Quem aí se lembra de Hey Arnold!? Série animada da Nickelodeon protagonizada por uma criança de nove anos com a cabeça em formato de bola de futebol americano, um chapéu pequenininho em cima, o quarto mais descolado de um protagonistas dos anos 90, uma camiseta longa fingindo ser um kilt e um idealismo imenso.
Hey Arnold! Foi o sexto Nicktoon, e na minha opinião um dos mais maduros e inteligentes de seu tempo. Misturava humor com personagens complexos e identificáveis. Misturava histórias realistas no ambiente urbano com histórias surreais de lendas urbanas. Misturava uma perspectiva infantil com personagens adultos fazendo coisas de adulto (com direito a álcool, jogo e depressão). Foi uma série muito completa. Sem contar que o encerramento era um jazz muito de respeito, e tem que ser uma série muito acima da média para introduzir crianças ao jazz.

Mas o tema central da série era a constante guerra entre idealismo e cinismo. Tínhamos nosso personagem-título, Arnold Shortman (sobrenome revelado só depois que a série já acabou), um garoto que acreditava que se todo mundo colaborasse o mundo poderia ser um lugar melhor pra se viver, e que estava sempre disposto a fazer sua parte para ajudar qualquer um que tenha problemas. Ele dava conselhos para as pessoas, e ajudava seus amigos a superarem as dificuldades da vida, tanto seus colegas de sala quanto os adultos com quem Arnold convivia.

E também tínhamos Helga G. Pataki, que na minha opinião era a real protagonista do desenho (e debocho da cara de todos que presumem que se um personagem está no título ele deve ser o protagonista). Helga era o oposto de Arnold. Ela era uma bully violenta no colégio, que garantia no grito e no punho que as coisas saíssem de seu jeito, era mandona e invocada e tinha uma visão pessimista da vida, e por isso, sempre que Arnold fazia um discurso sobre como era possívl com o apoio de todos fazer algo funcionar, Helga fazia questão de quebrar o discurso e esfregar na cara do cabeção que o mundo real era mais cruel que isso.

As atitudes de Helga eram uma reprodução de vida familiar lamentável que ela tinha em sua casa. Com um pai abusivo, uma mãe alcoólatra e uma irmã mais velha cujo sucesso faz com que Helga seja incapaz de atingir qualquer expectativa que seus pais esperam dela. Pois a medem em função da primogênita, que é a favorita. Ela não tem espaço em casa, e criou um espaço para si mesma fora de casa, usando de violência e autoridade, pois não conhece outra forma de ter respeito.


Já Arnold vem de um lar não-convencional, tendo sido criado por seus avós paternos, donos de uma pensão, onde Arnold convive com diversos inquilinos que ajudam a criá-lo, sem nunca ter conhecido seus pais biológicos, que estão desaparecidos. Nesse ambiente, Arnold recebe amor e respeito dos adultos, que ouvem o que ele tem a dizer, se permitem que Arnold os ajude em suas dificuldades, moldando a ideia de que Arnold pode ajudar qualquer um se ele fizer o mínimo.

O grande fator dessa relação de extremos opostos que são Helga e Arnold, é que Helga é apaixonada por Arnold. Desde o Jardim de Infância, devido ao fato de Arnold ter sido a primeira (e única) pessoa a demonstrar algum ato de carinho para Helga (notar que ela estava molhada, oferecer seu guarda-chuva e elogiar sua roupa, no caso). E Helga foca a maior parte de seu bullying em Arnold como maneira de esconder seus sentimentos (por não saber lidar com eles), mas secretamente o apoia e incentiva e deseja que o mundo não seja tão cruel para esmagar o coração puro daquele garoto. A ironia, é que Arnold não sabe disso, não lembra o episódio do guarda-chuva e guarda um grande rancor de Helga por sempre humilhá-lo e fazer bullying nele. Pois é assim que o mundo funciona.

E isso é Hey Arnold!. A história de uma das personagens mais complexas da história da Nickelodeon (tá pau a pau com o príncipe Zuko), de seus sentimentos contraditórios, de seu constante sofrimento e busca por aceitação, e do garoto que ela gosta.

Boa série. Marcante. Digna. Magnífica. Escrotamente cancelada pela Nickelodeon. Um dos primeiros casos de como a Nickelodeon caga nos desenhos animados que passaram pelo canal (e certamente não foi o último caso, porque Invader Zim teve seu final negado também, e os produtores de Legend of Korra brigando com a Nickelodeon ano passado foi algo que rolou).

Hey Arnold! possuiu oficialmente 100 episódios (divididos em 128 segmentos) e um longa-metragem. O longa-metragem direto pra televisão, chamado de Hey Arnold! The Movie e 100 episódios que foram divididos em 6 temporadas. Porém quando a renovação para a quarta temporada foi negociada, ela foi negociada para os episódios da 4ª temporada e mais dois filmes, sendo que um deles finalizaria a série. Então era para a conta ter sido quatro temporadas e dois filmes, e não seis temporadas e um filme. Então o que houve?
O primeiro filme, Hey Arnold! The Movie fracassou. Ou melhor dizendo, recebeu um teste de audiência favorável, mas falhou quando a Nickelodeon decidiu fazer uma estreia no cinema em vez de um tratamento de “filme-feito-pra-televisão”. O resultado foi esse, o filme foi mal nas bilheterias, e com isso a Nickelodeon decidiu que os planos do segundo filme estavam fora de cogitação.
Claro que o episódio final da quarta temporada seria um episódio duplo só de prévia para o segundo filme que seria o Series Finale da série. Então ao cancelar o filme, eles cancelaram o desfecho da série inteira. E pessoalmente, eu acho muito incomparável achar que um filme normal sem pretensão pensado em ser feito direto pra televisão pudesse se comparar a um filme feio para ser o Series Finale, o final definitivo da série, que quando o roteirista é bom (e os de Hey Arnold! eram) costuma ser sinônimo do ponto máximo da série.

Nada feito! O ano era 2001, mas a Nickelodeon que não é boba, fez os episódios já em produção serem divididos em mais duas temporadas, e espaçou o lançamento deles, mas Hey Arnold! poder ficar até 2004 com episódios inéditos, mesmo que Craig Bartlett não estivesse mais produzindo nenhum. E é assim que a Nickelodeon privou a série de seu final.
Claro que liberar novos episódios pra produção, para a série ao menos ter um final coerente e não ficar em um imenso cliffhanger estava fora de cogitação.

Claro que isso tudo rolou em 2001. Então em 2004, Craig Bartlett estava envolvido em outra série animada já, uma vez que a produção de Hey Arnold! parou em 2001, mas a Nickelodeon descobriu que ele fez trabalho para outro canal, e houve uma briga feia, pois Bartlett havia assinado um contrato de exclusividade para a Nickelodeon. O que valia muito pouco uma vez que ele sequer ia conseguir dar desfecho pra sua série Mas esse incidente foi o fim oficial de qualquer relação entre a Nickelodeon e Craig Bartlett.

O episódio duplo que faria o gancho direto para o filme foi exibido antes do último episódio, e a Nickelodeon escolheu um episódio aleatório para ser o último, para broxar o hype por um filme. E no dia 08 de Junho de 2004 foi exibido o último episódio de Hey Arnold!, que foi o episódio Phoebe’s Little Problem (o episódio em que Phoebe peida no microfone e é zoada por isso… super digno de ser o Series Finale). E esse foi o fim de Hey Arnold.

Ah e não é só isso. Existe um motivo pelo qual Craig Bartlett queria que o segundo filme – que agora no limbo, atende pelo título The Jungle Movie – fosse o Series Finale. Ele não queria matar a série aleatoriamente. É por que ele tinha mais planos para Hey Arnold. Ele queria criar uma série spin-off exclusiva da Helga chamada The Patakis, que seria originalmente escrita para o Nick at Nite – Um bloco da Nickelodeon originalmente pensado para passar programação destinada a adultos e adolescentes. The Patakis, acompanharia Helga com 15 anos, em um contexto onde ela e Arnold teriam se acertado eventualmente, mas Arnold deixou a cidade. Ela lidaria com sua adolescência, o alcoolismo de sua mãe seria mais abertamente trabalhado, assim como o abuso e crueldade de seu pai (que receberia traços de Tony Soprano no spin-off). A Nickelodeon recusou essa proposta também, considerou sombria demais para o que o canal queria.
O medo que alguns produtores têm de coisas sombrias é impressionante. O bloco seria para adolescentes e adultos, quem a Nickelodeon estava tentando proteger?
Craig Bartlett ainda tentou ver se podia lançar The Patakis na MTV, mas o canal recusou, pois considerou a série muito parecida com a animação Daria que a MTV já estava lançando, o que só me faz pensar em como a Nickelodeon talvez considerasse Daria um desenho sombrio demais para um bloco adolescente/adulto.

Daria é muito bom, já que toquei no assunto, aos que nunca viram, eu recomendo.
Agora já explicamos como The Jungle Movie, The Patakis e qualquer possibilidade de uma desfecho para os personagens de Hey Arnold! foram pro limbo. Agora vamos analisar o que é a Nickelodeon. Está na hora de um pouco de história da animação:
Nickelodeon foi um canal criado no período de Renascença da Animação, momento nos anos 90, em que houve uma tentativa forte de quebrar com o estilo barato, preguiçoso e comercial que estava ditando as produções dos anos 90, e investir em animações melhor produzidas, menos infantilizadas e mais autorais. Cartoon Network foi outro canal que surgiu na mesma época, e os dois foram parte importante do movimento de Renascença.
Durante a Renascença, a Nickelodeon se firmou com vários desenhos originais – nomeados Nicktoons – que garantiam seu sucesso. Rugrats, Ren & Stimpy, Doug, Hey Arnold!, Aaahh!! Real Monsters, As Told by Ginger, Rocket Power, Rocko’s Modern Life, The Wild Thornberrys, CatDog, Angry Beavers, Fairly OddParents e Spongebob Squarepants.
Dessa lista, Rugrats, Hey Arnold!, Rocket Power, The Wild Thornberrys e As Told By Ginger pararam sua exibição em 2004. Com Rugrats ganhando um spin-off dos personagens crescidos chamado All Grown-Up. Esse spin-off foi encomendado pela Nickelodeon e atropelou outro spin–off planejado pela Nickelodeon focado na Angelica e na Susie na pré-escola. All Grown-Up não vingou e foi o fim dos Rugrats. As outras séries nem sonharam com essa sobrevida. Vamos as outras da lista.

Ren & Stimpy acabou naturalmente em 1996. Doug e Aaahh!! Real Monsters tiveram duas ideias de filmes canceladas pela Nickelodeon, que mataram as séries. Doug foi comprado pela Disney que produziu o filme. As outras foram terminando aos poucos e a última a ser cancelada foi CatDog em 2005.
O que nos deixou com Fairly OddParents e Spongebob Squarepants, atualmente as duas animações de maior sucesso da Nickelodeon.
Isso mesmo! A Nickelodeon tem atualmente oito séries animadas, das quais três tem sucesso considerável. As duas citadas e o reboot de Teenage Mutant Ninja Turtles. Desculpe aí se você for fanboy de Sanjay & Craig, mas essa série obviamente não vingou.
As séries animadas da Nickelodeon no pós renascença, tiveram seu sucesso, mas a única que chegou perto de ter a reputação que os Nicktoons da renascença tiveram, foi Avatar – The Last Airbender, e com a Nickelodeon cortando relações com os produtores de Avatar após o final de The Legend of Korra, não é algo em que a Nickelodeon possa investir.

O que estou tentando resumir é: a fase de sucesso da Nickelodeon se foi nos anos 1990. Eles conseguiram alguns desenhos bons depois, mas nunca conseguiram sua reputação de volta. E dos desenhos que foram parte dos auges da Nickelodeon, o canal fez questão de cagar uma parcela considerável, inclusive o sucesso de crítica mais recente. Enquanto isso, o canal baseia a maior parte da sua vida no campo da animação atual com duas séries dos anos 90 sendo renovadas até hoje, as duas já estando no mesmo estado de degradação que The Simpsons se encontra.

É um canal decadente que nunca se recuperou do fato de que a Renascença da Animação acabou.
Nessa brincadeira, o Nick at Nite virou uma grande reprise de todos os desenhos da Renascença da Nickelodeon, ao invés daquela programação supostamente adulta, pois são esses os desenhos que sustentam o canal.

Houve desde o começo da década, tentativas de transformar os filmes recentes da Dreamworks em série. Saiu série do Kung Fu Panda, Penguins of Madagascar e Monsters vs Aliens, todos fracassos que já foram cancelados. A única série derivada da Dreamworks que foi sucesso de crítica, foi Dragons, que saiu pelo Cartoon Network, até o Netflix comprar.
E com esse contexto estabelecido, a Nickelodeon anunciou em 2015, que vai começar a relançar novos episódios de sua grade dos anos 90. Com esse anúncio a primeira série que eles divulgaram o nome foi justamente Hey Arnold!, e o restabelecimento do contrato com Craig Bartlett foi anunciado com a notícia de que a Nickelodeon, 11 anos após o último episódio de Hey Arnold! ser exibido. 14 anos após o cancelamento do filme, produzirá The Jungle Movie.

E todos os fãs órfãos de Hey Arnold! puderam largar seus abaixo-assinados finalmente. Eu sei que eu assinei pelo menos quatro deles.
Isso significa que depois do filme Hey Arnold! voltará a produção também, o que eu não sei dizer se é uma boa ideia, já que o filme era justamente para fechar tudo. Se será um reboot completo, ou se os personagens serão envelhecidos e algumas ideias de The Patakis serão reaproveitadas. Existe muito mistério nesse anuncio ainda. Mas o importante é que vai voltar.
O que isso significa? Certamente que a Nickelodeon está desesperada para ser um canal de animação relevante novamente. E não tem ideia de como atingir sucesso de novo. Desde o começo da década o seu maior rival, Cartoon Network vem experimentando um novo auge, com Adventure Time (cuja serialização foi recusada pela Nickelodeon), Steven Universe, Regular Show, Clarence, Over the Garden Wall, entre outros. E agora, eles resolveram apelar para a pura nostalgia, e abraçar a era do reboot com todas as forças.

Na minha modesta opinião? Essa é a fórmula do fracasso. E por mais que eu adore Hey Arnold!, é uma ideia desesperada com tudo para dar errado. Foi uma série dos anos 1990, que vai precisar de mais do que nostalgia para se estabelecer nos anos 2010. Mas honestamente, se isso possibilitar que The Jungle Movie seja enfim feito, eu não me importo, pois o filme vale isso. E se Craig Bartlett conseguir segurar um revival, então tiro meu chapéu para um dos grandes manjões de animação de seu tempo.
Alias Invader Zim também foi privado de seu final digno, o episódio especial Invader Dib, bem que esse revival poderia incluir Invader Zim, mas não fez tanto sucesso assim, para justificar um retorno.
Não custa nada sonhar. Alias, com o The Jungle Movie anunciado, devemos ficar atentos, pois se anunciarem o filme do Samurai Jack, aí é o sinal do apocalipse e devemos correr pras montanhas.