Animais Antropomórficos, a dualidade entre ser civilizado e selvagem.

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No começo desse ano, eu fui ler o mangá Jungle Taiitei, de Ozamu Tezuka, conhecido no Brasil mais popularmente como Kimba, o Leão Branco. E essa é uma história que é precedida pelo debate que ela protagoniza, que é a ideia de que o filme The Lion King (O Rei Leão) seria um plágio dessa história. Desde que se debate a existência de The Lion King se fala da acusação de que a Disney plagiou o Tezuka, e eu queria enfim ter um lado essa briga. Mas para a minha grande surpresa, eu achei tão poucos elementos em comum entre as duas histórias, que não consegui achar as obras comparáveis, para além da semelhança fonética entre o nome de seus protagonistas Kimba e Simba, ambos derivados da palavra Simba que significa “leão” em swahili.

Porém, uma comparação que eu não vejo quase ninguém fazer e que me chama muito mais a atenção, é a semelhança entre a história do Kimba, escrita em 1950, e a história francesa L’Histoire de Babar, mais conhecida no Brasil como somente Babar, ou “Babar, o Rei dos Elefantes”, publicada na frança em 1931. E essa semelhança é complicada, pois o que as duas historias têm em comum é a capacidade de lê-las como uma alegoria defendendo a colonização da África.

Afinal tanto Simba quanto Babar são animais que após se tornarem órfãos por culpa de caçadores, saem da selva, vão pra cidade grande na Europa, são adotados por seres humanos, e aprendem os métodos humanos de comportamento. Passam a usar roupas, andar sob duas patas e a comer usando talheres. E então eles retornam para a selva africana com o conhecimento que eles adquiriram, e se tornam os reis de toda a selva, usando o conhecimento que eles adquiriram na Europa para consertar a selva, ensinando os demais animais a falar um idioma europeu (francês ou inglês), andar sob duas patas, usar roupas, e a construir instituições que não existiam na selva como correios, escolas, mídia e comércio, pros animais poderes se tornar mais civilizados com o belo conhecimento europeu.

Esse texto não é sobre como Simba e Babar são dois gigantescos traidores de classe. E que Rei Leão, apesar de ter seus defeitos também, não chega nesse nível. Meu Deus, o fantasma do Walt Disney teria um orgasmo no inferno se conseguissem colocar o nome dele em algo tão problemático quanto europeus ensinando animais a civilizar a Africa com a cultura europeia. Foda. Mas eu não vou me estender nisso, o ponto que eu queria chegar com essas três obras era esse mesmo.

Mas com isso eu queria introduzir outro ponto, que é pensar: mas afinal o que significa civilizar um animal? Nos enquanto seres humanos nos vemos como absolutamente diferentes de todos os outros animais, e criamos uma sociedade que nega, ou deveria negar a lei da selva que decide quem sobrevive ou não no ambiente selvagem. Mas se de um lado temos histórias sobre animais consertando a selva com a civilização europeia, que são cagadas e não deveriam ser usadas para acusar a Disney de plagiar nada, por outro lado temos histórias muito mais interessantes que propõe o oposto. Que podemos vestir um animal com roupas, por terno, gravata, ensinar vocabulário culto, alfabetizar e fazê-lo morar na cidade que ele ainda será um animal selvagem vivendo pela lei da selva. E isso nos faz pensar: não é isso mesmo que nós somos, um bando de animal? Fingindo que esses “símbolos” da civilização nos fazem muito superiores aos pobres animais que vivem pelo matar ou morrer e sem política. Só pra depois repetidamente vermos nossa espécie aplicar o darwinismo social na sua política, e transformar a experiência humana em uma luta pela sobreviv~encia que nem soa civilizada?

Afinal o Planeta dos Macacos soava tão cagado quanto o Planeta dos Humanos, não é mesmo?

Pois é sobre isso o texto de hoje. Sobre como histórias de animais antropomórficos equilibram essa dualidade que é a diferença entre a vida civilizada e a vida selvagem. Sobre como usamos instintos e a relação de predação conhecida entre as espécies de animais para entender sobre como na sociedade moderna, nossos locais parecem meio pré-determinados, e a relação entre seres humanos é uma de predação. E sobre como não parecemos ter construído algo tão melhor do que aquilo que largamos pro resto dos animais. Eu sou Izzombie, esse é o Dentro da Chaminé e sejam bem-vindos ao texto sobre histórias de animais civilizados. Afinal nós deixamos de ser somente um bando de animal selvagem?

Antes de começar eu quero falar que uma das grandes diferenças entre o ser humano e o animal é que o ser humano depende de dinheiro pra viver, não deveria, mas cagaram no pau uns séculos atrás e ninguém conseguiu arrumar isso ainda. E esse blog é uma fonte de renda importante pra mim, por isso se você gostar os textos e do trabalho que eu coloco aqui e puder ajudar no financiamento coletivo do Dentro da Chaminé, com o valor que achar justo seria muito apreciado. Pois ajuda de verdade.

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Pois esse texto é escrito em homenagem a quem já me apoia, esse em particular, afinal o tema foi eleito por voto pelos apoiadores, e pra minha surpresa não foi nenhum pouco disputado, Então eu espero de verdade que vocês gostem desse texto. 

Então nesse texto vamos analisar por cima como os animais antropomórficos são utilizados de maneiras diferentes em diferentes obras de ficção, algumas delas já tendo ganhado seus textos individuais. Para pensar em qual é o sentido de se colocar animais como personagens civilizados? É só por ser mais divertido? Ou isso pode explorar algo mais?

Vamos começar pelo que tentou ser o mais direto possível na questão:

A civilização recente de Zootopia:

Começando por Zootopia, pois em Zootopia existe de fato um passado selvagem, onde a predação dos predadores em cima das presas era a lei. E a sociedade de Zootopia parece estar muito moldada na memória desse passado e no medo de que ele retorne. O filme não dá anos, mas parece ter sido uma mudança relativamente recente a das diversas espécies se agrupar em sociedade e formar cidades pra várias espécies.

Ok, sendo juntos, eles parecem viver na época moderna e esse passado parece ser a pré-história. Mas mesmo assim…. Quando a gente olha o mundo na perspectiva humana, a pré-história faz muito tempo. Quando olhamos a partir do surgimento das primeiras interações animais, então o surgimento da humanidade e a pré-história foi anteontem. E em Zootopia eles falam dessa memória recente nesses termos, mesmo que isso seja uns milênios.

O que coloca as coisas em uma posição esquisita. E vamos ser justos com o filme. É normal o filme não ter sido pensado pra ser resistente a esse overthinking, e isso não é o tipo de coisa que eu aponto pra zoar a incompetência do roteirista…. Mas eu aponto mesmo assim, ainda é o elemento do filme. Pois no filme a sociedade moderna parece ter seus méritos e deméritos julgados com base na comparação da lei da selva, e do “melhor do que quando eram predadores caçando presas”. E não comparado a todos os outros momentos da sociedade que vieram antes da forma que o capitalismo tomou no século XXI. No Renascimento eram predadores caçando presas? E na União Soviética? E nas comunidades indígenas.

A Disney/Pixar adora fazer isso. E não é um problema de verdade, a maneira como pra eles, a sociedade moderna é a conclusão natural da humanidade, e qualquer mundo de fantasia com a própria evolução e desenvolvimento social vai naturalmente terminar no capitalismo consumista do pós-guerra fria. Isso não é o problema isso é um sintoma de um problema maior, e o problema maior é esses filmes serem estadunidenses e serem escritos da perspectiva estadunidense que tenta naturalizar o próprio modelo de sociedade o máximo possível. É por isso que o Cuck Cinema existe.

E como animais antropomórficos existem no contraste e na dualidade do que é natural e do que é criação humana, é interessante olhar o que eles naturalizam. Porque a perspectiva que Zootopia propõe, de que se organizar em um modelo capitalista fez a gente parar de predar um no outro, é uma mentira. E o filme meio que nota isso em seus termos esquisitos.

O filme não é muito bom em mostrar práticas predatórias como um problema. Digo, tem essa cena em que a Judy percebe que o Nick arruma um picolé gigante que é vendido pra elefantes todos os dias, derrete ele, usa o picolé derretido pra fazer vários mini-picolés e revende pros hamsters. Ele se gaba de ter feito tudo isso dentro da lei, e o filme tenta enquadrar essa prática como menos que ética. Mas eu acho um modelo de negócios perfeitamente aceitável. O único problema da situação é as sorveterias não terem picolés pra hamsters normalmente, e o Nick ter que dar um truque nos limites da lei pra criar essa acessibilidade.

Ah, e o Nick dá golpe nos elefantes pra não pagar pelos picolés, mas se bobear isso só significa que ele pode cobrar um preço justo pelos picolés e não abusar dos hamsters… embora eu duvide que ele tenha feito isso.

Enfim, Zootopia tem um problema em sua construção de mundo que eu abordei no meu texto só sobre Zootopia e abordo de novo aqui que é simultaneamente demonstrar e ignorar o real problema de Zootopia. Parece até feito de propósito como um teste pra quem consegue entender a real opressão da cidade. Mas apesar deles falarem exclusivamente em como a sociedade se divide entre predadores e presa, duas denominações que vem do papel natural que as espécies desempenhavam na pré-história, a cidade é visivelmente dividida entre animais grandes e animais pequenos, e os animais pequenos ficavam com a pior parte do negócio. Elefantes tratam eles mau, e recusam serviço, eles não tem representação na polícia, eles quase morrem esmagados por rinocerontes e ninguém faz nada, e eles só conseguem tomar picolé se uma raposa meter um golpe nos animais grandes.

Judy acha como se ser uma presa fizesse ela ser mal-tratada na polícia, mas os animais que maltratam ela são a grande maioria presas, só que são animais grandes, e tratam ela mal por ser pequena. E Zootopia não fala sobre isso, mas vendo o filme podemos notar que a verdadeira opressão é de escala.

E isso faz sentido, pois a origem das opressões são os papéis da pré-história que seguem impregnados no nosso DNA. Mas uma das origens é que ambientes podem não ser inclusivos, e a cidade não é planejada pra acomodar todo mundo, gerando populações que ficam de fora pro conforto das pessoas pra quem o ambiente realmente foi planejado.

Na prática, Zootopia não mostra quase nenhum caso de um predador de fato oprimindo a presa. A única cena é no prólogo com a Judy criança em que a raposa arranha o rosto de Judy. E como isso é a infância dela, pode-se dizer que o tempo presente com ela adulta nenhum tipo de opressão de predadores com presas pode ser visto. E isso faz com que Zootopia se passe em um mundo tão intimidado por uma opressão imaginária baseada em nossos instintos naturais incontroláveis, que eles ignoram a real opressão, baseada fatores sociais como a maneira como a cidade é dividida por tamanho. O que pende pra visão do quanto a sociedade cria opressões e a gente culpa a natureza.

Não sei o quanto o filme mostra isso por acidente, mas é o que eu vejo no filme.

A selvageria querendo escapar de Beastars:

E agora vamos falar do primo mais bonito, mais maluco e mais cheio de tesão de Zootopia, que é Beastars. Os dois se baseiam na mesma ideia-base. Uma sociedade de animais antropomórficos vivendo como se fossem humanos modernos, mas com o espectro das relações de predação deles rondando o convívio e gerando tensões.

A diferença é que Beastars usa as terminologias: “carnívoro e herbívoro” em vez de “predador e presa”, o que tanto faz, mesma coisa. E que os carnívoros matando os herbívoros não é um passado do qual eles querem se afastar e superar. É algo que ainda é o presente deles.

A situação social de Beastars não é feita pra ser uma metáfora pra cultura do estupro e feminicídio. Eu não acho que a ideia era existir pra fazer esse paralelo 1 a 1, porém a maneira como a situação dos carnívoros e herbívoros foi apresentada foi extremamente codificada nos moldes de como a violência sexual e violência contra a mulher se manifesta. Tanto em leis como o vagão de metrô pra herbívoro, ou carnívoros que já comeram carne sendo registrados em um banco de dados específicos que limita as zonas da cidade onde eles podem morar e que soa muito parecido com o que fazem com pedófilos nos EUA. Tem um texto meu falando sobre isso já.

Isso tudo, é claro misturado com como o mangá mistura o ato de comer alguém literalmente com o de comer alguém figurativamente. E o ato sexual se mistura com a fome na cabeça dos carnívoros constantemente.

E a ideia de Beastars toda gira em torno disso, desse instinto primitivo que está dentro do coração de todos aqueles animais, seja o instinto de comer ou de fugir, e que está sendo suprimido pra eles viverem em sociedade. E alguns suprimem melhor que outros. E pra alguns não é questão de suprimir, é uma questão de romantizar os atos de predação como uma libertação de instintos, o que é perigoso.

Especialmente porque na vida real tem um número imenso de imbecis racionalizando os aspectos mais tóxicos da masculinidade, dinâmicas de gênero detestáveis e até violência natural como uma resposta aos instintos naturais, como se fosse a natureza se manifestando. Essa galera maluca que acha que a natureza aplica dinâmica de gênero do mesmo jeito que o patriarcado opera. Mas não se enganem, isso é merda. O Tarzan só aprendeu o que eram papeis de gênero quando conheceu a Jane.

A relação de poder dos carnívoros em cima dos herbívoros é clara. Os herbívoros têm problemas de confiança, nunca sabendo quando uma amizade com um carnívoro pode sair pela culatra, e os carnívoros ocupam as posições de poder na sociedade, sendo a maior parte dos políticos e CEOs, que regem o mundo. É um mundo de carnívoros, onde os herbívoros querem só sobreviver. E as leis da selva reforçam essa desigualdade social.

A sociedade que montaram em Beastars não é justa, é predatória e violenta, e eles põe isso na conta de instintos naturais pra naturalizar essa violência sem resolvê-la. Mas é algo com o qual se pode lutar. E existe um aspecto cultural doentio naquela sociedade que vai além só de instintos. E o mangá faz um bom trabalho em mostrar como uma civilização hostil e predatória se safa de se responsabilizar por sua crueldade, pois a natureza selvagem dentro de nós cria demanda pela crueldade.

A civilização emasculadora de The Fantastic Mr. Fox:

Em The Fantastic Mr. Fox, o protagonista, Mr. Fox, vive uma crise de meia idade. E a crise de meia idade é seu medo de ter se civilizado. Ele quer ser visto como uma raposa, um animal selvagem, que mata galinhas e engana fazendeiros. Mas ele é um pai de família, que escreve uma coluna no jornal.

A trama começa quando ele sai do buraco onde é seguro pra se mudar pra uma árvore com uma vizinhança mais perigosa e mais senso de emoção.

Mr. Fox está em uma crise de identidade, ele não sente que é mais uma raposa, pois ele não vive como uma raposa, e seus destaques biológicos não estão dando força pra ele. Ao longo do filme, os fazendeiros com quem ele declarou guerra pra se sentir raposa novamente, roubam seu rabo, um símbolo de si e de sua espécie.

Não é forçado dizer que o Mr. Fox sentiu a mesma emasculação humilhante pela vida de trabalhador que motiva homens estadunidenses a caírem no American Rage, mas também não é 100% correto, pra começar, pois essa história foi escrita por Roald Dahl, um homem inglês. E porque ele não vai até o fim, ele supera sua crise e aceita se civilizar. Ele também não tinha raiva, era só um orgulho machucado. Mas o sentimento de emasculação está aí. A vida civilizada causa um sentimento de castração em Mr. Fox.

Ao mesmo tempo que a verdadeira selvageria o assusta. Durante o filme inteiro ele expressou como uma running gag um pavor imenso de lobos, e quando ele enfim vê um lobo, a gente vê o que verdadeiramente é o lobo. Um animal sem um único traço de civilização nele, sem roupas, linguagem nem nada. Mais selvagem do que Mr. Fox era nos tempos em que Mr. Fox se sentia selvagem. E ele não aguenta ser selvagem de verdade Esse tipo de liberdade e desprendimento da civilização assusta ele.

As vezes adultos gostam de fantasiar com pessoas que eles jamais foram, que eles somente imitaram na juventude, mas que nunca foi o que eles eram. E que se tivessem realmente tido a vida que eles imitaram, poderia ter assustado eles sair do faz-de-conta.

Mas o real interessante é o que engatilha essa crise em Mr. Fox, e a vontade dele de se sentir um animal selvagem, e é o medo. Pra Mr. Fox é o medo de se acomodar e de se civilizar em uma vida que soe pra ele falsa e não autêntica, assim como o medo da morte. O medo de aceitar ser um marido, bom trabalhador e pai de família, sabendo que a próxima etapa é ficar velho e morrer. O que é o motivo dele perguntar pro lobo se ele está receoso com o inverno chegando e o lobo não responde.

Não era referência a Game of Thrones, é inveja da mentalidade do lobo, indiferente aos dias sombrios que virão

Mas pros demais animais, que não estão em crise de meia idade, o medo bate quando a comida acaba. Os fazendeiros começam a foder todos os animais, e todos eles apelam pra sua natureza de animais selvagens pra sobreviver, até Mr. Fox recuperar comida, e logo então todos voltam a estar completamente confortáveis em sua civilização.

E o contraste disso são os seres humanos. Que ao terem medo de serem roubados vão gradativamente se tornando menos táticos e mais violentos. Os animais antropomórficos não existem meramente em contraste com animais selvagens, mas com humanos, que não são animais. Digo, são sim, mas não pros propósitos dessa análise. Ou talvez sejam pros propósitos dessa análise como eu quero chegar no fim do texto, mas eu preciso fazer a divisão entre humanos e outros animais mesmo assim E o filme termina com os três humanos, vivendo em torno de caçar Mr. Fox, vigiando a toca do bueiro, vivendo do lado de fora, sem conforto, com somente o instinto da caça neles depois de todos os planos táticos falharem, enquanto todos os animais vivem vida de apartamento.

Os animais migraram de casas em árvores pra apartamentos no bueiro, uma vida ainda mais humana, menos genuina, com suas maçãs com estrelinha, e mais confortável. E os humanos se animalizaram pelo medo de serem roubados.

As vezes gente imbecil na internet acha que é importante restaurar os valores de sermos bons caçadores, homens fortes, selvagens e seguir nossa natureza? Mas é mesmo? Digo, a vida moderna tem sua desvantagem, e o final dos animais no filme beira o melancólico, a situação deles é o que é, mas roubar aqueles ultra-processados de supermercado passa longe de ser uma vida invejável. Mas o mito de que temos um animal instintivo dentro de nós pra onde voltar é um mito somente.

E fala de um medo que a esposa de Mr. Fox não tinha, pois ela não tinha crise de masculinidade. Que é uma questão na maioria das crises de meia idade que vemos retratadas no filme, são todas sobre os valores que nos ensinam sobre ser homem.

Bojack Horseman e a selvageria do entretenimento:

BoJack Horseman é uma excelente série em retratar a lei da selva, a sobrevivência do mais apto, a indiferença por trás da predação. Cada um sobrevive predando em quem está embaixo na cadeia alimentar e se escondendo de quem está em cima. Mas isso não é a parte de metade dos personagens serem animais antropomórficos, isso é pela série ser sobre a indústria do entretenimento.

A história se passa em Los Angeles, a segunda maior cidade dos Estados Unidos, e um centro urbano notório e reconhecível da vida real, diferente dos exemplos anteriores. E nele animais e seres humanos convivem normalmente, e aqui acho que vem o que Bojack Horseman faz de mais único em relação aos demais exemplos aqui: os animais todos existem em igualdade com os seres humanos. Geralmente essas histórias existem ou sem o elemento humano, ou com o ser humano existindo em posição de poder e autoridade em relação aos animais, mas não é o caso de BoJack e Todd.

Bojack Horseman faz constantes piadas a respeito de seus personagens serem animais. Mas muito raramente faz piadas referentes a supostas inimizades naturais que esses animais deveriam ter. Mr. Peanutbutter e Princesa Carolyn nunca brigaram, ou entraram em uma relação gato-e-rato, por exemplo. Nem carnívoros são tratados como perigosos. Claro, exstem exceções, como o rato que namorou Princesa Carolyn temporariamente e eles fazem muito comentário sobre gatos e ratos não poderem conviver.

Mas no geral, predação entre animais como consequência deles serem animais é um tema semi-evitado. Digo, teve o episódio sobre a indústria da carne lá que serve de construção de mundo de daonde vem a carne e é bem creepy. Então a série as vezes toca no assunto e nos lembra que esses animais são realmente animais.

Somente a predação social. Como o capitalismo, a indústria do entretenimento e a estrutura social de Los Angeles é um ambiente em que pessoas predam em outras pessoas, de maneira que os seres humanos e os animais de roupa são indistinguíveis.

A indústria do entretenimento é cruel e desumaniza aqueles que se envolvem com ela, e mostrar como pessoas e animais são indistinguíveis nesse aspecto soa como algo que nos mostra isso. Aqui cavalos de corrida são tratados como celebridades, e com a glória que atletas humanos teriam, em vez de isso ser belo, como é em Uma Musume, aqui vemos um dos maiores desses atletas se suicidando, pela maneira como sua imagem pública foi conduzida.

Sabem o que isso me lembra? O filme Nope do Jordan Peele, que usa muito da imagem dos animais da televisão e no cinema para falar sobre como o espetáculo trata os demais, iguala humano e animal como coisas, e da importância de não se olhar pro espetáculo.

E eu acho que tem uma interseção grande conectando Nope com Bojack Horseman, que envolve o uso de cavalos pra ilustrar esse tema.

No fundo, o topo da cadeia alimentar é o ser humano, e ele preda em todas as espécies incluindo a própria. Eu não acho que Bojack Horseman quis fazer de propósito uma metáfora sobre cadeia alimentar, mas acho que inevitavelmente eles fizeram mesmo assim. Na maioria das histórias, animais são crueis e frios, mas aqui animais são vítimas, na indústria do entretenimento a máquina que o ser humano criou é pior que qualquer animal, é a lei da selva pura.

Rango, e a incivilização do capitalismo:

Uma coisa que rapidamente chama a atenção em Rango é: todo mundo ali é feio. E isso não é um insulto a direção de arte. É um charme do filme se afastar da tendência de apresentar os seus animais antropomórficos de maneira fofa, ou próximo de fofa. Porra, nem o coelho é bonito nesse filme.

Esses animais não representam um mundo mágico e encantado onde animais falam, representam um mundo cruel e frio, e também, um mundo datado? A sociedade dos animais aparenta estar no equivalente ao século XVII, mas foi construída a beira de uma autoestrada e os carros que passam nela estão no mínimo no século XX. Então os animais seguem nossos passos, e repetem nossos erros, conforme resolveram se organizar.

Rango fala muito de predação, como uma suposta oposição a civilização. A maior ameaça para a cidade é o falcão que os ronda. E a segunda maior ameaça pra cidade é o Rattlesnake Jake, que tem medo do falcão e só aparece se acha que ele não está lá. Jake é uma cobra, e portanto o preador natural de todos os habitantes, mas Jake não ameaça comer os habitantes, Jake é semi-civilizado, ele mata somente a tiros.

Se o falcão é nada civilizado, e trás a lei da selva pra cidade, e Jake é semi-civilizado, trazendo barbárie pra cidade sem literalmente comer ninguém, então temos a real ameaça da cidade, o homem que estava ali desde que a civilização surgiu em primeiro lugar: o prefeito John.

A trama pessoal do personagem Rango gira em torno de sua busca por identidade, como a de 70% das histórias já contadas. Mas a conspiração que ele tem que descobrir e impedir gira em torno de um golpe imobiliário, em que o prefeito está roubando a água da cidade, pra desvalorizar os terrenos, comprá-los a preço de banana, ser dono e todo o território da cidade, e construir Las Vegas no local.

O processo de expulsar todos os animais da cidade e prepará-la para ser um paraíso pra empresários, foi chamado pelo prefeito de fazer a transição para a civilização. E nessa civilização, não precisavam de literais predadores como Jake, só de figurativos. Curioso, pois o prefeito era um herbívoro, diferente de Jake.

Jake em si trabalhava pro prefeito e o prefeito era quem chamava ele pra cidade, então a selvageria que o capitalismo combatia com sua “civilização”, era o próprio capitalista que controlava quando aparecia pra assustar as pessoas.

E eu inicialmente ia trazer o ponto, de que o status de meio termo entre lei da selva e civilização representado pelo faroeste, com a verdadeira predação estando do lado civilizado, podia ser representado pelo fato da cidade usar água como dinheiro. Não que os povos antigos que usava sal ou outro recurso do gênero de dinheiro não fosse civilizados, não quero usar esse termo pra ser pejorativo com essa galera. Mas a ideia que eles giravam toda a economia deles em torno de um recurso que eles consumiam em vez de acumulavam, e que eles queriam, não pra comprar coisas, mas pra matar a sede, um sinal de que o dinheiro ainda não ocupou um determinado peso naquela sociedade…..

…..mas aí revendo o filme pra escrever esse texto eu descubro que existe uma versão extendida, com uma cena extra no final explicando que eles adotaram moeda corrente, pra parar de usar água como dinheiro…. Então finjam que eu não disse nada.

Mas é isso, o mundo de Rango está avançando, os animais estão imitando os humanos, e querendo ser iguais eles, isso significa que eles estão se tornando mais predatórios e mais ferozes. E comer e beber se torna cada vez mais difícil quando a civilização é nesses termos.

O último exemplo também é sobre animais imitando seres humanos.

Animal Farm e a transição de animal pra humano.

Animal Farm, popularmente conhecido como A Revolução dos Bichos, é um livro muito famoso, pois sua alegoria o precede. O livro é uma crítica bem transparente a União Soviética e a diferença entre discurso e prática que o governo de Stalin teria em relação aos valores da revolução russa…. Essa alegoria não é sobre o que viemos falar aqui.

O importante não é entender porque um dos porcos era o Stalin e o outro é o Trotsky, digo não é importante nesse texto, em muita análise literária será importante sim, mas não aqui. Aqui o que importa, é que os porcos se tornaram humanos no processo de se tornarem tiranos. 

Os animais do livro são, a princípio, não antropomórficos. Muito pelo contrário. O livro descreve um processo de corrupção, com Napoleon gradativamente traindo mais e mais a causa pela qual ele lutou, até a causa simplesmente deixar de existir. E esse processo é sua antropomorfização, quanto mais e mais os porcos se tornava corrompidos e traidores, mais e mais elementos humanos eles adotavam pra si, até a diferença simplesmente deixar de existir, e eles virarem impossíveis de se distinguir dos humanos.

E é em prol da alegoria, claro, de como queria-se enfatizar que a busca por signos de distinção era importante pros porcos exercerem autoridade entre os outros animais, e que eles queriam se ver em igualdade com os donos de fazendas, não com os animais. Mas mesmo assim, eu acho fascinante o quanto o livro retrata os animais já com a capacidade de se organizar, sem se antropomorfizar, sem andar sob duas patas, sem usar roupas, sem dormir em camas. Eles já conseguiam escrever mandamentos igualitários.

O inimigo natural do animal domesticado é o ser humano, é o ser humano que o mata e o ser humano que o come, só fomos espertos pra bolar um sistema em que não precisamos caçá-los. Nossa relação com porcos, galinhas e vacas é de predação. E quando interagimos com os demais humanos, nossa relação é social e política. Mas não fazemos política com os porcos, sequer somos capazes, nossa relação com os porcos é de predação.

E o livro mostra os porcos começando uma relação de predação.

É essencial ao ponto do livro que os animais a princípio não vejam vergonha nehuma em seu status de animal, e coloque chifres e cascos na bandeira. E isso é poderoso, justamente. Porque a reforça aquilo que separa um homem de um animal está no campo do simbólico. 

Nossas roupas, tem razões práticas pra usarmos, mas razões culturais, e principalmente as razões culturais fazem a gente aceitar e presumir certa humanidade em um animal de roupa.

Em resumo: Animal Farm fez pra falar mal do Stalinismo, mas Walt Disney fez a mesma coisa pra não falar nada, só porque acha o conceito legal.

Conclusão:

O Livro dos Pássaros é um trabalho da @Larknessart.

Assim, eu quando escrevo meus textos aqui, não tento necessariamente procurar algo que os autores colocaram diretamente, embora quase toda história tenham coisas que o autor não sabia que colocou, mas estão lá. Não quero falar que toda história com animais antropomórficos foi feita pra pensar na sociedade humana, mas, ao mesmo tempo, eu acho que coletivamente elas nos ajudam a pensar. Que dentro da selva de pedra, agimos tanto feito animais, que podíamos colocar terno numa raposa.

E pra isso tem muito mais exemplo que eu podia citar que ainda teria o que falar, eu podia ter incluído The Secret of NIMH aqui, Planet of the Apes, ou Odd Taxi…. Eu pensei em incluir Aggretsuko, mas eu não terminei de assistir, mas não é incomum as injustiças da vida humana moderna ser apresentada pra nós na perspectiva de espécies diferentes de animais dividindo espaço na cidade.

As fábulas eram contadas sempre usando animais, pra usar as relações e expectativas sobre eles como alegorias pros nossos papéis na sociedade, e eu acho que essas histórias sobre animais usando roupas e arrumando emprego são as nossas fábulas modernas. As fábulas do nosso ambiente urbano.

Porque depois Esopo escrevendo sobre uma tartaruga ganhando uma corrida por ter sido humilde e não dormido, e sobre uma formiga mandando o artista se foder e morrer de fome, por não considerar arte profissão, bem depois, milênios depois, um cidadão inglês chamado Charles Darwin lançou um estudo dizendo como as espécies de adaptavam pra sobreviver no meio selvagem. E bem, ele escreveu um livro, chamou esse processo de evolução e bagunçou o mundo de maneira absurda. O mais famoso caos que ele causou foi deixar a igreja puta, mas o que dá mais trabalho na nossa vida cotidiana é ele ter popularizado a frase da “sobrevivência do mais forte”.

….que nem é correto. “É a sobrevivência do mais apto.”, mas se tornou algo que se tirou de contexto e se aplicou na má-fé na sociedade moderna, usando essa frase pra criar o mito de que as posições do topo foram ocupadas pelos mais aptos e pra incentivas a competição entre as pessoas.

O que é louco, pois conservadores ainda briga com Darwin, pois Darwin atrapalhou muito como as pessoas lidaram com religião por um bom tempo, mas mesmo assim, se aplicou na sociedade o chamado darwinismo social. Que são essencialmente políticas de ignorar as parcelas da população que precisam de mais apoio que outras que tem como objetivo hierarquizar a sociedade e intensificam o racismo e a desigualdade social. E isso é a sociedade dando errado e os conservadores achando que são só a leis naturais.

Mas nossas leis não são as leis naturais, são as leis dos humanos. A galera adora falar da natureza humana na hora de justificar alguma atrocidade. Adora mesmo. Mas natureza humana é bosta, somos seres culturais. E não agimos por instinto de animais selvagens, mas procuramos eles pra justificar porque a sociedade parece propositalmente planejada pra foder com os mais vulneráveis.

E no que diz respeito a como animais são retratados na ficção, as histórias adoram lembrar das relações de predação, quem são os inimigos naturais e quem come quem. Mas tem dois lados da vida entre os animais que também valem a pena de pensarmos: o primeiro é que eles cooperam. A sobrevivência animal é muito sobre como espécies muito diferentes podem sobreviver juntas se uma cuidar da outra. A imagem de como o passarinho pode confiar no crocodilo pra não comê-lo e entrar na sua boca, pois o passarinho ajuda o crocodilo.

Quantos de vocês podem confiar no seu chefe nesse nível?

O segundo é que as espécies que formam sociedades são consideradas as mais avançadas e evoluídas pelos estudiosos, e quanto menos cara de “o leão mata outro leão e os filhotes pra cruzar com todas as fêmeas”, e mais cara de “bonobos transam entre si, incluindo sexo homossexual pra resolver seus conflitos”, mais interessantes e inteligente esses animais soam e mais interesse eles despertam nos pesquisadores.

Pois outro traço da ficção é que é frequentemente sugerido que nossa inteligência estimula nossa crueldade, e eu admito, no reino animal a medalha de ouro do sadismo é do ser humano sim, mas hey, não é como se minha gatinha não torturasse uns insetos que depois ela nem sequer vai comer. Nossa habilidade de socializar, de cuidar dos vulneráveis, de empatizar com os outros, tudo isso é inteligência, e quando animais desenvolvem essas habilidades a gente começa a achar que eles estão muito evoluídos e muito aptos.

Raramente estudamos animal que é bom em matar e em explorar, como o auge de qualquer coisa. Ninguém pega um parasita como exemplo de como a evolução faz as criaturas mais avançadas do mundo.

Mas criamos pra nós a ideia de que seguir nossa natureza é por uma dose de parasitismo no mundo, e que a cooperação é uma exploração e que competição é o que forma os grandes. E isso é bobeira. Aí fica no nosso imaginário, se não somos todos predadores e presas usando roupas, e dividindo os espaços. Mas o ser humano não precisa ser um arrombado pra ser o melhor que Darwin pensou pra nós, afinal nem mesmo os animais precisam ser.

Sobre o autor

Izzombie

Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

Sobre o autor

Izzombie

Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

Alertas

  • – Todos os posts desse blog contém SPOILERS de seus respectivos assuntos, sem exceção. Leia com medo de perder toda a experiência.
  • – Todos os textos desse blog contém palavras de baixo calão, independente da obra analisada ser ou não ao público infantil. Mesmo ao analisar uma obra pra crianças a analise ainda é destinada para adultos e pode tocar e temas como sexo e violência.

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