“Por que o Batman não salva Gotham com sua fortuna?” e outros debates. (feat. Zorro):

Ei, você aí, meu querido leitor. Alguma vez você já esteve na internet e se deparou com o seguinte argumento: “O Batman é só um playboy usando sua fortuna pra dar porrada em gente com problema mental. E se ele quisesse mesmo ajudar Gotham ele usava o dinheiro pra investir em melhorias sociais.”? É um debate que inevitavelmente pipoca quando o assunto é o Batman, geralmente não fica sem resposta, geralmente alguém vem e fala: “Mas o Batman é um filantropo que usa sua fortuna para o bem das pessoas e faz caridade, então ele já faz isso”. É uma resposta que dão. E essa conversa se repete muito quando o assunto é o Batman.

E o assunto nas conversas de cultura pop tantas vezes é o Batman.

Quase como se ele fosse o super-herói que foi mais adaptado pro cinema e pra televisão na história dos super-heróis.

O texto de hoje é sobre esse debate.

É sobre por que agora nos anos 2020, esse debate está sendo feito. Quero falar um pouco sobre o que significa manter uma premissa de personagem que combatia o crime em 1939, viva por 84 anos. Quero falar sobre que imagem os bilionários possuem no imaginário coletivo atual. Quero falar sobre a relação do Batman com a polícia. Quero falar da relação entre super-heróis e desigualdade social. Mas eu especialmente quero falar um pouco do Zorro.

Afinal o Zorro é a grande inspiração do Batman. Não só Bob Kane e Bill Finger já falaram sobre como o filme The Mark of Zorro (1920) foi uma das influências deles na hora de criar o Batman, como isso foi transferido in-universe, onde é oficial já tem um tempo, que o filme que Bruce Wayne assistiu no dia que seus pais morreram foi o filme do Zorro, e que o Bruce Wayne quis ser um herói igual ao do filme que ele viu. Que é o Zorro.

E o Zorro é um herói que existe inteiramente em torno da questão da desigualdade social e da luta de classes…. Então quando a gente fala do Batman como se ele fosse um ricaço que não tenta acabar com o real problema que é a pobreza, ele estaria traindo os ideais do Zorro, e mostrando que ele não entendeu sua inspiração?

Venham comigo, que essas são as perguntas nas quais vamos pensar nesse texto! Eu sou Izzombie, e esse é o texto do Dentro da Chaminé sobre a enorme fortuna do Batman e sua suposta responsabilidade social.

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Esse texto é escrito em homenagem a todos os que apoiam o blog, esse grupo querido de pessoas a quem o blog deve tanto. Espero que todos gostem do texto.

Um texto sobre o Batman, e eu acho que é por ele que devemos começar a abordar o assunto.

Quem é o Batman?

Batman é um super-herói, criado em 1939. Mas ele não nasceu pronto. O personagem foi construído aos poucos e pensado e repensado por várias pessoas, em diversas mídias para chegar da maneira que ele é hoje. O Alfred, a Bat-Caverna, o Bat-Sinal, o Robin, o Coringa, e mesmo Gotham City foram elementos que foram criados um por um aos poucos conforme o personagem se desenvolvia, e que não existiam quando ele estreou. E com o passar de 80 anos esses diversos elementos foram se alterando, se misturando e se encaixando pra criar a mitologia que todo fã exige ver em toda adaptação do personagem.

Alfred inicialmente foi pensado como um personagem gordo, que depois teve sua aparência repensada para ser igual a de William Austin que o interpretou no primeiro seriado cinematográfico.

Mas o que existia desde sua primeira aparição, desde literalmente a primeira página do personagem é a ideia, de que o playboy Bruce Wayne é secretamente o vigilante Batman.

Mas na época ele não era um bilionário. Na época bilionários eram um conceito hiperbólico demais. O Henry Ford não era um bilionário. Mas mesmo medindo com a régua de sua época, Bruce Wayne não era apresentado como o homem mais rico do planeta, somente como alguém rico. Mais rico do que a média. Ele não era o equivalente ao Rockfeller de Gotham City nessa época.

Mas a ideia do Batman ser o CEO de uma empresa chamada Empresas Wayne? Essa ideia surgiu em 1979, quarenta anos depois do personagem…

A primeira aparição das Empresas Wayne, que coincide com a primeira aparição do Lucius Fox, na edição 307, publicada em 1979.

Bruce Wayne evoluiu de socialite, para milionário, pra CEO milionário de empresas de grande tecnologia, para bilionário. E conforme o tempo passa, mais e mais e mais o dinheiro dele passou a ser tratado como um de seus superpoderes, e menos como uma desculpa para ele poder ter tempo livre de ser o Batman e acesso a umas bugiganga legais.

Mas conforme sua fortuna fictícia foi crescendo, a importância dela foi também. Na mitologia atual, a família Wayne é uma das famílias mais importantes de Gotham, e tem sido desde a fundação de Gotham. Bruce Wayne é mais do que um rico com bons contatos, ele é uma das maiores personalidades públicas de Gotham. Ele é o homem mais rico do universo DC, superando outros CEOS envolvidos em super-heroismo e super-vilania como Oliver Queen e Lex Luthor, e ser rico tem se tornado mais e mais parte insubstituível da identidade de Bruce Wayne.

Afinal de contas o tempo foi tratando de amarrar os diversos pontos que compunham a mística por trás do personagem de maneira coerente. De onde ele tira tantos itens que o ajudam no combate ao crime? Ele fez sob medida. Mas realisticamente custariam uma fortuna? Mas ele tem uma fortuna. Mas a tecnologia empregada seria surreal. Mas ele é dono de uma empresa de tecnologia.

Tudo isso era necessário, pois um ponto muito importante do Batman era sua falta de superpoderes. Era fundamental distingui-lo do Superman, fazendo ele ser um mero humano com grande intelecto, treinamento, condicionamento físico e acesso a itens e veículos que o ajudem. Para dar um tom especial pra suas histórias, não soarem só histórias do Superman vestido de preto, soarem que tem a própria vibe. Mas conforme ele foi se tornando parte de um universo maior, fez crossovers com o Superman, se tornou parte da liga da Justiça, era necessário que ele não tivesse um grande desnível lutando pau a pau com alienígenas com imensos superpoderes capazes de destruir um exército sozinhos.

E a ironia é que quanto mais eles achavam soluções criativas para deixar o Batman mais poderoso, no sentido capacidade de combate, e de deter outras pessoas e salvar Gotham e o Mundo de ameaças letais, mais era necessário tornar Bruce Wayne poderoso para compensar. E aí eu falo de poder político. Mais era necessário tornar ele uma das pessoas mais influentes do planeta. Eu mostrei na imagem ali em cima, sobre como as Empresas Wayne foram introduzidas pela primeira vez como um espaço onde a economia das nações é alterada. Ele é um homem com a capacidade de gerar mudanças estruturais. 

Bruce, ao ouvir Harvey falar que precisa de dinheiro para uma operação policial que aumente o encarceramento, estala os dedos e fala que vai financiar tudo.

E ele não gera.

Porque ele não pode gerar. Ele precisa ser o Batman pra sempre.

Histórias em quadrinhos vivem de inúmeras contradições. E idealmente elas deveriam ser vistas sob o olhar menos realista possível. Porque quando a história quer dar explicações convincentes, ela força o público a fazer perguntas, e quando falamos de batalhas de bem vs mal, algumas perguntas não devem ser feitas.

Mas o importante é duas coisas.

1- Embora o Batman tenha evoluído muito sua construção-de-mundo desde 1939, essa evolução tem sido principalmente aditiva. Ele foi ganhando mais e mais elementos que compõe seu universo e sua vida de super-herói. Mas exceto pelo Batman matar os vilões em suas primeiras histórias, e depois ter criado uma regra de jamais matar para poder começar uma linha de histórias mais infantis, exceto por esse elemento, o Batman não perdeu as principais características que o definiam quando foi criado em 1939. Na primeira história ele era um socialite que posa de ricaço abobado para esconder que ele era secretamente o Batman, e ele faz isso até hoje.

2- O mundo mudou muito em oitenta anos, e em 1939 não era realmente possível de prever que mundo existiria em 2023 pro Batman ocupar. Hoje o Bruce Wayne tem o poder de influência social de um Jeff Bezos ou Elon Musk da vida, mas em 1939 essas pessoas não existiam. Eles tinham o Rockfeller, que em um mundo sem internet, redes sociais, corrida espacial, representava um perfil diferente de indivíduo, mesmo pra quem o odiava. 

E é isso que o Batman é. O Batman é uma ideia de 1939 sobre usar dinheiro e violência para impedir o crime na cidade grande, que 80 anos depois vive em constante atualização de como abordar essa premissa, mas ainda mantém essa premissa inalterada. Ele precisa ser rico, precisa usar da violência, precisa impedir o crime na cidade grande e tudo isso tem que soar correto.

Agora o Batman foi um dos primeiros “super-heróis” que existiram, pois o rótulo foi criado para diferenciar o Superman de todos os outros heróis de gibis que vinham antes, e o Batman foi um dos primeiros a surfar a onda do Superman e querer brincar da brincadeira nova. Mas existiam muitos heróis da cultura pop antes. Eles só não tinham o rótulo de super-heróis, e a série de convenções que foram criadas para estabelecer esse formato narrativo e esse arquétipo não se aplicavam 100% a quem veio antes.

Mas tanto o Superman quanto o Batman foram fortemente moldados e influenciados pelos heróis, dos gibis, literatura e cinema, que não eram chamados de Super que vieram antes. Doc Savage, Tarzan, Phantom, Robin Hood, Sherlock Holmes… o Batman em particular é atribuída três inspirações diretas. The Shadow, Sherlock Holmes e Zorro.

E eu acho relevante falar do Zorro, por um motivo fundamental.

O Zorro é rico.

E de todos os elementos do Batman, o mais essencial que o conecta ao Zorro, é a ideia de que o Zorro é um ricaço vivendo uma vida dupla, se fazendo de bobo, pondo máscara e indo lidar com a injustiça.

Vamos falar um pouco do Zorro então.

O Zorro:

Zorro é um personagem criado em 1919 para o livro The Curse of Capistrano, que o livro mal havia saído e já estava sendo adaptado para o cinema no filme The Mark of Zorro, de 1920 que adapta o livro. E do sucesso do filme, saíram outros filmes, saíram gibis, saiu uma série de TV, saíram seriados e saíram mais livros, girando em torno do personagem.

E o personagem é esse rapaz chamado Don Diego de la Vega. Um jovem aristocrata que mora na Califórnia ocupada pela colonização espanhola. Naturalmente ele mora ali por sua família ser parte da colonização, seu pai inclusive é o maior dono de terra da região. Pois bem, Don Diego vai para a Espanha fazer faculdade, se destacar dentre seus pares, e lá ele se torna um excelente esgrimista. Porém ao voltar pra Califórnia, ele reencontra uma terra arrasada e oprimida, em que a população está a mercê de um terrível regime de colonização por parte das pessoas que governam as colônias. Don Diego resolve enfrentar o regime, vestindo uma roupa preta e uma máscara, ele protege o povo e combate os guardas e colonizadores, marcando aqueles que ele derrota com o símbolo do Z, para criar medo e um status de lenda.

O Zorro meio que codificou todo o esquema de identidades secretas nos quadrinhos que os super-heróis utilizariam. Pois vidas duplas são um conflito interessante para um herói. Mas no caso do Zorro a identidade secreta não existe só para gerar um conflito legal, e uma vida dupla para ser manejada. A identidade secreta existe, pois ele é um traidor.

Don Diego de la Vega é um dono de terras que ativamente combate os interesses dos donos de terras. Ele é um colonizador que faz a vida do colonizador ser um inferno. E ele é do grupo que os guardas e militares protegem, mas é inimigo jurado dos guardas e militares. O motivo dele usar a máscara, não é porque um bandido pode ir até a casa dele e matar sua namorada se souber sua identidade. É porque ele depois de combater a injustiça, vai no dia seguinte almoçar junto das pessoas que ele combateu.

Para impedir que suspeitem que ele possa ser o Zorro, Don Diego faz um esforço ativo para parecer o jovem rico mais alienado possível. Sempre que possível ele diz algo que demonstre ignorância política na frente dos seus pares, e passa a impressão de que seu único interesse é gastar um dinheiro pelo qual ele não trabalhou em roupas, produtos e mulheres. E vocês lembra quando o Bill de Kill Bill diz que o Superman se faz de patético quando é o Clark Kent, pois ele vê os humanos como patéticos? O Superman não faz isso, mas o Don Diego faz. Ele montou um personagem de um profundo ignorante, de um incapaz desqualificado, um alienado sem nenhuma capacidade de ocupar a posição que ocupa na sociedade, pois é assim que ele vê a própria classe, e porque ele sabe que esse tipo de personalidade é completamente dentro da norma do esperado. Que todos vão achar normal ele se portar assim.

Don Diego é um traidor de sua própria classe, e ele caminha entre os ricos, como um espião caminhando entre seus inimigos. Seus aliados são aqueles que zelam pelos pobres, pelos famintos e pelos povos indígenas. E assim como muitos heróis puxaram elementos do Zorro, o Zorro também se inspirou muito nas lendas do Robin Hood, em que ele rouba o dinheiro dos colonizadores, e dá esse dinheiro para o povo da Califórnia.

E eu acho importante pensar que o Zorro é um personagem em que a escolha de fazer Don Diego de la Vega ser um homem rico não é só pra deixar o roteiro mais fácil, ou mais conveniente de explicar de onde ele tirou sua espada e seu tempo livre, mas é o conflito central do personagem, que gira em torno do conflito entre classes. O Zorro não é verdadeiramente separável de um conflito de classes, e de um sentimento que é contra a classe dominante.

Agora, vamos ser justos aqui! O motivo pelo qual o Zorro é livre pra ser anti-sistema, anti-autoridade, enfrentar os guardas e marcar rico com espada do mesmo jeito que o Aldo Raine marca os nazistas, é porque Zorro não se rebela contra os Estados Unidos. Ele se rebela contra a Monarquia Espanhola. E ele luta para tirar da Espanha, uma terra, que na época em que o filme se passa já foi tomada pelos EUA.E como eu disse no meu texto sobre Quem Tem o Direito de Fazer a Revolução, uma chave pra poder ser revolucionário, é não atacar as instituições estadunidenses. E o Zorro não ataca. Ele está alguns séculos antes daquela terra ser Estados Unidos. Eu não estou alheio a esse fato.

Mas mesmo assim, isso ainda torna extremamente irônico que esse tenha sido o personagem que inspirou o Bruce Wayne a virar o Batman. Pois a história do Batman não é sobre conflito de classes. Em nenhuma releitura é sobre o Bruce Wayne se rebelando contra a classe dominante de Gotham.

Digo, tem uma adaptação da mitologia do Batman bem famosa que é sobre isso, mas o Batman enquanto vigilante não aparece no filme, e o filme gira em torno de uma mudança de perspectiva que realmente condena a existência de Bruce Wayne.

E esse é o lance. A mitologia do Batman se construiu a partir de certos elementos fundamentais para manter tudo de pé, que exigem que suas histórias não olhem muito de frente pra questões sociais que estão ganhando cada vez mais força e se tornando assuntos cada vez mais importantes pro jovem do século XXI. Porque se o filme olhar pra esses assuntos de frente, o Batman inevitavelmente parece parte do problema.

Super-heróis e o Status Quo:

Super-heróis em sua jornada de combate às forças do mal, são apresentados mais vezes do que não de maneira reativa. Ou seja, o super-herói não está fazendo nada, está preocupado com seus afazeres em sua identidade civil apenas, e então um super-vilão ataca a cidade. Ele então veste seu uniforme e vai até o super-vilão enfrentá-lo.

Isso é bom! É bom que o Batman espere o Bane ou a Harley Quinn fazer alguma coisa antes de ir enchê-los de porrada, pois ninguém quer um Minority Report em que esses vilões serão punidos pelas suas infrações do futuro.

Embora quando o vilão está sem nenhum crime pendente, o Batman pode sondar eles feito abutre, só esperando eles escorregarem pra começar a punir.

Mas o que esse formato sugere é que o estado de normalidade da cidade, ou seja, o momento em que ninguém rouba um banco, nenhum alien invade a terra, e nenhum assassinato precisa de investigação, esse momento, é um momento em que os vilões da sociedade não estão ativamente fazendo o mal. E que somente quando existe uma quebra na normalidade, que um vilão sai da toca, que o herói deve interferir para restaurar a normalidade.

Ou seja, os políticos, empresários, banqueiros e latifundiários, cujo estilo de vida depende da opressão sistemática de pessoas não são vilões a serem combatidos, eles são pessoas atuando durante o período de normalidade. E ao lutar pelo retorno a normalidade, o herói luta pelo interesse deles. Quase como se a Gotham antes do Bane atacar estivesse em um estado de paz, que é do interesse de todos manter esse estado.

Vamos pegar um dos episódios mais famosos de Batman, the Animated Series para dar de exemplo. O episódio chama Heart of Ice, ele venceu um Emmy, é um dos episódios mais admirados da série, e é um episódio cuja influência se estendeu para além da série, pois ele propõe um novo passado, uma nova motivação e uma nova personalidade pro Mr. Freeze que foi adotada em quase toda outra aparição futura do personagem, nas HQs, no cinema e na TV. Então vamos falar de um episódio simultaneamente prestigiado, popular e importante.

No episódio Mr. Freeze está roubando itens de uma empresa chamada GothCorp, e o Batman percebe que esses itens roubados podiam ser combinados e formar uma máquina congelante maior e mais poderosa do que a pistola-de-raio-de-gelo tradicional do Mr. Freeze. A GothCorp, alvo de todos os ataques pertence a um homem chamado Ferris Boyle. Bruce Wayne então vai conversar com Boyle, de CEO pra CEO para ver se consegue uma pista, e o Boyle, sabendo que está falando com um igual explica pra Bruce que claro que ele tem um inimigo, pois os trabalhadores têm mais que se foder. Ele não usa esses termos, ele fala mais nos termos abaixo:

Quando assalariado começa a achar que manda por aqui, a gente se livra deles.

Pois bem, Bruce então investiga os incidentes da GothCorp e acha um vídeo de Boyle suspendendo as verbas para uma pesquisa que o Mr. Freeze estava fazendo com criogenia, que se interrompida, mataria a sua esposa. Boyle ignora ele, usa de violência contra Freeze que cai nos próprios tubos de ensaios e tem uma reação-de-história-de-heróis, tendo o corpo alterado pelos químicos.

Agora Freeze não tem mais esposa, e está confinado a uma armadura congelante, pois seu corpo não pode sobreviver em temperaturas acima de 0 ºC. Freeze quer se vingar de Boyle e pra isso ele planeja atacar Boyle durante a entrega do prêmio de “empresário mais humanitário do ano”. Batman diz que não vai deixar Freeze fazer isso, pois terão inocentes dentre a elite aristocrática indo entregar o prêmio de “empresário mais humanitário do ano” pro Boyle.

Batman impede Freeze de usar a arma foda, mas ele ainda se contenta em usar a arma simples e congelar somente Boyle. Batman surge e salva a vida de Boyle, entrando em uma luta com Freeze que termina com Batman quebrando o capacete de Freeze condenando-o a sofrer com a temperatura que é letal pra ele.

Ele então entrega pra mídia provas de que o Boyle cometeu uma injustiça com o Freeze e que ele é o responsável, e termina com ele falando “boa noite, humanitário”, com um tom de extrema ironia.

E o episódio encerra com o Batman observando Freeze em sua cela de prisão, que está lamentando pra sua esposa ter falhado com ela.

Enfim, indo direto ao ponto! Esse episódio tem dois vilões! Um é o Mr. Freeze, alguém que o Batman reconhece como a vítima, e alguém que foi explicitamente desumanizado por seu lugar na hierarquia da empresa. Freeze era uma ameaça a vida de Boyle e dos pares de Boyle que queriam honrá-lo com um prêmio que ele explicitamente não merecia. E para impedir isso, Batman usa da violência e prende Mr. Freeze, encarcerando ele.

O outro vilão é Boyle. Boyle cometeu um assassinato explícito, ele matou a esposa de Freeze no episódio (outras releituras do personagem influenciadas por esse episódio resolveram adaptar sua esposa como ainda viva, ainda congelada), e ele tenta matar Freeze, não sendo interrompido pelos dois guardas que viram tudo. Boyle não achou que Freeze sobreviveria, então ele falhou em matar Freeze, ele não foi interrompido, ele só deu azar de Freeze sobreviver graças a uma mutação de última hora.

E Boyle fez isso por dinheiro. Porque Freeze gastou dinheiro em um projeto de salvar vidas que não traria lucro, e porque Freeze era um empregado que esqueceu o próprio lugar e precisava ser lembrado que o orçamento de pesquisa dele tinha dono. E que tudo que estava no laboratório era propriedade de Boyle, incluindo sua esposa.

Antes de tentar matar Freeze, Boyle se gaba condenar a esposa de Freeze a morte é tecnicamente legal, pois suspender a pesquisa não é crime.

O Boyle é o verdadeiro monstro. Mas a missão do Batman é proteger Boyle. A punição de Freeze foi a violência, a tortura e o encarceramento. A punição de Boyle será levar um exposed da mídia, isso se ele não usar seu poder e influência para impedir que o jornal de fato noticie o que ele fez.

O contraste em combater a vítima com violência e o verdadeiro vilão com cancelamento midiático reforça o que eu quero dizer. O Boyle não é um super-vilão. Se o Boyle comprar os melhores advogados do mundo, se inocentar, e seguir sendo um dos homens mais influentes de Gotham, que destrói a vida de seus funcionários. Pois isso é o normal. Não é do interesse do Batman destruir a GothCorp. E não teve um único dedo apontado pra qual era o perfil de ricaços que estavam ali dando um literal prêmio de empresário humanitário pro Boyle.

O problema é o Mr. Freeze, pois o Mr. Freeze é quem cometeu uma ação que exige uma reação.

Mas que conste, o episódio não está passando pano nenhum pro Boyle. Ele é retratado como um monstro, como uma pessoa asquerosa, como alguém indigno de nenhum respeito ou simpatia. Mas ele é retratado como alguém com  direitos. Alguém que não merece ser congelado, e como alguém que não precisa apanhar de um vigilante Como alguém que pode ter tempo para esperar seu julgamento, contratar seus vários advogados e responder pela exposição de sua tentativa de assassinato ao longo dos anos. E Mr. Freeze não. Mr. Freeze tinha uma condição dizendo que ser exposto a temperatura ambiente seria letal, e o Batman vai lá e expõe ele a temperatura ambiente, sabendo que ele ia parar de fazer qualquer coisa por entrar em um modo de estar quase morrendo. E dessa experiência de quase morte é direto pra cadeia. O Mr. Freeze é um criminoso que existe fora das regras da sociedade, e é detido pelo Batman. O Boyle é um criminoso inserido e adequado as regras da sociedade, então o Batman confiou na sociedade pra detê-lo. Eles não são o mesmo perfil de criminoso, e não receberão o mesmo tratamento.

Isso foi só um exemplo, de uma história no vácuo. Existem um milhão de maneiras de contar narrativas do Batman, com várias posturas. Mas acho importante notar que o Batman não é isolado nisso. Nenhum herói de fato tenta combater empresas com maus-tratos aos funcionários, bancos tirando casa do povo, políticos fazendo políticas que só fodem com o pobre, polícia espancando estudante. Talvez eles tenham histórias específicas em que eles fazem isso uma vez. Mas não é o hábito deles, não é o tipo de narrativa deles, e não é o perfil regular de vilão que eles enfrentam. E isso não é por uma questão moral dos roteiristas, é pela estrutura narrativa do gênero.

E entre o Joker sendo reimaginado como líder popular. O Bane puxando uma revolução popular contra as elites. O Riddler expondo os crimes da elite de Gotham e a Catwoman se tornando um heroína que cruza os limites que o Batman não cruza para ajudar os pobres, fica claro que no universo do Batman, essas batalhas são designadas aos vilões e que o papel do Batman é deter todas essas lutas.

Embora essa ideia possa ser subvertida. O filme Batman Returns de fato quebra os padrões, ao fazer o climax do filme ser o Batman lutando lado a lado com os que foram vendidos como os dois vilões do filme, Penguin e Catwoman, para juntos eles matarem o verdadeiro vilão do filme, Max Shreck, que é um CEO de uma empresa de energia e só um bilionário usando sua vasta fortuna para fazer Gotham um lugar pior, além de ser uma caricatura clara de Donald Trump e todo o nojo que ele já evocava nos anos 1990, quando ninguém imaginava que ele seria o presidente dos EUA um dia. Shreck destruiu as vidas de Oswald e Selina, e não parou de destruí-las até o final, vez e vez, e no climax, os dois tinham mais interesse em destruir Shreck do que qualquer coisa, e o papel o Batman não era o de proteger Max dos monstros que ele fabricou.

Mas a ideia por trás de Batman Returns não e comum. Max Shreck não foi fixado como um vilão recorrente que o Batman enfrentaria mais vezes, e não imigrou pros quadrinhos como um personagem que existe no cânon, embora tenha ido para a minha lista pessoal de melhores personagens da DC que nasceram fora dos quadrinhos.

Mas é isso, tem exceções, mas é difícil de ocorrer. E isso é porque um super-herói tem que viver no nosso mundo! E na história que vem ele ainda precisa viver no nosso mundo. Eles não vivem em mundos de fantasia, eles vivem nos Estados Unidos de 2023, e a menos que tenha uma história específica alterando os eventos (tipo o Lex Luthor ser o presidente), então o presidente deles é o presidente dos EUA, e as principais notícias da atualidade ocorreram em seus universos.

E pro mundo nunca mudar, e as histórias sempre soarem que passam no nosso mundo, os heróis não podem e hipótese nenhuma melhorar o mundo! Todas as injustiças que acontecem no mundo devem continuar acontecendo.

Porque a verdade é que o mundo do jeito que é, mantendo uma normalidade, é uma bosta, com um grande número de injustiças, abusos e mortes ocorrendo por que ele é estruturalmente pensado para que essas injustiças ocorram, e porque pessoas-chave que se interessam em manter o mundo injusto possuem muito poder financeiro e político.

Mas os roteiristas estão de mãos atadas quanto a isso, e as vezes vão tocar nesse assunto como uma maneira de criticar os heróis.

Mas muitos vão querer se justificar, e muitos vão querer falar que se o Superman resolver se importar com deter guerras, enfrentar a política armamentista, e acabar com a fome, o Superman isso eventualmente transformaria o Superman num ditador totalitário. O Superman do mal. E essa é a explicação de porque ele não salva o mundo.

Quando o Tony Stark resolve que somente sentar e esperar o Thanos surgir pra matar ele não basta, que ele tem que fazer mais pelo mundo, isso é visto como moralmente errado. E o argumento dele é posto em contradição direta com os direitos civis estadunidenses. Mudar o status quo é sempre visto nessas séries como uma afronta a liberdade, por isso que os vilões tem naturalidade em fazer isso, e o heróis que tentam fazer isso, flertam com o anti-heróis n na melhor das hipóteses e com vilania na pior, e são detidos por heróis que acreditam no caminho correto (não mudar o mundo).

Reforço, isso não é necessariamente canalhice dos roteiristas, os heróis precisa viver no nosso mundo. Os heróis não podem viver em um universo alternativo em que a Liga da Justiça acabou com o tiroteio e massa nas escolas estadunidenses combatendo o problema em sua raiz e impedindo que grupos de extrema direita predem e radicalizem jovens perturbados.

O Superman pode tirar o Lex Luthor da presidência na porrada. Mas não pode fazer o mesmo com o Trump. Pois o Trump não é um super-vilão, é só um psicopata normal.

Agora o fato de isso não ocorrer por canalhice dos roteiristas não significa que as justificativas que ocorre ali não sejam canalhas. Muitas vezes entra em um território complicado de quem é que tem o direito de fazer a revolução.

Enfim, isso nos leva ao Batman e Gotham.

Gotham City não melhora nunca:

Não importa qual versão do Batman você pegou pra consumir, em qual mídia, a cidade de Gotham City é sempre apresentada de maneira igual: uma cidade com níveis hiperbólicos de crime e violência, controlada pela Máfia, com uma polícia incapaz de deter a Máfia devido a sua corrupção interna. A cidade tem um problema de segurança a nível urgente e alguém tem que fazer alguma coisa. E o Batman é geralmente essa coisa. Um homem incorruptível, que não é preso pelas burocracias da lei, que assusta e intimida os criminosos com sua reputação, mesmo os que ele não encontra. E sua presença manda os criminosos pra cadeia e “limpa a cidade”.

Só que porque o Status-Quo precisa se manter, pra história ser serializável, o trabalho do Batman é um que nunca acaba. Não importa se ele está faz um ano, dez anos, vinte anos, sendo o Batman. Não importa se ele conseguiu um parceiro, dois parceiros, cinco parceiros ou uma organização complexa de combate ao crime.

Gotham nunca vai deixar de ser a cidade mais cagada do planeta!

Pois se deixar de ser não tem Batman e não tem a história seguinte.

O que gera a contradição óbvia. O Batman só é um personagem comercializável, pois ele é um inútil, e porque sua presença não melhora Gotham.

Quando o personagem é uma bobeira infantil, querendo ser cômico e querendo histórias sem nenhuma pretensão. Isso não é um problema.

Mas as vezes as pessoas querem muito levar o Batman a sério, e fazer filmes dele que sejam não só realistas, como cheio de comentários políticos e querendo pensar a sério qual é o trabalho de um vigilante.

E isso faz as vezes, uma galera falar: “Pro Batman melhorar Gotham e poder se aposentar, o que ele precisa fazer é incentivar a lei a pegar mais pesado com a bandidagem. Tirar todos os direitos humanos dos réus. Remover condicional. Remover fiança. Aumentar o número de prisões perpétua. E remover a separação de gênero dentro das celas, só pras criminosas mulheres terem uma punição extra.”

E é isso, as tentativas de fazer o Batman fazer sentido em uma versão que se leve a sério e busque tratar a lei e as instituições de Gotham com alguma verossimilhança, vão inevitavelmente acabar criando um Batman reacionário, pois a ideia é reacionária! E a ideia é reacionária, pois o Batman sempre foca demais no criminoso e de menos no sistema.

E quando um criminoso se vinga do sistema que o criou, o Batman vai proteger sempre o sistema, pois deter a vingança do criminoso é sempre a prioridade maior.

Tudo isso é evidenciado por um elemento que está escancarado desde a primeira aparição do Bruce Wayne, já no primeiro quadrinho e que o Bruce Wayne apareceu: tanto Batman quanto Bruce Wayne, ambos são pessoas com amizade e bons termos com a polícia de Gothamm, especialmente seu comissário James Gordon. Eternamente o maior aliado do Batman, desde sua primeira história até hoje.

Isso porque na perspectiva de Bruce Wayne, a polícia, por mais que tenha seus problemas, a instituição é sua aliada. Algo que ele adquiriu porque a polícia foi prestativa em acolhê-lo e se sentir seguro quando seus pais foram assassinados. E a conexão de James Gordon com o caso do assassinato dos Wayne como algo que permite a Bruce ter essa conexão forte com Gordon e por consequência, na polícia enquanto instituição, é forte.

E o Bat-Sinal, grande símbolo do personagem é isso. Um constante lembrete de que o Batman e a Polícia de Gotham são amigos.

Então a corrupção da polícia de Gotham é constantemente retratada como um problema individual, de “maçãs podres” que precisam ser removidas da instituição. E não que a instituição tenha um problema nela em como Gotham chegou aonde chegou. A solução é focar em gente boa e honesta como Gordon e remover as maçãs podres.

Pois o problema de Gotham não é institucional, nem estrutural, é individual, é remover os elementos problemáticos, pras instituições ficarem limpas, as ruas seguras e o sistema funcionar como deve.

E qualquer olhar não-infantilizado e tentativa de julgar essa situação por um prisma realista evidenciam que pessoas como Bruce Wayne não apanham da polícia. Mas muitas pessoas que não frequentam os círculos sociais do Bruce Wayne apanham.

Existe um escudo de privilégio que impede que o Bruce veja na polícia um elemento hostil de controle social, que protege a classe dominante das populações marginalizadas.

Que é justamente aquilo que o Zorro quebra! Porque reforço, o Zorro usa máscara pra não ser morto pela polícia. O Zorro enfrenta o governo. O Zorro inverte as hierarquias e dá as populações marginalizadas os meios de se defenderem da aliança entre a elite econômica e as forças da lei, que é uma aliança que existe pra oprimir o povo.

E eu trago o Zorro a tona justamente, não só porque ele é a inspiração do Batman que ensinou pra ele o que é ser um herói, e isso é canônico, como ele também é a prova viva de que histórias sobre heróis que queiram de fato enfrentar a desigualdade, combater a polícia e se separar de seu privilégio para poder melhorar sua comunidade existiam desde antes do Batman. E existiram durante o Batman. Eles precisam do loophole de ir pra um tempo e espaço que os vilões não representem o Estado estadunidense, mas é possível. Esse tipo de herói existe.

Em 1940 o Zorro foi adaptado para um filme falado, e um de seus filmes mais famosos, The Mark of Zorro. Em que ele literalmente dá um golpe de Estado e expulsa os colonizadores da California. Em 1943 o Batman foi adaptado para um seriado de 15 capítulos em que pra não passar a mensagem errada de vigilantismo pras crianças, eles incorporam o elemento de que o Batman é um agente do governo contratado.

O Batman é uma força que protege as instituições, os ricos e os poderosos. O Batman é parte do pacto que a elite econômica tem com a polícia. Existe a piada de que o Batman deixa o queixo livre na sua máscara, pois o Gordon precisa ver que se trata de um homem branco por trás dela. E embora isso não seja cânon e sim só um sarcasmo aplicado ao design do personagem, não é exatamente fora da realidade.

E uma vez que ele não consegue mudar a cidade por não conseguir mudar suas instituições, isso tudo traz a tona o fato dele próprio ser uma instituição.

O Batman e seu dinheiro:

O que nos leva de volta ao ponto de partida! O Bruce Wayne ser o homem mais rico de Gotham.

A história da humanidade é a história da luta de classes. E sentimentos contra os ricos e os poderosos não é nenhuma novidade e esteve presente em inúmeros pontos da história.

Porém se falar que esse assunto não foi repaginado e reintroduzido para uma nova geração recentemente, de maneira que o assunto atualmente está sob a percepção de ser um sinal dos tempos atuais, aí seria só ignorar o mundo a nossa volta. Desde os atos de Occupy Wall Street em 2011, os jovens dos anos 2010 e 2020 tem tido uma relação de mais atrito com o capitalismo, a presença de bilionários e com as forças policiais do que a minha geração teve na nossa juventude.

E é curioso, pois o Batman foi um dos primeiros ícones da cultura pop a reagir aos movimentos contra Wall-Street. Quando em 2012, os jargões e sentimentos do movimento foram incorporados por Bane, no filme The Dark Knight Rises como parte de uma manipulação para enganar Gotham a achar que esse tipo de rebeldia agia em prol dos interesses do povo.

E ver o Batman como a alternativa moral e ideológica ao erro que é a revolta contra Wall-Street coloca em evidência o fato de que o Bruce Wayne é o homem mais rico de Gotham. Sendo escrito em uma época em que os bilionários estão cada ano que passa impondo menos respeito e causando mais asco. Dentre um bilionário se tornando um dos piores e mais odiáveis presidentes dos EUA, ao homem mais rico do mundo comprar uma rede social só pra colocar um holofote em sua desinteligência, incapacidade administrativa e tendência ao nazismo. Ao dono da Amazon forçando seus empregados a mijar em garrafas. E cada vez soa que o que o Bruce Wayne representa na sociedade de Gotham em status e poder é muito semelhante ao que figuras como Elon Musk e Jeff Bezos representam hoje.

O que é óbvio, algo que o Bill Finger não tinha a capacidade de prever em 1939. O medo de ver o planeta deixar de existir pela ganancia de quem não pode parar de acumular riqueza mesmo tempo mais que o suficiente pra viver o resto da vida em excesso por gerações. Esse medo é parte de como o personagem evoluiu em relação com o mundo.

Mas a ideia de que Musk e Bezos podiam fazer contribuições significativas para o combate a fome e permitir mudanças no mundo que salvariam vidas diariamente, mas escolhem sentar no dinheiro, financiar projetos espaciais como um hobby, e criar fundações com o próprio nome para poder sonegar imposto, geram a dúvida. Se a gente sabe que o mundo de hoje seria melhor se não fosse a mesquinhez das pessoas que possuem todos os recursos, e no mundo da DC, que é uma réplica do nosso, quem possui todos os recursos é o Bruce Wayne, então como essas peças se encaixam?

E quando alguém joga essa pergunta, essa pessoa não está procurando um erro de continuidade, ou apontando que o Batman é burro. Mas está apontando como a nossa percepção da causa dos problemas do mundo e do papel das elites nela mudou de maneira que é incompatível com como os universos de super-heróis funcionavam na década de 1930.

E isso não é só o Batman não. Afinal o Batman é o mais famoso e icônico deles, mas tem muito super-herói bilionário no mundo. Curiosamente, tem mais bilionário super-herói do que tem trabalhador batendo cartão que é parte da liga da justiça.

Como as empresas Wayne desenvolvem tecnologia de ponta, o Batman sempre possui itens de tecnologia de ponta, levemente verossímil, mas que muitas ainda não existem no nosso mundo, que é o cotidiano dos cidadãos de Gotham, então pro cidadão comum ter a mesma relação com tecnologia que eu ou você, é importante que a tecnologia que o Batman desenvolve não seja acessível pra população.

E isso reforço, não é defeito moral do Batman, é como os universos das HQs foram feitos pra funcionar A mesma acusação pode ser feita pro Tony Stark e pro Reed Richards. Porque todo mundo não tem uma super-armadura da mesma maneira que todo mundo tem um smartphone no universo Marvel? 

Mas narrativas são feitas de escolhas, tradições e convenções existem pra serem quebradas, e reimaginar o personagem envolve adequá-lo aos tempos, e a maneira como se adequá-los aos tempos pode dizer muito sobre a relação de um roteirista ou produtor quanto aos próprios tempos.

Por exemplo, muitos fãs falam que “O Batman já ajuda o mundo com sua fortuna, pois ele pratica filantropia.”. Como se os maiores filhos da puta do mundo não se envolvessem com filantropia. Até o Trump pode fazer filantropia. Filantropia é prática corriqueira que não tem impacto estrutural real na sociedade.

Quando o Batman trabalha a imagem dele como “um bom bilionário”, na mesma linguagem que os filhas da puta da vida real trabalham, ele não passa bem essa mensagem, porque Gotham segue uma merda, e a mensagem central disso é que “alguns bilhões de dólares no orçamento dos projetos da cidade não ajudariam a cidade tanto quanto mais policiamento”, e que os bilionários do nosso mundo já fazem mais que o suficiente. Tudo pro Batman poder existir, pra ser possível ter uma história em que o Bruce usando máscara é mais útil do que não usando. Essa moral é necessária.

Ao mesmo tempo, com o passar do tempo, ser podre de rico tem se tornado cada vez menos uma vantagem do Batman, e mais uma desvantagem. E cada vez menos o sobrenome Wayne tem aparecido bonito na foto.

O filme Joker bate muito na tecla de como para a população pobre de Gotham, Thomas Wayne, o honrado e justo pai do Batman, soa como uma figura bem desagradável quando vista da perspectiva dos pobres de Gotham. E reimagina seu assassinato não como uma tragédia causada pela ganancia do criminoso, mas como uma revolta, de uma cidade se voltando contra sua elite.

No filme The Batman, toda a questão de classe é jogada na cara do Batman. Ele descobre que seu pai, como todo homem importante de Gotham, estava envolvido com a Mafia, e que o projeto de caridade que ele montou pra ajudar a cidade está sendo só uma fachada para financiar os interesses do crime organizado. O plano do Riddler era mostrar a podridão das elites e a família Wayne não é isolada disso.

Para além disso, existe uma sutil demonstração de como o Batman não tem o repertório intelectual mais avançado do planeta, como as histórias focadas em seu lado detetive tendem a demonstrar. Ele tem o repertório de seu mundo, que é um mundo de elite, e pontos cegos são formados em sua linha de raciocínio por sua pouca familiaridade com as classes baixas. O que é demonstrado como uma pista que ele demorou muito pra entender, porque ele não fala espanhol.

A visão popular de como trabalhar o personagem costuma ir pros caminhos de “O Batman é foda, ele é um super-gênio e ele fala um bilhão de línguas”, mas aqui, eu não sei quais ele fala, mas ele não fala espanhol. Espanhol é uma língua falada por imigrantes, e uma língua muito falada pelas populações marginalizadas dos Estados Unidos. Por conta disso, também é uma língua muito falada nos negócios ilegais dominados por populações marginalizadas. Nem Batman nem Gordon sabiam falar espanhol, pois essa língua não é do mundo deles, mas sabem quem sabia? O Penguin! O cara que negocia com e emprega um perfil de pessoa com quem o Bruce não interage.

E no final o Batman falha e se atrasa em desvendar todo o enigma do Riddler, pois ele falhou em entender a pista final. Que a arma do crime era um removedor de carpetes, que o Batman deveria usar pra remover o carpete de sua casa e ver o plano final. Ele só entende o proposito do objeto, e entende tarde demais, quando um policial chamado Martinez, um personagem de origem latina, reconhece o utensílio batendo o olho.

Isso, pois o Riddler admirava o Batman, e odiava o Bruce Wayne, e ele fez o plano contando que o Batman resolveria sua charada, pois ele nem cogitou a possibilidade do Batman ser rico. Por ele admirar o Batman ele presumiu que Batman era um homem do povo, trabalhador, que convive com falantes de espanhol, que já pegou em um removedor de carpetes na vida. Riddler tinha um ódio tão inato pela elite que para ele era impossível compreender que Batman e Bruce Wayne pudessem ser a mesma pessoa.

Agora tanto essa perspectiva, de que sob o olhar de um dos vilões, nenhum Wayne soa um cara legal, quanto a de que ser rico não necessariamente faz o Batman ser mais culto e mais funcional, mas pode ser sua fraqueza, se desenvolvem com um tom de sátira na série animada Harley Quinn.

Apesar de Harley Quinn ser contada da perspectiva da Harley Quinn e progressivamente deixar ela mais e mais heroica conforme a série avança, a série ainda retrata seu inimigo Batman como um herói, um cara justo, e sua missão de vigiar Gotham e combater vilões como uma missão boa e honesta. A série evita muito fazer só a inversão de “todo vilão na verdade é bom e todo herói na verdade é mal”, só por ser contada na perspectiva de seus vilões. Mas desde o princípio muito do humor do Batman gira em torno dele ser um rico numa mansão com uma vida mansa demais.

E quando isso culmina no episódio em que Harley e o Batman enfim fazem as pazes e encerram sua inimizade, após Harley descobrir a identidade secreta do Batman e aceitar ser a terapeuta do Bruce Wayne e a solucionar seu trauma. E esse episódio não se segura em jogar na cara do Bruce o quanto ele é parte do problema de Gotham.

No geral eu sinto que o ponto que Harley Quinn quer fazer é: O Batman é uma existência boa, pelo que ele simboliza, pelas pessoas que ele inspira, e por ter alguém que se levante contra os vilões. Mas o Bruce Wayne não é tudo isso enquanto pessoa, ele é ignorante, ele se envolve com péssimas companhias como a Corte das Corujas. E principalmente, quando o Joker em seu arco de pseudo-redenção, decide melhorar Gotham e transformar Gotham em uma cidade melhor virando prefeito e implantando políticas sociais, uma de suas grandes ações como prefeito é prender Bruce Wayne como um símbolo de que a elite sonegadora de impostos não vai mais viver acima da lei.

Quando Batgirl diz que vai tirar o Bruce da cadeia, Bruce não deixa, ele pensa e ele concorda com Joker, ele acha que Gotham não vai se curar se não puder ver que a lei pune as pessoas que o Bruce Wayne representa, e aceita ir pra cadeia.

Aliás, a própria Corte das Corujas, que eu havia esquecido de mencionar, um grupo vilanesco do Batman criado bem na época dos movimentos de Wall-Street e da explosão do sentimento de Eat The Rich, que existe justamente pra trazer esse elemento pro cânone dos quadrinhos. A revelação de que Gotham é controlada por uma elite financeira que caga pras necessidades do povo, e que se o Batman operou em paz por anos, foi só porque a Corte por anos não sentiu que ele ameaçava os planos dela.

O Batman ficou anos em negação, achando que a Corte não poderia existir, que era imaginação dos outros, que os aristocratas não controlavam Gotham das sombras, mas quando ele resolve enfrentar a existência da corte e atacá-la, ele descobre a conexão desconfortável da corte com a família Wayne. E que sua vida privada não é um assunto separado desse mal.

É em vários lugares que o dinheiro dos Wayne já não soa mais limpo, mas sim algo que coloca escalas de cinza no Batman como um herói.

Conclusão:

Saindo do recorte do Batman e falando de cultura de fandom na internet a maioria dos fandoms tem o hábito de reagir a qualquer pergunta cuja resposta não seja uma exaltação dos méritos da obra, de uma maneira defensiva. Você pergunta: “Mas e aí? Quem troca os pneus do Batmóvel?”, e tem mais gente querendo te explicar que essa pergunta é estúpida, quebra as regras do quadrinho, que não é esse tipo de história, que ninguém precisa trocas os pneus do Batmóvel e que o mundo tá acabando; do que tem gente querendo entrar na brincadeira e imaginar quem trocaria os pneus do Batmóvel.

A gente fica em reddits ou em twitter, facebook, tumblr, ou seja lá qual rede você debate cultura pop e é tudo uma relação muito bizarra de cobrança e defesa. Uma pessoa faz um nitpick perguntando porque um herói não tomou a atitude mais racional possível em determinado momento, e que isso torna o filme ruim e deviam refazer corrigindo a falta de racionalidade e outra pessoa tenta responder que os personagens tomaram sim a decisão mais racional do mundo sim e o filme não errou! Ou então respondem com: “é só um filme”, “não é pra você pensar”, “para de ser chato”, querendo impedir que perceber e falar sobre existir uma suposta solução melhor estrague sua relação com o filme.

Se pergunta: “Como ninguém nota que o Superman e o Clark Kent são iguais? É só um óculos. Mas ninguém nota.” só tem dois tipos de reação: ou “Mas se você tivesse lido a edição XX do ano YYYY, você veria que eles explicam que os óculo hipnotizam/ que ele usa outra postura e outra voz/que/outra explicação qualquer que tenham dado”, ou vão falar: “Você não pode ler fazendo esse tipo de pergunta”.

Mas eu gosto de fazer perguntas, mas não como cobrança, necessariamente, como exercícios de pensamento. Como maneira de perguntar quais as engrenagens que fazem essa narrativa girar. Quais pressupostos precisam estar implícitos para essa história funcionar.

No caso dos óculos do Superman, o pressuposto é que a população inteira do planeta possui prosopagnosia, e portanto a cidade de Metropolis, no universo DC é na minha perspectiva um mundo muito inclusivo ao qual eu sinto que eu pertenço.

E quando a gente pergunta porque o Bruce Wayne não melhora o mundo com seu dinheiro a verdadeira pergunta é: “Por que os Super-Heróis, sendo um time organizado de centenas de indivíduos excepcionais, com poder, força, inteligência, dinheiro e recursos, não constroem uma utopia? Por que as histórias precisam fazer todos eles viverem em um capitalismo tardio em um planeta condenado a destruição que a Liga da Justiça é incapaz de fazer algo a respeito?”, ou mais precisamente: “Por que essas histórias não podem passar em uma realidade imaginária boa em que tem gente fazendo do mundo um lugar melhor?”

Não é sobre realmente caçar nas páginas o que o Bruce faz com seu dinheiro. Roteiristas diferentes vão dar respostas diferentes. Muitos roteiristas estarão completamente confortáveis com todas as implicações do Batman ser um super-capitalista controlando os meios de produção e tratar como se luta de classes não existisse. Outros serão irônicos, darão cutucadas no Bruce e farão ele aprender lições sobre a classe a qual ele pertence. A literal pergunta não tem resposta, pois tem várias respostas, cada autor dá uma resposta diferente de qual a relação entre a fortuna do Bruce e o povo de Gotham.

Mas imaginar que se o Batman existisse todo mundo que é infeliz hoje continuaria infeliz, pois a origem da nossa infelicidade não é o Joker, o Riddler, o Ra’s Al Ghul, o Bane nem o Mr. Freeze… imaginar que os elementos que realmente destroem nossas vidas são elementos que nenhum super-herói pensa em combater é um bom pensamento. Não para cancelarmos eles. Não para boicotarmos nada, mas para não naturalizarmos qualquer narrativa a respeito de termos que aceitar um status quo, só porque o Superman aceita também. Nosso cérebro preenche as lacunas de tudo o que não foi dito com a informação que é mais conveniente pra gente, então vamos deixar essa parte bem dita, em tempos em que qualquer um pode usar o Batman como analogia política na internet ou fora dela.

Afinal algumas dessas figuras foram criados faz mais de 80 anos. E os super-heróis foram criados durante épocas da história estadunidense, como a Grande Depressão ou a Segunda Guerra Mundial como resposta a sentimentos da população que floresceram por causa desses eventos. Mas mesmo que a existência deles não seja apolítica, em 1939 não era nem possível imaginar como seria o mundo e o cenário político de 2023.

O Batman não foi criado pensando em sobreviver 80 anos como um dos maiores ícores culturais da história. E não foi criado pensando que em um mundo pós-União Soviética, que passaria pelo 11 de Setembro e que se comunicaria pela internet, ele precisaria seguir representando a sociedade que se formaria no século XXI.

Mas o Batman foi sobrevivendo com o tempo, e ele foi se tornando polítco.

E política as vezes é que nem uma pasta de dente. Você pode tirar a pasta do tubo, mas você não pode colocar a pasta de volta no tubo.

Muita gente busca e exige um retorno do Batman a uma fase mais inocente, muitas versões sombrias, realistas e carregadas de comentários sociais geram em resposta uma demanda por mais histórias focadas em diversão, bobeira e em não levar o personagem a sério. Saudosos dos tempos do Adam West e do Batman surfando com o Joker e não se levando a sério.

Mas acho que mesmo as versões escrachadas e que não se levam a sério hoje dialogam com a questão: quantos problemas implícitos o status do Bruce Wayne traz?

E talvez se perguntar sobre nossa relação com a elite financeira pelo prisma de entender nossa relação com Bruce Wayne não seja sobre exigir que o Bruce Wayne seja retconado como um empregado de uma mansão que secretamente combate os planos do chefe. Não seja sobre exigir nada.

Seria sobre reconhecer. Que essas histórias trazem embutidas nelas narrativas e visões de mundo. Trazem noções sobre qual deve ser nossa relação com certos aspectos da nossa vida no presente. E trazem lições sobre com que postura encaramos diferentes obstáculos na vida. Quem são as pessoas com quem podemos conversar e quem são as pessoas que podemos merendar no soco. E mesmo que por questões de como o gênero, a mídia ou o autor funcionam, não seja viável esperar ver algo diferente, acho que vale a pena pensarmos nisso

Mas claro, sem nunca nos enganarmos. Pois o Zorro existe! Existiu antes do Batman, e abriu caminho pro Batman existir. É 100% possível fazer um vigilante que desafia a aristocracia e a polícia e protege os marginalizados. Tem muitos precedentes.

Bom, o que eu tinha a dizer é isso, mas eu não quer encerrar essa conversa, eu quero começar ela, para vocês continuarem. Deixem nos comentários qual a relação de vocês com o Bruce Wayne, vocês acreditam que está no poder dele fazer mais do que alguma filantropia? O que acham de histórias que retratem a família Wayne como parte dos problemas de Gotham? O que achariam de uma história em que ao ver que seus vilões estão machucados e traumatizados porque um bilionário tratou eles como menos que um ser humano, o bilionário passe a ser visto como o vilão da hitória? Falem sobre isso e sobre outros assuntos.

Que eu vejo vocês no próximo texto.

Sobre o autor

Izzombie

Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

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Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

Alertas

  • – Todos os posts desse blog contém SPOILERS de seus respectivos assuntos, sem exceção. Leia com medo de perder toda a experiência.
  • – Todos os textos desse blog contém palavras de baixo calão, independente da obra analisada ser ou não ao público infantil. Mesmo ao analisar uma obra pra crianças a analise ainda é destinada para adultos e pode tocar e temas como sexo e violência.

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