Black Lagoon – O peso do passado e a influência do presente.

B

Por que nós somos quem nós somos? Essa é a pergunta filosófica que vai guiar o texto de hoje. Afinal apesar de temos nossa personalidade e boa parte dela é nossa desde que nascemos, temos uma grande briga de influências na nossa vida. A nossa criação e o nosso presente. Nós temos a pessoa que nossos pais nos ensinaram a ser quando crianças conflitando com a pessoa que o presente exige que nós sejamos, e podemos pender para um lado ou pro outro ou mesmo para um terceiro lado que não tem nada a ver.

Mas o texto será uma reflexão sobre esse cabo de guerra entre onde nós estamos e de onde viemos como grandes influências para sermos as pessoas que somos. Para o quanto as circunstâncias do presente e do passado regem a nossa personalidade para além do nosso controle. E o quanto lados escondidos de uma personalidade podem florescer perante certas influências.

E para refletir sobre isso vou focar no mangá Black Lagoon, um dos meus mangás favoritos, um dos grandes exemplos da glamourização da violência e da fetichização de mulheres badasses (um subgênero conhecido como Girls With Guns), mas ao mesmo tempo um grande local para refletirmos um pouco sobre a condição humana.

Ambientado na fictícia cidade de Roanapur, na Tailândia, a história segue Rock (apelido de Rokuro Okajima), um ex-assalariado de uma empresa japonesa que após ser sequestrado por piratas em uma viagem a negócios e a empresa preferiu matá-lo a pagar o resgate, se juntou aos piratas que o sequestraram e passou a trabalhar no submundo do crime da Ásia.

Esses piratas do qual Rock agora faz parte são a Lagoon Traders, e pirata é um termo que eu uso pois são criminosos que atuam em barcos. Mas eles se descrevem como uma empresa de entregas, que locomovem qualquer coisa e qualquer um do ponto A ao ponto B de barco pelo preço certo. Sendo seu melhor e mais leal cliente a Mafia Russa.

Pois bem, a Lagoon Traders, é composta por somente 4 pessoas contando com Rock, e os quatro moram agora nessa cidade de Roanapur, uma cidade que é um grande ponto comum para todo o crime no sul da Asia se encontrar, e portanto um local onde sempre tem trabalho para eles. Roanapur é um inferno, onde a lei é inexistente, e a violência é a norma, onde todo mundo está se metendo em um negócio escuso que quer evitar testemunhas e a qualquer momento, pode estourar tiroteio no centro da cidade.

Enfim, onde eu quero chegar? Esse é um mangá que me atraí muito menos pelas suas cenas de ação, e muito mais pelos seus personagens. Pelo quanto eles são humanos e como cada um deles tem sua própria série de valores morais para se seguir. Como cada um deles tem uma visão própria do que é certo e errado, do que é honrado e vergonhosos e do que é justo e injusto, e atuam em uma cidade onde honra, certo e justiça aparentam não existir.

Não só os quatro da Lagoon Traders, todos os personagens da cidade, dos assassinos, aos traficantes aos mafiosos, são extremamente humanos e complexos, e tem perspectivas de vida muito distintas. E a maneira como eles operam suas perspectivas de vida em Roanapur é o que torna esse elenco tão rico e fascinante.

A primeira coisa interessante de se observar é que: Roanapur é uma cidade tailandesa. Black Lagoon se passa na maior parte do tempo na Tailândia, mas não tem um único personagem recorrente que seja tailandês. E olha que é o elenco diverso, temos chinês, japonês, mexicano, russo, romeno, vietnamita, indiano, só não tem tailandês. E isso é importante, porque mostra que Roanapur não é o tipo de cidade onde você nasce, é o tipo de cidade onde você vai parar depois que sua vida toma um rumo imprevisto.

Em Roanapur eles são bandidos pragmáticos, mas em algum momento eles não foram as pessoas que eles são em Roanapur, e como o fantasma dessa vida atua? No primeiro volume, Rock se declara um homem morto, no instante que decide ficar por Roanapur e não voltar ao japão.

Depois, a personagem Revy descreve os moradores de Roanapur como pessoas mortas, quando ela e Rock estão no japão, como zumbis que andam entre os vivos, mas já morreram.

Em um contexto diferente, a personagem Balalaika faz a exata mesma analogia, para um oficial do exército que ela descreve como vivo. A analogia constantemente repetida de que esses criminosos são pessoas mortas reforça que todo mundo ali teve uma vida que perdeu e fez uma vida nova na ilegalidade.

A metáfora de que viver nesse submundo da civilização é estar morto, carrega um significado de perda de uma vida, porém mais que isso, passa uma mensagem forte de não retorno. Uma vez morto não se volta a vida jamais, e é isso que cruzar essa linha significa. Ao mesmo tempo, todo mndo que está morto um dia esteve vivo, e é na morte que se pode olhar com objetividade sobre o que foi sua vida e o que ela significou pra você. No mundo dos mortos, muitos mortos passam muito tempo lembrando de quando estavam vivos. O mundo dos mortos e o mundo dos vivos formam dois ambientes de alta influência sob a personalidade de uma pessoa. E esse cabo de guerra entre essas duas vidas formam essas pessoas.

Quero falar sobre muitos dos personagens, eu poderia falar de todos, mas francamente, são tantos e tem um limite do quão grande quero que fique o texto, mas vamos começar pelos dois protagonistas. Rock e Revy.

Rock e Revy:

Rock e Revy estão sofrendo processos semelhantes de desenvolvimento de personagem em direções opostas. Por isso acho interessante falar dos dois ao mesmo tempo.

Rock era um assalariado japonês, e quando ele descreve o seu antigo trabalho ele diz que baixar a cabeça e se deixar humilhar era sua príncipal função. O que é um grande estereótipo de como é a vida em uma empresa japonesa, que Black Lagoon abraça forte. Quando Revy pergunta porque Rock se deixava humilhar, ele fala que reclamar podia causar problemas e ninguém quer causar problemas e que todo mundo no Japão vive nessa lógica. Nesse momento, Rock descreve que sua completa falta de dignidade do trabalho é um fruto claro de seu país de origem.

Tudo isso se quebra quando ele tem que lutar pra não ser assassinado pela própria empresa. Nesse instante um outro Rock começa a florescer. Ou melhor, um Rock que não tinha espaço no mundo corporativo japonês ganha a chance de se manifestar: O homem que se enche de adrenalina com apostas arriscadas. Que não só sugeriu que a Lagoon Traders lançasse a sua lancha de encontro com um helicóptero torcendo pros torpedos caírem em cima do helicóptero pela lei da gravidade. Mais que isso, mas olhando com um sorriso e um dedo do meio enquanto acontecia.

Ele adotou o nome Rock, e abandonou não só sua empresa, mas sua vida inteira. Quando ele visita o Japão, como intérprete entre uma negociação entre a Mafia Russa e a Yakuza, ele hesita em rever sua família no seu tempo livre, não querendo ter mais contato com nenhum elemento de sua vida no japão. Quando ele diz que todo mundo no japão vivia de um jeito que ele desprezava, ele abandonou completamente a própria cultura, o que é simbolizado pela anglicanização de seu sobrenome.

Quando Rock é sequestrado por Takenaka, um japonês que buscando uma revolução trotskista se tornou um terrorista e hoje está exilado do país. Takenaka diz que ele e Rock, como dois fora-da-lei japoneses atuando nos mares asiáticos, são iguais. Mas Rock diz que eles não são iguais, pois Takenaka é nostálgico em relação ao japão e tem saudades do país, e que Rock não foi expulso do japão. Ele literalmente deu as costas para sua origem.

E o que floresceu no lugar? Um homem que tenta ao máximo manter a ética e ser um homem bom no antro da maldade humana. Mas também um homem que sente um grande deleite em negociar e manipular os moradores da cidade e que adora fazer apostas com vidas. Existia um monstro da manipulação de seres humanos dentro de Rock que precisou de Roanapur pra poder se manifestar. Enquanto o Japão só trouxe a tona um Rock submisso que o próprio despreza. Roanapur trouxe a tona um Rock manipulador e as vezes cruel, mas que faz o Rock se sentir muito bem.

Ele vive na penumbra, como vários personagens observaram, ele se recusa a cruzar a linha do não-retorno, e tenta manter algum senso ético em si, sem ir pras trevas. Mas existe um monstro capaz de fazer ele se sentir em casa no inferno dentro de Rock, e quanto mais tempo ele passa em Roanapur, mais esse monstro se alimenta.

O que nos leva a Revy, colega de trabalho de Rock, e sua melhor amiga. Inclusive queria que ela e Rock oficializassem logo que são um casal, pois queria ter colocado os dois no meu top15 casais da ficção. Adoro esses dois. Enfim.

Revy é americana. E sua infância sempre foi simples: matar e roubar. Ela assassinou seu pai abusivo, foi estuprada por policiais, e desde a infância sua vida é uma chacina sem sentido. O que formou essa mulher cínica e violenta. Que não acredita que exista justiça, ou moral no mundo, e que a única lei é que quem tem o melhor arsenal bélico tem mais conforto.

Obviamente diferente de Rock esse tipo de vida não é confrontado em Roanapur, e a primeira vista ela não tem que reinventar sua vida na cidade. Pelo contrário, o fato de que ela só fala com armas muitas vezes é questionado na cidade, como se ela estivesse sendo a mesma menina armada que era nos EUA, mas Roanapur exigisse um pouco mais de know-how do crime. Como visto no fato de que ela é incapaz de negociar com traficantes de armas sem ser apontando uma pistola. O que é citado pela traficante como amadorismo.

Quando Rock entra na vida de Revy ela começa a mudar. Ele que não tem medo algum de levar um tiro dela, pois achava que abaixar a cabeça para ela só porque ela pode matá-lo era reproduzir a vida que ele levava no japão, força Revy a repensar seu modo de ver o mundo. E depois de brigarem feio, eles ficam muito próximos.

O quão próximos? Eu gosto de pensar que eles já são um casal e o mangá só não mostra isso. Do beijo de cigarro, ao Rock motivar Revy a ajudá-lo em suas missões falando “Come on Baby, Light my Fire.” para pegar de jeito nela. De qualquer jeito, mesmo se não estiverem, é claro que Revy gosta muito do Rock, mais do que ela gosta de qualquer pessoa na cidade, e quer protegê-lo dos riscos que ele vive. E consequentemente, começa a usar mais a cabeça e se sensibilizar em relação ao que acontece no mundo.

Se Roanapur não transformou uma atiradora impulsiva em uma criminosa racional por anos, a companhia do Rock transformou Revy de uma atiradora impulsiva, em uma guarda-costas empática, E podemos ver que quanto mais Rock se corrompe mais Revy se purifica, ao ponto que imagino que eventualmente os dois estarão no meio termo do que eram quando começaram.

Mas o ponto é que a cidade de Roanapur não mudou Revy, mesmo que devesse. A Lagoon Traders não mudou Revy. Mas Rock mudou. Uma influência de uma pessoa muito importante teve um impacto imenso na personalidade de Revy.

Ao ponto que ela apresenta cada vez menos resistência em seguir os planos de Rock para salvar pessoas na cidade. E todo mundo na cidade meio que já presume que ela vai ser o poder de fogo dele. Além é claro de advogar por Rock para os demais habitantes da cidade.

A melhor maneira de ver como Revy está se amolecendo graçar a Rock é a maneira como ela melhora sua postura com crianças. Quando ela conhece Garcia, ela odiava crianças e deixa isso bem claro que não tem paciência para lidar com elas. Porém no arco do Japão, ela passa o tempo e se diverte com um grupo de crianças japonesas, para ser flagrada por Rock brincando com crianças e saindo correndo com vergonha, mostrando que existe uma boa Revy escondida dentro dela que o Rock consegue trazer pra fora.

Balalaika:

Balalaika é líder da Hotel Moscow, braço da Máfia Russa na Tailândia. A Mafia Russa é uma das quatro maores máfias de Roanapur, e Balalaika está no centro do crime organizado. Mas ela nem sempre foi uma mafiosa. Balalaika originalmente era uma militar e ela se define muito por isso.

Ela e sua tropa foram expulsos do exército no Afeganistão durante a invasão soviética do Afeganistão na guerra fria. Pelo crime de proteger uma criança civil no campo de batalha, insubordinação. Ela foi pro crime depois de ter seu maior orgulho tirado de si completamente.

Enquanto Rock vive dando as costas pro seu passado. E Revy se força a pensar que sua vive igual vivia no passado para não se adaptar. Balalaika tem uma saudade inacreditável de seu passado, que não está em seu alcance, e é visível o quanto ela sente falta de ser uma militar.

Todos seus ex-subordinados no exército trabalham para ela na mafia russa, e ela conduz negociações como operações militares. Ela usa sua farda em momentos especiais. E parte de seu sucesso está na sua habilidade de organizar ataques táticos a seus inimigos com uma precisão militar. Ela é uma ex-militar, e nunca conseguiu desapegar disso.

Apesar disso, ela sobrevive diariamente sendo mafiosa. E a mulher expulsa do exército por não matar uma criança, hoje mata uma criança que jogue contra ela sem hesitar.

O momento mais interessante de Balalaika é justamente quando o exército americano precisa ser escoltado pra fora de Roanapur, pelo bem da cidade. E Balalaika é obrigada a decidir se ela era uma militar ou uma mafiosa. Aquele exército, simétrico ao exército dela em inúmeros níveis, porém americano, era a personificação que ela jamais poderia sonhar do inimigo que ela jamais combateu, pois a guerra fria jamais esquentou. E o que ela mais sonhou no mundo era entrar em combate direto com eles, exército contra exército. Só pra testar qual exército era superior, o soviético ou o americano. Só pra decidir de uma vez por todas. Só para realizar seu sonho como militar.

Mas como Mafiosa era interessante que o exército saísse da cidade o mais rápido possível, e levassem seus problemas com eles. Balalaika é e sua tropa pessoalmente escoltam o exército americano pra fora da cidade, e a experiência militar dela e a semelhança entre os exércitos servem para ela e o major americano entrarem rapidamente em sintonia, e a operação ser um sucesso.

No fim da operação ela desabafa. Ela se revolta e se remói de inveja, do Major Americano, com um histórico militar tão próximo do dela, um herói que desobedeceu ordens superiores e protegeu uma criança civil no Vietnã… por que ele ainda existe e ela não mais? Porque a diferença entre países foi tão essencial para ela perder tudo e ele seguir na ativa. Como ela descreve: “Os mortos têm inveja dos vivos, uma inveja corrosiva.”, e até hoje, não importa o quão competente ela seja na mafia, ela sonha com o dia que só vai poder voltar a ser soldado.

E transfere sua identidade do passado pro trabalho do presente sem hesitar. Pra ser vista como o que ela sonha ser e não o que ela é.

Roanapur mudou Balalaika, e é fácil ver que a capitã expulsa por proteger uma criança no campo de refugiados, não cometeria metade das atrocidades que ela comete pra fortalecer a Hotel Moscow, mas existe uma resistência interna, uma linha dentro dela que ela nunca cruza, que é a de nunca se acomodar com Roanapur, e sempre sonhar o que ela não pode ter, o retorno a vida de militar. De certa forma a extrema antítese do que o Rock é.

Hensel e Grettel:

Porra, esses dois são bizarros. As crianças que cometeram os massacres mais sanguinários da história da cidade. Dutch os comparou ao Charles Manson e Ed Gein. Gente que deixa uma onda de mortes tão irracional e psicótica que não tem como o mundo do crime organizado, por ser organizado, ver com bons olhos. Os criminosos que são persona-non-grata em qualquer lugar. E o pior, duas criancinhas, gêmeos, em um grau de psicose extremo demais, é de deixar qualquer um desconfortável.

Essas crianças que não passaram pela puberdade, além de desejo assassino psicótico. Estão em uma relação sexual incestuosa um com o outro. E além disso, eles alternam suas identidades diariamente, invertendo qual dos dois é Hensel e qual dos dois é Grettel com o passar de uma peruca. Creepy não chega nem perto de descrever o quanto eles foram além.

A história de como eles ficaram assim, é assustadora por ser simples. Eles foram sequestrados da Romênia, onde ficaram tempo demais fazendo filmes snuff, foram estuprados na frende da câmera e assassinaram outras crianças na frente das câmeras para fazer os vídeos mais podres do submundo. Eventualmente eles surtaram, e mataram seus captores, e passaram a viver um ciclo de assassinato, acreditando que a cada pessoa que eles matam eles ficam mais distantes da própria morte.

Curiosamente, depois que Hensel morre, nas mãos de Balalaika que o tortura enquanto assiste ele morrer, em vingança aos subordinados dela mortos pelo moleque, Grettel decide fugir, e usa a Lagoon Traders pra escapar. Nesse momento ela se depara com Rock, s única pessoa no mundo que já empatizou com ela.

Rock escuta a maneira bizarra e distorcida com a qual ela vê o mundo, e a abraça, e fala que o mundo não é nada disso, é um lugar bonito e feliz, onde crianças devem ser felizes. E Grettel perante a bondade e empatia de Rock, decide recompensá-lo…. sexualmente. Nesse momento Rock vai embora enojado e desesperado com o quanto aquela menina está além do conserto. Em um estágio de psicose que não tem volta. Só tem “e se…”, “e se alguém tivesse cuidado dela?”, “e se alguém tivesse se preocupado com ela?”, “e se o mundo não tivesse se juntado em volta desses dois pra transformá-los em monstros?”, mas como Benny diz pra Rock: Nada disso aconteceu, e por isso, não tem nada que possa acontecer agora.

A origem de Hensel e Grettel se infiltraram tanto em sua mente, em uma série de traumas tão horríveis, a um ponto que não existe um conserto. Não tem como Grettel voltar a se tornar uma pessoa sã e ser capaz de conviver com a pessoa que ela se tornou. A insanidade é o que protege sua mente de encarar a si mesma, as novas chacinas servem de justificativa para as anteriores. Eles foram longe demais e não tem nova ambientação que mude eles, pois o mundo não tem um lugar pros psicopatas que desconhecem o limite.

Ela é morta traída pelo coiote com quem a Lagoon Traders a deixou. E com seu cadáver num caís a céu aberto, o único que é capaz de olhar pra ela e ainda ver uma menininha de quem tudo lhe foi tirado, é o Rock, que teve empatia por ela até o fim.

Takenaka:

Meu personagem favorito desse mangá aparece por seis capítulos e some pra sempre. Ele nãoo mora em Roanapur, mas acho ele fascinante, simplesmente. Pena que nunca retornou, mas o futuro é misterioso, se até mesmo a Jane voltou… eu posso sonhar.

Takenaka foi um membro do Exército Vermelho Japonês. Se envolveu em ataques terroristas e é procurado pela justiça no Japão, motivo pelo qual não pode voltar. Um grande trotskista, Takenaka tem que testemunhar hoje que o movimento politico pelo qual ele matou não existe mais, e a única maneira que ele vê de conseguir lidar com o fato de que não pode voltar pra casa e não tem pelo que lutar, é lutando mesmo sem causa. Ele apostou todas suas fichas que ocorreria uma revolução popular simultânea em todo o mundo, e ele perdeu essa aposta. E nada do que ele fez deu um resultado.

Takenaka se alia a qualquer causa terrorista anti-imperialista independente de qual seja. Só pra poder seguir na luta, porém ao mesmo tempo, ele não tem envolvimento emocional nenhum nos grupos ao qual se afilia, motivo pelo qual ele tem a racionalidade para recuar e parar operações que não vão triunfar e aguardar o dia de um novo ataque.

Ele se descreve como um padre que prega para ninguém. E quando questionado sobre o porque prega se não existe quem ouça, é para ele mesmo acreditar que os dias passados em que pregou não foram em vão. E descreve sua profissão como “inimigo público do mundo.”

Um homem quebrado, sem crenças ou grupos que o representem, que transformou terrorismo em uma profissão, só para não sentir que ele abriu mão de tudo em sua vida por nada.

De certa forma ele está no mesmo estado que a Revy. Incapaz de parar de fazer o que fez a vida inteira, apesar do contexto em que ele vive agora dizer que ele devia. Um homem preso ao passado, que diferente da Balalaika, não consegue criar conexão real com os grupos que ele ocupa no presente pra prencher o vazio.

Roberta:

A personagem da Roberta é o template clássico de um bom filme de ação americano. Guerrilheira da FARC conhecida como “Cão de Caça” pelo seu talento de rastrear o inimigo. Depois de matar muitas pessoas, ela é acolhida por um senhor pacifista que a tira dessa vida. Ela se envolve com sua família e se torna uma pessoa mudada e pacífica. Até o dia que bandidos ameaçam a nova família dela, e agora a guerreira sanguinária do passado está de volta com motivos pra se vingar.

Foi literalmente isso literalmente duas vezes no mangá. O interessante de Roberta, nessa lista, é que diferente de Balalaika ou Takenaka, ela quer deixar seu passado pra trás e não ser nada além de uma empregada para a família Lovelace a quem ela deve tanto. E sua incapacidade de deixar de ser o Cão de Caça é acima de tudo, frustrante pra ela. Ela não tem nostalgia de seu passado. Mas não consegue deixar de ser a pessoa que era, por mais que tente.

Se o Rock deu as costas a sua vida anterior, a vida anterior de Roberta somente hibernou e está a qualquer momento esperando pra voltar, no instante que ela for tomada por sentimentos como ódio e vingança.

No caso de Roberta ocupar uma nova vida, mesmo uma vida que ela deseje e seja boa para ela, é um esforço constante de observar o passado e colocá-lo em cheque. Se pra Rock foi fácil largar o Japão, para Revy é difícil não ser o Cão de Caça, e um esforço constante, que ela precisa fazer.

No final Garcia, consegue convencer Roberta a fazer algo praticamente impossível pra ela, perdoar o Major Caxton, assassino de seu patrão, e deixá-lo viver. E a habilidade de olhar nos olhos da pessoa que ela mais queria matar e deixá-lo viver talvez tenha sido a convivência com Garcia enfim enfraquecendo o Cão de Caça dentro dela. Talvez. Não sei se ela volta ou não pra esse mangá, do jeito que o bicho é popular.

Chang:

Chang é o caso mais interessante, por isso deixei ele por último. Chang tem um passado incrivelmente ambíguo e misterioso se comparado com o restante dos personagens que eu listei. Diferente de Rock, Revy, Balalaika, Hensel, Grettel, Takenaka e Roberta. A transição de Chang da vida anterior pra atual foi a mais radical, e Chang é o personagem que mais ama a própria mudança.

Chang antigamente foi um policial. Alguém que se preocupou muito em manter a lei e a ordem e a justiça. Então algo aconteceu que convenceu ele a matar seus colegas, largar a polícia e se juntar à Triad, e se tornar um chefe do crime organizado.

O fascinante além do fato de que Chang viu os dois lados da equação na vida, é que ele é o personagem que está há mais tempo em Roanapur. Ele já mandava na cidade quando Balalaika e Dutch chegaram no local pela primeira vez.

Chang ama Roanapur mais que qualquer personagem. Quando a crise da guerra entre Roberta e o Exército americano estoura, Chang toma a dianteira, pois ele vê o conflito com o risco de destruir a cidade, e esse se torna o evento em que seu envolvimento é maior, pois ele faz questão de proteger a cidade. Ele toma a dianteira, negocia com a CIA, com a Lagoon Traders, convence Balalaika a ser a mafiosa em vez da militar, alimenta o monstro sedento por apostas dentro de Rock, organiza tudo, para que sua vida possa seguir a mesma.

Talvez o motivo pelo qual Chang seja o personagem com a vida anterior mais difícil de ler, seja porque ele é o mais desapegado de sua vida antiga. Ele não só foi moldado por Roanapur, ele moldou Roanapur também, ele chegou ali antes de todo mundo e fez da cidade seu paraíso. A sua imagem e semelhança. E as únicas pessoas que vão ter um problema com ele na cidade, são os que arriscarem fazer a cidade deixar de existir.

O passado. Algo de que Rock quer escapar. Algo que Revy projeta em seu presente para ignorar que o crime organizado não é um lugar de caos. Algo que Balalaika sente rancor por não poder retomar. Algo que enraizou tão profundo em Hensel e Gretel ao ponto de que não há retorno pra eles. Algo que deixa Takenaka nostálgico e tira dele sua conexão com o presente. Um fardo com o qual Roberta vive, e algo de que Chang desapegou com sucesso. A relação de todos os criminosos em Black Lagoon liga diretamente com o peso que a vida deles antes de ser criminosos tem em sua própria vida.

Mas todo personagem tem em si um cabo de guerra entre sua vida como “vivo” e sua vida como “morto”, e em cada personagem um lado pende mais do que o outro, mas independente de que lado ganha, eles renascem em Roanapur, como uma pessoa redefinida pelo resultado da luta entre passado em presente, depois que eles decidiram se tornar criminosos.

Tem uma gama de personagens que daria para dissecar aqui se eu quisesse que o texto saísse com o dobro do tamanho. Yukio, que tentou ter uma vida normal e não se tornar uma Yakuza até se sentir tão pressionada que ela abraçou se tornar uma Yakuza. Eda, que aparentemente só finge ser uma moradora de Roanapur enquanto ainda está caminhando entre os “vivos” secretamente. Fabíola, cuja experiência em uma favela da Venezuela gerou nela um desprezo por gente que naturaliza ambientes como Roanapur, e uma recusa a ela de entrar na mentalidade da cidade, por mais que ela tenha o know-how de como ela funciona. E Dutch, o personagem mais misterioso da cidade, que mente compulsivamente sobre seu passado, enquanto parece ser um dos mais inseridos na cidade.

Mas tudo isso nos trás a reflexão. Quanto poder o ambiente pro qual nos mudamos tem de mudar quem nós somos? Isso depende exclusivamente do poder que nós atribuimos a de onde viemos. E quanto mais enraizadas nossas origens estão, menos estamos vulneráveis a mudança. Ou ao menos é assim que o mangá retrata.

Esse é um mangá que tal como Hunter x Hunter é muito criticado pelo seu excesso de hiatus, mas olha, acho que o desenvolvimento de personagem é tão excelente que não ligo de estar a dez anos esperando um arco acabar. Desde que seja bem-feito.

Sobre o autor

Izzombie

Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

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Alertas

  • – Todos os posts desse blog contém SPOILERS de seus respectivos assuntos, sem exceção. Leia com medo de perder toda a experiência.
  • – Todos os textos desse blog contém palavras de baixo calão, independente da obra analisada ser ou não ao público infantil. Mesmo ao analisar uma obra pra crianças a analise ainda é destinada para adultos e pode tocar e temas como sexo e violência.

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