Antes de mais nada. Esse texto vai ter spoiler das obras de ficção a seguir. Quero já colocar isso logo no primeiro parágrafo, pois eu vou começar a dar os spoilers delas logo cedo. E são spoilers da natureza de ou falar da cena final, ou explicar quem é que morre ao longo do filme….
Inclusive também quero deixar o trigger warning que muitos desses filmes possuem cenas de suicídio, e o texto pretende abordar essa parte dos filmes.
Isso tendo sido dito, esse texto aqui é um texto inspirado de uma ideia que eu estou roubando da Senhora Minha Mãe, que comentou comigo sua interpretação do filme Gone Girl, e o comentário dela tá morando na minha cabeça desde então.
Eu dei de presente pra ela o livro Gone Girl, de Gillian Flynn, pois ela gosta de histórias com crimes e mistérios. E ao terminar ela quis ver o filme, e ao terminar os dois ela me falou: “É curioso, depois de tantas histórias sobre mulheres que foram para os subúrbios para morrer, agora escreveram uma que foi para os subúrbios para matar”. E eu sabia que nessa frase ela estava se referindo a três histórias específicas: Ao filme Stepford Wives, a versão original de 1975, ao filme Revolutionary Road e a série de televisão: Mad Men.
Eu sabia disso, pois a minha mãe escreveu sobre a relação entre essas três histórias, os subúrbios e gênero no texto: Imperfeitas Mulheres: Suburbanização, Gênero e Domesticidade. Que é parte do livro Domesticidade, Gênero e Cultura Material. E eu vou repetir algumas coisas que foram ditas no texto dela ao longo desse, então estou dando os devidos méritos, sobre quem inspirou esse texto.
Enfim, Gone Girl é um filme sobre uma vingança, uma mulher fazendo um elaborado e meticuloso teatro para punir seu marido. E esse filme já foi infinitamente dissecado, sobre como ele retrata papel de gênero, casamento, abuso, relacionamentos tóxicos entre outros temas que podem ser vistos sob o prisma de uma mulher se vingando do marido e tomando uma reação hiperbólica e drástica quanto ao seu casamento ter dado errado. Todo mundo já apontou porque o Nick era um mau marido. Mas eu quero ampliar esse debate e colocar no centro do debate uma questão de espaço: Amy e uma mulher de Nova York, e durante o casamento, ela é obrigada a se mudar para um subúrbio no Misouri.
Essa mudança é enfatizada ao longo do filme inteiro, e coloca Amy em um estado de semelhança com várias outras mulheres fictícias, cujo ponto de virada no casamento foi mudar-se para um subúrbio que destruiria a sua vida. E Amy as vinga. Em um aspecto meta do seu gênero narrativo, Amy não tinha que vingar somente a si mesma, ela tinha que se vingar em nome de todas elas.
Então sejam bem-vindos ao Dentro da Chaminé e a esse texto sobre como Gone Girl retrata uma vingança de Amy não só contra Nick, mas contra os subúrbios não só do Misouri, mas de todos os EUA.
Antes de começarmos, quero falar sobre a campanha de financiamento coletivo do Dentro da Chaminé no apoia.se. O Dentro da Chaminé é um blog que eu escrevo sozinho faz muito tempo, e que nos últimos meses passou a ser financiado pelos seus leitores. Esse projeto é uma paixão minha, e eu fico muito feliz de poder receber essa ajuda que dá forças para eu continuar vindo e escrevendo aqui por muitos anos a vir. Existem algumas recompensas discretas para os apoiadores, como poder ler o texto com antecedência, ou enquetes (esse próprio texto sendo um texto-de-enquete) que vocês podem conferir no link do apoia.se, mas a ideia é colaborar com o valor que achar justo, pois isso faz toda a diferença do mundo pra mim. Quem não quiser se comprometer com um pagamento mensal, mas quiser fazer um pix de qualquer para a chave franciscoizzo@gmail.com vai estar ajudando da mesma forma e vai ter também a minha gratidão e será igualmente homenageado no texto.
E também lembrando, que compartilhar o texto, vir nos comentários lembrar de exemplos que eu esqueci de citar, e principalmente manter a conversa viva são ajudar imensas também.
Esse texto é escrito em homenagem a minha mãe, e também em homenagem a todos aqueles que já apoiam o Dentro da Chaminé, e são os verdadeiros heróis do blog. Espero que todos curtam o texto.
E eu quero começar falando dos subúrbios.
Os subúrbios:
Os subúrbios são o lar típico da família típica americana. É onde moram os personagens de qualquer sitcon familiar. De Father Knows Best até Modern Family, a família da sitcon mora em um subúrbio. É para onde Ted Mosby se muda quando ele se casa e cria filhos. E não importa o quão modernas as sitcons familiares fiquem e o quanto elas queiram quebrar o molde, isso elas não quebram.
Quando alguém vende o American Way of Life, eles vendem uma casa no subúrbio. Vencer no jogo da vida estadunidense, termina com um casal feliz nos subúrbios, criando seus filhos. É onde o Forrest Gump vai morar no fim do filme, pois Gump é a personificação das narrativa de sucesso dos Estados Unidos.
O pai dos subúrbios como os conhecemos hoje é um cara chamado William Levitt, que em 1948 construiu uma vizinhança chamada Levittown que se tornou o arquétipo para a construção frenética e rápida de subúrbios ao longo dos EUA no pós-guerra. O modelo de Levittown foi replicado pelo próprio William Levitt, e também por gente que queria imitá-lo. Ao longo dos anos 1950, subúrbios se espalharam pelo país, e com os subúrbios, um estilo de vida muito próprio.
Os subúrbios oferecem uma maneira de se viver em um meio termo entre a cidade e o campo. O subúrbio é uma comunidade a uma distância de carro da cidade, permitindo que seus moradores possam trabalhar na cidade, mas morem em uma casa com um grande quintal e ruas protegidas da corrupção da cidade.
Parte grande do apelo suburbano vem precisamente desse contraste. O subúrbio é uma alternativa a uma vida urbana. E o subúrbio se vende como um cenário para uma vida idealizada, um lugar onde você pode escapar dos horrores da vida urbana. A cidade é suja, a cidade é corrupta, na cidade tem prostitutas, e ladrões, e crime. Na cidade os ratos andam nas ruas, as pessoas são hostis e frias, o ar é sujo, e o mundo é feio. Os subúrbios são comunidadezinhas amistosas, seus vizinhos são simpáticos, as crianças podem brincar na rua, a rua é arborizada, tudo é limpo, mulheres são donas de casa e cozinham torna de maçã e o cheiro se difunde pela vizinhança. E por isso são o lugar ideal pra se criar uma criança. E por isso são lugares pra família morar.
Nos anos 1950 os subúrbios não foram a única coisa que se espalharam pelos EUA, a televisão também, e a televisão se torna uma propaganda pra chamar pessoas para subúrbios, e para vender esse estilo de vida. No pós-guerra, isso era importante pra autoestima do país. Os maridos voltaram pra casa, e suas esposas voltaram da fábrica de bombas. E a imagem de uma comunidade planejada para viver em família, um marido, uma esposa, dois filhos e um cachorro com um grande jardim e cercas brancas e vizinhos, esse se tornou o estilo de vida cobiçado. A televisão podia vender esse estilo de vida com propaganda direta dizendo “compre uma casa aqui”, ou mostrando personagens fictícios vivendo esse estilo de vida.
Nos anos 1950 tínhamos várias sitcons sobre famílias vivendo o estilo de vida suburbano, eram sitcons pautadas em valores familiares, em famílias éticas, com pais de família sábios e mãe carinhosas que moldam filhos em crescerem como boas pessoas….
I Love Lucy, a maior sitcon dos anos 1950 não se passava nos subúrbios, se passava em Nova York. Mas no fim da série, ela se muda para os subúrbios, em uma mudança de status quo que esperava-se que pudesse trazer novas situações e em um episódio que enfatiza os méritos da vida longe dos centros urbanos.
Outra exceção de sitcon influente que não se passava nos subúrbios era The Honeymooners, que como todos sabemos, é a inspiração pra The Flinstones, que por sua vez inspirou The Simpsons, que inspirou Family Guy e temos aqui gerações e gerações de famílias fictícias com maridos fanfarrões que são netas e bisnetas de The Honeymooners. Enfim, The Honeymooners escolheu se passar em Nova York e não nos subúrbios para enfatizar o estilo de vida não-idealizado de um casal duro. Sustentado por um motorista de ônibus, constantemente tentando achar um esquema para conseguir mais dinheiro. Eles não tinham filhos, gritavam um com o outro, mas se amavam. A ideia era essa.
Isso é importante de enfatizar, pois os subúrbios eram uma marca grande da classe média, e a idealização vendida era um sinal grande do privilégio de seus personagens. A mulher do subúrbio é a dona-de-casa, e portanto uma marca de uma família em que a mulher não está precisando trabalhar para as contas fecharem. As famílias suburbanas não eram vendidas como famílias na dureza, mas como modelos de uma vida ideal que realmente era necessário ser parte da classe média para poder sustentar.
Nossa, e vai sem dizer que a noção de vizinhanças privilegiadas passa por uma noção de raça. Os subúrbios se espalharam nos anos 1950 e foram parte fundamental da segregação, e da tentativa de formar vizinhanças de pessoas brancas. E pessoas negras podiam ter muita dificuldade de conseguir se mudar para esse tipo de vizinhança. Não é coincidência que o êxodo das pessoas pros subúrbios feito nos anos 1950 foi chamado de white flight. Os brancos fugiram dos centros urbanos e foram pros subúrbios…. esse tipo de discriminação se tornou ilegal em 1968, mas até hoje donos de imóveis deliberadamente direcionam famílias negras para casas de regiões negras para permitir a valorização da branquitude de subúrbios brancos.
Já notaram como urban se tornou uma palavra que estadunidenses usam para descrever a cultura negra?
Sitcons como Fresh Prince of Bel-Air e Black-ish fazem o comentário sociais a respeito de relações raciais, pautadas principalmente no contraste de um protagonista negro vivendo em uma comunidade suburbana que não reforça os valores com os quais cresceu. E uma atmosfera de que aquele é um ambiente que embranquece seus moradores. Em The Boondocks, o mesmo comentário é feito, mas mostrando o conflito entre a família negra recém-mudada pro subúrbios e os demais moradores do subúrbio, como a de um elemento de caos invadindo um ambiente pacífico. Eles não se embranquecem, e por isso os subúrbios estão sempre em conflito com os três.
Então os subúrbios eram ambientes brancos, e também eram ambiente extremamente patriarcais e moldados por papéis de gênero. E ambientes homogêneos, em que todos esperavam que o vizinho fosse igual a si próprio. Sem muito espaço para elementos que saíssem da cisheteronormatividade também… como eu já disse em outro texto. A cidade grande é um ambiente de muita liberdade e muita diversidade, e essa diversidade era parte do problema da cidade grande que fez eles fugirem pros subúrbios.
Enfim! Existe também uma intersecção muito forte, que ajuda nisso, que é o do estilo de vida nos subúrbios, com o estilo de vida na cidade pequena. Que também é marcada por pessoas morando em casas parecidas, vizinhanças em que todos se conhecem, e um senso de distanciamento da corrupção da cidade grande. Com a central diferença sendo meramente o fato dos maridos dessas casas não precisarem se locomover até a cidade grande pra trabalhar. Por isso no que diz respeito a promover esse estilo de vida como idealizado, subúrbios e cidadezinhas pequenas do interior se misturaram muito. No último censo dos EUA, 52% dos americanos afirmaram morar em zonas suburbana, em contraste com as outras duas opções que eram a cidade grande e o campo, fazendo com que muitas cidades pequenas tenham entrado nessa conta.
Por isso na hora de a ficção promover ou criticar o papel dos subúrbios no estilo de vida estadunidense, e na sua conexão com os valores do país, a distinção entre uma comunidade suburbana cercando uma cidade grande, e uma pequena cidade do interior com um forte senso de comunidade, se tornam indistinguíveis, ambos existem para passar os mesmos valores de domesticidade, papéis sociais, papeis de gênero bem definidos, comunidade e de servir de contraste com a cidade grande, que é o centro de toda a corrupção.
Como era de se esperar, os subúrbios por serem uma marca tão forte e onipresente na ficção a respeito da vida estadunidense, foi alvo de muitas críticas. Muitas mesmo. Os subúrbios não foram alvos ocasionais de meia dúzia de diretores subversivos somente. Os subúrbios são um alvo fácil, pois neles é fácil identificar toda a hipocrisia que está na base da vida estadunidense.
Os subúrbios como cenários de pesadelos.
Histórias que usam a vida suburbana para criticar a cidade grande como um local que tira o pior do indivíduo são algo muito comum nos EUA, e essa propaganda era feita setenta anos atrás e é feita atualmente. Existe um motivo pra em Big Fish, o protagonista cínico que morava em um apartamento em Nova York se muda para um subúrbio depois de fazer as pazes com seu pai e virar um homem de família.
Muitos filmes de comédia ou comédia romântica são sobre workaholics rudes e egoístas da cidade grande que precisam passar um tempo curto em uma cidadezinha, mas se apaixonam pelo senso de paz a aconchego, e também por um dos habitantes da cidade que representa esses valores, e decide no final morar naquela cidade pacífica, e no processo: se torna uma pessoa menos desprezível.
Muita obra trabalha a ideia de que a cidade grande tira o pior do ser humano e que a cura pra isso está na vida suburbana. Na vida ideal, em deixar de ser uma pessoa ruim que vive pelo trabalho, pelo status e pelo consumo, e se tornar uma pessoa de bem, que vive pela comunidade e pela família.
E bem, muitos filmes também foram a direção oposta. A de mostrar ambientes suburbanos como cenários distópicos, cruéis, moldados pelo consumismo e elitismo de seus habitantes. Prisões sociais de papéis pré-estabelecidos que vendem a ilusão da perfeição e da felicidade.
Os anos 1990 em particular foram uma década marcada por filmes vendendo a ideia de que deveríamos nos libertar de uma vida falsa e da ilusão de uma perfeição consumista e substituí-la por uma vida que posse genuína, espontânea e não-conformista. E o ambiente suburbano é o centro dessa crítica.
Filmes de terror encontram no subúrbio um de seus melhores cenários, as vezes fazendo um assassino quebrar a ilusão de que aquela comunidade é segura, e mostrar o horror acontecer bem onde as pessoas se sentem acomodadas.
Mas principalmente fazendo os moradores dessas comunidades serem elementos assustadores, e em mostrar o quão creepy e violentas pessoas homogêneas em casas homogêneas vendendo a ilusão da vida perfeita podem ser. E toda violência implícita que o conceito de perfeição sugere que acontece com quem não é parte desse conceito.
O subúrbio é sinistro. Sua aura é sinistra. Os sorrisos de seus habitantes é sinistro. E o cinema está falando isso o tempo todo.
Mas o mais assustador mesmo, não é quando o subúrbio é a casa secreta de um serial killer ou uma entidade sobrenatural. O mais assustador é quando o subúrbio é uma prisão, e se você não escapar dela a tempo, você morre.
Os subúrbios e as mulheres:
Histórias que criticam a vida suburbana no geral são unissex. Filmes como Donnie Darko, Edward Scisorhands, American Beauty ou Pleasantville conseguem mostrar os problemas dessas comunidades e das vidas vividas nelas sob uma perspectiva que inclui a perspectiva masculina.
Mas filmes que focam na perspectiva feminina, tendem a ir para um lado mais cruel. E com cruel sendo um eufemismo pra letal.
Em 1999, o filme The Suicide Virgins retrata cinco irmãs que se suicidam como uma resposta a repressão pesada que sofriam de seus pais. O mais próximo que uma delas chegou de verbalizar a razão para seu suicídio foi quando Cecilia, a mais nova, explica para o médico que dizia que ela era jovem demais para ter esses pensamentos: “Doutor, você claramente nunca foi uma menina de 13 anos”.
O filme é narrado e contado da perspectiva de quatro garotos do mesmo subúrbio que elas. Os garotos eram fascinados pelas irmãs como se elas fossem uma existência mística e especial, mas nunca pessoas normais. Eles viam com muita clareza o quão ruim era a situação familiar delas, e por sua obsessão com as garotas os quatro puderam testemunhar sinais. Mas mantiveram sua distância, não tiveram boa comunicação com as irmãs, e quando eles decidiram ir ajudá-las a fugir de casa, era tarde demais, eles entraram na casa e todas haviam se suicidado. O filme acaba com eles concluindo que eles nunca serão capazes de entender por que elas haviam tomado a decisão de se matar.
E a jornada dessas garotas em direção ao suicídio é contada fazendo um paralelo com a deterioração de sua vizinhança. Que apesar da aparência bela e natural, está apodrecendo, suas árvores estão ficando tóxicas e envenenando as outras árvores e precisando ser derrubadas. No fim do filme, os moradores da vizinhança dão uma festa usando máscara de gás, com o tema da poluição, para fingir que o fedor da vizinhança é intencional e não constranger as debutantes. A perfeição do subúrbio no filme é uma mentira, eles não estão em um ambiente agradável e saudável, e a vida ali motivou o suicídio de cinco jovens.
O suicídio das garotas foi tratado como um mistério, pois apesar da vizinhança estar toda ciente da existência delas, e do tipo de vida que elas vivem, a comunidade fecha os olhos, ignora, e presume que elas não têm reais motivos para quererem escapar dali. Elas precisavam sair dali, e ninguém tirou elas.
Em Stepford Wives, de 1972, Joanna é uma fotógrafa de Nova York que é convencida pelo seu marido a se mudar para o subúrbio Stepford em Connecticut.
A estadia de Joanna em Stepford é assustadora, pois a personalidade das donas de casa locais, todas perfeitas, sorridentes, obcecadas com afazeres domésticos, submissas aos seus maridos e com um vocabulário limitado, intimidavam Joanna. Ela achava estranho e desconfortável a companhia de mulheres que pareciam ter saído de uma propaganda e com quem não era possível se identificar em nada.
A única moradora de Stepford que agia feito um ser humano e não como uma fantasia masculina sem alma era Bobbie, que faz amizade com Joanna. Até um dia em que Bobbie, do dia pra noite, se torna indistinguível das demais moradoras de Stepford, e Joanna enfim entende que os homens de Stepford matam suas esposas e as substituem com réplicas delas, programadas para serem as esposas perfeitas.
No fim do filme, Joanna é estrangulada pela sua réplica até morrer. E o filme termina com a nova Joanna fazendo supermercado, cumprimentando as demais esposas de Stepford, todas sorriem, a vizinhança é perfeita, pois é construída sobre a morte de mulheres, que somente aparentam estar lá, mas são um corpo sem alma, desconectados de quem eram.
Em Revolutionary Road, de 2008, April e Frank são um casal recém mudado para uma casa de subúrbio na Rua da Revolução. Ambos são infelizes com o casamento e com o sonho americano que não chegou e descontam um no outro.
Eles traçam um plano. Eles querem pegar todas suas economias, abandonar os Estados Unidos, e ir para Paris. Onde April planejava trabalhar e permitir a Frank um tempo para se dedicar a si mesmo.
Reparem, o plano não era a inversão de papéis em que April trabalharia e deixaria pra Frank os afazeres domésticos. A ideia é que April reconheceria que Frank já sacrificou muitos sonhos pessoais, muitas oportunidades e muito de si mesmo em um trabalho que ele odiava para ser o provedor da família. April queria recompensá-lo, usando esse dinheiro que ele juntou para que eles pudessem viver em uma cidade onde Frank tinha muitas memórias positivas, e onde ela pretendia dar o tempo pro Frank recuperar o senso de identidade que ele perdeu. Acho notório que a ideia não era inverter papéis de gênero ou colocar Frank em uma posição desagradável. Existe ainda uma devoção e uma lealdade grande de April com seu marido no plano, que está longe de ser ela pensando somente em si, ele só envolve sair de um modelo de vida tipicamente estadunidense.
Mas o plano foi visto com desdém pelos vizinhos e colegas de trabalho, que acham que o casal está louco, falando absurdos, e desconectado. O único apoio que o casal recebe vem de um homem que havia acabado de receber alta de um hospício, John.
Porém April engravida, e instantaneamente o plano recebe um balde de água fria. April cogita um aborto, mas Frank a proíbe de abortar. Frank se conforma que o plano deu errado, ele por coincidência é promovido no emprego e de repente age como se ele não odiasse mais seu emprego. April não quer desistir de sair da Rua da Revolução, e não quer que a vida que eles odiavam até um tempo atrás volte a ser o plano A. John briga com o conformismo de Frank e com o quanto ele machuca April com ele. Mas Frank fica firme.
No fim do filme April então tenta fazer um aborto caseiro e morre. Frank sai da Rua da Revolução e volta a morar na cidade agora que está viúvo.
Betty Draper de Mad Men se muda para os subúrbios depois de engravidar, pois ela não podia criar crianças em Manhattan. Para isso ela se muda pra cidade de Ossining que ela odeia.
E ao longo da série Betty foi muito definida por sua infelicidade e pela dificuldade de poder lidar com sua infelicidade, por conta da falta de autonomia que uma mulher dos anos 1950 tinha. Ela tenta ir ao psicanalista tratar de seus problemas, mas o seu analista passava um relatório das sessões pro seu marido e não permitia a confidencialidade do que ela falava. Ela se frustrava com as mentiras do marido, e descontava em suas crianças, e estava constantemente deprimida. E quando ela se divorcia de Don Draper é para se casar com outro homem imediatamente, e manter o mesmo estilo de vida de dona de casa de subúrbio e manter sua mesma infelicidade.
Quando Betty é diagnosticada com câncer, ela toma a decisão de não fazer quimioterapia, não tratar de sua doença, e a sua decisão de morrer nos próprios termos se torna um dos maiores momentos da sua vida em que ela decidiu seu próprio destino. Os médicos que trataram dela consultavam com seu marido sobre a doença e as possibilidades de tratamento, e ela ao escolher morrer pegou esse poder retirado dela e deu a si mesma. Não vemos Betty morrer ao longo da série, mas no final sabemos que seu destino está selado, ela não vai tratar seu câncer, e ela morrerá.
Essa perspectiva do direito de decidir a própria morte vem também no filme The Hours de 2002. A dona de casa suburbana Laura Brown tenta cometer suicídio em um quarto de hotel. Ela adormece antes de cometer o ato, tem um pesadelo e muda de ideia. Porém ela após voltar pra casa sem ter se matado e ouvir seu marido mencionar o quanto ele valoriza aquela vida pacata e doméstica que ela odeia, ela resolve abandonar a família e ir pro Canadá. Idosa, ela pensa nos filhos que ela abandonou completamente e fala que acha que ela cometeu uma injustiça com seus filhos e aceita ser odiada por eles, mas não consegue se arrepender. Pois a decisão entre ficar no subúrbio ou sair era uma decisão entre viver ou morrer, e ela escolheu viver.
O que faz um paralelo interessante com a história de Virginia Wolf, no mesmo filme. Virginia foi obrigada pelo seu marido a se mudar para o subúrbio, pelos seu quadro clinico de instabilidade mental e suas tentativas de suicídio, foi determinado pelos homens ao seu redor que ela estaria mais segura longe da capital e ela foi pra lá. E lá Virginia tenta fugir de casa e voltar pra Londres com toda sua força. Quando o marido dela a encontra prestes a embarcar em um trem, Virginia discursa, que ela prefere se suicidar em Londres a viver em um subúrbio, e que aquele tipo de vida pacífica não tinha valor.
Uma saiu do subúrbio para ter o direito de se matar. Outra saiu para não ser mais tentada com o suicídio, mas ambas saíram. E para ambas sair do subúrbio significou ter o direito de fazer uma decisão sobre a própria vida, mesmo que essas decisões sejam de naturezas diferentes. Estar no subúrbio seria sempre se colocar em uma situação em que elas não tem agência sob a própria vida.
Isso tem a ver com o que eu acho que é o mais importante aqui, que é. Nenhuma dessas personagens escolheu morar em um subúrbio. As irmãs Lisbon de The Virgin Suicides nasceram no subúrbio. E todas as outras se mudaram por necessidade, por decisão de seus maridos.
E tem uma ironia muito forte nisso graças a divisão de gênero que funciona nessas famílias. O marido sai dos subúrbios diariamente, ele trabalha fora do subúrbios, socializa com seus amigos fora do subúrbio, e caso ele traia a sua esposa, sua infidelidade é no apartamento de sua amante ou em um motel. Mas a esposa trabalha na própria casa, socializa dentro do subúrbio com seus vizinhos, e quando uma delas trai o marido, trai ou com o vizinho ou com o carteiro, o eletricista ou outro profissional que visite os subúrbios. A Betty Draper fantasia trair o Don com um instalador de ar-condicionado. Don Draper visita o apartamento de mulheres da cidade para trair Betty. Então a vida normal, a vida social e até as transgressões estão todas confinadas a um espaço do qual elas não saem nunca, e elas não tem voz em decidir que espaço é esse. Elas são levadas a ele por decisões da pessoa que não vai passar o dia lá.
E é lá elas ou morrem ou fogem.
E no caso de Thelma e Louise, os dois ao mesmo tempo. Thelma e Louise escolheram jogar o carro do Grand Canyon a voltar pro mundo suburbano de onde elas saíram. Em um raro exemplo feminino de personagens passando pelo American Rage.
O que me lembra também de Rosemary’s Baby, em que é um exemplo não suburbano, mas o marido de Rosemary força ela a se mudar para um apartamento, com vizinhos estranhos e um ambiente desconfortável, pois era lá que os satanistas estavam. E ali que ela sofre todo tipo de gaslightning para aceitar uma série de abusos contra ela. E por falar em gaslightning, no filme Gaslight, Paula se muda também contra a vontade pra casa suburbana onde sua tia morreu, e lá seu marido isola ela completamente do mundo exterior. Diferente dos outros exemplos Paula e Rosemary sobrevivem seus filmes. Mas é notável quantos filmes sobre abuso contra mulheres envolvem o marido delas decidindo em que casa elas morariam, e na falta de voz que elas tem no debate.
Até mesmo Belle de Beauty and the Beast, se mudou pra uma cidadezinha homogênea no interior da França, onde começou a ser atropelada por papéis de gênero que faziam ela querer abandonar a cidade pra sempre. No filme não fica claro de onde Belle veio, mas no remake live-action fica explícito que Belle veio de Paris e saiu de Paris pois seu pai queria que ela se sentisse segura e a cidade era perigosa. O tema da mulher sendo afastada da capital é constante em histórias sobre pessoas que não podem ser elas mesmas e tem que entrar em um molde.
Enfim, no livro The Feminine Mystique, Betty Friedman descreveu Aquilo que ela chamou se “O Problema Sem Nome”, que seria a infelicidade e o senso de insatisfação que as donas de casa suburbanas possuíam, pela sua opção limitada de escolhas que elas tinham e pelo controle limitado sobre a própria vida. Ela fala sobre como a propaganda constante vendendo a vida de dona de casa suburbana como o auge da alegria feminina pressionava elas a se compararem com um ideal que não conseguiram atingir, e com uma felicidade que não alcançaram, e as incentivam a achar que o problema é pessoal, e a achar que as demais não passam pelo mesmo.
E todos os exemplos que eu trouxe agora já foram no passado analisados sob o prisma de que essas mulheres estavam lidando com o problema sem nome. Mas apesar do repertório da Betty Friedman dar a quem vê de fora o prisma para entender a infelicidade dessas mulheres e seu desejo de não estar no subúrbio para onde foram mandadas, dentro de seus universos os demais personagens não conseguem entender a infelicidade delas. As irmãs Lisbon nunca tiveram sua infelicidade entendida pelos vizinhos ou médicos. Em The Hours, o filho de Laura Brown escreve um livro sobre o suicídio da mãe, e o livro é criticado pela cena em que uma mulher “se suicida do nada, sem motivo”. Esses filmes retratam uma sociedade com dificuldade de entender o problema e a aversão dessas mulheres ao próprio espaço.
E é com base nessa longa tradição de filmes mostrando o subúrbio como parte fundamental de um casamento tóxico. E como um espaço do qual a mulher precisa se libertar, em uma escolha que muitas vezes se afunila a fugir ou morrer que eu quero enfim, entrar no filme Gone Girl.
Nesse texto eu demorei, mas agora vamos falar de Gone Girl.
Gone Girl:
Gone Girl acaba com Amy e Nick Dunne com seu casamento restaurado, vivendo uma vida suburbana no Misouri. Amy está grávida, e Nick está profundamente infeliz, preso a uma performance de uma pessoa que ele não é, e a vender publicamente uma felicidade que ele não sente, dormindo com uma pessoa de quem ele tem medo. E Amy está feliz, pois ela enfim está casada com um homem nos moldes que ela deseja e que pode dar a ela uma rotina que ela quer.
É uma clara inversão de papéis de gênero. Amy não deu o troco em Nick fazendo ele cozinhar uma torta de maçã, aspirar a casa, ou usar vestido, mas fazendo o ambiente suburbano para onde ele arrastou Amy se tornar um espaço de completa falsa de agência e de uma morte simbólica da pessoa que ele era antes do casamento, em prol de formar a imagem de uma vida perfeita pra mídia… exatamente aquilo com que Amy lidou antes dela dar o golpe dela.
Gone Girl é um filme de 2h30min de duração. E até a marca dos 1h40min, a direção que o filme deu pra Amy era exatamente a mesma das outras mulheres que eu descrevi de outras histórias sobre o subúrbio. Amy tinha um casamento infeliz. Ela saiu de Nova York e se mudou pro Misouri sob o pretexto de que Nick precisava cuidar de sua mãe doente, mas depois que a mãe morreu, eles não voltaram pra Nova York, ela se sentia deslocada e fora de sua vida, presa em uma vida doméstica em um espaço que ela não domina. Onde ela sentiu sua identidade drenada até sentir que deixou de existir e morreu metaforicamente.
A gota que transbordou o copo foi quando ela descobriu que estava sendo traída, e que Nick estava planejando trocá-la por um modelo mais novo depois de tudo que foi tirado dela. Nesse momento ela planejou a vingança. Nessa vingança ela iria dar a impressão de que Nick a matou. Simular o próprio assassinato. E a parte final desse plano envolveria um suicídio, dando um corpo pra polícia encontrar no futuro e confirmar o crime de Nick. Quando Amy se revelou a vilã do filme, ela era uma mentirosa, uma narcisista e uma psicopata. Mas o plano dela ainda terminaria em suicídio. Ela ainda era uma mulher em um casamento ruim, arrastada para o subúrbio para morrer. Ela só era a versão vilanesca da mesma jornada.
Amy cresceu sabendo que sua vida inteira era uma grande performance de perfeição e de imagem. Ela cresceu nas sombras de livros que seus pais escreveram sobre uma versão perfeita da vida dela. E ela cresceu com um certo desdém, por casais que compram essa noção de casamento que as revistas vendem, e com medo de que seu casamento com Nick pudesse um dia virar um desses casamentos.
O que no livro é explicitado, quando ela perde a persona nova yorkina dela de Amazing Amy e substitui pela nova persona do Misouri de “Mulher burra medíocre casada com um marido bosta medíocre.”.
Esse desprezo de manifesta pela maneira como ela julga e menospreza a vizinha que ela fez o papel de melhor amiga pro seu plano funcionar. Ela descreve suas vizinhas com um desprezo que ela não aplica pra maioria dos outros personagens secundários.
Mas a parte mais irônica é que justamente, Amy conseguiu ter tempo e investimento de pensar nesse plano, pois ela passava o dia inteiro presa em um espaço que ela odiava sem nada pra fazer enquanto Nick passava o dia inteiro fora. E parte fundamental do plano envolvia que ela usasse o tempo grande que Nick largava ela sozinha em casa para ter tempo de armar a cena do crime e fugir. O estilo de vida imposto a ela, deu a janela de tempo e recursos necessários para por seu plano em prática.
Amy morreu metaforicamente, quando seu casamento fez ela perder seu senso de si mesma. E planejou morrer literalmente, mas seu plano mudou quando depois de ser assaltada, ela pede a ajuda de Desi, seu ex-namorado. E ela vê pela televisão de Desi, que motivado pelo medo de tomar a injeção letal, Nick começou a se portar na televisão como o homem que ela queria que ele se portasse. Então ela muda o plano, ela mata Desi, incrimina ele por tudo, volta pra Nick, e o obriga a ficar de boa com ela.
E Amy se safa. Isso é o mais fascinante. Apesar de ser uma vilã, Amy se safa de todos os seus crimes, não é descoberta por nada, Nick fica sem a capacidade de fazer nada contra ela ou de sair daquela vida. E Amy fica feliz, sem pagar por nada. Sem um pingo de carma. Amy “consertou” seu homem tosco, transformou aquela casa estranha em seu lar, e enfim passou a viver uma vida que era tão falsa quanto todas as vidas que ela viveu a vida inteira, mas dessa vez, era ela a roteirista.
Histórias de mulheres vindo pro subúrbio pra sofrerem com um péssimo casamento costumam terminar em fracasso, elas morrem ou fogem, e mesmo a fuga, raramente é tratada com o mesmo senso de vitória do Truman abandonando sua cidade falsa. As opções são morrer ou desistir, não existia a opção do triunfo. Mas Amy triunfa, ela tem uma vitória completa. Em especial com a implicação de que mesmo sendo chantageado e manipulado, Nick ainda sente uma atração pela Amy no fim do filme.
E eu queria dizer que ela tem uma vitória completa apesar de ser a vilã…. mas eu acho que essa frase está incorreta. Não acho que seja apesar de ser a vilã, Foi precisamente porque ela era a vilã. Porque ela viu o monstro horrível que eram as expectativas de gênero, os modelos de mulher ideal, de casamento feliz, de vida suburbana, e de como a mídia trata as mulheres e domou esse monstro. Aprendeu suas regras e fez esse monstro dançar no seu ritmo. Ela não derrotou e extinguiu o monstro que estava no centro da sua infelicidade, mas adestrou ele ao seu interesse.
Joanna, April, Betty, Laura, Virginia Wolf, as Irmãs Lipton, Rosemary, Paula, Thelma e Louise, são tinham o poder de acabar com seu problema. Elas podiam no máximo tolerar, e a maioria elas não tolerou. Mas elas não podiam extinguir o problema, pois eram somente indivíduos. E durante metade do filme, Amy também não conseguia acabar com o problema, mesmo incriminando Nick. Ela ainda estava fingindo ser a namorada ideal de um outro cara por quem ela perdeu o respeito só para ter um teto depois de ser roubada. Amy não ia resolver o problema, ela só estava pondo sua raiva pra fora, e essa raiva terminava em um suicídio. Porém em determinado momento ela decide que o que ela ia fazer era permitir que o problema não fosse mais um problema dela, e pra isso ela mata um homem, monta uma nova narrativa, volta pra casa e acha sua paz.
O que volta pra frase da minha mãe, que me fez refletir por muito tempo esse filme. “É curioso, depois de tantas histórias sobre mulheres que foram para os subúrbios para morrer, agora escreveram uma que foi para os subúrbios para matar”.
A vingança de Amy é uma das mais emblemáticas do cinema recente. Ela obviamente está se vingando de Nick, mas você vê na internet muita gente apontando como ela está se vingando contra o patriarcado, contra a instituição do casamento, etc… O filme foi amplamente debatido e analisado e muitas vezes sob a perspectiva de entender o contexto maior dos alvos da vingança de Amy.
E eu quero realmente adicionar a esse debate a perspectiva de quem Amy também está vingando. Uma série de histórias sobre mulheres que para poderem ilustrar o Problema Sem Nome, não tinham opção, a não ser morrer. Que parte fundamental da crítica é serem um exemplo para explicarem o quão letal aquele espaço poderia ser.
Mas Amy não foi arrastada pro Misouri pra morrer, e sim pra cometer a maior transgressão que ela poderia cometer. Ela foi lá para triunfar e viver uma vida nos próprios termos. Na exata metade do filme, ela fala sobre Nick: “Vocês acham que eu vou deixar ele me destruir e viver feliz para sempre? Nem fodendo! Ele não vai vencer.”, e isso descreve exatamente o que ela fez. Ela venceu.
