Como a Pixar retrata a opinião pública:

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Sabem um tropo que tem me incomodado recentemente? Sabem quando o vilão está se gabando pro herói sobre como não importa o que o herói faça, enquanto as pessoas continuarem acreditando em suas mentiras, ele vai se safar pra sempre? E aí o herói revela que o vilão está ao vivo em um telão para todo mundo ver. E então de uma hora pra a outra, o vilão perde todo seu poder e influência, pois agora o público pode ver sua verdadeira face.

Esse tipo de tropo não me incomodava no passado, mas eu acho que a era da internet me deixou mais cínico quanto a esse tipo de derrota do vilão. Eu sinto que todo dia alguém famoso confessa um crime na internet, seja um político ou um artista, e sinto que apesar do twitter adorar “cancelar” pessoas, ninguém desse tipo de status pode realmente ser cancelado pelo público. Ninguém está perdendo fortuna, parando de morar de mansão e tendo que virar motorista de uber só porque perdeu o apoio do público.

Estamos comemorando agora 5 anos desde que a carreira do Kevin Spacey acabou.

Johnny Depp e Will Smith, dois homens cancelados de maneiras diferentes por públicos diferentes, objetivamente estão ambos com a vida profissional e financeira melhor do que a minha. E parece que qualquer vexame ou crime que algum ator cometa, ainda existe uma legião de fãs que não vai largar a mão e passar todo o pano que puder passar meramente em admiração pelo carisma público.

Materia aqui

E eu um pouco perco a fé. Sinto que a ideia de que a única coisa que precisa para um empresário ir pra ruína é ter um vídeo dele admitindo um crime no twitter já não me convence.

Pensar nisso me faz pensar na Pixar. Afinal tem um vilão na Pixar sendo derrotado da maneira como descrevi. Que foi exatamente quem me fez sentir esse cinismo pela primeira vez. A cena dele perdendo todo seu poder pós ser filmados admitindo que é um vilão asqueroso, me deu uma acordada. Mas além dele temos um número marcante de vilões da Pixar cujo sucesso depende muito de uma multidão não vendo sua verdadeira face.

E pensar muito nesse aspecto da Pixar é curioso, uma vez que o mundo viu a verdadeira face do John Lasseter, ex-diretor de criação da Disney, diretor de Toy Story que foi cancelado e afastado da Pixar por mau comportamento sexual com suas empregadas, e ele está aí, com um estúdio novo produzindo filmes até hoje. Lançou um mês passado. Uma das cabeças da Pixar não realmente perdeu nada. Mas a Pixar quer nos convencer que o Ernesto de La Cruz nunca mais vai vender um disco?

Isso me motivou a ver mais sobre como a Pixar trabalha esse tema. Até porque… não é somente os vilões dependendo de ter uma boa imagem com o público. Também tem vários filmes em que os heróis dependem muito da opinião pública para tocar a vida.

De uma maneira ou de outra, parece que “As pessoas” enquanto um conceito, é um personagem constante nos filmes da Pixar. Que tem uma constante noção de que as opiniões e o julgamento de uma multidão de personagens sem nome, está impactando a trama.

E o texto será sobre isso. Em entender quem é esse “O público” que constantemente aparece nos filmes da Pixar. Qual é o poder dele. E o quão uniforme ele consegue ser em suas opiniões.

Antes de começar o texto eu quero convidar vocês a apoiarem o Dentro da Chaminé na campanha de financiamento coletivo no apoia.se. Falei ali em cima que minha vida profissional não está muito melhor do que a de um ator cancelado, e eu gostaria que um dia, tocar esse blog fosse o meu emprego. É um trabalho que eu adoro fazer, no qual eu ponho muito foco, muito esforço. E, sendo muito transparente, eu adoraria poder pagar algumas contas com ele. Pros apoiadores eu ofereço o básico, um chat no telegram, acesso aos textos com um dia de antecedência, spoilers dos temas futuros e enquetes para escolher o próximo texto. Esse próprio texto e outro que chega daqui a pouco, ambos foram os vencedores da última enquete.

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Esse texto é feito em homenagem a todos os que já apoiam o Dentro da Chaminé, aos quais eu sou grato de verdade. Eu espero, de coração, que gostem do texto.

Então vamos falar sobre a Pixar.

Os vilões e a opinião pública:

Minha ideia pra esse texto veio de observar os vilões da Pixar, então vamos começar falando da perspectiva dos vilões.

Para um estúdio de animação popular entre as crianças, a Pixar é notável por evitar ser maniqueísta. E muitos filmes não têm vilões no sentido tradicional. Digo, praticamente todo filme da Pixar tem um vilão, mas o vilão mais vezes do que não será uma pessoa pé no chão, realista, que mais do que movida a maldade, meio que só desempena o seu próprio papel naquele mundo. Sid de Toy Story não é mal, ele é uma criança que trata mal seus brinquedos, e você precisa da perspectiva do brinquedo pra vê-lo como mal. O mesmo vale para o crítico Anton Ego em Ratatouille, a inteligência artificial Auto em Wall-E, o urso irracional Mor’du em Brave, a menina que chacoalha o saco em Finding Nemo ou a mãe superprotetora em Turning Red.

Mas as vezes aparecem vilões no sentido tradicional. E um dos vilões mais tradicionais do estúdio é o primeiro a trazer esse tema da opinião pública, que é Hopper, o líder dos gafanhotos em A Bug’s Life.

Hopper é um tirano que explora as formigas, forçando elas a coletarem a comida dos gafanhotos, para os gafanhotos poderem viver a boa vida sem trabalhar. E em troca os gafanhotos ofereciam proteção às formigas (proteção de si mesmos). Todo o plano de Hopper girava em torno de um detalhe importante, as formigas não podiam perceber em momento algum que se elas brigassem de volta elas destruiriam totalmente os gafanhotos. Tinham 100 formigas para cada gafanhoto, e enquanto elas não fizessem essa conta, os gafanhotos manteriam elas na linha, por isso era fundamental pra Hopper garantir que nunca houvesse uma única formiga que não tivesse medo dele.

Nisso o filme já ressalta. Que não é sobre de o Flik, ou a Atta ou a Dot vão lutar de volta. Se vierem esses três o Hopper destrói. É sobre se essa turma toda aqui vai lutar de volta

Individualmente nenhum desses é um personagem, mas o coletivo de todos é o segundo maior medo de Hopper, e é uma força que ele não é capaz de conter. Porém não é isso que derrota Hopper, após as formigas perderem o medo dos gafanhotos, elas não mutilam o Hopper. O Hopper acaba comido pelo seu maior medo, o pássaro.

Aí passamos para Monsters Inc, um filme em que o Randall é um antagonista explícito aos moldes clássicos, para nos distrair do verdadeiro vilão que é o Waternoose. Waternoose planejava sequestrar e torturar crianças para roubar sua energia, e sabia que crianças não eram uma ameaça, mas mantinha a mentira mesmo assim, pois era conveniente pra seus planos. No final em que Waternoose admite que não ligaria de sequestrar mil crianças se fosse pelo bem da sua empresa, ele percebe que ele estava sendo visto por todos os agentes do governo, que prendem ele na hora.

E essa eu acho curioso. Pois eu não entendi de onde veio essa empatia com as crianças. Não é como se elas não tivessem uma imagem supernegativa entre os monstros por propaganda da mídia. Não é como se o governo não estivesse ali justamente como um controle de pestes pra eliminar crianças. Eu não consigo imaginar o plano de sequestrar mil crianças como algo que está escrito no código penal dos monstros pra justificar a prisão de Waternoose.

Mas isso não importa, de verdade, eu não apontei um problema em Monsters Inc, porque o que importa é, o governo conseguiu evidência da verdadeira face de Waternoose, e agora ele tá fodido, pois agora essa informação foi obtida. Preso no ato.

Ele só precisou confessar em ambiente público achando que estava privado e pronto! Acabou pra sempre. O sistema funciona. Mesmo os agentes de controle de criança nunca vão tolerar um empresário maltratando crianças.

Mas vocês sabem. Monsters Inc, é um filme sobre a eficiência dos órgãos reguladores do Estado para manter empresários corruptos na linha, e um filme sobre como as fábricas operam melhor quando os trabalhadores tomam conta da fábrica. É um filme sobre o Mike Wazowski e o Sulley literalmente tomando os meios de produção. Então óbvio que o sistema vai funcionar com essa lindeza.

Aí vemos Cars. Um filme que fala muito sobre como no esporte a sua imagem e seu legado valem mais do que qualquer troféu. Os três troféus de Doc Hudson não tinham valor nenhum, depois dele ser forçado a se aposentar das corridas em um acidente tentando conseguir seu quarto. Ele saiu como uma vergonha e foi esquecido imediatamente, a um ponto em que os corredores atuais nunca tinham nem ouvido falar de Doc. O final de Cars é uma grande celebração de “foda-se quem ganhou”, pois termina com o vilão Chick Hicks destruindo a própria carreira ao vencer o campeonato pela primeira vez, mas demonstrar baixo espírito esportivo.

A vitória suja de Hicks fazem ele perder tudo, seus fãs e seu patrocínio e ele se aposenta, sendo obrigado a virar comentarista esportivo, pois seu troféu não vale nada se o público vê que o atleta tem uma má personalidade. Ninguém nunca vai torcer pra um campeão que seja um cara babaca.

Eu não acompanho esportes, e nem me interesso de verdade, para saber se exemplos assim acontecem de verdade, e se a falta de humildade de um atleta pode fazer sua primeira vitória ser o fim de sua carreira por falta de patrocínio. Eu não me importo se é verdade ou não, não é um mundo que tem meu interesse. Eu me importo aqui em seguir vendo como a derrota de Hicks ocorre quando o público viu sua verdadeira face, e quando ele mostrou que não tem respeito pelos rivais, não existia mais um único carro que torceria por ele.

Novamente, não foi Lightning, ou Doc Hudson que derrotaram Hicks, mas sim esse bando de carro sem nome, pois é na mão deles que está a vitória ou a derrota. No fim, ganha quem tem o amor do público.

Passemos pra Toy Story 3, em que todo o poder de Lotso derivava de uma narrativa que ele passava, inspirado na própria história de vida. Sobre como ele foi substituído por sua dona, e portanto todos os brinquedos do mundo são substituíveis e nenhuma criança nunca amou brinquedo nenhum. Essa narrativa mantinha um grupo de subordinados fiel a Lotso, até Woody desafiar essa narrativa, e apontar os detalhes que Lotso mentiu, forçou e omitiu. Quando a fraude é revelada, todos se voltam contra Lotso e ninguém continua ao seu lado.

E temos Coco com Ernesto de la Cruz. Que esse sim foi o exemplo literal. Colocaram no telão para todos os fãs assistirem ele confessar ter matado seu colega para roubar suas músicas. Ernesto então é atacado pelo alebrije Pepita e esmagado por um sino e todo o estádio aplaude e vibra com esse ataque contra um homem que dez minutos atrás era o ídolo de todos ali.

E no mundo dos vivos, a revelação de Ernesto como um plagiador acabou com seu sucesso póstumo, transformando ele em uma completa vergonha.

E por último temos Ercole em Coco, que nunca foi popular ou admirado, sempre foi um sujeito que a cidade suportava com pouca paciência, mas que no instante em que ele publicamente demonstra seu racismo imenso contra monstros do mar, crente que a cidade o apoiaria, ele oficialmente perde tudo o que ele tinha naquela cidade, incluindo seus dois únicos amigos. É até explicito pelos protagonistas que o reino de terror de Ercole acabou.

E é isso, não importa se você é um ditador tirano, o maior CEO do país, o líder de uma gangue, um atleta que acabou de vencer o campeonato, um artista aclamado ou o bully da vila. Se as pessoas descobrirem a sua verdadeira face, e virem que você é na real um tremendo escroto, todo o seu poder acaba. E não existe capital, títulos, fama ou carisma que permitam que uma pessoa siga sendo capaz de pedir por lealdade depois de ter seus podres revelados.

E tem o caso de Up, em que esse tipo de rejeição das massas não é o que derrotou o vilão, mas o que o criou. Depois que Charles Muntz foi publicamente humilhado pela acusação de que o esqueleto que ele achou era falso, e perdeu sua carreira, ele foi para Paradise Falls procurar provas de que ele não era uma fraude, e passou 70 anos perdendo sua sanidade. Quando Carl o encontra ele estava paranoico e violento de ter passado tempo demais tentando recuperar o que a rejeição  tirou dele.

O que é um bom segmento de como essa entidade “O público” pode afetar mais do que os vilões.

Os protagonistas e a opinião pública:

A história de ambos os The Incredibles gira em torno de uma sociedade em que os super-heróis foram criminalizados depois de uma grande pressão do público, que desprezavam os super-heróis pelo dano colateral e não eram gratos pelos vilões derrotados. Nos dois filmes, o vilão seduz os heróis falando que eles vão fazer uma performance que vai fazer o público voltar a amar super-heróis, e em ambos os casos isso é uma mentira do vilão. O que Syndrome realmente queria era tornar os super-heróis irrelevantes fazendo todo mundo ser super. E o que Evelyn realmente queria era reforçar o medo de super-heróis com medo que a opinião pública um dia mude.

Em The Incredibles é claro que se os heróis são legalizados ou não depende somente do quão populares eles são, acima de qualquer estudo de se eles são úteis, práticos ou seguros. Se o povo quer essa lei, ela existirá, se o povo não quiser ela não existirá. Foda-se que ambos os vilões são bilionários donos de empresas de tecnologia revolucionárias, não está no poder deles fazer lobby nenhum se não for o desejo explícito da população. A democracia funciona.

E temos também Ratatouille, em que parte importante do clímax girava no poder do crítico gastronômico de manipular a opinião dos clientes e poder salvar ou fechar um restaurante com suas palavras. Se Anton Ego não gostasse da comida, ele ia fazer o povo desgostar da comida. E o restaurante depende do público pra existir.

Em Brave o centro do conflito entre Mérida e sua mãe, é que Mérida queria ser livre e fazer as próprias escolhas, mas sua mãe, muito familiarizada com como a realeza funciona, achava que Mérida deveria fazer ações que agradassem toda a nobreza da Escócia. O lance do casamento arranjado era tão mais sobre opinião do resto da nobreza do que sobre a Mérida, que em determinado ponto Mérida consegue conquistar toda a nobreza da Escócia com um discurso que une todos eles em torno de sua família. No fim do discurso ela quase fala que aceita o casamento arranjado e não vai mais se opor ao seu papel, mas sua mãe não deixa que ela termine, pois agora que ela conseguiu o apoio de todas aquelas pessoas, ela não precisa ceder mais nada.

Nos quatro filmes o antagonista assume o papel antagonista com seu poder de manipular a opinião alheia, e conflito é gerado do quanto o protagonista depende de ser aceito e validado por esse público.

Mas isso fica maior do que nunca em Luca. Que no que muitos interpretaram ser uma metáfora para pautas lgbtqia+, o protagonista Luca e seu melhor amigo Alberto morrem de medo de serem odiados caso assumam para a vila que eles são monstros marinhos, um segredo que outras pessoas no vilarejo também guardam com medo da rejeição.

Luca é o único caso que tirou o poder de unanimidade da massa, frisando na forma de uma moral da história que muitos vão rejeitar Luca, mas muitos vão aceita-lo e cabe ao menino saber identificar seus aliados. Mas em todos os outros não parecia haver uma divisão clara.

O mundo não estava dividido na pauta dos super-heróis, o mundo estava contra.

Não vimos a galera defendendo que a performance do De La Cruz ia muito além da letra, a galera abandonou ele completamente.

A opinião da massa é sempre única, pois sempre deriva do mesmo fato.

Seja esse fato uma informação que eles receberam diretamente, como “Hicks não tem espírito esportivo” ou indiretamente, como “Anton Ego acha a comida desse restaurante ótima”, só existe uma única reação possível a esse fato, e é a reação que o público terá.

Quem é esse público?

Mais do que os demais estúdios de animação, a Pixar parece sempre o estúdio mais interessado em criar um mundo novo. Fazer um universo próprio que segue as suas próprias regras. Um mundo que tem sua própria lógica, e suas próprias nuances, e então a Pixar faz o personagem sair do sistema, parar de ocupar o seu lugar estabelecido e explorar todos as camadas e nuances do seu mundo. A Alegria opera só no controle emocional da Riley? Ah não, vamos fazer ela dar uma volta pelo cérebro inteiro. O Sully trabalha só em um setor da empresa com uma única porta? Agora eles vão passar pela empresa toda e muitas portas. O Flick nunca saiu do formigueiro? Agora ele vai sair e ver todo tipo de inseto no mundo.

As vezes os personagens acidentalmente saem do próprio lugar, como Sully e Alegria, as vezes o personagem propositalmente sai do próprio lugar, como Flick ou Mérida. Mas a estrutura da Pixar fez com que pra evidenciar a ideia de um personagem que não está ocupando seu espaço e vivendo a rotina que eles devem viver, precisamos dessa entidade que vive a vida como deve ser vivida, que observa e reage ao protagonista explorando um território que não é a sua praia.

E nisso criamos essa entidade. Do público, que não é exatamente muito presente em filmes infantis. Eles até existem, mas assim, é diferente. Porque filmes infantis, como as animações da Disney, Pixar, Dreamworks, Sony Animation, Illumination, etc… muitas vezes procuram passar a moral da história “seja você mesmo”. E em histórias sobre ser a si mesmo sempre contam com essa figura do público que exerce uma pressão para você ser outra coisa, e essa pressão deve ser desafiada. Geralmente essa multidão vai ser personificada em um grande personagem nomeado, e nesses filmes, quando o personagem começa a agir como a si mesmo, as coisas dão certo pra ele e ele aprende que não tinha que temer essas pressões.

Geralmente o “medo do que as outras pessoas vão achar” é falso. Quando o personagem mostra quem é, ele é aceito, ou caso seja rejeitado, aprende que não deve satisfação a ninguém. De qualquer forma o público não pode fazer nada contra o personagem que o enfrentou. O imperador, a casamenteira ou o pai da Mulan podem destruir a vida dela. Mas o povo da China? O povo da China nunca é um personagem real com consequências palpáveis pro que eles acham ou deixam de achar.

Tipo, é bom que eles tenham se curvado. Mas se não tivessem, tudo bem, ela voltaria pra casa com a mesma honra.

A grande exceção seria Beauty and the Beast, em que a rejeição social que Belle sofria na primeira cena escala no clímax do filme onde a cidade inteira é uma turba atacando e destruindo o castelo. E a situação deixa de ser uma em que Belle pode só ignorar a comunidade onde ela vive.

Mas em um Aladdin da vida, ou How to Train Your Dragon, apesar dos protagonistas serem deslocados que certamente recebiam olhares cruéis das pessoas ao seu redor, não era a opinião popular que tinha o poder de destruir a vida deles, e sim a opinião cruel de indivíduos em cargos de autoridade. Essas jornadas de identidade podem dialogar com expectativas de como a massa anônima vai interagir com os protagonistas, mas não é realmente definida pelo papel que um público externo tem de forçar a mão dos personagens. E o mais importante, em muitos desses filmes, mesmo se o protagonista tiver medo do público, o público nunca tem real poder de deter o vilão, ou parar o conflito mudando de opinião.

Na Pixar não. Na Pixar é bem estabelecido que quem policia as pessoas que saem da norma, não é o capitão da guarda, um ditador ou uma figura específica de autoridade nomeada. Quem policia as pessoas que saem da norma, são as pessoas dentro da norma. Quem policia o mundo construído são seus habitantes. Quem policia o quarto do Andy são todos os brinquedos do Andy. Quem policia a vila de Luca, são seus habitantes.

Inclusive quando a vila é convencida a aceita Luca, uma mulher literalmente puxa o papel dando um prêmio pra quem matasse o monstro marinho das mãos da polícia. A vila serve de escudo pra literal polícia, se necessário.

Aliás, policiar talvez seja um verbo forte, pois as vezes as pessoas na norma exaltam quem é excepcional, como em Finding Nemo, as vezes condenam, como em The Incredibles, mas tem sempre sobre essa relação da pessoa o espaço que ela ocupa e a opinião geral sobre ela.

O importante é que a Pixar dá a essa massa poder. O mundo não é moldado só pelos personagens nomeados, mas a multidão não nomeada, pelo poder de delimitar o que é admirável, o que é aceitável e o que é inaceitável, moldam o mundo também, e tanto heróis quanto vilões respondem ao grupo.

Mas ao mesmo tempo, transforma a massa em justamente uma massa. Unânime. Os personagens nomeados da pixar são notórios por sua individualidade e por sua visão de mundo única e clara. Mas a massa toda não só tem sempre a mesma opinião, como tem a opinião lógica e adequada. O quê? Ernesto de la Cruz é um plagiador? Vamos abandoná-lo todos. Ninguém vai passar o pano. A reação normal é abandoná-lo então abandonem. Em histórias como Incredibles ou Brave a multidão determina as regras sob as quais o protagonistas devem se adequar para passarem como pessoas funcionais. Ninguém na multidão questiona as regras ou vê nuance ou discorda dos demais. Se um se destacasse ele seria um dos personagens principais.

E eu acho que o ponto é um pouco esse. Fazer personagens que se destacam da multidão nos filmes, por ideologia ou por engano, mas mantendo a multidão para servir de contraste e de elemento que impacta o roteiro.

Em Wall-E temos isso em dois níveis. Tanto Wall-E, e Eve se tornando robôs rebeldes e ganhando a simpatia de todos os robôs defeituosos que quebraram a rígida norma de seguir a diretriz. Quanto os humanos John e Mary que quebram da rotina robótica que virou a vida humana na Axiom. E no final, quando o capitão enfrenta Auto, é importante a série mostrar o publico da nave torcendo e validando a vitória do capitão, reconhecendo que eles precisam querer ir com o capitão para tudo funcionar. A opinião do capitão não podia ser diferente da opinião da multidão.

E nisso se dá poder pra multidão. O poder de destruir protagonistas ou vilões. Tanto faz. É neles que está o poder.

Conclusão:

Eu vim escrever esse texto só porque eu fiquei intrigado com como a Pixar retrata cancelamentos. Eu sinto que se você é um influencer médio que paga as contas mês a mês com views nas redes sociais um cancelamento pode de fato te destruir, mas se você é uma celebridade de verdade, geralmente o cancelamento se torna um mito. Artistas problemáticos evitam os holofotes, mas nunca somem. Não perdem realmente seu poder. Uma escritora como a J. K. Rowling pode mudar de popular pra notória por ser uma escrota sem perder nada de seu poder.

E eu acho que as redes sociais alimentam um pouco uma narrativa narcisista de que a gente tem o poder de derrubar celebridades e de acabar com artistas problemáticos que não temos de verdade. A internet não pode tirar o poder de um Johnny Depp da vida. Quando algum ator realmente perde seu espaço na internet por conta de polêmica, geralmente é porque eles vão pra lista negra de alguém, e pra ir pra lista negra, não é a gente que tem que ficar revoltado com o ator, são os figurões de dentro. Vimos esse ano Will Smith ficar de castigo em Hollywood por ter esbofeteado o Chris Rock. E isso não tá na conta do público, foi decisão interna. A mesma que colocou na geladeira carreiras como do Brendan Fraser ou da Winona Rider no passado, por assuntos que não tem nada a ver com a gente.

As mesmas que permitem que John Lasseter ainda faça filmes, só que fora da Pixar.

Não depende da gente. Mas as vezes querem nos convencer de que temos esse poder, de que fomos nós. Assim como vendem a narrativa de que os dois impeachments no Brasil foram respostas ao povo ir pra rua pedir pelo impeachment, e não decisões internas tomadas por outros políticos que não ligam de verdade pra opinião do povo.

E por isso me intriga que justamente na casa do John Lasseter, tenham filmes em que o cancelamento funciona. Pro bem e pro mal. O cancelamento cancela o Sr Incredible e o Ernesto de la Cruz, bate em um e no outro

Eu não acho que a Pixar está deliberadamente tentando normalizar a ideia de que a gente tem mais poder do que acha e que a nossa rejeição pode remover o poder de qualquer um. Do herói ao vilão, do CEO ao ditador. Eu só me intrigo com isso.

Eu acho um exercício fascinante de construção de mundo, como o mundo da Pixar raramente gira em torno de seus protagonistas e seus vilões. O mundo da Pixar é construído por todos os seus personagens, até aqueles que não tem nem nome. O quarto do Andy girava em torno do Woody e do Buzz, mas sem a validação de todos os outros brinquedos, o Woody não tinha espaço ali. E se o perdão dos outros brinquedos, o Woody não tinha pra onde voltar. E todos mesmo, o Potatohead, o Rocky e os mil hominhos verdes.

Eu falei lá em cima ironicamente “A democracia funciona”, mas é fascinante como de fato os filmes da Pixar têm um ar democrático. De como mesmo depois de percorrer a maior aventura de sua vida, o Sully era só um monstro comum, tão especial quanto qualquer outro monstro. O Lightning McQueen não termina o filme como melhor nem pior que seus amigos de Radiator Springs. Ele não virou o chefe, o rei, o líder de nada, ele termina completamente imerso no ambiente como só mais um.

No fim dos filmes da Pixar, é muito menos comum ver personagens se tornando especiais, príncipes, superstars ou pessoas excepcionais, e muito mais comum ver eles achando uma nova forma de se integrar com o mundo. Se encaixar na multidão e ser parte de um coletivo que funciona bem. E é porque a noção de coletivo está constantemente presente.

As outras formigas são parte essencial de A Bugs Life, tanto quanto qualquer formiga nomeada. Assim como os outros brinquedos em Toy Story, os humanos obesos na cadeira voadora em Wall-E, e a vilazinha de Luca. Esses grupos são parte do mundo, da comunidade onde o protagonista vive, e por mais que eles não sejam vistos como indivíduos pela narrativa, eles importam, tanto quanto os personagens que são indivíduos.

E eu não tinha pensado nisso, mas acho que é parte do que torna a construção de mundo da Pixar tão rica. Como não importa aonde a gente vá, parece que todo mundo que a gente encontra importa. Que metade desses personagens pode ser o herói da própria história. Que apesar da hierarquia narrativa entre protagonistas e secundário, e de supostas hierarquias internas como a Princesa Ata ser a princesa, apesar disso, existe um tom de igualdade entre os personagens.

E independente de quanto poder ele tenha, qualquer personagem está constantemente sob o perigo de perder tudo o que tem se desagradar sua comunidade.

E ainda não é tão comum ver universos em que essa comunidade é realmente valorizada. Quem me dera um filme de Frozen em que a Elsa deve alguma satisfação ao povo de Arendelle sobre ter feito o inverno eterno, e onde suas ações como rainha podem causar a ira da população. Quem me dera qualquer filme de princesa em que a princesa percebe o quanto ela deve de resposta ao povo. Claro, tem exemplos aqui e ali. Muito personagem só quer ser amado. A Pixar não é nenhum unicórnio não em questão de raridade. Mas eu acho notável. Como não importa o quão longe os personagens cheguem, eles nunca ficam longe demais das demais pessoas ao seu redor.

Eu planejei esse texto, e joguei ele em uma enquete pros apoiadores achando que eu queria falar mal da ilusão de que nós podemos cancelar os Ernestos de La Cruz da vida real. O plano era esse. Mas revendo todos os filmes, eu na verdade gosto do quanto os personagens da Pixar não tem poder de passar por cima das pessoas ao seu redor, só porque eles estão em uma grande jornada. Pois a multidão é sempre dos iguais ao protagonista, mesmo a princesa, é só mais um clã nobre que pode ser deposta pelos vários outros nobres da escócia, e esse senso de igualdade realmente dá um impacto positivo. De que o personagem pode ir super longe, e seguir sendo só mais um. Que é algo que eu aprecio nesses filmes agora.

Sobre o autor

Izzombie

Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

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Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

Alertas

  • – Todos os posts desse blog contém SPOILERS de seus respectivos assuntos, sem exceção. Leia com medo de perder toda a experiência.
  • – Todos os textos desse blog contém palavras de baixo calão, independente da obra analisada ser ou não ao público infantil. Mesmo ao analisar uma obra pra crianças a analise ainda é destinada para adultos e pode tocar e temas como sexo e violência.

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