Sobre as semelhanças entre The Good Place e LOST.

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O ano era 2017. Eu tinha esse amigo, e ele chegou e me disse que eu devia ver essa série chamada The Good Place, pois segundo ele a série era LOST tudo de novo, e que as várias semelhanças entre as duas séries iam me fazer gostar muito de The Good Place.

Essa série
Com essa série.

Isso era uma mentira em vários níveis, até porque esse amigo em questão nunca tinha visto LOST na vida. Só usou minha série favorita como bait pra me fazer ver a série que ele gostava. E em pouquíssimos episódios eu vi o óbvio: que não tinha nada a ver com LOST.

Pois bem, depois tendo visto e revisto a série inteira, e esperando janeiro chegar com seus quatro episódios finais que vão concluir a jornada desses seres humanos maravilhosos eu vejo…. Que na verdade The Good Place tem muito a ver com LOST. Mais do que eu achei que teria.

O que não é coincidência, Michael Schur, o criador de The Good Place, e Damon Lindelof, co-criador de LOST se tornaram muito amigos quando Schur ainda estava pensando em detalhes da sua série. Mais que isso, ele especificamente buscou e se aproximou de Lindelof, pois queria conselhos dele de como melhorar The Good Place, pois era pessoalmente um grande fã não só de LOST, mas também de The Leftovers.

Damon Lindeloff a esquerda e Michael Schur a direita.

Eu tenho essa teoria. De que todo bom drama possui uma contraparte cômica, que de longe parece completamente diferente, mas de perto é a mesma coisa.

Todo mundo sabe que Home Alone é a contraparte cômica de Die Hard.

E alguns sabem que Matilda é a contraparte cômica de Carrie.

Mas você sabia que Project X é a contraparte cômica de mother! ? É sério, é o mesmo filme.

E bem, eu originalmente queria fazer no Primeiro de Abril o texto que comparasse essas duas séries focando em uns elementos superficiais. Mas eu realmente acho que as séries tem pontos em comum que são dignos de serem levados a sério. Então, vamos lá, bem-vindos ao Dentro da Chaminé, e nesse texto: Os motivos pelos quais The Good Place me lembra muito de LOST.

Começando apontando uma diferença clara entre as duas séries, que precisa ser apontada sempre. Pois o mundo esquece, e isso é ruim.

A diferença é que em LOST os personagens estão vivos desde o começo. Enquanto em The Good Place todos eles estão todos mortos no primeiro episódio e a série se passa no pós-vida.

Sim! A ilha não é o purgatório, e quem entendeu isso tem que nunca mais abrir a boca pra falar de LOST.

Ah sim, e quero também falar que apesar das duas séries terem um personagem chamado Michael, todos os meus usos da palavra Michael o texto inteiro vão se referir ao Michael e The Good Place. Foda-se demais o Michael de LOST.

Tirando isso do caminho. Comparemos as duas séries.

Semelhanças Superficiais:

Vamos lá. As duas séries possuem uma interpretação do pós-vida, uma interpretação que em particular diz “todas as religiões estão um pouco certas e um pouco erradas”. As duas contam com um elenco de personagens das mais diversas nacionalidades. E nas duas o único personagem africano veio da Nigéria especificamente. Nas duas um voo dos EUA para a Austrália é um dos momentos mais relevantes da série. The Good Place gosta de mencionar o máximo possível de filósofos, e a maior parte dos personagens de LOST são nomeados em homenagem a um filósofo.

Nessa parcela de personagens temos. sete americanos sendo dois de linhagem mexicana, um inglês, uma australiana, um iraquiano, um nigeriano e dois coreanos. Os americanos ainda são maioria, mas a série se esforçava em diversificar a nacionalidade de seus personagens. Para as exigências de 2004, era bastante, embora em 2019 não fosse ser nada.
Os humanos de The Good Place ainda são em sua maioria americanos, mas é bem menos monocromático já, em acordo com o tipo de diversidade que se espera de uma série progressista em 2019. Os personagens celestiais, porém, os principais são brancos.

Ah sim, e nas duas séries, a obsessão de um personagem por um time esportivo, fez com que as notícias desse time depois que a série começou fossem usadas para o desenvolvimento do personagem na série.

E flashbacks. As duas séries têm flashbacks pra cacete contando vários pontos das vidas daquelas pessoas…. as duas séries também usam o conceito de Iogurte Congelado como um dos conceitos mais abomináveis do mundo, LOST inclusive batizou um dos seus personagens mais desagradáveis de Frogurt .

E vamos falar do monte de cenas que começam com um close em um olho se abrindo?

E no quão parecida a introdução do Doug é da introdução do Desmond? (Infelizmente a introdução do Doug não está no Youtube, mas é a primeira cena do oitavo episódio da terceira temporada: “Don’t Let Your Good Life Pass You By”.

E não vou nem entrar no mérito do quão viajada sãos as teorias de como tempo funciona em ambas as séries.

Mas o mais importante é que as duas séries são sobre Deus e o Diabo debatendo a capacidade do ser humano de fazer o bem.

Dito isso. Isso é tudo cosmético, a mera maquiagem do bagulho, vamos olhar debaixo dessa superfície.

Como ser uma boa pessoa e o distanciamento.

Apesar de eu enfatizar que a Ilha NÃO é o pós-vida em nenhuma interpretação aceitável… a Ilha não é um conceito tão diferente do pós-vida.

Após a queda do avião Oceanic 815, os sobreviventes se viram em um contexto não tão diferentes do contexto de Eleanor. Eles estavam completamente afastados de suas vidas e das pessoas que eles conheciam. Vivendo em uma pequena comunidade. Não tinham interações com o mundo exterior, que os deu como mortos, e eles só podiam sobreviver um dia de cada vez. Mas a vida que eles tinham, eles haviam perdido. Digo, eles continuaram sendo afetados pelas pessoas que eram antes, que nem os personagens de The Good Place, mas a vida anterior estava fora do alcance deles. E bem, nessa comunidade onde ninguém conhecia eles, eles podiam ser quem eles queriam.

Locke por exemplo, pode ser um caçador.

E muitos aproveitaram para não ser a pessoa que eles eram em vida.

Kate pode enfim viver longe do estigma de ser uma procurada pela justiça que marcou sua passagem no mundo exterior.

Em especial, Kate. Kate era uma criminosa e uma fugitiva, que viveu constantemente em fuga para não ser presa. Na ilha, ela temendo o estigma de seu passado, se esforçou muito para ninguém perceber que a criminosa que veio para a ilha era ela. Ela agiu como uma heroína que ela nunca teve a oportunidade de ser no mundo exterior. E de fato, a ilha revelou os melhores lados da personalidade de Kate, e mostrou que apesar de seus crimes, havia nela o potencial de ser uma boa pessoa.

A chance de Kate se ver como uma pessoa do bem, livre do estigma é simbolizada pelo fato dela fazer o parto de Claire e trazer Aaron pro mundo, o que se torna uma das suas maiores memórias e motivo de orgulho em vida. Quando ela voltar ao mundo exterior e for julgada, Aaron será usado em seu julgamento para mostrar que ela é uma boa pessoa.

A situação de Kate não é tão diferente da de Eleanor Shellstrop. Mas ela não foi a única.

Sawyer, Sayid, Jin, Mr. Eko, muitas pessoas no avião vinham de uma vida não só de incríveis pecados cujos fardos eles carregavam. Alguns com mais arrependimentos que outros. E em ritmos diferentes o lado ruim deles foi se abrindo para o lado bom deles, e eles foram se tornando pessoas melhores. Sawyer foi um dos mais lentos, mas o tempo dele na ilha, o transformou de um completo individualista que tira vantagem de todos e pensa só em si mesmo, em mais do que um homem pouco egoísta, mas em um líder, que toma decisões que priorize o bem-coletivo. Um homem capaz de ser genuinamente admirado.

Mais do que amigos, ou família, os sobreviventes do Oceanic 815 se tornaram as pessoas mais importantes da vida um do outro. Pois foi com base nas relações que eles formaram na Ilha que eles atingiram a redenção que eles precisavam.

E o que foi a amizade entre Hurley e Charlie? Que dupla poderosa. A maneira como Hurley fica feliz de ver Charlie no pós-vida é mágica demais.

Que é a tese central de The Good Place. Que os seres humanos fazem os outros seres humanos serem melhores. A primeira temporada sugere que isso era através do estudo de ética. Mas na quarta, o tom muda que é o senso de grupo e de pertencimento que faz as pessoas serem as melhores versões de si mesmas. E que as pessoas não precisam estudar ética para se tornarem boas, tanto quanto precisam criar laços.

O que foi testado com o segundo grupo de humanos, Brent, John, Chidi (de novo) e Simone, que não fizeram aulas de ética, mas passaram seu tempo juntos.

Então vamos lá. Eleanor se tornou uma pessoa genuinamente decente com a companhia e influência de Chidi, Tahani e Jason. Da mesma forma que Kate, Jack, Juliet e Hurley transformaram Sawyer de um golpista canalha em uma pessoa genuinamente empática e decente. O convívio com pessoas fez essas pessoas ruins ficarem boas, mas não é como se elas fossem exatamente eremitas antes, não é? Então… qual a diferença entre as pessoas que eles conheceram na vizinhança de Michael/na Ilha e das pessoas com quem eles interagiam no mundo real?

A diferença é o distanciamento da sociedade como um todo.

A sociedade é complicada demais para exigir que as pessoas sejam boas. Esse é um ponto que The Good Place trabalha bem. As entidades divinas criaram um sistema de pontos para definir quem é bom ou não baseado em suas ações. Mas viver no capitalismo do século XXI simplesmente faz esse sistema não funcionar. Aliás peço perdão pela má qualidade do vídeo abaixo, mas o fandom de The Good Place não está colocando suas melhores cenas no Youtube, e eu só estou descobrindo isso montando esse texto.

Viver fazendo o bem, pode te levar a uma vida de eterna privação de si mesmo, como é a vida de Doug Forcett. Ações boas podem ter consequências ruins, como é o caso da vida capitalista em que comprar certos produtos pode significar apoiar práticas desumanas como a escravidão, ou ajudar a enriquecer pessoas que cometem crimes hediondos e saem impunes. E mesmo áreas glamurosas como a filantropia estão associadas a rancores, mesquinharia, e a pessoas muito egoístas, como é o caso de Tahani que apesar de filantrópica, é uma pessoa extremamente auto-centrada.

Doug Forcett vive completamente em função de ser uma boa pessoa, e o resultado é nunca colocar a própria felicidade na equação e ser uma pessoa infeliz.

Os seres humanos possuem escolhas demais, e as vezes não existe uma opção certa no leque.

Em LOST, a maioria dos sobreviventes tinha um passado negro. E pelos seus flashbacks acompanhamos, que a maioria deles não eram pessoas ruins mais do que pessoas que fizeram o que precisavam fazer pela própria sobrevivência.

Sayid ter sido um torturador. Ou Sawyer ter sido um golpista. Foram frutos das escolhas desses personagens sim, mas não foram os momentos que firmaram que eles eram pessoas ruins, mais do que foram os momentos que eles venderam a própria alma, pois eles precisavam sobreviver. Sawyer teve os pais mortos nas mãos de um vigarista. Abandonou os estudos ainda no ensino fundamental. E aos 19 anos estava endividado em seis mil dólares. Virar um golpista permitiu a ele continuar vivo em um mundo hostil. Não foi um sinal do quão podre ele era, mas do quão desesperado ele estava ao ponto de se tornar um espelho do homem que ele mais odiou em sua vida.

O que pode ser resumido mais que tudo no discurso que Mr. Eko fez antes de morrer. “Quando eu tinha 9 anos eu matei um homem, para salvar a vida do meu irmão. Eu não me sinto mal por isso. Eu tenho orgulho disso. Eu não pedi pela vida que me foi dada, mas me foi dada mesmo assim. E eu fiz o meu melhor.”

A vida pode empurrar muitas pessoas pra caminhos sombrios. E uma pessoa pode ser culpada pelas suas ações, mas não tem culpa pelo contexto em que viveu. Uma das primeiras regras da vida que Eleanor aprendeu foi a de que viver pensando em si mesma lhe traria mais conforto, e que viver pensando nos demais lhe custaria esse conforto. E que suas tentativas de ser uma boa pessoa faziam ela se sentir punida por não se priorizar.

Tiremos essas pessoas do mundo cão. Joguemos Sawyer em uma praia, onde ele não precisa trapacear ninguém para poder comer. Onde ele não tem a pressão de encontrar o homem que arruinou sua vida, pois está longe de seu alcance. Onde ele não tem dinheiro nem precisa de dinheiro. E onde ele tem todo o tempo do mundo. Nenhum dos elementos que transformaram ele no Sawyer existe ainda, e é só questão de tempo até ele perceber isso.

Sawyer que foi obrigado a abandonar seus estudos, e era marcado pelo seu sotaque caipira rural, na ilha ele adquiriu o hobby de leitor, e começou a passar a maior parte de seus dias lendo livros, com o passar da série a erudição de Sawyer foi se tornando parte da sua identidade, uma que nunca teria a oportunidade de florescer no mundo exterior.

Não diferente de como Eleanor adquire genuíno prazer em estudar filosofia graças as aulas de Chidi, embore ela não demonstre isso no seu tom muitas vezes.

Depois de começar a ter aulas, ela genuinamente aprende os conceitos, e de um ponto pra frente ela espontaneamente lia livros que Chidi ainda não tinha ensinado só pela leitura. Ela conversa com Chidi sobre filosofos. E é a única que nunca parou de ter aulas, mesmo quando o objetivo das aulas já estava cumprido. Michael viu a vida inteira de Eleanor e decorou cada segundo da vida dela (o que por coincidência é algo que Ben Linus fez com os sobreviventes do Oceanic 815, mas no caso de Michael isso é mais verossímil, pois ele é um ser celestial), e mesmo assim ele não conseguiu adivinhar que ela se tornaria uma estudante de filosofia devota, pois nada na vida dela jamais a jogaria nessa direção.

As pressões da sociedade, em particular a de sobreviver por meio da competição, são pressões que não existem na Ilha nem na vizinhança que Michael criou, e por isso lá os personagens são livres para se descobrir e se auto-aperfeiçoar. E livres para formar os laços que vão ser os laços mais importantes de suas vidas. Pois Cassidy traiu Sawyer por viver no mesmo mundo cão que ele. Mas Juliet nunca precisou ser posta na parede e cogitar vender Sawyer, parte do que permtiu a eles se tornarem um dos meus casais favoritos de todos os tempos. Não tem dinheiro na ilha, por mais que Sawyer tenha tentado criar um comércio lá, ele falhou e eventualmente desencanou.

Eleanor que viveu a vida inteira com a guarda levantada para ser a pessoa que tira vantagem e para não ter ninguém que tire vantagem dela, nunca conseguiu um relacionamento significativo em vida. Só no pós-vida onde ela aprendeu a abaixar a guarda, ela conseguiu se vulnerabilizar para outra pessoa e dizer “eu te amo”, e não estar mais no mundo dos vivos foi o que gerou o contexto para isso acontecer.

Redenção.

Agora, nem a vizinhança do Michael, nem a Ilha eram utopias. Onde as pessoas, por viverem afastadas das pressões da sociedade que as guiaram para decisões condenáveis, vivem livre de stress. Elas na verdade vivem estressadas pra cacete, pois estão constantemente ameaçadas.

O tempo todo essa galera tá apontando uma arma pra alguém. Tá todo mundo com os nervos a flor da pele.

Inclusive a vizinhança de Michael é literalmente um centro de tortura, onde Eleanor, Chidi, Jason e Tahani estão sendo torturados, pois eles foram pro Lugar Ruim, e Michael é um demônio que extrai seu prazer fazendo a vida deles ser miserável.

E a ilha além do palco de um duelo entre Jacob e o Homem de Preto, é também o local de um duelo entre Ben Linus e Charles Widmore, dois homens perversos e ambiciosos que tratam seres humanos como peões em uma guerra pelo poder.

Então as duas séries, apesar de possuírem anti-heróis que apesar de terem cometido atos ruins em suas vidas anteriores, não eram más pessoas, e poderiam em outro contexto aflorar outros aspectos de suas personalidades…. Apesar disso as séries possui vilões. E como funciona aí?

Mr. Eko rejeitou a noção de que ele precisava de redimir, pois ele objetivamente não via sua vida como algo que demandasse arrependimento. E mesmo Jason e Eleanor não parecem realmente arrependidos e com remorso dos crimes que cometeram, apesar de serem pessoas melhores que não fariam de novo. Kate em nenhum momento se arrepende de assassinar seu pai. E Sayid e Sawyer que se arrependem sim dos seus atos, se arrependeram deles imediatamente depois de cometê-los, então não passaram por uma revelação de que fizeram coisas sem perdão, eles entenderam isso o tempo inteiro e demoram um tempo muito grande para conseguirem se perdoar.

Então como jogamos um filho da puta do naipe de Ben Linus na mesma balança que essa gente? Um homem que genuinamente sentiu indiferença enquanto arquitetou um genocídio. E que do fundo do coração não poderia ligar menos pras pessoas que ele mata. Um mentiroso manipulador que vê as pessoas como marionetes que ele manipula pelos seus próprios interesses?

Ben viveu na ilha a vida inteira. Ele nunca viveu no mundo cão, competitivo e agressivo que moldou Sawyer. Não viveu na zona de guerra que moldou Sayid. E não viveu num ambiente que combina elementos de ambos como foi Mr. Eko. Ele cresceu numa comunidade de cientistas que falavam “namastê”. E ele traiu todos os afetos que ele recebeu, manipulando seus entes queridos.

O túmulo dos cientistas da Dharma mortos por Ben.

Mas no fim da série ele está… eu não quero usar a palavra redimido. Então vou usar a palavra “curado”. Ele é uma boa pessoa no fim da série e nós como expectadores, e os outros personagens podemos confiar que ele não fará de novo.

Entender o que aconteceu com Ben, é entender o que aconteceu com Michael e com Brent em The Good Place.

Michael é um demônio, e seu prazer é torturar Eleanor, Chidi, Tahani e Jason. Ele passou a primeira temporada inteira se fingindo de seu aliado. Mentindo sobre quem era e o que queria, e incentivando conflitos entre eles. Até que Eleanor descobriu que eles todos estavam sendo torturados por um demônio.

Michael então apaga as memórias de Eleanor e segue torturando os quatro. E honestamente, ele só para disso e começa a se aliar aos quatro humanos, quando Vicky, outra demônia, toma o controle da vizinhança. Colocando-o em uma situação em que ou ele admite que precisou apagar as memórias dos humanos 800 vezes para sua vizinhança funcionar, pelo que ele seria punido pelo alto escalão do Lugar Ruim, ou ele aceitaria ser um subalterno e não comandar mais a vizinhança.

Em qualquer uma das duas opções Michael se viu acuado, por perder o seu poder. Ele não tinha mais poder ali. E por isso se viu desesperado, incapaz de operar na lógica que estava operando. Então ele pediu ajuda aos humanos, em que negociou uma maneira dele recuperar o próprio poder, e em troca ele levaria os humanos ao Lugar Bom, onde jamais seriam torturados.

Nesse período em que Michael se aliou aos humanos e eles compactuaram, Michael, um ser celestial que via humanos como meras baratas se abaixou ao nível deles em todos os sentidos. Para começar, que conversar com Chidi fez ele, um ser eterno, ganhar consciência da própria mortalidade, e ter uma crise existencial.

Quando Michael perdeu a hierarquia entre ele e os quatro humanos, os laços entre eles puderam se tornar legítimos. E ele pode se permitir ser um amigo dos humanos, ao ponto em que quando tentado a recuperar uma posição de poder, ele escolheu não recuperar sua posição de poder, para em vez disso, cumprir a promessa que fez aos humanos e trair seus colegas.

A redenção de Michael só foi possível quando ele se viu na mesma posição que aqueles que ele subjulgou, e passou a pensar em si mesmo como alguém que não tinha o poder que teve outrora.

O que é semelhante ao que aconteceu com Brent.

A última temporada de The Good Place consiste dos quatro humanos tentando fazer um grupo diferente de outras quatro pessoas, também condenadas ao lugar ruim, para poder provar que o método deles de fazer as pessoas melhorarem funcionava. Para isso quatro novos candidatos foram selecionados, o principal deles: Brent. Que é o mais desprezível que um ser humano pode ser sem ser um ditador.

Misógino, racista, egoísta, prepotente, arrogante, auto-centrado, rude. Brent acredita que o mundo exige para servir a ele e seu orgulho somente. Acredita estar certo o tempo todo. E genuinamente acha que ele é melhor que os outros, mesmo não tendo qualquer tipo de qualidade para apresentar.

Fazer Brent se tornar uma boa pessoa foi um trabalho duro para Eleanor. Tão duro que… não funcionou. Um ano fazendo Brent viver em convívio com outras pessoas numa vizinhança que ela organizava, não tirou um único aspecto para redimir Brent.

O que culmina em uma das melhores cenas da série. Eleanor tinha um ano para fazer os humanos melhorarem seus defeitos, e somente Brent não havia feito progresso. A menos de uma hora do tempo acabar. Ela resolve abrir o jogo para ele. E contar que ele foi pro Lugar Ruim após sua morte. Que ele foi uma má pessoa em vida, e que após um ano brincando em um falso paraíso, a próxima parada é uma eternidade de tortura no inferno.

O terror no rosto de Brent é fenomenal. Pois ele perde tudo o que se apoiar.

Brent passou a série inteira convencido de que ele era uma pessoa ótima e invejável. E toda evidência de que isso não era verdade ele quebrava apontando o fato de que após morrer ele foi pro Lugar Bom.

E isso é um óbvio reflexo de uma vida inteira vivida por gente que não o desafiou ou questionou. Sempre que alguém desafia Brent, ele acusa a pessoa de ser exagerada, politicamente correta, desequilibrada, e se legitimiza no apoio de seus pares para saber que ele é uma pessoa ideal.

Na ausência de seus pares, ele se legitimiza no universo que o colocou o Lugar Bom em teoria.

Mas no momento em que Eleanor revela que ele foi pro lugar ruim. E ele se vê sozinho, sem amigos, sem uma pessoa que goste dele, em um universo hostil a ele. Ele se vê acuado. Ele começa a olhar pros lados, procurando algo em que se apoiar.

E então ele resolve pedir desculpas a Chidi por tudo o que fez. Mas o tempo do teste acaba antes dele pedir desculpas e ele é congelado no universo.

Diferente de Michael, que retirava todo seu poder de sua literal hierarquia. De ser o chefe da vizinhança. Brent tirava seu poder mais de seu ambiente. Ele viveu uma vida de privilégios na Terra, com um bom emprego, muito dinheiro e um grupo de pessoas que o bajulavam. No pós-vida, ele viveu no paraíso. E ele tinha a convicção de que toda a sua realidade, em vida ou em morte, vinha de seu merecimento. Ele achava que ele herdou seu emprego do pai por merecimento, e que os bajuladores o bajulavam pois ele era de fato uma ótima pessoa. E em morte, ele se blindava de qualquer crítica sabendo que ele estava no paraíso, e portanto tinha uma prova cósmica de que ele era uma ótima pessoa.

A percepção de que ele na verdade foi condenado ao inferno, e está só esperando um trem que vai levá-lo a tortura. O choca a um nível, que ele começa a olhar ao redor, somente procurando alguma evidência que possa dizer que ele não merece aquilo, mas ele não tem.

Ao não ter nada para se blindar de críticas e se justificar como bom, Brent se vê desprovido de seu poder, e se vê como um igual a Chidi. O que o faz enfim conseguir se desculpar para ele.

Tanto Michael e Brent precisavam se ver como iguais aos seus próximos, para o convívio com eles tem algum impacto em suas personalidades. Enquanto houvesse hierarquia entre eles, a redenção não poderia vir através do contato que ele estabelece. Ele ia sempre se ver como um superior para ser afetado pelo convívio.

Que é a exata mesma situação de Ben Linus. O líder dos Outros e maior filho da puta da série.

Ben manipulou, traiu, mentiu e brincou com Jack, Locke e os demais por 4 temporadas seguidas. Para na reta final se tornar um dos heróis. Sua redenção durou muitos episódios e foi muito gradual, mas tiveram uns pontos-chave para entendermos a redenção de Ben.

O primeiro foi a perda de sua filha adotiva Alex. Alex era uma pessoa com quem Ben se importava de verdade, tinha amor genuíno, e isso não é fácil. Mas ela morreu por culpa dele. Quando ela foi tomada como refém. Ben achou que era um Blefe e manteve sua fachada insensível de manipulador gênio, achando que teria o controle da situação. Ele não tinha. Alex não só morreu, ela morreu ouvindo seu pai dizer que não se importava com ela e se sentindo descartada por um homem em quem confiou.

A morte de Alex tirou de Ben sua confiança, sua certeza de que ele sabia conduzir as situações em que se deparava, e sua arrogância. Mas isso não tirou dele seu poder completo. Pois ele ainda era o escolhido de Jacob para cuidar da ilha.

Até o dia, em que ele encontra Jacob, e este reconhece seu valor. E ele assassina Jacob ao mando do Homem de Preto, mas também por raiva e humilhação de ver que o trabalho que ele fez na ilha por anos, e o trabalho pelo qual ele sacrificou a filha não eram reais. E que a conexão dele com Jacob não existia. Ele matou o homem cujo nome legitimava todas as maldades que ele fez na vida, e só sobrou com ele a culpa, de saber que tudo o que ele fez, foi uma responsabilidade dele e de ninguém mais.

Mas nenhum ponto pesou mais do que uma cena cômica. Depois que os aliados de Jacob capturam Ben, e o obrigam a cavar o próprio túmulo, onde eles irão enterrá-lo. Ele aborda Miles. Miles no passado ofereceu libertar Ben por uma quantia significante de dinheiro. E ele achou que podia comprar Miles com dinheiro novamente, mas este somente debocha de Ben. Pergunta se um cara preso numa ilha com nada além das roupas do corpo ia assinar para ele um cheque numa folha de árvore. E disse que independente dos contatos no mundo exterior de Ben, ele não tem nada na ilha, e nem garantia de nada. Ele não tem poder nenhum. Ele é um homem patético, com medo de morrer, sem nenhuma posse, cavando o próprio túmulo.

Nesse momento, ficou mais óbvio do que nunca. Ben era igual a todos eles. Ele era um homem afastado de sua vida anterior, preso numa bendita ilha envolvido em uma situação na qual ele não tem nenhum controle. Ele é o que todos os outros personagens são.

E Ben então se junta aos seus inimigos como um igual, e começa a gradativamente ficar uma pessoa melhor. No final, ele aceita ser o segundo-em-comando de Hurley, o novo Deus da ilha, e também a pessoa mais simpática e amistosa da série inteira. E o homem que nunca aceitou na vida não ser a hierarquia máxima, aceitou o papel de número 2 numa boa. E por anos cementou uma amizade com Hurley que o tornou uma pessoa melhor.

E isso se nota no pós-vida, onde Ben, se redime enfim, sendo obrigado a refazer suas escolhas em vida, ele escolhe sacrificar seu poder, para garantir que Alex seja feliz.

E já que estamos falando que tem essa parcela de LOST que se passa no pós-vida…

O pós-vida:

Sabe o que eu acho curioso na maioria das explicações religiosas de para onde vamos após a morte? A maioria delas só descreve mais vida.

Vamos para um lugar onde X é feito de Y. Onde tem fogo ou dor, ou asas, ou anjos, ou animais, ou alguma coisa. São muito descritivas em relação ao que vai ter nesse lugar…. Mas assim, se nossos corpos ficam para trás, e nossos cinco sentidos são percebidos pelo corpo, como nossas almas vão sequer perceber e interagir com esse mundo pós-vida? O fogo do inferno vai arder na minha alma como arderia na minha carne?

Pois é. Somos seres presos a nossa percepção. Tudo que conhecemos é ser vivo. Ninguém tem nenhuma experiência de existindo em nenhum plano que não possa ser chamado de vida ou ocupando um corpo material. E por isso não existe um ser humano no mundo capaz de genuinamente imaginar o que é existir sem estar vivo ocupando nossos corpos. Qualquer tentativa de explicar que existe algo além, envolve imaginar esse além como “mais vida.”

LOST e The Good Place, abraçam essa limitação, sequer tentando fazer um pós-vida realista. Pelo contrário, eles reforçam, o pós-vida dessas duas séries é assumidamente um caso de “mais vida”, mais do que a maioria das representações de pós-vida tentam ser.

Tem DVDs no pós-vida?

São pós-vidas em que vocês tem corpos físicos muito claros, tem empregos, comem, bebem, dormem, transam, interagem socialmente em um microcosmo, fazem amizades, inimizades, vestem roupas e se importam com tudo o que se importavam quando vivos. Nada muda.

Quando encontram um casal (fingindo ser) terapeutas de casais, Chidi desabafa a frustração que é ter que lavar a louça que Eleanor deixa pra trás…..
Por que diabo as pessoas precisam lavar louça no pós-vida?

Os pós-vidas são literalmente chances de viver de novo. Sendo você, mas tomando outras decisões.

E viver mais de uma vida ganha um peso narrativo forte, pois mostra ao expectador, a essência do personagem, quando vemos o que essas vidas tem em comum e tem de diferente.

Existem dois motivos pelo qual muita gente confunde a ilha com o pós-vida. O primeiro motivo é que essa gente viu com a bunda sem interesse nenhum na série. Mas o segundo motivo é que a ilha foi uma oportunidade de viver de novo. Refazer uma outra sociedade, abandonar tudo o que eles tinham, recomeçar e tomar novas decisões.

O literal pós-vida é parecido conceitualmente. Mas ele é literalmente reviver a vida. O pós-vida de todos os sobreviventes do vôo Oceanic 815 foi essencialmente reviver suas vidas normais em uma timeline em que o avião não caiu. Por que? Porque o acidente de avião foi o evento mais significativo da vida dessas pessoas. Onde eles todos conheceram as companhias que os moldaram e ressignificaram as pessoas que eles são. E o pós-vida queria desafiar essas pessoas a se reecontrarem e reconhecerem a conexão que elas tem, sem o evento que as uniu.

E funciona! Nossa e como funciona!

Todos eles se reencontram no mundo real, e são capazes de fazer um lembrar do outro, mas só depois que eles entendem que as ações que eles tomam no pós-vida mostra que apesar de estarem revivendo situações, eles já estão mudados. Sawyer no pós-vida já é um homem menos egoísta. Hurley já tem auto-estima. Ben já colocou sua ganância em cheque. E eles vão descobrir isso sozinhos, e vivendo de novo no pós-vida, eles vão poder por contraste julgar o que significou a própria vida.

Ver Daniel sendo um músico no pós-vida fala muito mais sobre o quanto Eloise evoluiu do que sobre ele mesmo.

E isso é lindo! E eu digo, se você acha que alguma outra série de televisão focou tanto em trabalhar personagem quanto isso, você está errado.

Aí vem The Good Place, uma década depois com um elenco significantemente menor em que mais de 40 personagens são reduzidos a 6. Duas temporadas a menos. Com um tom altamente cômico. Faz a exata mesma coisa nas duas exatas analogias. Só que é invertido.

O “Lugar Bom”(que na verdade é o Lugar Ruim), servia como a ilha. Um segundo ambiente para eles se distanciarem de suas vidas e viverem de novo em outro lugar. Repensarem suas escolhas e prioridades em um lugar onde nada disso era prioridade. Ou seja o literal pós-vida, cumprindo o mesmo papel que a literal ainda-vida dos personagens de LOST na ilha. Porém no fim da segunda temporada, os personagens ganham uma segunda chance real. E ressuscitam.

Ou melhor, tem as memórias apagadas e são colocados em uma timeline em que eles sobrevivem aos eventos que causariam suas mortes.

Ou melhor, acordam em uma realidade em que o evento que os uniu (suas mortes, que os levaram à vizinhança de Michael), não aconteceu, e portanto que eles não conhecem as pessoas que marcaram suas evoluções enquanto pessoa. Apesar disso, eles estão os quatro significantemente mudados pelas suas experiências um com o outro que não existem mais naquela timeline.

E isso é um teste, para ver se os quatro se encontram sozinhos. E eles se encontram, se conectam, e seguem se ajudando a melhorar e a ser pessoas melhores.

Ou seja. Quando os personagens de The Good Place estão vivos, fica igual o pós-vida de LOST.

Vida e pós-vida são tão parecidos e simétricos entre essas duas séries, pois ambos oferecem a mesma coisa. Segundas chances, chances de literalmente ou figurativamente se deparar com a exata mesma oportunidade de tomar uma decisão que você teve no passado e tomar outra, mostrando que independente dos seus erros, existe uma determinação em você de não fazer de novo.

O que é fundamental em relação à mensagem central de The Good Place, não só que melhorar enquanto pessoa é um trabalho que não para, mas que é algo que temos que ter sempre mais em conta o futuro que o passado.

Como Michael disse. É sobre se essa pessoa amanhã vai estar se esforçando para ser uma pessoa melhor do que ela foi hoje. Isso é trabalho, e uma pessoa disposta a fazer esse trabalho é uma pessoa disposta a ter redenção.

Eu particularmente sou sempre crítico a com redenção é um conceito simplificado na ficção. Geralmente por uma pessoa se matando em grande sacrifício. Peguei muito no pé disso falando mal de Guardians of the Galaxy vol. 2 e mantenho minha visão. Se redimir não é só se arrepender, e principalmente não é morrer. Morrer é o caminho fácil para não ter que fazer mais nada. Se redimir é fazer um esforço constante para garantir que a coisa errada que aconteceu por sua conta não vai acontecer de novo. E ser uma força ativa em impedir que se repita.

Redenção é trabalho e Ben e Michael vão trabalhar muitos anos por ela sem parar, sem voltar atrás jamais.

Antes de se sacrificar e pular do helícptero para que os outros possam se salvar, Sawyer pede para que Kate visite sua filha Clementine por ele. A mesma para quem ele doa dinheiro anonimamente.

Enquanto você existir. Não importa o plano.

Almas Gêmeas:

Tanto LOST quanto The Good Place, são obras que tem um foco muito grande em diferentes filosofias e ideologias conflitantes, como base temática, e uma construção de mundo intrigante e cheia de reviravoltas para manter o expectador concentrado, mas no fundo é um grande estudo sobre os personagens. E embora o crescimento interno desses personagens seja excelente. Falar sobre personagens é falar sobre as conexões.

Um personagem complexo não pode existir em um vácuo, ele precisa existir na companhia de outro personagem que exalte suas melhores qualidades. Isso pode ser reforçando-as ou contrastando-as. Mas principalmente está na qualidade das interações de ambos, a assim chamada química.

Como o canal The Take apontou bem, tanto Tahani quando Jason representam aspectos importantes de gentileza. Porém Tahani possui uma gentileza no aspecto macro da filantropia e grandes doações e cura da fome. A grande contribuição de Jason na vida dela é fazê-la ver e se conectar também com as pessoas que estão do seu lado.

O coração gentil de Sawyer que se mantêm escondido em uma fachada durona criada por um mundo hostil e alguma noção não-saudável de masculinidade, seria irrelevante sem um personagem que obrigasse ele a vir a tona, como quase foi Kate, mas, na verdade, foi Juliet.

Um personagem complexo precisa de contexto para demonstrar suas complexidades. Um personagem com sentimentos contraditórios operando simultaneamente, precisa ser colocado em situações em que eles floresçam e se contradigam, para que nós possamos ver, e a mera companhia de outro personagem complexo é a chave pra isso.

Tanto LOST quanto The Good Place entendem isso e dão um passo além, tornam essas conexões um fenômeno cósmico.

Quando Chidi morre e vai pro Lugar Ruim, mas achando que está no Lugar Bom, Michael mente para ele que ele tem uma alma gêmea, pois sabe que o sonho de Chidi era ter uma e que acreditar em almas gêmeas era importante para ele. Porém ele designa para ser a alma gêmea em questão, Eleanor Shellstrop, o extremo oposto de Chidi. Isso era para ser uma tortura. Para fazer Eleanor deixar Chidi em crises morais constantemente.

Porém Eleanor desafiou Chidi a um ponto que o fez crescer e vice-versa. E o que descobrimos, é que eles de fato eram as pessoas que eles precisavam na própria vida. Pela maneira como suas personalidades dialogam. Eleanor é uma mulher extremamente prática, que faz o que precisa ser feito sem hesitação nenhuma, porém sem uma consciência que lhe dê uma noção de certo e errado, e portanto uma indicação de quando é apropriado agir. Chidi é um homem que tem uma noção clara de certo e errado, e sua capacidade de ver as repercussões negativas de cada ação sua ser julgada como errada, o faz ser incapaz de agir.

Chidi e Eleanor entram em conflito direto por muito tempo por suas posições diferentes, mas eles literalmente ensinam o outro a fazer o que mais precisavam. E a necessidade da Eleanor pensar nas repercuções éticas de suas ações, e de Chidi de aprender a agir e sair da condição passiva, transcende o contexto, pois não importa quantas vezes eles esquecessem um do outro, ao se reencontrar eles se ajudariam. E cresceriam juntos.

Chidi e Eleanor crescem juntos enquanto dupla. Mas não é só isso. Os quatro humanos foram escolhidos a dedo para ir para o Lugar Ruim juntos justamente pela maneira como suas personalidades interagiam e se exploravam.

Todos tem pontos em comum e de diferença que exploram a própria química. A dupla entre Tahani e Eleanor explora bem a diferença de visão de mundo que elas tem devido ao quão diferentes foram suas criações, mas mantém também a conexão de que sendo as únicas mulheres no lugar, tem uma perspectiva no pós-vida que só elas entendem.

Pois Janet não é uma garota.

Jason e Chidi exploram a incapacidade de agir de Chidi de outra maneira. Jason é espontâneo, e sempre segue o próprio coração. Sua falta de inteligência torna as ideias de seu coração geralmente estúpidas, mas a sinceridade emocional de um homem que simplesmente ama ser a si mesmo e ama as pessoas a sua volta contrasta o quão solitária a vida de Chidi foi, alienando seus amigos, pelas decisões que não pode fazer

Mas voltando a Eleanor e Chidi. Eles se apaixonaram em várias encarnações diferentes de seu pós-vida. Mas eles não são almas-gêmeas. Pois almas gêmeas não existem. Mas ao mesmo tempo eles são. Pois almas-gêmeas se constroem. A capacidade deles de se conectar e se tornarem uma pessoa fundamental na vida um do outro independente do contexto em que se encontrem, não é uma mágica do cosmos, é um mérito do bem que eles fazem um pro outro.

E esse é o poder da conexão entre duas personalidades, a de transcender a ideia de que eles só se juntaram pelo momento que eles se encontraram, e abraçar a ideia de que eles se dariam bem em qualquer momento.

Em LOST eu acho particularmente bonito o romance entre Hurley e Libby. Em que Hurley, um jovem com muitas inseguranças em relação ao mal que sua companhia causa aos outros, ao seu peso e principalmente à própria saúde mental, se torna o alvo de afeição de Libby, uma mulher muito bonita e simpática. Hurley achava que uma garota que é tão mais areia do que o caminhãozinho dele aguentava era a prova cabal de que ele não estava curado, ele seguia louco e estava alucinando uma mulher idealizada que não existe.

Mas Libby restaura a auto-estima de Hurley, o faz entender que ele não é louco, e é uma personagem fundamental para Hurley passar a se sentir bem consigo mesmo.

No pós-vida, Libby é a louca. Digo, na ilha ela já era, ela teve histórico de internação, mas Hurley não sabia disso. Pois bem, na segunda vida que foi o pós-vida deles, Hurley nunca teve problemas psicológicos (simbolizando o quanto sua alma já havia superado-os), e Libby estava convencida de que ela e Hurley se conheciam de uma outra realidade que ela teve em uma visão. A reação de Hurley foi aceitar sair em um encontro com ela, o que ele não fez por amor, mas para não deslegitimar o que ela disse acreditar só por ela ter histórico de internação.

Quando Hurley passou a se aceitar, ele também passou a aceitar pessoas como ele, e ele tratou Libby exatamente da maneira que em vida ele sempre quis ser tratado. E é isso que permitiu que eles se apaixonassem de novo no pós-vida sem memórias um do outro. Hurley e Libby queriam a mesma coisa, serem legitimados, o que se manifesta com o quão ofendida Libby fica com a ideia de que Hurley momentaneamente achou que ela fosse uma alucinação. E o amor dos dois se sustentou na ilha e no pós-vida com o quanto eles se ouviram um ao outro sem julgamentos.

Eles não são almas-gêmeas, no sentido que o cosmos não reservou eles um pro outro. Mas a conexão deles era um encaixe perfeito, que caso se encontrassem de novo em outro contexto, se encaixariam da mesma forma.

Antes da queda do avião, Libby observava Hurley, de longe, internada na mesma instituição que ele.

Desmond e Penny é o mesmo caso, e certamente o episódio The Constant é lembrado como um dos grandes momentos românticos da televisão americana por um motivo.

Só que assim como The Good Place, LOST enfatiza que sua alma-gêmea é uma escolha.

No pós-vida, coube aos personagens escolherem com quem eles passariam o seu descanso eterno, e eles se escolheram entre si, as pessoas com quem fizeram a maior conexão de suas vidas.

Cabia a eles escolher Ben Linus. Cabia, mas ele não foi escolhido. Não só porque Ben era um filho da puta nojento, mas principalmente, pois a conexão que Ben escolheu para sua eternidade também não eram eles. Ele precisava restaurar os laços com pessoas como sua filha Alex, principalmente. As pessoas com quem você vai desfrutar a eternidade é você quem escolhe, é você quem conquista, não é uma decisão divina, o que não significa que elas são sejam pessoas perfeitas uma para a outra.

Pois no fim, a única coisa que eles realmente levaram para o outro plano foram as pessoas mais importantes de suas vidas, e essas conexões e a importância delas para as pessoas que eles são, é o que deu significado para suas existências.

LOST mudou a televisão em vários níveis quando estreou. Ajudou a preparar o terreno para várias outras séries estrear, permitiu que o Damon Lindeloff se lançasse na televisão para hoje ele estar fazendo a obra-prima que é Watchmen. Mas seu impacto se vê também em como a série dialoga com uma das sitcons mais criativas da atualidade. E que os méritos de LOST transcendem o gênero da série, que é mistério e ficção científica.

Motivo pelo qual entender os poderes do Walt NUNCA foi importante.

E se muitos acham que o sucesso de Watchmen é a deixa para ir rever LOST, eu acho que o sucesso de The Good Place também é. E que prestes a entrar em uma nova década da televisão, vemos o quão longe vai a influência da maravilha que foi acompanhar Jack e Locke brigando numa ilha.

Sobre o autor

Izzombie

Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

Por Izzombie

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Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

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  • – Todos os posts desse blog contém SPOILERS de seus respectivos assuntos, sem exceção. Leia com medo de perder toda a experiência.
  • – Todos os textos desse blog contém palavras de baixo calão, independente da obra analisada ser ou não ao público infantil. Mesmo ao analisar uma obra pra crianças a analise ainda é destinada para adultos e pode tocar e temas como sexo e violência.

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