Vamos começar voltando uns anos no tempo: Em novembro de 2018, estreou o filme Ralph Breaks the Internet, continuação do sucesso da Disney: Wreck It Ralph, e assim como o filme anterior, muito de sua publicidade se sustentou em altos crossovers que vão rolar, agora não só com o mundo do videogame, como com o mundo da internet. Sendo o exemplo mais famoso o fato de que eles não cansaram de divulgar a cena em que Vanellope encontra-se com todas as princesas Disney.
Sim, sim, todas as onze princesas oficiais da Disney, com a adição das não-oficiais Anna, Elsa e Moana, que protagonizaram filmes de enorme bilheteria e que foram criadas com expectativas de eventualmente entrarem na panelinha enorme que são as Princesas Disney.
Ah sim, Princesas Disney não são um mero nome que os fãs deram ao coletivo de personagens da Disney que possuem o título de princesa em seus respectivos filmes. São uma franquia da Disney de venda de produtos que promove uma “mitologia de princesas.” escolhidas a dedo pelos executivos para poder participar da franquia, sob o pretexto de que essas personagens são mais lucrativas aparecendo em conjunto do que individualmente. Elas aparecem em produtos, brinquedos, vídeos, como parte de uma grande marca das Princesas Disney para promover essa mitologia de “o que é uma princesa” e apesar de inúmeros filmes Disney terem princesas, somente onze foram selecionadas para ser parte da franquia: Snow White (Branca de Neve), Cinderella, Aurora, Ariel, Belle e Jasmine foram a formação inicial quando a marca surgiu. Com Pocahontas e Mulan depois sendo retconadas como parte da marca, mesmo com a tecnicalidade do título princesa fazer pouco sentido pra cultura de Pocahontas, e da Mulan explicitamente não ser uma.
Em 14 de Março de 2010 uma atriz vestida de Tiana foi até a Disneylândia ser coroada na frente de todas as outras oito princesas para oficialmente se tornar a 9ª Princesa Disney aos olhos de todos. Isso é o quão a sério o estúdio leva o grupo, quando um membro novo entra, eles fazem uma cerimônia imensa. Em 3 de Outubro de 2011, Rapunzel foi coroada em uma cerimônia semelhante no parque, e em 11 de Maio de 2013, foi a vez da Mérida. E desde então nunca mais houve uma coroação ou uma expansão oficial da franquia.
Aí a pergunta é: Ué, mas e Frozen e Moana? Não vão entrar na panelinha? Pois é, coisa doida né? Aparentemente Frozen é tão, mas tão lucrativo, que o nome Frozen já é uma marca muito mais lucrativa para o estúdio do que as Princesas. Então no ponto de vista financeiro (o único que importa), permitir que Anna e Elsa se tornem Princesas Disney é mais um rebaixamento do que uma promoção. Moana não tem uma explicação oficial de porque ela não vai se juntar formalmente à panelinha, mas eu chuto que com ela se recusando a ser chamada de princesa em seu filme, e com a Disney cancelando o filme Gigantic onde a personagem Inma seria uma candidata ao grupo, eu diria que é porque a Disney quer matar o grupo logo. Talvez focar em um novo estilo de heroínas, talvez Frozen tenha deixado todo mundo ambicioso ali, talvez as demandas feministas de focar mais em “heroínas” do que em “princesas” e seus estigmas negativos esteja batendo, mas me passa a impressão de que a linha das Princesas Disney será paralisada e lentamente substituída pela noção coletiva das personagens femininas de maior sucesso. Especialmente com nada indicando que a Raya que tá virando a esquina, vai ser qualquer tipo de princesa.
A prova disso é o filme Wreck-It-Ralph mesmo. Existia uma regra entre as princesas Disney que você pode conferir. Elas nunca em nenhuma mídia devem ter contato visual uma com a outra, pois seria uma interação inaceitável, afinal elas não existem em um universo combinado e sim cada uma em seu próprio universo. E mesmo quando elas aparecem no mesmo universo, é sem interagir entre si, como fizeram em Sofia the First.
E bem, Ralph Breaks the Internet colocou elas para terem contato visual, colocou as três não-coroadas no grupo, e ainda questionou a ausência da Vanellope no grupo, apesar dela claramente ter o título de princesa. Talvez a Disney tenha planos de dar uma nova direção às princesas no futuro.
Mas porque eu comecei falando disso tudo? O texto é sobre Atlantis – The Lost Empire, está lá no título, ninguém clicou aqui para ler sobre princesas. Pois bem, era uma introdução que eu me alonguei para ressaltar o fato de que a personagem Kida nunca foi cogitada como um possível membro do grupo. Mas tipo: nunca mesmo. Nem no grupo oficial, nem na rodinha-quebrando-as-regras que a Vanellope invadiu no trailer do filme. Apesar de ser uma princesa em seu filme, ela é extremamente ignorada, e não só ela como o filme todo. Lembram do House of Mouse, aquele desenho em que o Mickey apresentava desenhos para uma plateia formada só por personagens Disney? Pois é, existe literalmente dois episódios só em que personagens de Atlantis apareçam (em um episódio a Kida aparece, em outro a Packard aparece).
Nesse caso vamos falar logo sobre Atlantis – The Lost Empire
Então vamos falar sobre esse filme. Vamos falar por que que a Kida é obscura demais para fazer um cameo em Ralph Breaks the Internet. Vamos falar sobre por que quando você tiver permissão pra se aglomerar de novo (porque agora você não tem não, respeite a quarentena!) e resolver ir pra Disney, as chances de você encontrar atores vestidos de personagens de Atlantis é mínima.
A resposta óbvia é: Porque o filme foi um fracasso de bilheteria. E eu entendo essa resposta, mas para mim, olhando daqui de onde eu estou, me parece a resposta preguiçosa. Afinal a Disney é uma empresa que já aguentou fracasso comercial atrás de fracasso comercial, e isso nunca impediu a empresa de abraçar alguns de seus grandes fracassos. Vejamos: Vocês sabiam que Sleeping Beauty foi um filme que não conseguiu pagar o próprio orçamento nas bilheterias, e que o fracasso do filme foi o motivo de o estúdio ficar literais 30 anos sem tentar voltar pros contos de fada? Pois é, um filme que foi tão comercialmente inviável que laçou o estúdio em sua chamada “Era das Trevas”, e arruinou a produção por 30 anos não é ruim o suficiente para não estar nas Princesas Disney.
Mas o fracasso de Sleeping Beauty não é nada perto de Fantasia, um dos maiores fracassos comerciais da história do estúdio e talvez da história da animação. Uma grande experiência de perder dinheiro, que falhou miseravelmente em conseguir emplacar um gênero cinematográfico em que as pessoas fossem ao cinema ver uma experiência audiovisual que auxiliasse na apreciação de música (décadas depois, videoclipes são um sucesso e vemos o quão na Vanguarda o Tio Walt estava). Enfim, o fracasso monumental que foi Fantasia não impediu o filme de lançar uma sequência cinematográfica (diferente dos direto-pra-dvd que filmes como The Lion King pegaram), e de transformar o Mickey Feiticeiro em um mascote pro estúdio, mesmo sendo a estrela de um fracasso comercial.
E mesmo fora da Disney. Filmes como Wizard of Oz e Willy Wonka and the Chocollate Factory foram considerados fracassos comerciais, e nada disso impediu os filmes de serem inseridos no imaginário infantil de tanta exposição que as crianças tiveram a esses filmes.
Então o que eu quero dizer é: Obviamente bilheteria importa, mas se tudo dependesse da bilheteria e de nada mais, metade do que está firmado na cultura cinematográfica atual não estaria. Existe marketing, existe resposta do público, existe o filme sendo redescoberto anos depois, existem reapropriações do filme que permitem que ele brilhe. Existem meios para fazer o filme render e vingar no imaginário popular depois que eles fracassaram. E considerar A Bela Adormecida como um filme digno de emplacar uma princesa Disney é um desses meios. Você pode transformar um filme em clássico, mesmo ele indo mal, e a Disney fez isso com vários de seus filmes que foram abaixo do esperado em bilheteria, mas o estúdio visivelmente desistiu de Atlantis tão cedo quanto o filme fracassou, sem cogitar nenhuma sobrevida depois do fracasso….
Ok, pra ser justo, devo admitir que ganhou uma sequência direto pra DVD, mas isso até mesmo The Fox and the Hound ganhou.
Mas é sério. A Disney já tinha uma série de televisão preparada para seguir o filme, e uma atração no parque temático, e assim que o filme não vingou foi tudo jogado fora, descartado no meio do caminho, quando poderiam ser justamente a visibilidade que daria uma nova vida ao filme, ser o gatilho para uma série de sucesso.
Eu acho Atlantis um estudo de caso interessante, pois foi um filme muito ambicioso, e a Disney deu ao filme um zelo muito maior do que daria a outros filmes em sua produção, mas assim que o filme não vingou eles jogaram tudo no lixo, sem tentar salvar o filme firmando ele na memória do público, tal como eles fizeram com Sleeping Beauty ou Fantasia ou Dumbo (que foi mal de bilheteria e tinha o estigma de ser um filme com caricaturas racistas, e ganhou um remake, e esse remake é uma bosta), ao ponto de que décadas depois ninguém cogita pensar que esses filmes não vingaram ou que não são parte fundamental do imaginário do que é a Disney em seu melhor estilo.
E é sobre isso que é esse texto. Sobre os fatores que destacaram Atlantis – The Lost Empire de todos os outros filmes da Disney. Sobre o salto gigante que foi fazer o filme e a queda gigante que foi ver esse filme ser reduzido a nada no legado do estúdio. E sobre que influências positivas a Disney jogou no lixo no processo.
O fracasso de Atlantis – The Lost Empire:
Vamos começar falando de outra coisa. De um fantasma que a Disney possuí assombrando o estúdio faz 33 anos. E esse fantasma é o filme The Black Cauldron.
Tudo o que foi feito entre Sleeping Beauty e The Little Mermaid é conhecido como a “Era das Trevas” da Disney. Existem pessoas tentando tirar o estigma negativo do termo “trevas” chamando o período de “Era de Bronze”, mas mesmo assim, sempre que alguém se referir a “Era das Trevas” da Disney, estará se referindo ao exato mesmo período, pois foi o fundo do poço do estúdio. E toda vez que eu tento explicar esse conceito para alguém a resposta imediata é “puxa, mas [algum filme desse período] é um dos meus filmes favoritos da minha infância. É super bom.”, e não está errado, não só não está errado, como eu sou um grande fã de muitos filmes produzidos durante essa fase. A Era das Trevas, não era das Trevas pois não saia filme bom, e sim, porque não saia filme de sucesso, e no geral foi uma época em que ninguém mais achava que a animação no cinema era algo rentável.
A Disney sobreviveu nessa época extrapolando nos cortes de orçamento (já viu alguém na internet apontando cenas da Disney em dois filmes diferentes que são idênticas e tem a animação reciclada? Pois é, tudo dessa época), e nesse momento em que tudo era tão difícil, e ninguém queria fazer contos de fada, pois Sleeping Beauty era parte do problema, ninguém sabia direito o que fazer, e acabou sendo um período bem experimental para o estúdio.
De um filme sobre o Rei Arthur sem a távola-redonda ou seus cavaleiros, a um filme sobre Robin Hood para furries. Passando por um drama sobre uma amizade proibida que é pesado e tem um final ambivalente, e por um filme de gatos passeando pela França pra voltar pra casa. Não tinha bem uma fórmula, pois todos tentavam atirar em todas as direções para ter sucesso.
E aí veio The Black Cauldron, uma tentativa de abraçar o gênero da fantasia medieval, que estava em alta entre os fãs de animação graças a adaptação de Ralph Bakshi de Lord of the Rings. O filme contou a história de um jovem criador de porcos, chamado Taran, que sonhava em ser um soldado, um guerreiro que fosse corajoso, não tivesse medo de nada e enfrentasse o mal. Um dia ele descobre que o porco que ele protege pode ver o futuro, e que o maligno Horned King queria esse porco para poder localizar o Caldeirão Negro, que lhe daria o poder de erguer um exército de soldados mortos-vivos e dominar o reino com sua maldade. Pois bem, Taran então aceita a missão de proteger o porco e não deixar o Horned King ter acesso a ele, nessa jornada ele faz vários aliados, incluindo a princesa valente Eilonwy, o bardo esperto Fflewddur, o fada ranzinza Doli, e o covarde e oportunista Gurgi. Que apesar de ser um covarde e um ladrão, no final se provou o mais nobre e altruísta de todos, lutando por algo maior do que ganhar honra, fama ou ser visto como corajoso, que é a grande lição que Taran aprende ao final. Com a lição aprendida, e o mal tendo sido detido, Taran é liberado pelo seu mestre para ficar com seus amigos, que lhe permitiram crescer tanto.
O filme foi o primeiro filme da história do estúdio a ser classificado PG (o equivalente americano a “para maiores de 13 anos”), foi o primeiro filme da história do estúdio a não ter músicas, e por mais que a Disney estivesse experimentando muita coisa, foi a primeira vez que eles se aventuraram em um gênero já estabelecido fora da Disney que era a fantasia medieval. E chamar o filme de fracasso é um desrespeito a todos os outros fracassos que esse texto menciona. Black Cauldron por muito pouco não faliu o estúdio. Sério, a Disney esteve a milímetros de distância de vender os parques só pra pagar dívida. Ele é eternamente lembrado como “a bomba que foi tão ruim que quase destruiu a Disney inteira.”
Por isso em um lugar onde sempre que o estúdio cai ele se levanta, existe um fracasso que foi grande demais, que eles se levantaram, mas ficaram com medo, que eles viram a falência de perto e são gratos a terem superado. E esse filme só traz más lembranças ao estúdio.
E esse é o motivo pelo qual a Princesa Eilonwy não é uma das princesas Disney e a Aurora é, sendo que os dois são fracassos, pois a Aurora não ameaçou falir o estúdio.
Enfim, eu acho que o fracasso de Atlantis, embora não tenha tido o risco de falir o estúdio rimou com o fracasso de Black Cauldron, e tem relação com o quão rápido o estúdio desistiu do filme, em vez de tentar salvá-lo retroativamente.
Atlantis começou sua produção logo depois da estreia de Hunchback of Notre Dame, filme de sucesso da Disney que possui os mesmos roteirstas e diretores, e que deu a Disney o conforto de depois de fazer um filme mais pesado que a norma do estúdio, poderem arriscar mais com a quebra da fórmula Disney. Então Gary Trousdale e Kirk Wise (os diretores) começaram a trabalhar com algo que fosse na linha aventuresca de Julio Verne, mais especificamente 20.000 Leagues Under the Sea, que a Disney já tinha adaptado em live-action no passado com sucesso. Então eles decidiram fazer um filme sobre Atlantis nessa pegada aventuresca.
O filme deve um valor de produção muito alto. Demorou cinco anos para ser feito, e quando estava pronto, era o filme do estúdio com o maior uso de computação gráfica até o momento. No design de produção, a Disney colocou Mike Mignola, desenhista de HQ famoso pelos quadrinhos do Hellboy para desenhar os personagens e ditar o estilo visual do filme. E Marc Okrand, famoso por ter inventado a língua Klingon para Star Trek foi contratado para criar a língua atlante.
Quando o filme estreou a Disney já havia deixado a sua renascença iniciada com Little Mermaid, e se despediu da renascença com Tarzan, um filme que foi feito já com o objetivo de se afastar das influências dos contos de fada. Tarzan foi um filme de aventura, com um protagonista sendo um homem forte, e que por imposição de seu diretor, não cantava, pois cantar era ridículo na boca de um personagem como Tarzan. E ele era a Disney preparando seu terreno para filmes de ação. O filme Tarzan por pouco deixou de ser um musical, mas achou um meio termo de fazer as canções serem cantadas por um narrados em momentos de passagem de tempo, o que era o primeiro passo para tentar se desdisneyficar.
E deixo aqui um link de uma videoessay boa sobre a ausência de canções no Tarzan e o que isso significou pra época e pra Disney. É um vídeo meio estranho, pois comenta Tarzan como um filme pouco popular e impactante, o que é estranho, pois é meu filme favorito da Disney, mas rima um pouco cm o que eu falei acima da Era das Trevas, todo mundo ser fã de um dos filmes, e também sobre como eu gosto muito de Atlantis, mesmo o filme tendo pouco impacto. Acho essa rima relevante e um vídeo bom, mas essa é a análise de outra pessoa, deixa eu voltar pra minha.
E com isso, a renascença acabou e o estúdio havia voltado a uma época instável, com poucos sucessos, pouco dinheiro, pouco incentivo para manter o estúdio animado funcionando e portanto uma época experimental, o que acabou favorecendo a ambição de Atlantis e a guinada diferente que ele trazia.
Atlantis foi um filme difícil, caro e ambicioso. Foi o terceiro filme da história do estúdio a não possuir uma cena musical (o terceiro foi a sequência de The Rescuers), entrou no mundo da ficção científica steampunk e dos filmes de exploradores aventureiros como Indiana Jones, arriscando em um gênero estabelecido. E mesmo a ligeira mágica que vemos no filme não entra de verdade no espectro da magia e mais da ficção científica mesmo, como uma “ciência alternativa de cristais”. E foi o segundo filme da história do estúdio a ser classificado como PG. O filme seguiu em um monte de caminho que a Disney tinha decidido nunca mais seguir depois de Black Cauldron e o resultado disso, é que esses dois filmes são os dois únicos filmes do estúdio a atualmente ganharem o rótulo de clássico cult entre os fãs.
E é aqui que eu acho que o estúdio jogou a toalha e entrou na onda de fingir que o filme não existe. Que a Kida perdeu o direito de ter cameo entre princesas Disney, e que a série de televisão deixou de existir. Mais do que o fracasso na bilheteria (que foi uma bilheteria maior que Emperor’s New Groove que teve uma série de televisão), a rima com o outro fracasso do estúdio e o lembrete sobre os caminhos que a Disney nunca deve trilhar.
Somado a isso, o filme saiu no mesmo ano que Shrek definiu que filmes em computação gráfica eram o futuro e que a animação tradicional não tinha mais espaço. O filme saiu no ano em que o primeiro Oscar de melhor filme animado na história e o filme não foi indicado, mas Jimmy Neutron – Boy Genius foi. Foi uma abertura de olhos sobre como o filme era um filme que não tinha espaço em 2001, que dar um passo em direção a mais maturidade foi um erro, e que o sucesso estará nos filmes em CG. Coisas que culminaram no primeiro filme em CG da Disney, muitos anos depois ter sido aquela bomba que foi Chicken Little.
O que me leva ao ponto dos caminhos a não se trilhar e o que o filme tem de muito positivo, que foi pro lixo junto com o fracasso.
O diferencial temático de Atlantis – The Lost Empire, e o que a Disney perdeu.
O que mais me chama a atenção em um filme sobre um americano descobrindo uma civilização perdida do passado, é no quanto o filme evita ser eurocêntrico, em um gênero em que eurocentrismo é meio que a norma. Na lista dos filmes Disney, Atlantis veio depois de um filme que trata a América Pré-Colombina da mesma maneira que os Flinstones tratam a idade da pedra (como mera maquiagem para humor, fazendo eles terem a exata mesma cultura que seu expectador), e em um estúdio que erra mais do que acerta na maneira como lidar com outras culturas, isso me surpreendeu.
Fora da Disney, um ano antes, a Dreamworks havia lançado um Disney sobre dois Europeus enganando um povo Asteca se fazendo passar por deuses, ao longo do filme eles usam a promessa dinheiro para seduzir uma jovem Asteca a se juntar a eles, mesmo ela sendo de uma cultura, onde não existe dinheiro. E uma autoridade Asteca reconhece que esses espanhóis estão trazendo valores culturais positivos para o povo em contraste com as tradições horríveis dos Astecas, e se torna um cúmplice da mentira, mostrando como o eurocentrismo na hora de tratar o encontro entre a cultura europeia e qualquer cultura isolada no mundo era a norma ainda.
Mas Atlantis tomou várias decisões não-convencionais nesse quesito.
Atlantis é uma cidade lendária que afundou e foi descrita por Platão, um filósofo grego. E por isso é uma cidade muito associada aos gregos e uma civilização associada aos gregos. Que eram brancos. Porém a primeira decisão do filme ao retratar Atlantis é que a cidade não deveria ser “colunas gregas debaixo do mar.” afinal Platão não descreveu a própria civilização, descreveu uma outra civilização mais antiga que uma das civilizações mais antigas que conhecemos. O filme decidiu fazer de Atlantis a civilização primordial da qual todas as outras culturas da Terra descendem, e com isso a decisão, de que os atlantes não deveriam ser brancos, pois afinal, os primeiros humanos não eram.
O que é algo que tem muito branco que não admite até hoje.
A cultura atlante criada recebeu inspiração cultural de diversas regiões do planeta, a arquitetura local era uma mistura da arquitetura indiana, cambojana, tibetana e maia, de maneira a dar a entender que todos os povos que descenderam de Atlantis levaram algo consigo.
O elenco de Atlantis está entre os mais diversos que a Disney já fez. Não é tão diverso assim, a nota de corte aqui é bem baixa, e nem é um polo de representatividade, mas está entre o que a Disney fez que chegou mais longe. O filme tem o recorde de maior número de personagens femininas em papéis centrais no filme, com quatro mulheres. Todas as quatro sendo fortes, uma vez que Milo é o único personagem frágil do filme e deve se destacar dos demais por ser frágil. Dentre elas, Audrey Ramirez, o primeiro personagem da Disney a ser um ser humano, ser de descendência latina e ser dublada por uma dubladora latina. A Disney só foi fazer isso pela segunda vez em Big Hero 6. Pois é, parece algo simples de fazer, mas foram duas vezes em 58 filmes.
E como eu apontei aqui quando eu apresentei alguns dubladores americanos, a Kida é dublada pela Cree Summer, que não só é uma mulher que usa seu poder midiático para lutar por representatividade, como é uma das poucas vezes que a Disney chamou uma dubladora profissional para fazer sua heroína, em vez de escolher ou uma celebridade, ou uma novata que vai ter nesse papel seu primeiro trabalho grande. Tem muita coisa notável e positiva quando se fala do trabalho de dublagem, mas continuemos falando dos personagens.
O personagem do Dr. Joshua Sweet, não só é um homem negro com uma profissão de alto status (médico) em um filme passado durante a primeira guerra mundial, onde era mais improvável de ver um homem negro em tal posição. Ele é também descendente de indígenas, pelo lado de sua mãe, e seu conhecimento de práticas medicinais indígenas são o que permitem que ele seja tão excelente em seu campo de atuação. Dr. Sweet não tem somente a perspectiva estadunidense em si, pois ele sabe e imerso no conhecimento e cultura do povo arapho, e talvez seja esse o motivo pelo qual ele é o mais empático em relação às vidas atlantes, e o primeiro de todos a trair Rourke, e decidir fazer a coisa certa em vez de fazer o seu trabalho. Independente disso, o humor do personagem não gira em torno de sua descendência, gira em torno de sua personalidade que é muito séria e muito casual.
Vinny e Moliére, os estrangeiros da equipe, respectivamente um italiano e um francês, não reproduziam nenhum estereótipo além de seus sotaques puxados, e seu humor era completamente derivado de suas áreas de atuação, e isso valia para todo mundo ali. Eles tinham personalidades tão coloridas, e talentos tão precisos, que a química entre os personagens e o espírito de “mas que time foda” é um dos melhores que a Disney já fez, sem ter que puxar o humor para “o que o personagem é.” e sim para “quem ele é, e o que ele faz.”
Com exceção do Cookie. O humor dele era inteiramente derivado dele ser caipira mesmo. Mas é a única exceção.
Mas o principal mesmo são o protagonista e o vilão. O vilão do filme Lyle Tiberius Rourke, o líder da expedição para encontrar Atlantis, que desejava ficar rico com a descoberta. Rourke via a história, e as civilizações perdidas como coisas sem utilidade nenhuma além de ser a fonte de uma fortuna, e percebeu que levar para a superfície o maior artefato de Atlantis (que também era a fonte de vida daquele povo) era tudo o que ele precisava para se tornar uma lenda no campo da arqueologia. Rourke achava que descobertas uma terra nova, ou um povo novo, são histórias sobre quem descobriu e não sobre o povo encontrado. Ele abertamente sacrifica todos seus homens para ir até seu objetivo, dos anônimos que morrem na jornada, aos tripulantes que ele deixa para trás para ficar em uma Atlantis condenada a morrer, até Helga, seu braço direito, que ele jogou fora do zepelim para aliviar o peso.
Rourke é uma crítica explícita ao pensamento capitalista encontrando outras civilizações de uma maneira que nenhum outro vilão da Disney foi. Ratcliff queria enriquecer nas terras da Pocahontas, mas o fato de que lá não havia fonte de riqueza nenhuma, por não ter ouro enterrado legitima tanto a noção de que “se não fosse a questão do ouro, nada de ruim teria sido feito aos nativos”, quanto “tudo o que Ratcliff disse era mentira, só porque não havia ouro, independente de sua postura com o genocídio indígena.” e bem, sabemos que mesmo sem ouro, os Ingleses cometeram atrocidades nas terras da Pocahontas, não é? Diferente de Ratcliff ou de Clayton em Tarzan, Rourke explicitamente se descreve como um capitalista, usando a palavra abertamente, e usa o título como uma desculpa para não estar fazendo nada de errado.
Ele completa com o argumento de que se não fossem os brancos cometendo genocídios e roubando artefatos das culturas que eles matam para enriquecer, hoje em dia não existiriam museus. Uma mensagem que hoje em dia vibramos quando vemos o Killmonger dizer. A fala do museu é importante, pois diferente de Ratcliff e de Clayton, Rourke não soa como “um cara particularmente mal que manipulou gente bem intencionada para poder atacar uma civilização isolada.”, e sim como um cara fazendo a norma, que nem todos no passado fizeram. Clayton não tinha a cumplicidade de seus colegas de expedição na hora de matar gorilas. E os homens de Ratcliff se pudessem evitar entrar em conflito com os índios iriam escolher a paz, em diversos pontos do filme. Mas Rourke tinha a cumplicdade de todos seus homens, ninguém na missão dele, exceto Milo, estava sendo enganado, todos eles sabiam que estavam ali pra saquear povos por dinheiro. E o a justificativa de que tudo o que ele fez foi normal e aceitável em diversos pontos da história, que é meramente como a sociedade “civilizada.” funciona.
Além de que Rourke explicitamente menciona o maior garoto-propaganda que o capitalismo estadunidense já teve como uma pessoa certa.
Ok, foi uma ironia acima, ele não estava se referindo a vida do P. T. Barnum só a sua frase mais famosa “nasce um idiota a cada minuto”, que ele supostamente diria para justificar os golpes que ele aplicava, uma vez que não eram culpa dele e sim dos clientes idiotas. Na realidade essa frase nunca foi dita por ele. Embora, o fato da gente acreditar que sim, mostra muito sobre a imagem pública que ele passava.
O protagonista, Milo Tatch, por outro lado, é o primeiro protagonista da Disney a ser um intelectual sem nenhuma força física ou capacidade atlética. O que se nota por ser o primeiro protagonista Disney a usar óculos na sua caracterização, o que parece bobo, mas de fato nunca tinha acontecido antes.
Antes de Milo tivemos Arthur, que queria ser um bom escudeiro para seu irmão, e que Merlin queria que descobrisse o potencial que estudos e sabedoria trariam a sua vida mais do que luta de espadas. E tivemos Belle, uma leitora cujo amor por livros a mantém isolada de sua cidade provinciana. Mas Milo se destaca dos dois pelo quanto seu amor pelos estudos é o que o direciona ao plot. A única coisa que a paixão de leitura de Belle ajuda ela a andar na trama, é quando a biblioteca de Fera se torna um meio da Fera seduzi-la.
Milo Tatch é um acadêmico e linguista, que estudou as poucas evidências de Atlantis por tempo o suficiente para poder entender a língua escrita do local, e que acredita ter material para fazer uma busca por Atlantis. Desacreditado pelo museu que não o leva a sério, ele acaba sendo financiado por um milionário que tinha uma dívida de honra com o avô de Milo, e embarca em uma expedição pela civilização perdida, que é como ele conhece os demais mercenários.
Ninguém na embarcação que foi pra Atlantis tem nada para realmente oferecer ao povo de Atlantis, exceto por Milo, que tem o poder de devolver a eles, o domínio sobre a própria escrita, conhecimento perdido desde que o país afundou, e que faz com que a cultura deles esteja progressivamente desaparecendo. Milo sabe a língua, mas não entende seu contexto, e portanto não pode exatamente salvar o povo de Atlantis, ele precisa da ajuda de Kida, para usar seus conhecimentos de Atlantis para entender os escritos que Milo lê e então poder recuperar a cultura de seu povo. Tornando Atlantis um filme sobre a importância de preservar as demais culturas, em invés de arrogantemente impor a nossa.
Os atlantes já possuíam a cultura que os exploradores poderiam trazer. Na superfície foram um povo de guerra e conquista, e é exatamente esse tipo de atitude, de tentar transformar qualquer conhecimento em uma arma para conquistar outros povos, que fez com que o rei de Atlantis perdesse a esposa, fizesse um mal uso da sabedoria de Atlantis, fizesse a cidade se afundar e principalmente começasse o processo de desaparecimento dos conhecimentos deixados por seus ancestrais.
E não só isso, como Atlantis é a civilização de onde as outras descendem, os exploradores não tem com o que educar Atlantis, aquele povo sabe falar inglês, sabe falar francês, sabe a arquitetura europeia, e conhece os meios da guerra. A única coisa que eles não conhecem, são a si mesmo, e a única maneira que um explorador americano pode dar isso a eles, é se ele de fato trabalhar com preservação histórica dos itens que eles deixaram na superfície.
Milo devolve a Kida sua cultura, mas na verdade ele dá a ela os meios de devolver a si mesma. Pois ele sabe ler os textos atlantes, mas não sabe interpretar (e pronuncia tudo com um sotaque errado). Então ele só ensina ela a ler os textos, cabe a Kida saber o que eles significam.
Atlantis é um filme interessante, que evitava em 2001 muitos clichês de seu gênero que 20 anos depois ainda estamos lutando contra. E tem um dos elencos de personagens mais divertido do estúdio. Uma tonelada de ideias boas que poderiam ter inspirado muita coisa legal.
Mas fracassou.
E o que se tira disso?
Entendendo e lidando com fracassos:
O fracasso de Atlantis foi o fracasso de toda uma ideia de uma Disney séria, focada em ser menos musical, menos feminina e mais focada em ação e masculinidade. Que vem de Tarzan, passa por Atlantis e culminou no Treasure Planet cujo fracasso foi usado como pretexto pra fechar os estúdios de animação 2D, tanto que faz muita gente suspeitar que a Disney conspirou pro filme fracassar só pra ter desculpa para fechar um departamento. Eu não gosto de teorias da conspiração, mas elas existem, pois o timing bateu e foi suspeito.
Eu gosto muito desses três filmes, mas apesar de adorar tanto Tarzan, quando Atlantis quanto Treasure Planet, é possível ver no fracasso dos dois últimos uma relação ruim que a Disney tem em construir uma nova identidade para si. Sempre que eles tentam ter vergonha de serem a Disney, sempre que eles começam a focar em filme sem música, sem magia de fada, e sem princesas, eles vão em uma direção não-carismática.
Tanto que depois que eles saíram dessa espiral de demência e voltaram pras princesas acharam uma segunda subida. E hoje eles voltaram a abraçar as princesas. Só ver o excesso delas na divulgação de Ralph Wrecks the Internet.
E assim, eu amo os três filmes, mas eu não amo eles, pois eles tem porrada, uso competente do CG, nem um afastamento de um mundo mágico. Eu amo esses filmes pois eles tem muito conteúdo interessante na sua história e personagens.
E pra mim os méritos de Atlantis não são as camisetas de “Fewer Songs More Explosions” que o estúdio usava para se sentir muito fodas de estarem fazendo um filme PG. Pra mim isso é o de menos, e não vou mentir, eu não ligara de ver menos explosões e mais músicas.
Porque ali tinha uma coisa legal, um filme que dava foco para um monte de coisa que não recebe foco hoje em dia. Que foi desperdiçado, pois o estúdio estava numa vibe errada de meio que ter vergonha de ser a Disney, e querer ser algo mais maduro.
E sabem o que é foda? Eu sinto que estamos um pouco com a Disney flertando com isso de novo, em seus live-actions. Tentando aumentar a maturidade do lore, a qualidade das cenas de ação e diminuir as cenas de música. Em Mulan, eles explicitamente falaram que não ia ter música pois era ridículo cantarem na guerra.
Se você ver a maneira como eles estão se esforçando nos filmes de Star Wars para “consertar” os memes de Star Wars e diminuir o número de piadas a respeito de seus filmes (se bem que no episódio IX eles fizeram a maior piada do mundo em seu pior filme), eu sinto que tem um lance da Disney querer ser séria, e não querer ser ridícula.
E a prova máxima disso é que já está em desenvolvimento o Live-Action de Atlantis, o filme que eles ignoraram por 20 anos de repente tá na hora de revisitar, pois a Disney está voltando pra mesma linha de pensamento que desencadeou o filme, mas agora está reservado ao mundo do Live-Action. E assim, se funcionar, funcionou, mas quero apontar essa tentativa da Disney de querer demais colocar o pé de seus filmes no chão, fazendo o Jafar não cantar sua canção, o Iago ser um papagaio fotorrealista que não fala, e a guerra de Aggrabah com reinos vizinhos afetar a história, está batendo, e não sei se é disso que o estúdio se trata.
E eu acho, que a busca desenfreada por seriedade, custa muito ao estúdio. Atlantis seria a maior pérola do mundo, se não quisesse ser um sci-fi de ação que quebra a norma do estúdio. Aqueles personagens, a relação deles com a cultura de Atlantis e aqueles conflitos rendiam um filme excelente, mesmo se tivesse tido umas canções aqui e ali.
Atlantis é cheio de caracterização que faz falta na Disney. Incluindo o que foi offscreen , mas também é o único beijo gay canônico que já tivemos no estúdio até hoje.
Ok, isso é brincadeira, foi só um alívio cômico. Mas falando sério aqui os personagens de Atlantis, como Milo, Aubrey, Kida e Dr. Sweet são personagens que deveriam ter inspirado mais personagens parecidos, teria sido ótimo. Mas o filme não motivou ninguém a seguir seu legado.
Quem sabe se tivesse tido algumas músicas, talvez a Kida pudesse aparecer em Ralph Breaks the Internet.