Alerta: no mundo da ficção, incesto as vezes aparece como uma forma de “amor proibido”, como um fetiche ou com alguma dose de romantização. Mas na vida real, incesto é uma forma de abuso e de violência sexual. E qualquer caso de amor-proibido-com-parente hipotético que possa um dia ter ocorrido, ocorreu em número pequeno demais de casos para ser estatisticamente relevante. Incesto é um abuso não importa o quanto histórias fictícias possam romantizar. Esse texto vai falar dessas duas facetas, e fica aqui o Aviso de Gatilho, que o tema do incesto exige.
Uma dúvida. Quando vocês tão lendo um mangá, especialmente um de romance, e aí vem a revelação de que um dos personagens tem uma irmã, mas a irmã não é biológica, e eles não tem laços sanguíneos…. Vocês já se preparam pra vir algo horrível e abominável dessa informação?
Porque quando lemos mangás ou vemos animes, quando menos esperamos um relação entre irmãos pode se tornar bizarras bem rápido.
Não que relações entre irmãos não possam ser retratadas de maneira creepy e com alto subtexto incestuoso na mídia ocidental, pois pode e é. Mas é quase sempre intencional, feito pra deixar o expectador desconfortável e pra apontar “olha como essa situação é absurda”.
Mas nos mangás as vezes isso é feito pra deixar a situação romântica, sexy ou o pior de tudo: escapista.
Porque todos sabemos que tem esse nicho estranho no público otaku, e que esse tipo de produto tem demanda, que quer histórias de romance com muito fanservice, muito uso sexualizado da palavra onii-chan (irmão mais velho, em japonês), e em muitos deles os irmãos não realmente transam. As vezes porque o mangá só quer vender o fetiche sem realmente fazer nada, outras vezes porque o autor é só o rei do loophole, o grande malandrão e quer muito poder falar “tecnicamente não tem incesto” num mangá que basicamente só tem incesto.
E incesto é aquilo. Ninguém quer falar sobre. Ai ninguém fala sobre. Aí vamos supor… Oshi no Ko aparece, e a gente não sabe por onde começar a falar sobre o que ninguém quer falar, mas está aí no centro de um dos animes de grande sucesso esse ano que é um mangá de grande sucesso.
Nesse texto vamos falar sobre. Vamos falar sobre como esses mangás funcionam. Vamos falar no que esses autores buscam fazendo o leitor lidar com esses irmãos prontos pra se pegar. Vamos falar sobre as brechas pro autor poder se safar e dizer que tecnicamente não escreveu nada incestuoso de verdade. Vamos relembrar um pouco de porque incesto é um tabu, o peso do tabu na sociedade e como a ficção dialoga com isso, como já fiz antes no meu texto anterior sobre o tema. Mas acima de tudo vamos jogar um abacaxi imenso na mão de outro arquétipo que parece completamente desrelacionado dessa discussão, mas está completamente relacionado…
Que é o arquétipo da amiga de infância como interesse romântico fracassado do protagonista.
E eu espero que você, leitor, já esteja parando e pensando “mas não tem nada de errado pegar a amiga de infância”, e sabe o que é? Não tem mesmo. É super de boa pegar amigo. Você tá liberado pra pegar o seu. Mas tem uma intersecção grande entre o arquétipo da amiga de infância e da irmãzinha, na maneira de trabalhar o porque elas flertam com o protagonista, que forçam as amigas de infância dos mangás a serem parte dessa conversa.
E essa intersecção é o que nos obriga a responder a pergunta: Ed e Winry, são irmãos? E Eren e Mikasa? E porque eu não sou de segurar interesse com curiosidade barata a resposta é: não, não são! Mas é importante se perguntar sobre o porque eles quase são. E porque não seria muito diferente se fossem.
Então eu sou o Izzombie, esse é o Dentro da Chaminé, e nesse texto vamos olhar bem de perto o que está acontecendo nos mangás e porque tem tanta gente com tesão pela irmãzinha nessa mídia.
Antes de começar quero avisar que o Dentro da Chaminé é um blog financiado pelos seus fãs e do nosso financiamento coletivo no apoia.se. Eu sei que esse blog não é grande e justamente por isso tenho muito orgulho do público que juntei ao longo dos anos. Por isso se você quiser ajudar esse blog a continuar produzindo textos com tranquilidade uma ajuda financeira seria muito mais que bem-vinda. Se não quiser se comprometer a uma ajuda mensal, você também pode fazer um pix de qualquer valor na chave franciscoizzo@gmail.com, que a ajuda é igualmente apreciada e você é igualmente homenageado nesse espaço.
Esse texto é escrito em homenagem a todos que já me apoiam. Turma do bem que dá forças pro blog e merecem os créditos por ele estar firme e forte aqui. Espero de coração que gostem do texto.
E esse texto é sobre incesto nos mangás.
Esses dias eu vi um tweet que eu gostei muito, que cunhou a distinção entre duas maneiras de retratar incesto nos mangás, chamou de Incesto Utena e Incesto Oreimo.
Incesto Utena, nomeado em homenagem ao anime Kakumei Shoujo Utena (Revolutionary Girl Utena em inglês), é o incesto não-romantizado. Ele é problemático e ele é retratado com luz negativa. Ele pode ser trágico, pode representar violência, abuso, relações de poder tóxicas, misoginia ou somente péssimas decisões, mas ele é pra mostrar um relacionamento cagado e causa choque ao expectador. A ideia é mostrar um relacionamento ruim.
E é o incesto que mais aparece na mídia ocidental mainstream. Mas o mais importante, é o incesto que mais aparece nas estatísticas. O que é uma maneira de dizer. O incesto problemático, traumático e abusivo é o único que aparece nas estatísticas.
Irmãos se apaixonando e entrando em relacionamentos reais é algo que não existe de verdade em exemplos palpáveis, ou em grupos lutando por reconhecimento. Existe só em situações hipotéticas. Mas incesto é algo que ocorre muito mesmo assim, na forma de abuso sexual. Na vida real incesto é um ato de abuso, é uma violência, é um crime, e é muitas vezes não-denunciado.
E isso é algo que antes da gente entrar no assunto a gente tem que ter com clareza. Incesto não é algo que existe só na ficção, incesto é um trauma real de muita gente. O ser humano é naturalmente inclinado a não sentir tesão por seus parentes, mas estupro e abuso sexual não surgem da paixão, do tesão ou da atração. Surgem de dinâmicas de poder, e não tem real relação por tesão. E isso acontece demais.
E muitas vezes a ficção quer falar sobre esse tipo de dinâmica de poder, sobre esse crime e sobre pessoas que predam dentro da própria família vítimas. O meu texto passado foi sobre Game of Thrones, e todos os casos de Game of Thrones são de Incesto Utena.
O texto vai ser sobre o outro tipo de incesto, o que aparece só na ficção, como uma situação hipotética. Que é o Incesto Oreimo.
Incesto Oreimo:
O Incesto Oreimo foi nomeado em homenagem ao anime Ore no Imouto Ga Konna ni Kawaii Wake ga Nai (My Little Sister Can’t Be This Cute no ocidente), que é encurtado pra Oreimo, porque olha só o tamanho imbecil desse título. Tem lugar na internet com limite de caracteres. Pois bem, Oreimo é na real uma série de Light-Novels que foi adaptada pra anime e pra mangás, mas que a adaptação pra anime é onde a história foi mais difundida e por onde a maior parte dos fãs conhece.
E é a história de um rapaz flertando com a irmã enquanto os dois exploram a cultura otaku. É essencialmente isso. E é também o anime que codificou e se tornou referência sobre como escrever mangás de irmãos flertando.
E isso é uma marca importante do Incesto Oreimo. O mangá não precisa realmente fazer os dois irmãos se pegarem, alguns fazem eles se pegarem, alguns não fazem, e alguns tentam falar “se essa menina chupar o pau do irmão, mas não transar então não dá nada”. Pois diferente do Incesto Utena, no Incesto Oreimo o ato em si importa menos que o sentimento. O mangá é sempre sobre o desejo sexual entre esses irmãos, e só as vezes sobre as consequências deles transformarem esse desejo em ação.
O Incesto Oreimo é o incesto romantizado. Ele existe como uma espécie de amor proibido, e amor secreto, e trabalha explorando os personagens tentados pelo fruto proibido. E o Incesto Oreimo é um fetiche! Ele pode algumas vezes até aparecer em mangás sem fanservice e sem sexualização dos personagens, mas ele é um fetiche e é comumente usado como maneira de atiçar o leitor, tanto quanto professoras, enfermeiras ou maids poderiam. Ah, e vai sem dizer, que eu vou focar só em exemplos de irmão-irmã. Vou menciona uma meia dúzia de primos, mas como exemplos de quase-incesto ou de dialoga-com-incesto, pois a questão dos primos tem mais escalas de cinza, mas não vou pegar nada de pais e filhos, pois aí a romantização não é Incesto Oreimo, aí é só um autor que tem mais que se foder.
E se você está prestando atenção, eu espero que você esteja se fazendo a pergunta: “Mas você falou que ninguém tem tesão de verdade pela irmã, então o fetiche é pra quem?”, pois essa pergunta é importantíssima. E a resposta é: o fetiche é pra quem não tem irmã.
Digo, talvez pra alguém que tenha irmã também, mas o ponto é: não é sobre a sua irmã, o fetiche é sempre sobre uma irmã imaginária hipotética que não realmente mora na sua casa. É diferente de uma professora ou enfermeira que é um fetiche que pode eventualmente se aplicar a pessoas de verdade. Reforço: a maioria absoluta das pessoas não sentem esse tipo de atração, a tentação do incesto não é algo com o qual as pessoas têm que lutar contra, tem luta nenhuma, esse tipo de atração é raro demais pra ser relevante.
O fetiche é pela hipótese de que seria muito louco se essa irmã imaginária existisse.
Aliás, sendo bem específico. O fetiche é pela hipótese de que a vida seria mais fácil se tivesse uma gostosa, morando com você e tomando café da manhã com você e com quem você já tem intimidade, piadas internas e facilidade de conversar com desde sempre. O desejo pela proximidade e pela intimidade dados numa bandeja por default. Para contrastar justamente o quão difícil pode ser pra algumas pessoas se aproximar do sexo oposto e começar do zero.
Ou seja, o importante não é o rótulo de “irmãos”. O importante pro fetiche deles, é os personagens terem um tipo de convívio e de proximidade que somente dois irmãos teriam. Mas a maioria das obras de Incesto Oreimo se diferenciam das de Incesto Utena por querer fugir do rótulo “incesto”, e querer muito poder falar “tecnicamente isso aqui não é incesto”.
Pois é uma palavra feia, que todo mundo sabe que é sobre algo errado, proibido e cagado. E esses animes querem chegar perto o suficiente sem ser abraçados pela palavra. Inclusive os fãs…. o site anilist não me deixa catalogar metade desses mangás que eu cito como “incesto”, pois eles tem a própria palavra “inseki”para mangás de incesto com os participantes não tendo relações sanguíneas. E sempre que eu marco que Domestic na Kanojo é um mangá de incesto os moderadores retiram a tag, pois é desconfortável ver essas coisas pelo que elas são. Lembrando que “inseki” é uma palavra inventada só pra isso e que legalmente essa distinção não existe, existe só pra quem quer ler esses mangás se sentir longe o suficiente da palavra maligna.
E na onda de não querer realmente chegar perto da palavra “incesto”. Essas histórias também querem muito ser sobre tensão sexual no ambiente familiar, mas quase nenhuma quer ser sobre família. Pra maioria delas o divórcio ou os pais biológicos que foram embora/faleceram pra permitir que os irmãos se tornem irmãos nunca são mencionados, os novos pais deixam os dois as sós em casa tanto que beira a negligência, e ninguém quer falar sobre tipos não-tradicionais de famílias. Eles não querem pensar na palavra família, querem só ter tesão pela garota do quarto ao lado.
E aí vêm os loopholes. O mais popular de todos é o da adoção. É o mais usado pois é o mais fácil de ser usado, mas também o mais fácil de ser usado pro mal. Por vários motivos, desde fazer inúmeros personagens repetidamente usarem a frase “ela não é minha irmã de verdade”, o que me incomoda. Qualé gente, que merda mais rude de se falar. Usa “de sangue” ou “biológico”, que a mesma mensagem é passada mas “de verdade” tem muita implicação negativa. Mas eles usam, porque é pra ser forte, não são irmãos de verdade é uma mentalidade que eles usam pra negar o parentesco e poderem flertar.
Mas eles usam o termo “não é minha irmã de verdade” o tempo todo pra de fato negar o parentesco e poder deixar o expectador tranquilo, de que essa família é tão tóxica e desunida que tudo bem se rolar sexo dentro dela.
Também é usado pro mal porque fixa na cabeça das pessoas, que incesto é um problema genético. Não é. É um problema social, e o problema continua rolando quando parentes sem laços sanguíneos transam. Muita gente é abusada sexualmente de padrastos, ou irmãos de criação. E quando isso acontece ainda é incesto. Não é menos grave por não ter conexão sanguínea.
Mas apesar da falta de laço sanguíneo não amenizar nenhuma situação incestuosa, muitos animes usam ela para fazer dois irmãos não se considerarem irmãos e ganharem passe livre pra transar.
Não é o único loophole usado, recentemente explodiu o anime Oshi no Ko, em que os dois irmãos gêmeos são reencarnações de pessoas que se conheceram antes de reencarnar e mantém as memórias de seu relacionamento, inclusive o crush que ela tinha nele antes de reencarnar. Por isso eles não se consideram irmãos.
E tivemos aquele caso em Jujutsu Kaisen em que dois demônios milenares possuem o corpo de dois irmãos pra poderem paquerar. Mas não são os irmãos paquerando, são só os demônios dentro deles…. é bom jogar um mangá da Shonen Jump no meio pois eu vou dar um monte de exemplo de mangá merda do nicho mangá-de-incesto, pois são exemplos fáceis, mas essa merda rola no mainstream também.
Aliás, a gente viu a Mei Mei dormir pelada com seu irmão Ui Ui no quarto de hotel, não foi? É, só lembrando gente, essas zoeiras rolam no mainstream também, e as vezes o mainstream é mais casual com o assunto que os mangás explicitamente sobre incesto.
Mas voltando aos exemplos de loopholes, podemos também ter os irmãos só jurando jamais ter filhos, novamente, partindo do pressuposto de que o incesto é um problema genético e que o tabu existe somente pra impedir filhos deformados, o que não é verdade.
Mas o loophole mais estúpido de todos, mais estúpido do que fingir que irmã adotiva não é irmã. É quando o mangá mete um “tudo bem, é só eles não fazerem sexo”, e aí seguir eles fazendo essencialmente tudo que não for penetração, para afirmar que eles não cruzaram a linha sagrada.
Como eu espero que esteja dando pra notar, esses band-aids que essas obras colocam na tentativa de curar e esconder a ferida que é o incesto pode acabar mais feia que a ferida, muitas vezes por ser justamente, escrita por pessoas querendo fetichizar um tipo de intimidade, enquanto fogem de um tabu, sem entender de onde vem esse tabu?
E sabem de onde vem esse tabu? Da exata mesma intimidade que eles quere fetichizar.
Uchi e Soto:
Então vamos falar de porque o tabu do incesto existe. O tabu do incesto existe, como uma forma de criar no ser humano um incentivo pra praticar pelo menos o mínimo de exogamia na hora de se procurar um parceiro sexual, pra permitir que famílias consigam fazer alianças entre si, e formar parentescos novos através do casamento, como cunhados e sogros, que são contatos que avança as relações sociais e são positivos pra comunidade no geral.
Exogamia é o ato de procurar contato sexual com pessoas de fora dos eu grupo social. Essa palavra existe em contraste com a palavra endogamia, que é procurar contato sexual com o seu próprio grupo social.
O que é seu grupo social? Pode ser seu trabalho, sua escola, seu grupo de amigos, sua cidade, sua religião, sua classe social, sua etnia, um grupo de pessoas que defina sua identidade, mas também pode ser a sua família!
Pode ser a sua família nuclear inclusive, as pessoas que moram na sua casa. Você seus pais e seus irmãos juntos na casa formam já uma unidade de grupo social que é a menor de todos. Mas com pode ser sua família, também vale pra mangás que possuem grandes clãs, que são mangás em que justamente o assunto de em que termos um cara de fora daquele mundo pode se casar com uma filha do clã costuma ser um assunto.
E bem, a maioria dos relacionamentos são em algum nível endogâmico e em algum nível exogâmico. Você sai de algumas bolhas ao se conectar com outra pessoa, mas provavelmente conhece ela de outra bolha. É normal. Porém a sua família é o grupo primário e o mais fundamental. Todo relacionamento que você tiver vai te colocar em contato com outra bolha, que é a família de seu parceiro, a menos que seu parceiro seja sua família. Aí absolutamente nada vai mudar, e ninguém vai entrar em contato com ninguém.
A sociedade prolifera quando pessoas que vem de lugares muito diferentes, se conectam, trocam perspectivas, e pelo ato de se tornarem família, tocam contatos, laços, e fazem duas famílias se conectarem. E a exogamia num geral é benéfica pra sociedade. Porém, por questões políticas, o ser humano se tentar, vai adorar forçar algum nível de endogamia, para poder manter a sociedade separada em dois lados. E garantir que certas misturas sociais jamais sejam feitas.
Motivo pelo qual reis e rainhas publicamente realizavam o incesto, pra manter a endogamia absoluta, e tornar aliança e laços com a família real inacessível a todos. O incesto sempre foi um tabu, mas é histórico que ele foi publicamente realizado como um ato político, e o ato político é a extrema endogamia, firmar uma família real como uma grande bolha onde ninguém jamais entrará e de onde ninguém jamais sairá.
O motivo do tabu é esse! Em grande resumo, te forçar a sair de casa pra pegar alguém. Te forçar a interagir o mínimo com gente de fora da família, e ter o mínimo de contato com gente de fora, pra poder ter sexo.
Pois bem, isso estando estabelecido. Isso não é a mesma coisa que os conceitos japoneses de uchi e soto. Isso é outra coisa. Porém isso tem rimas. E quando a gente mistura essas rimas com a maneira como a ficção japonesa do gênero romance trabalha o uchi e o soto que essas rimas ficam estranhas.
Mas em resumo, uchi é a palavra japonesa pra “dentro” ou “lado de dentro”. E soto é a palavra japonesa pra “fora” ou “lado de fora”, e esses termos servem pra designar quem são as pessoas do seu grupo e quem são as pessoas de fora do seu grupo, e é um conceito importante pra estabelecer especialmente o nível esperado de formalidade com uma pessoa e o tipo de intimidade que pode se demonstrar.
Então você trata as pessoas de dentro diferente de como você trata as pessoas de fora. E as pessoas de dentro são sua família, seu clube na escola, seus colegas de trabalho…. mas isso tudo é um conceito relativo. Em uma empresa, seus colegas que trabalham na mesma sessão que você são seu uchi, eles estão do lado de dentro, mas seu chefe é soto, ele está do lado de fora. Porém quando você conversa com alguém de fora da empresa, um cliente, por exemplo, aí na frente do cliente, seu chefe é uchi, e o cliente é soto.
E muito do nível de tratamento de como você trata as pessoas deriva dessa noção, de quem está dentro e de quem está fora. Voltando pra animes e mangás: muito do romance escrito em animes e mangás faz um uso muito forte de expressões de tratamento na hora de escrever romance.
Justamente porque um bom romance, tem os protagonistas tentando se tornar mais íntimos de seus crushs. E com isso, estar ciente e refletindo a respeito de que expressões de tratamento eles podem ou não usar, e se eles estão se aproximando o suficiente pra poder parar de usar um honorífico ou começar a usar um primeiro nome, é um assunto que os mangás de romance abordam pra cacete.
Por isso os conceitos de uchi e soto estão sempre presentes. Afinal, em um romance não-incestuoso normal. Em um romance que comece com o bom e velho meet cute (encontrar a linda, romances que iniciam uma cadeia de eventos com os dois protagonistas se encontrando casualmente). Pois bem, os personagens ao longo da história farão toda a jornada para deixar de ser soto e virarem uchi. E nos termos mais extremos, pois a jornada vai começar no nível “completos estranhos, que nunca ouvira falar um no outro” e vai terminar com “esses dois são um único núcleo familiar, pois se casaram”, passando por uma série de meio-termos e pela necessidade de adequar suas formas de tratamento com a passagem por esses meio-termos.
Agora! Muitas histórias de romance têm rivais. E uma dinâmica muito comum é justamente: estamos acompanhando a jornada de uma mulher, tentando de tornar uchi do crush aos poucos, e ela topa no caminho com a presença de uma mulher que já é uchi, tentando intimidar a forasteira. Esse papel inúmeras vezes foi cumprido pela irmã do protagonista, marcando território, e sem explicitar um literal desejo sexual de transar com o irmão, verbaliza uma obsessão por seu irmão e por ser a única mulher da vida dele, sentindo que vai perder a conexão caso seu irmão namore.
E é aí que entra a rima entre uchi e soto, com endogamia e exogamia. Quando o roteirista percebe que ele quer fazer o dilema do protagonista ser trazer alguém do lado de fora pro lado de dentro ou ficar com a mulher que já domina perfeitamente o lado de dentro, ele está trabalhando a maneira como a personagem de dentro já tem o vocabulário e a intimidade necessária que a forasteira não tem, e intimida ela, que tem um longo caminho. Mas está também tentando o protagonista a endogamia, a cogitar não furar suas bolhas sociais pra buscar novas parceiras, priorizando parceiras que já estão lá.
E se essa rival morar com o herói dessa romcom, aí essa rival existe no mais privado circulo social possível, no uchi mais uchi de todos. Na endogamia mais endogâmica.
E isso gera tensão, faz o plot funcionar, e dialoga com vários temas.
E apesar dos roteiristas não quererem admitir que querem por incesto no mangá deles, muitos querem contar exatamente esse tipo de conflito. Muitos querem fazer a heroína se sentir mal por nunca ter o nível de intimidade que a irmã do herói tem, como se fosse uma competição.
E é por isso que mesmo que eles insistam em verbalizar alguma merda pra falar “tecnicamente, meu mangá não tem dois irmãos de sangue fazendo sexo penetrativo nem mesmo offscreen”, o mangá ainda quer brincar com o centro do tabu. O mangá quer se aproveitar do valor dramático e cultural do peso do lado de dentro e do lado de fora para causar conflito em uma obra, pra fazer obras em que o protagonista fique diante da tentação de priorizar a relação mais endogâmica ao seu alcance e rejeitar a exogamia.
E se existe uma opção romântica no seu mangá fazendo isso, o seu mangá está brincando com os temas incestuosos, não importa o quanto alguém verbalize que “mas é só minha irmã de criação”.
Mas isso tudo coloca outro arquétipo fictício em uma posição bem desconfortável.
E como fica a amiga de infância do protagonista nisso tudo?
Todo esse papel que a irmãzinha supostamente curte, pode hipoteticamente ser praticado por outro arquétipo muito utilizado em comédias românticas. Que é o da amiga de infância.
A amiga de infância, mais vezes do que não é retratada como uma vizinha, que é parte da vida do protagonista desde muito antes da história começar. Ela chama ele por um apelido fofo, ela é super conectada e próxima dos pais dele, ela passa muito tempo livre na casa dele. E a amizade de infância existe em uma escala pessoal alheia às performances que existe na socialização do lado de fora. Independente de qual é a persona que os personagens projetam na escola, é só fachada, os amigos de infância veem a verdadeira face um do outro, e é uma face que só eles veem.
E ela é apaixonada por ele, o papel dela é o mesmo papel descrito acima, o de se sentir intimidada com a perspectiva de uma forasteira roubar sua atenção, e o de guiá-lo pra procurar romance dentro do uchi e ignorar o soto. O que significa que pros fins políticos, o papel dela é ser somente um agente da endogamia, mas sem o parentesco, o papel de guiar o protagonista a se casar dentro do círculo interno que ele formou na primeira série, e a não cogitar se aproximar das colegas de sala do colegial.
Ou seja, na perspectiva funcional, tem uma intersecção muito grande de qual é o papel que uma amiga de infância e que uma irmãzinha ocupam em um mangá de romance. Aliás, a intersecção é tão grande que eu espero que você esteja se perguntando “mas porque caralhos alguém escreveria um personagem que é uma irmã incestuosa, se tudo poderia ser resolvido somente com a amiga de infância e remover o incesto do rolê?”
E essa é uma pergunta excelente, eu não tenho a resposta pra ela, mas a situação da amiga de infância ficou estranha com isso, porque tem algumas obras que tem ambas.
Romance harém é foda, esse o bagulho se alongar, eventualmente entra todo mundo no harém.
E as vezes você vai notar que a irmãzinha e a amiga de infância são colocadas como um par separado no harém, quase como se tivesse nas festas a mesa das uchi e a mas das soto, e elas interagissem mais entre elas.
Existe um clichê de amigas de infância que é muito usado que é o de ter feito ela sair da vida do protagonista, pra poder ir pro exterior, ou virar uma idol ou pra sei lá qual motivo. Mas eles pararam de se voltar e ela voltou agora, toda crescida. Ou seja, o protagonista pulou a puberdade dela, e o protagonista observa em choque que aquela memória da infância agora é uma mulher crescida. O que significa que a amiga de infância não necessariamente cresceu junto do protagonista, mas ela é um vestígio de quem ele era na infância.
O que vem de um papel importante de amigas de infância e de irmãzinhas, das duas em histórias. Ser uma âncora, pro protagonista lembrar de onde ele veio e o que ele era, diante de novas experiências. Ter uma marca do passado presente pro protagonista ter com o que comparar o futuro.
E sempre me marca que em Oreimo, o exato mesmo anime que inspirou o termo Incesto Oreimo, tem em sua reta final, a irmãzinha e a amiga de infância do protagonista literalmente saindo no soco pelo cara.
Lembram que eu falei que uchi e soto são relativos? A Irmãzinha coloca a Amiga de Infância e seu lugar, intimidando-a, que a casa do lado ainda é mais longe que o quarto do lado, e que ela não é 100% parte da vida doméstica do personagem.
Existe também um estranho memio-termo dos dois arquétipos, não tão usado, mas presente que é a figura da prima. Uma parente que é distante o suficiente para não agitar nenhum tabu da cultura japonesa, mas que é próximo o bastante pra se bobear até render um onii-chan na forma de tratamento. Primas podem aparecer como opções românticas como essa ideia da amiga de infância com o mínimo de parentesco com a qual se dividiu intimidades familiares. Mas a prima não é um arquétipo de romcom, e ela é mostrada como uma amiga de infância quando aparece.
Mas ainda sobre a posição estranha o trope da amiga de infância ganha quando comparamos o uso do arquétipo com o uso do arquétipo da irmã, temos essas situações em que a linha entre as duas fica completamente embaçada, que é quando um dos personagens se torna órfão e é adotado pela família do amigo de infância.
Tem dois exemplos muito grandes nisso daqui. Temos Eren e Mikasa (de Shingeki no Kyojin) e temos Winry e Ed (de Fullmetal Alchemist), que foram 100% incorporados no ambiente familiar do amigo de infância, eles moram juntos e foram criados juntos. Mas apesar de se viverem como irmãos adotivos, eles, pra manter o romance não-incestuoso, negam qualquer rima entre o que eles têm e relação de irmãos e seguem insistindo no rótulo de amigos de infância.
E com o Eren e a Mikasa o debate pipoca de tempos em tempos. Mas com o Ed e a Winry ninguém questiona, do Ed ter sido adotado pela Pinako, crescido na casa da Pikano. A gente fala como se ele tivesse casado com a garota da casa ao lado, mas foi com a garota do quarto ao lado. Inclusive, a foto de família deles foi preservada pela Pinako.
E aí? Ed e Winry são irmãos? O que torna alguém irmão? O Ed nunca chama ela de irmã, mas abertamente chama ela de família. Mas que tipo de família? Qual parentesco exato ele pensa?
Complicado, e não seria complicado no vácuo, é complicado, porque a situação do Ed e da Winry não é muito diferente da situação do Natsuo e Rui em Domestic na Kanojo, é complicado, pois está em uma mídia que realmente gosta da ideia de namorar a garota do quarto do lado, em achar parceiros sexuais na mesa do café da manhã e em não precisar sair de casa pra namorar. Porque no fundo ser família ou não é uma opção pra eles. Natsuo e Rui aceitaram o rótulo de irmãos mesmo se pegando. Ed e Winry nem olham pra esse rótulo, só se consideram família.
Talvez eles se considerem primos, uma vez que da maneira como eles enxergam, eles dividem uma mesma avó, mas são órfãos de pais diferentes. É uma situação que brinca muito com quais são as áreas cinzas nessa separação quando os mangás começam a querer familiaridade doméstica e romance ao mesmo tempo.
O que me leva a mais um ponto importante que é: qual é o ponto disso tudo? Que diferença faz, pra história, se o personagem namora a menina no quarto ao lado, ou a aluna nova que veio do outro lado do país?
Quais mensagens um romance passa, com base em qual parceira ele escolheu.
É de conhecimento popular que amigas de infância perdem e ficam sem o protagonista nas histórias de romance muito mais do que ganham a batalha pelo seu coração. E isso é uma meia verdade.
Embora em haréms e triângulos amorosos, a amiga de infância costumem perder, em mangás de luta e aventura, não é nada incomum o protagonista ficar com sua amiga de infância. E isso se deve porque são mangás de gêneros diferentes, e com isso o romance tem papel diferente.
Em um mangá de batalhas, depois que o personagem saiu da vida cotidiana, explorou o que podia explorar, abriu a mente, formou inúmeros amigos e se envolveu emocionalmente com uma causa muito maior que ele e com uma história que atravessa os séculos, faz sentido o final ser ele voltar pro lugarzinho de onde saiu pra descobrir que a vida que ele deixou pra trás seguiu esperando ele voltar para acolhê-lo de volta. E casar-se com sua amiga de infância é a marca disso.
Mas em uma história de romance, geralmente o lance é exatamente esse. Esses personagens não vão entrar em uma grande aventura, o romance é a aventura deles. E geralmente os triângulos amorosos pesam duas opções, a zona de conforto ou a aventura.
O Tv Tropes chama isso de Betty e Veronica, em homenagem aos dois principais interesses românticos de Archie, protagonista de um popular quadrinho americano que leva o nome de seu protagonista e nunca vingou no Brasil. E isso não tem nada a ver com incesto ou amigas de infância, é uma tendência do romance no geral, qualquer romance, e por um bom motivo: é um excelente utensílio narrativo.
A Betty representa um amor puro e sincero, ela é fofa, acessível, bem-educada, doce e não oferece nenhum desafio ou questionamento pro protagonista, ela representa a zona de conforto, em que se tudo ocorrer da maneira que está ocorrendo, a Betty vai ficar com ele por inercia. E a perspectiva de que ficar com ela sugere uma vida doméstica normal e agradável.
A Verônica representa um amor intenso e carnal, ela é selvagem, aventureira, não convencional, ela desafia o protagonista a querer quebrar algumas convenções que regeram a sua vida. Se o protagonista quiser realmente ficar com a Veronica, ele vai ter que tomar as rédeas da própria situação e sair do trilho traçado diante dele. E a perspectiva é de que ficar com ela levará a um romance diferente e longe das expectativas tradicionais.
E talvez você esteja pensando: “Pô, muito mais daora a Veronica”, mas não necessariamente. A real é que depende justamente de qual é a moral da história. Se a história quer que o protagonista fique na zona de conforto ou não. A dicotomia da Betty e da Veronica é que elas existem em relação uma a outra, e nenhum arquétipo é a Betty se não estiver do lado da Veronica, e a maioria das duplas de interesses românticos vão fazer um dos dois pender pra Betty e outro pender mais pra Veronica, pois isso é o que elas são se comparados a outra.
Dito isso, muita gente ficou muito puta que o Ichigo não ficou com a Rukia e escolheu sua amiga de infância Orihime, justamente porque passou a impressão de que, tudo o que a Rukia apresentou pra ele e dividiu com ele e o mundo todo pro qual a Rukia puxou o Ichigo ficou em segundo plano e que o laço dele com a vida pré Rukia era mais forte. E foi uma guerra de ships forte essa. As pessoas se importam muito com isso, pois faz diferença ver quais aspectos da vida dos heróis será validada.
E isso não é restrito a gênero, triângulos amorosos em que uma mulher deve escolher entre dois homens os homens também são Bettys e Verônicas. Em Twilight o Edward é a Betty, e o Jacob é a Verônica. Em Titanic o DiCaprio era a Verônica e o sei-lá-o-nome engomadinho era a Betty.
Mas voltando pros animes e mangás, muito de qual é a moral da história depende se a Betty ou a Verônica foi a escolhida. E quando um anime quer que a vitória seja da Betty, a mensagem é pra que o protagonista apreenda a apreciar as coisas que ele tem e dar valor pra vida atual dele. Entenda que a felicidade esteve debaixo do nariz dele o tempo todo. Uma das formas de um anime/mangá tem de fazer isso é através de um casamento que foi ou arranjado, ou apressado, mas que prendeu o protagonista a essa garota antes dele gostar dela, e a jornada de conhece-la melhor, e rejeitar as suas outras opções pra ser fiel ao que ele já tem é essa jornada, de ficar na zona de conforto com a qual ele se acostumou ao longo da história, de ficar com a tradição.
Outra forma popular é quando tem uma Prometida na Infância, que não é exatamente uma amiga de infância, pois é uma garota que o protagonista não sabe direito quem é e só viu uma vez na vida, mas que ele quer reencontrar e começar o romance por estar apegado a esse sentimento.
Esses são os tropes que se usam pra que a Betty vença.
Agora quando a Veronica vence, aí o normal é que a Betty seja uma amiga de infância, representado a zona de conforto que o herói deve quebrar. Representando uma mesmice da qual ele deve sair e explorar novas opções.
Como em literalmente tudo que é ficar olhando esses tropos a fundo, tem exceções. E tem maneiras de se roubar. No final de Nisekoi, o protagonista casa com a amiga de infância. O que é fácil, pois as duas meninas do triangulo amoroso eram amigas de infância. É que nem em Domestic na Kanojo, o protagonista casa com a irmã dele, pois ele tinha as duas irmãs dele no triangulo amoroso, então uma tinha que ser. Nada disso é uma regra, são tendências. E a tendência aqui é: o que dava conforto e paz pro herói quando ele estava na primeira série não é o que ele precisa agora.
E por isso as amigas de infância se dão tão mal.
E as irmãs? Nossa, mas essas são tão feitas pra se dar mal, que até mesmo em Oreimo, na obra que definiu a otakice incestuosa, a Kirino não fica junto do herói no final, em um final que é controverso.
Se você for procurar mangás que giram em torno de incesto você acha alguns que o incesto sugerido é concretizado.
Mas na maioria, em especial nas comédias românticas em que uma irmã que não sabe o próprio lugar se enfia no meio das opções românticas as chances dela são zero. São essencialmente uma amiga de infância com menos chance.
Pois raramente é bom storytelling, raramente um personagem que decide transar com sua irmã como maneira de resolver todas suas confusões amorosas, vai precisar crescer como indivíduo pra tomar essa decisão, e por mais que os autores queiram brincar com o tabu, eles acabam chegando nessa conclusão.
E só não chegam quando eles não querem fazer storytelling, mas somente brincar com um fetiche e vender pra jovens eremitas desesperados por escapismo em fantasias sexuais.
Conclusão:
As vezes eu estou na internet vendo as discussões de um mangá que possui uma trama ou subtrama incestuosa entre dois irmãos, e eu vejo alguém se fazer a seguinte pergunta: “mas por que que é errado, se eles não estão machucando ninguém?”. E infelizmente essas pessoas estão no reddit ou no twitter cercadas de pessoas que não podem realmente responder essa pergunta. E muitas tentam mesmo assim e aparece muito take errado.
O que é compreensível. O nojo que a gente tem de incesto é quase instintivo, então tendemos a querer não nos informar melhor. E só presumir coisas, mas aí alguém faz perguntas, e se essas perguntas não forem bem respondidas, vira um desastre.
E a resposta é que: temos que nos educar a valorizar a exogamia e evitar a endogamia nos limites do possível. Vamos usar a busca por um parceiro como modo de sair de nossas bolhas e precisamente: saiamos de casa, caralho! Estamos hoje com essa cultura de machos alfa que zoam personagens que se metem em roubada por causa de mulher como se fossem homens fracos. E sério, a mulher é o de menos aqui, tudo que servir pra te meter em uma roubada, pra te atrair pra ambientes não familiares é bom, precisamos deles.
Mas vamos lá: autores de ficção tem poderes imensos de dar sua imagem e semelhança a tudo. Um autor de ficção pode dar vida àquilo que não tem vida. Como por exemplo quando permite que um boneco de madeira esteja vivo em Pinocchio. Um autor também pode dar voz ao que não tem voz, ao fazer flores cantarem. Um autor pode dar inteligência, racionalidade, linguagem e política a um animal selvagem que não tem nada disso, e fazer leões debaterem a sucessão do trono. E um autor de ficção pode fazer uma pessoa em uma posição em que ela não consentiria um ato sexual na vida real, simplesmente consentir, pois ela foi escrita pra não ter as travas e ter a maturidade necessária pro ato.
E isso é escrita mágica. E aí quando o leitor lê ele pensa: “mas teve consentimento, nada de errado ou anti-ético”, e pessoalmente acho essa uma boa regra pra se aplicar na vida real. Consentimento é a base pela qual julgamos as relações sexuais como éticas ou não éticas, e praticamente todos os atos que são crimes e são problemáticos, envolvem a falta de consentimento e/ou uma das partes não sendo capaz de consentir ao ato (como crianças, no exemplo mais famoso que como todo mundo sabe, não tem a capacidade de consentir com essas coisas). Mas na ficção o autor só remove essa parte pela maneira como são caracterizados, e bum! Isso sumiu, o consentimento está explícito na obra.
Porque é sério! Mantenho o exemplo que eu dei no texto passado. Quando o Brian de Family Guy pega uma mulher humana, o que está sendo descrito não é abuso animal, o Brian não está escrito pra ser interpretado como um animal irracional sendo abusado e sofrendo violência, pois o Seth MacFarlane escreveu ele pra ter uma mentalidade que não condiz com como deve ser a nossa relação com cachorros.
E isso significa que quando vemos essas relações que são por definição cagadas, problemáticas e criminosas na realidade sendo tratadas na ficção como normais graças ao poder do personagem de consentir algo, pois o autor o escreveu pra ser capaz disso, a gente tem que olhar o que fetiche o autor quer trabalhar. O que ele busca tentando ver romance em algo abominável? No caso de Family Guy não é nada, é só que ele fez um cachorro ser um avatar dele, e como todo comediante do mundo, ele faz o avatar dele comer muita mulher em suas histórias, pois todo comediante ou faz piada se gabando do quão diversa é sua vida sexual, ou faz humor auto-depreciativo do quão diversa é sua vida sexual.
Mas quando se trata desses mangás de incesto, um fetiche quer ser trabalhado. E é o fetiche pela fácil acessibilidade e pelo menor esforço. Pela ideia de que a sua mulher perfeita pode ser uma que já mora que você, e que te ama desde que ela nasceu, ela só é um tiquinho tsundere. Mas você já mora com uma mulher que te ama, então pra que sair de casa?
Já viram o episódio de Futurama em que o Fry constrói um robô idêntico a Lucy Liu e programa ele pra amá-lo, e as pessoas precisam separar o Fry desse robô, pois se todo mundo puder só ter um clone-da-Lucy-Liu-que-te-ame-incondicionalmente na própria casa, ninguém vai tentar mais socializar ou integrar a sociedade? Pois é, esse é o fetiche que se vende aqui. Por isso que nunca é a irmã de verdade do leitor ou escritor, assim como não é a Lucy Liu de verdade que beijou o Fry.
E pra fins de crescimento pessoal, é realmente ideal que a gente não ache que já tínhamos conhecido todas as pessoas que precisamos pra nos fazer completos quando estávamos na primeira série, e depois disso nenhuma novidade é necessária.
E é necessário entender que o fetiche é esse, e não o conceito de incesto no vácuo, porque quando o mangá enfia “não tem relações sanguíneas”, e o otaku mente pra si mesmo que não está lendo nada incestuoso, o exato mesmo fetiche segue sendo vendido.
E eu não estou aqui pra cagar no fetiche dos outros, mas pra falar que na real, o mundo está gradativamente pior, e a vontade de se trancar em casa e não sair mais bate. E o capitalismo é uma merda, ele faz o mundo ser competitivo demais, hostil demais, que você sinta que precisa ser julgado por méritos e produtividade e que seu valor é derivado do quanto você se destacou nesse Jogo da Morte. E isso tudo pode fazer com que pra algumas pessoas, sair e conhecer gente se torne uma tarefa hercúlea. Mas é justamente por isso que a gente precisa achar na arte algum estímulo pra nos ajudar a lutar e ir conhecer gente. Porque é importante construir laços. Quanto mais intimidadora é a sociedade, mais importante é achar a sua turma, achar gente pra se conectar e pra matar a solidão.
Especialmente na cultura japonesa. Onde o fenômeno do jovem que se torna um recluso social e se recusa a entrar na sociedade é algo que cresce em massa e a indústria otaku preda nesse público e em dar escapismo pra eles se sentirem bem com eles mesmos.
Nos perguntemos quantos mangás que fetichizam o incesto, também não celebram e incorporam esses escapismos como parte da obra e parte do que humaniza esses personagens. O quanto parece importante fazer os incestuosos serem otakus, gamers, aspirantes a mangaka, ou viciados em gacha.
Por isso, quando estamos imersos nesses meios, acho importante olhar de frente pra esse fenômeno, que é só questão de tempo pra aparecer em uma obra que você é fã, e quebrarmos os mitos. Não racionalizemos que “ah, mas eles não são incestuosos, pois ele é a reencarnação de não-sei-quem e ela é adotada”, é incesto sim, e você pode continuar shippando se quiser, mas olha pro que isso é sem usar tecnicalidades como muleta. É tabu por um motivo. A busca por romance não deve acontecer dentro de nossa própria casa. E esse fenômeno não rola porque os autores são todos tarados nojentos, mas porque tem uma indústria que incentiva essas narrativas pra predar nas vulnerabilidades de pessoas com problemas sérios.
Essa foi a minha parte da conversa, mas quero saber de vocês? Tem algum mangá com incesto que vocês gostem? O que estão achando de Oshi no Ko? Consideram Eren e Mikasa irmãos ou não? E costumam torcer pro herói das comédias românticas ache o amor dentro do círculo social no qual ele cresceu ou fora dele? Pra continuarmos esse papo temos os comentários. Eu não venho aqui fechar assuntos, eu venho começar conversas e espero que vocês continuem ela.
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