Unidos e é assim no Japão. E nesses casos, o conservador nunca está do lado da comunidade queer.

Se você pesquisar guias de viagem ou artigos em que se indiquem onde um turista não-hétero no Japão pode encontrar a cena gay local, as cidades indicadas são sempre Tokyo e Osaka, a maior e a terceira maior cidade do país respectivamente e cidades cosmopolistas. Que são marcadas como pontos que destoam do resto do país. (as vezes incluem Yokohama no grupo também, dependendo do guia).

E os guias ainda alertam quanto ao Japão Rural onde sem uma pesquisa previa, não dá para saber como serão tratados. Guia completo aqui.

Se você abre a wikipedia para ver como está a situação dos direitos LGBTQIA+ no Japão, você vê que eles abrem parênteses sobre como a tolerância é diferente em Tokyo e Osaka do que é no resto do país.

E isso não é coincidência. Esse tipo de cena surge em determinados tipos de espaço, que estão longe de ser paraísos para os gays, mas são lugares com diversidade o suficiente para você poder encontrar a sua cena, mesmo se você não for gay. Eu entrei no prisma da cena lgbtqia+, pois os exemplos do Kanji e da Naoto em Persona são fortes. Mas existem inúmeras maneiras de você ser diferente de uma pequena comunidade conservadora. Tem muito jeito de ser cis hétero e se sentir isolado em uma comunidade onde você não se adequou aos moldes.

Existem muitos perfis de pessoas que precisam achar a sua turma. E acreditem, quando você está fazendo colégio numa cidadezinha rural, você não escolhe a sua turma, a sua escola é a sua turma. Isso tem mudado com a internet desde que eu fui jovem, mas em essência, não são ambientes em que seu leque de opções de pessoas iguais a você para você chamar de sua galera são imensos. Eles são pré-designados.

E eles cumprem o papel de vigilância a procura daquele que não pertence como eu apontei em JoJo. E quem não pertence? É quem não é normal. E o que é normal? É o que o conservadorismo da comunidade disse que é normal.

Ou seja, a jornada de descobrir a verdade sobre quem eles realmente eram de Kanji e Naoto funcionou principalmente porque eles não eram o que o público achava que eles eram. E eles descobriram que eles eram pessoas encaixadas nos moldes, com um campo de interesses peculiares.

Se eles descobrissem outra verdade, talvez eles estivessem num lugar incrivelmente hostil a essa verdade. E talvez fosse difícil eles acharem que viver em Inaba vale a pena se a verdade fosse outra.

Ou seja. A moral de “seja você mesmo”, em uma cidade como Inaba, só é uma boa ideia se você mesmo é uma pessoa “Sem ambições maiores, que é leal aos seus pais e nunca vai sair de perto deles, é cis, e é hétero.” e vemos uma gama de personagens que flertam com ideias maiores, mas descobrem todos que são isso mesmo.

E isso não sentou bem comigo não!

O que obviamente não quer dizer que o jogo é ruim. Longe disso, o jogo é ótimo, mas jogos são, ou, pelo menos, tentam ser, uma experiência muito mais imersiva do que um filme ou um quadrinho, e eu ficava mal, como se eu ficasse vendo os personagens declarando que eles tem que soltar a pessoas que eles são por dentro, só porque tem um leque muito limitado de pessoas que eles podem ser por dentro e qualquer flerte que eles façam com algo fora da caixinha eles descartam, como uma ideia errada que eles tiveram. E eu não podia ajudar esses personagens, eu me passei de bonequinho em modelo 3D por um ano fictício, e em nenhum momento pude dizer pra eles o que eu diria para eles se eles fossem meus amigos reais.

Que eles não tinham nada que ficar em Inaba.

Que Inaba enquanto uma comunidade pode ser bom para muitas pessoas, mas não era boa para eles. Que se a Naoto quiser ser uma mega-detetive, a primeira coisa que ela tem que aprender é que esse detetive não fica em Inaba. E que se o Kanji quer falar com outros homens que curtem costura, sobre seu hobby, ele vai ter que fazer isso em outra cidade.

E isso traz um tom interessante. De que todo esse “certos interesses e identidades são mais fáceis quando você sai da cidadezinha”, é na real uma frase fácil de falar, mas às vezes é difícil sair da cidadezinha. Demanda esforço prático e emocional, trocar uma rede de relações estabelecidas para ir para um lugar mais hostil e mais caótico formar uma nova vida. E quando você sai, não é impossível que a cidade te puxe de volta.

Se querem uma recomendação de um mangá que mostra bem como o discurso de “eu preciso sair dessa cidade”, muitas vezes é dificílimo de se pôr em prática, leiam Shounen no Abyss, mas fica o aviso de que é um mangá edgy e pretensioso cheio de querer ser pesadão só pelo choque. Mas eu acho que a relação dos personagens com a cidade é particularmente bem tratada. Especialmente em relação com o quanto as vezes é necessário e fora de alcance, fugir da cidade.

Mas enfim, o que isso tudo significa?

Que quanto maior a cidade melhor? E que foda-se todo o interior? Viva o prédio e abaixo o mato? Não! Pelo amor de Deus, não! Isso significa que existe uma dicotomia entre dois estilos de vida nesse mundo, um não é melhor que o outro, mas eles existem.

O Rato do Campo e o Rato da Cidade.

Lá entre 620AC e 564AC existiu um grego chamado Esopo que escreveu uma tonelada de fábulas e histórias, entre elas uma muito famosa sobre dois ratos, um rato da cidade e um rato do campo. E se você é um otakão que veio parar nesse texto pois ele compara dois xodós da cultura otaku, então talvez você reconheça essa fábula da passagem que ela é usada para explicar o dilema dos personagens no mangá Chainsawman.

Na fábula, os dois ratos comparam seu estilo de vida. E em grande resumo o rato do campo vive com tranquilidade, mas com humildade. E o rato da cidade vive bem, comendo os melhores queijos em grande estilo, mas ele está sempre correndo o risco de ser comido pelo gato.

A fábula faz uma distinção da vida urbana com a vida rural como uma diferença de gestão de risco. O rato do campo tem segurança, mas não tem prazeres. O rato da cidade tem prazeres, mas tão tem segurança. E a moral da história é a de que a vida simples vale mais a pena, por ter menos riscos, mas isso não é necessariamente verdade. Eu não acredito que exista uma vida que valha mais a pena. Tudo depende da pessoa. Por isso eu gosto do uso da fábula em Chainsawman, pois o protagonista deliberadamente afirma preferir ser o rato da cidade, mesmo com os riscos.

Mas não existem só dois tipos de cidade no mundo. Não existem só cidades no mundo. O mundo tem inúmeros espaços e quase oito bilhões de habitantes. E cada pessoa está mais adequada para certos espaços.

Inclusive, eu falei aqui em cidades isso, cidade aquilo, cidade assim, cidade assado. Mas isso vale pra qualquer comunidade fechada. Inclusive, algumas comunidades fechadas que ficam dentro de grandes cidades. Pois é uma questão de espaços mesmo, de interação com espaços. Um determinado bairro pode ficar na capital de um país e operar como uma cidade rural, a depender de suas lógicas internas. E cidades de qualquer tamanho podem se dividir em comunidades internas.

E espaços vem com normas. Pactos implícitos de convívio em comunidade. E como eu falei. Yoshikage Kira entendeu o pacto e cumpriu ele. Ele manteve suas perversões longe dos olhos alheios por anos. Se portou com uma máscara de cidadão modelo, fingiu gostar de uma mulher com a qual ele não podia se importar menos, pois tudo isso era o preço para ter um tipo de vida que ele nunca ia ter em Tokyo, e que esse tipo de vida era pelo que a vida dele valia a pena.

Assim como em Persona 4, eu não tenho crítica nenhuma a como foi conduzida a personagem Rise Kujikawa, que foi uma idol popular, e que resolveu retornar a cidade natal e dar um tempo da vida na indústria do entretenimento. Pois a personagem teve a chance de sair da cidade e viver uma vida que não era possível na cidade, não tem nenhum problema ela ter trocado isso pelo estilo de vida do interior e escolhido voltar. Pois coube a ela experimentar. Pois ela deixou claro que os dois ambientes eram acessíveis a ela, e isso tornou sua escolha mais genuína.

E na moral, o mundo é hostil pra cacete! Em qualquer lugar que você vai você encontra algum tipo de hostilidade. E por isso você tem que achar a sua comunidade, porque a gente não aguenta a hostilidade do planeta Terra sozinhos não. Viver é uma barra que a gente não tem por que lidar com ela sem apoio de pessoas que nos façam sentir acolhidos. E elas não necessariamente nasceram perto da gente.

Para alguns esse espaço é um lugar simples e harmonioso onde todos se conhecem. Para outros é um espaço diverso e amplo onde qualquer um pode ser qualquer coisa. Depende do tipo de pessoa. Mas o fato de que esses dois tipos de ambiente podem ser bons para diferentes tipos de pessoa, não significa que esses espaços não tenha defeitos típicos deles. E se na cidade grande, o apelo é que você tem o espaço para tentar ser tudo o que você quiser, isso não significa que você não encontra obstáculos e opressões também.

“Seja você mesmo.” é uma lição importantíssima que não foi Persona quem inventou, obviamente. Não, essa aí é a lição de moral de uma caralhada de histórias. Já apareceu como a grande moral de várias séries de qualquer país, e todos concordam que essa é uma excelente mensagem. Agora, isso aí foi a moral de vários roteiros, mas vamos ser honestos aqui. Nos EUA, os roteiristas moram na sua maioria em Los Angeles, e a minoria em Nova York. No Brasil a maioria dos roteiristas moram no Rio de Janeiro, com alguns em São Paulo e no Japão os roteiristas moram boa parte deles em Tokyo. Países têm polos de produção cultural e aquilo que é divulgado pro país inteiro não está vindo de qualquer lugar. E cidades grandes, cosmopolitas, que são centros culturais de seu país e que reúnem uma grande diversidade de ideias, esses lugares não são uma comunidade fechada. Esses lugares são formados por milhares que comunidades que se cruzam. A moral precisa de uma segunda parte que faça sentido fora do polo cultural de seu país, que é: “Seja você mesmo e ache um espaço onde você possa ser você mesmo.” e se você mora nessas cidades, a chance de você conseguir achar esse espaço é maior do que se você mora longe dos grandes centros de troca de ideias do seu país. A Belle era ela mesma na cidadezinha provinciana dela e isso não era bom pra ninguém.

E todos precisamos da terceira moral: “Estejamos sempre criando espaços para que as pessoas possam ser elas mesmas”. Pois essa hostilidade é formada por pessoas, e nós somos pessoas também, o outro lado parte da gente pra quem é de fora.

Porque em Rengo, ali eu não fui eu mesmo. Ali eu não sentia que eu podia ser eu mesmo. Ali minha saúde mental envolvia eu vestir o disfarce de uma pessoa que eu não era, para receber acolhimento em troca. Ser eu mesmo ali era uma ideia horrível. Nada bom sairia disso. Mas isso foi a oitava série. No meu colegial, que eu fiz no Brasil, numa cidade maior, mas ainda do interior, eu também não era eu mesmo. Esse espaço não existia. E eu aprendi por tentativa e erro quais eram os aspectos de mim que tinham que ficar invisíveis. Tem lugares e comunidades em que seja você mesmo é um contra-indicativo para se sobreviver lá dentro.

“Seja você mesmo” é algo que eu apliquei quando eu achei a minha turma. E achar minha turma envolveu mudar de cidade para fazer faculdade. O seu espaço é algo que você tem que procurar.

Não existe “Seja você mesmo”, em cidadezinha afastada. Ali tem normas. Ali tem regras do que é adequado ou não, e ali o senso de comunidade é um sentimento que engloba a cidade toda, pro bem ou pro mal.

E você pode romantizar isso. Super pode.

Mas você tem que saber romantizar isso.

Porque a vida no interior não é pra todo mundo. E a vida na capital também não. Cada uma tem seu apelo e cada uma tem uma série de pessoas que esse ambiente devorou vivo.

E eu juro, que eu vi JoJo Parte 4 e fiquei de boa, me senti conectado a Morioh, mas eu joguei Persona 4 o tempo todo sentindo que eu estava vendo meus amigos sofrendo lavagem cerebral.

Sobre o autor

Izzombie

Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

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Alertas

  • – Todos os posts desse blog contém SPOILERS de seus respectivos assuntos, sem exceção. Leia com medo de perder toda a experiência.
  • – Todos os textos desse blog contém palavras de baixo calão, independente da obra analisada ser ou não ao público infantil. Mesmo ao analisar uma obra pra crianças a analise ainda é destinada para adultos e pode tocar e temas como sexo e violência.

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