Quando South Park estreou em 1997 ele foi instantaneamente considerado um dos desenhos animados ais ofensivos de todos os tempos. Um exemplo muito claro do excesso de vulgaridade e mau gosto na televisão e algo que se sustentava apenas na maneira como fazia piadas as custas do politicamente incorreto e do humor negro. Aí passaram 26 anos e o desenho segue existindo firme e forte como uma das séries animadas mais longevas que já existiram, e hoje, em 2023 a reputação do desenho é a de um dos desenhos animados ais ofensivos de todos os tempos. Um exemplo muito claro do excesso de vulgaridade e mau gosto na televisão e algo que se sustenta apenas na maneira como faz piadas as custas do politicamente incorreto e do humor negro.
Mas ele ainda existe. E exceto por uma vez que os episódios com a presença do profeta Maomé despertou ameaça de morte de grupos extremistas do Oriente Médio que fizeram os episódios serem retirados do ar, e por ser proibido na China por falar mal da censura chinesa, exceto por esses dois incidentes, South Park teve poucos problemas com censura e com conseguir somente por no ar qualquer coisa que eles queiram, independente do quão chocante seja o conteúdo.
E bem, apesar de South Park estar sobrevivendo bem hoje em dia, é uma série de animação constantemente citada na internet como o exemplo daquilo que a suposta cultura do cancelamento quer derrubar. E regularmente quando um comediante medíocre resolve fazer uma piada as custas de uma minoria e é xingado por isso, a primeira coisa que mencionam é o “Ah, mas se for começar a cancelar esse tipo de humor, vão ter que cancelar South Park também.”
Como se manter o racismo como a base do humor de stand-up mediocre fosse uma necessidade pra South Park poder continuar existir sem ser cancelado.
E isso é muito comum nos discursos online que acham que noções de politicamente correto e de combate ao discurso racista/homofóbico/misógino/transfóbico/capacitista/etc estão destruindo o humor e deixando o mundo pior. A Lindsay Ellis fez em seu tempo um vídeo só sobre o argumento de que “não se poderia fazer um filme do Mel Brooks hoje em dia”, sobre o que realmente tinha nos filmes do Mel Brooks, como suas mensagens eram recebidas em seu tempo, o que ele achava do politicamente correto como ele próprio um Judeu, grupo que é alvo de discursos de intolerância, e como esses argumentos ocorrem.
Mas só deixando claro agora, pois não vou achar espaço pra dizer isso mais a frente no texto. Eu acho todo argumento de “não daria pra fazer série X ou filme Y hoje” ridículo para criticar uma mudança cultural. Pois as séries são produtos de seu tempo, e devem ser! A Mindy Kaling disse que não seria possível fazer The Office hoje, com o politicamente correto. Mas The Office não era pra ser feito hoje, era pra ser feito no começo dos anos 2000. A série funcionou pois capturou bem um sentimento que existia nos anos 2000. Essas séries já foram feitas, ninguém tem que fazer algo igual. Agora, não seria possível filmar um filme como Get Out em 2002. Não seria possível fazer Bojack Horseman em 1997. Tem muita coisa que a gente faz e fala na TV e cinema hoje que só é possível porque não paramos no tempo tentando permitir que os mesmos programas sejam feitos na mesma vibe ao longo das décadas.
Enfim, eu quero fazer, não a mesma coisa que a Lindsay Ellis, mas algo mais ou menos num caminho parecido com South Park. Quero fazer um texto pensando na série. Seu estilo de humor. Suas opiniões políticas. O que a série faz que se destaca de todas as outras séries.
Então eu sou Izzombie, sejam bem-vindos ao Dentro da Chaminé e nesse texto eu quero olhar bem de perto pra South Park e entender qual é o segredo desse desenho, o que ele é afinal?
Mas antes disso eu quero falar que esse blog é financiado pelos seus leitores, e convidá-lo a ajudar a financiar o Dentro da Chaminé pela nossa campanha de financiamento coletivo no apoia.se. Esse dinheiro ajuda a manter o blog no ar, mas mais importante que isso, me ajuda a não deixar o blog de lado e negligenciá-lo pra me estressar com alguns trabalhos ingratos e revoltantes que eu aceito só pra pagar as despesas do blog. O apoio de vocês significa muito pra mim e quem puder ajudar com o troco do café tem minha eterna gratidão. Quem não quiser fazer uma contribuição mensal pode ajudar fazendo um pix de qualquer valor para franciscoizzo@gmail.com que terá a mesma gratidão e será igualmente homenageado aqui.
Esse texto é escrito em homenagem a todos os que já me apoiam, a galera que diversas vezes foi a força que manteve o blog de pé e por quem eu tenho muita gratidão. Espero que gostem do texto.
Que é um texto sobre South Park.
E já começo fazendo a central pergunta na hora de se analisar qualquer situação de sátira humorística, mas principalmente na hora de se olhar em piadas do assim chamado humor negro.
Em quem a série bate?
South Park é uma série que se orgulha de fazer piada com todo mundo. O que é um chavão usado por muitos humoristas que muitas vezes é um código, em que todo mundo significa “todas as minorias”. O cara chega “É, eu sou assim, eu zoo com todo mundo, com negro, com mulher, com gay, com judeu, com índio, com trans, com umbanda, com autista, com mendigo, com gordo, com deficiente….” e segue uma lista enorme que não inclui nenhum grupo social que detenha as posições de poder na sociedade. Muita gente usa esse escudo do “zoar todo mundo”, pra zoar “todo mundo que está por baixo”, e uma lista diversa de minorias pra ser alvos de um humor que não atinge os grandes.
Em South Park eu acho que usa esse “todo mundo” com sinceridade, misturando minorias e grupos que detém as posições de poder. Inclusive, agora acho o melhor ponto do texto pra explicar. Olá, eu sou Izzombie, sou homem, sou branco, sou hétero, sou cis e eu não me identifico como membro de nenhuma minoria. Mas eu tenho leitores que sim. E eu não estou nesse texto tentando explicar que tal piada que incomodou você ou alguém que você conhece foi de boa. Vai ter um monte de “eu acho” nesse texto, mas essa perspectiva é obviamente contaminada pelo fato de que quando se passa do limite não se passa do limite com meus sentimentos, e em determinados momentos eu posso estar distanciado demais.
Ao longo desse texto eu vou citar alguns exemplos de piadas de South Park de mau gosto, mas também vou dar exemplos de piadas que eu considerei críticas inteligentes. E eu poderia falar “e eu conheço alguém/vi na internet alguém que é do grupo mencionado e defendeu a piada”, e seria verdade em alguns casos, mas não vou usar os outros de escudo. O ponto é, não quero ver alguém falando que tá puto com South Park e vocês vindo “Cê tá errado o Izzombie falou que a piada foi boa”, eu não estou falando de South Park pra invalidar como cada um se sentiu com a série. Ninguém tem que gostar de nada.
Porque eu escrevo essas coisas, jogo na internet e a internet é foda, os cara acha que existe uma interpretação certa ou errada da piada, e o pior, que quem tem blog ou canal no youtube ou twitter grandão, está explicando qual é a interpretação correta das parada. Eu não quero analisar nesses termos. Eu vou falar como eu li algumas cenas, a partir do meu enviesamento, pois minha perspectiva é a única que está comigo 100% do tempo, e vocês nos comentários falam como vocês leram as cenas. E a gente transforma isso num diálogo. Mas muitos momentos tem tantas interpretações quanto tem pessoas diferentes pensando nesses momentos.
O youtube está repleto de canas só sobre a representação de minorias da ficção, cada um com seu próprio foco, e muitos deles têm diversas análises e reações a South Park, algumas falando bem e algumas falando mal, alguns canais discordando entre si, e é um ótimo exercício ver o que pessoas diversas falam e como reagem a como a série faz a representação. Eu não falo por elas, eu não posso falar por elas, eu só posso falar por mim. Mas o ponto desse texto não é trazer uma resposta pra pergunta: “É ofensivo ou não é?”, e mesmo se algo for amplamente considerado não-ofensivo, não tira o direito de ninguém se ofender. A ficção lida com a bagagem pessoal de cada um.
E eu acho importante tirar isso do caminho, pois o assunto do politicamente incorreto é um que muita gente debate na má-fé, e muita gente tira vantagem do quanto ele é debatido na má-fé.
Dito isso, piadas tem alvos! No fim de uma piada alguém foi o otário, as vezes um personagem da piada, as vezes o ouvinte, as vezes quem disse a piada. Mas muita piada termina jogando os holofotes nos defeitos de alguém que é rebaixado por ela. Em inglês usa-se o termo butt of the joke, a bunda da piada em tradução literal, aquele que ficou por baixo, a pessoa de quem a gente riu, não acho que temos uma tradução unânime pra isso em português.
Isso é um dos principais motivos pelo qual o humor é uma recorrente arma que pessoas fora de posições de poder usam, para remover o poder simbólico de pessoas em posição de poder. E baixá-las ao seu nível. Nobres e poderosos foram alvo de piadas e de humor como parte desse processo por muito tempo. Mas não só eles. Quando a perigosa ideologia que foi o nazismo se espalhou na década de quarenta, o humor e a ridicularização foram uma forma de combate ao nazismo usada.
Quando o inverso ocorre, e o humor é uma maneira dos poderosos removerem o poder daqueles que estão abaixo, aí a piada vira bullying, pois não está quebrando uma hierarquia, porém está reforçando. A galera adora se perguntar em porque zoar branco é diferente de zoar pessoas e cor, e é essa a diferença. O branco tem um status social que o humor pode quebrar. Existe resistência em quebrar esse status. Existe uma diferença colossal entre uma família de passarinhos contarem piadas sobre as minhocas serem estúpidas, ou sobre o gato ser estúpido, que é com quem eles tem a relação de poder.
Porém as relações de poder na nossa sociedade obviamente estão escondidas em uma narrativa de que elas são coisas do passado. E muito comediante acredita que eles estão contando piadas com minorias como alvo, justamente pra mostrar que a opressão é coisa do passado. Muita gente acredita que a luta por inclusão e espaço de diversas minorias já acabou porque existem mulheres, negros e gays que são donos de empresa. E querem vender a ideia de que minorias já possuem um status social elevado que vale a pena ser quebrado.
O que não é verdade. Mas é um discurso que existe.
Enfim, nem todo humor precisa atacar alguém. Não é uma regra, mas o humor pode sim ser um ataque e ter um alvo, e o humor de South Park definitivamente tem alvo.
South Park se gaba de atacar todo mundo e eles de fato atacam muita gente diferente o tempo todo. Se eu tivesse que pegar os alvos mais recorrentes de South Park, eu diria que quem South Park mais tenta atacar é: A hipocrisia, a prepotência e as celebridades. E muito da série é baseado na ideia de justamente atacar pessoas que falam com as outras de uma posição elevada, independente se a pessoa detém real poder ou só acha que detém.
Começando pela hipocrisia.
Em South Park, o humor serve muito pra atacar personagens que afirmem lutar por uma causa, sendo que eles não praticam de verdade aquilo que eles defendem, ou então passam batido por outras coisas igualmente danosas.
Isso pode ser feito de maneiras diferentes.
A 19ª temporada faz uma longa apontada de dedo, sobre grupos que supostamente são grupos de justiceiros sociais que combatem discursos de ódio, mas são formados exclusivamente por homens brancos héteros, que usam o discurso de progressista pra comer mulher, e não realmente se importam com minorias.
No episódio Butt Out da 7ª temporada, o diretor de cinema e militante antitabagista Rob Reiner é retratado como alguém que come exclusivamente comida de fast food, e fala sobre os males do cigarro enquanto ignora os males da comida que ele mesmo come e o impacto que isso tem na própria saúde, como uma maneira de apontar que o progressismo de Hollywood é falso e pautado só em imagem. Rob Reiner iria querer ser visto como alguém que combate o cigarro mais do que queria ajudar a saúde alheia.
O episódio Butterballs da 16ª temporada gira inteiro em torno da piada de retratar grupos anti-bullying fazendo bullying em funcionários da escolas pra obrigá-los a aceitar suas campanhas via intimidação, pois esses grupos querem fama e renome.
Em With Apologies of Jesse Jackson da 11ª, a maneira como pessoas que fizeram falas racistas em público são atormentadas pelo rótulo de “racistas” e acham que as pessoas deviam ter sensibilidade e não usar o adjetivo de “racista” sem pensar em quem vai se ofender, é colocado em contraste direto a como essas pessoas são indiferentes e não se importam com como as pessoas negras se sentem com o uso das palavras que eles usaram em público que fizeram eles serem chamados de racista. E o episódio termina com a justiça reconhecendo que os sentimentos que você sente ao ouvir uma palavra que serve pra te atacar só importa quando é algo do qual é possível chamar uma pessoa branca, em um claro ato de hipocrisia de brancos mais preocupados com sua imagem do que com o mal que eles supostamente estão descrevendo.
Personagens de South Park falam e fazem qualquer coisa pra se sentirem bem, serem considerados grandes pessoas, serem pouco criticados, e por isso eles abraçam causas sociais na qual eles não acreditam, e repetem regras de comportamento, achando que não se aplica a eles. E essa crítica é fácil de fazer, pois a grande maioria dos personagens de South Park não acredita em literalmente nada e só adotam causas pessoais pelos motivos mais oportunistas possíveis, sem terem um real código moral.
E seja pra falar mal de racista ou do politicamente correto, o número de episódios que retrata a situação assim é maior do que dá pra listar.
E a consequência dessa hipocrisia é que ela gera prepotência. Ou seja, faz as pessoas começarem a achar que elas são boas demais e fodas demais sem serem grandes coisas, e faz as pessoas falarem e se portarem como se o que elas achassem importasse demais.
O maior exemplo disparado seria o episódio Smug Alert em que Gerald se torna insuportável por começar a dirigir um carro híbrido, e tratar pessoas que dirigem carros normais como se elas fossem atrasadas e pouco ecologicamente conscientes. Ele eventualmente se muda para São Francisco com uma comunidade de progressistas que vivem de cheirar o próprio peido de tanto que se acham superiores.
Mas temos também os episódios Go God Go e Go God Go XII em que o Cartman vai pro futuro, ver que no futuro graças ao Richard Dawkins, todo mundo virou ateu, mas as guerras por religião continuam, porque as principais facções ateístas têm picuinhas com o nome das outras, e as guerras nunca foram sobre algum lado acreditar em algo que é verdade, somente em fazer todo mundo seguir tuas ideias bestas.
Mas o que mais me marca são as aparições de Al Gore. Em especial no episódio em que tem um subtexto metalinguístico dos criadores de South Park admitindo que estavam errados sobre o Al Gore. Então pra contexto, na 10ª temporada temos esse episódio chamado Manbearpig, em que Al Gore insiste em alertar os habitantes da cidade sobre esse perigo imaginário dele que é o Porco-Urso-Homem, em uma metáfora pro Aquecimento Global e pro quão irritante ele era tentando alertar as pessoas sobre o Aquecimento Global e pelo tom alarmista de seu documentário An Inconvenient Truth, que na época, os criadores Trey Parker e Matt Stone acreditavam ser uma invenção. Oito anos depois eles revisitam o assunto em Time to Get Cereal e Nobody Got Cereal? Em que todos descobrem que o Porco-Urso-Homem era real e pedem desculpar pro Al Gore por ignorarem ele. Porém o episódio não larga o osso, apontando que não só as pessoas poderiam ter levado ele a sério se ele não fosse um grande chato, como fazendo a maneira como ele quer ser reconhecido como o correto na briga incessantemente ao longo de dois episódios como um sintoma de sua chatice que não mudou ele continua chato mesmo certo.
E South Park não tem paciência nenhuma com gente chata. Gente pedante. Gente prepotente. E gente falando em tom condescendente. O que nos leva a celebridades, que sempre surgem como pessoas que querem demais ser levadas a sério e ouvidas e sempre movidas por ego.
Eventualmente todo mundo que é famoso vai ser zoado por South Park, e muitas vezes focando na maneira como celebridades ligam pra própria imagem a níveis irracionais.
Acho que o exemplo mais famoso é o episódio em que Kanye West não era capaz de entender que uma piada sobre comer tirinhas de peixe ser coisa de peixe gay, não era uma crítica a ele e uma maneira de negar que ele é um gênio, no episódio Fishsticks da 13ª temporada.
Mas temos também o exemplo do Bono, que é obcecado em ter o troféu de ter cagado a maior merda do mundo em More Crap, pois ele é um viciado em ganhar troféus, e essa é a justificativa pra ele querer tantos prêmios como humanitário, disfarçar que ele é só um grande merda que quer soar como o número 1.
E temos o exemplo de Phill Collins, que se tornou in-universe o porta-voz das pessoas que no mundo real tinham medo que o personagem Timmy fosse um desrespeito a pessoas com deficiência, ele estava sempre com o seu Oscar em mãos, falava como dono da verdade e na real só se importava em não perder seu espaço na cena musical pra banda do Timmy.
Mas essa não é a única crítica que eles tem a celebridades.
Porque celebridade é foda, aparece em público fazendo merda o tempo todo, no melhor dos casos sendo somente péssimos exemplos, no pior dos casos cometendo crimes e South Park está aí pra sempre apontar o papel do público em rejeitar a escrotisse de algumas figuras públicas, denunciar a parte escrota do culto de celebridade em volta delas e cobrar um melhor comportamento. Isso rola muito.
O que dialoga com o que eu disse ali em cima sobre usar o humor contra quem está no poder. South Park vê as celebridades como pessoas que usam de seu status midiáticos para passar ideias que não são da competência delas, ou somente serem pessoas escrotas em público e essencialmente terem carta branca para irem na televisão falar qualquer asneira que não tenha nada a ver com seu trabalho como parte de serem celebridades. E South Park quer quebrar essa magia em volta delas, lembrando que é só gente perturbada com dinheiro e fama. E quer lembrar que o excesso de exposição é uma faca de dois gumes, você põe os holofotes em si mesmo pra ser ouvido, mas tá dando a cara a tapa pra ser xingado.
O importante de ver é que nos episódios que criticam as celebridades a crítica sempre transborda pra como os fãs da celebridade a defendem, ou a criticam. E nos episódios que criticam instituições também, muitas vezes transborda no grande público.
E isso é importante, pois a primeira lição do dia é: Mais do que criticar grupos, organizações ou indivíduos específicos, South Park usa de grupos, organizações e indivíduos conhecidos para criticar mentalidades. Para fazer o episódio ser sobre a linha de raciocínio cagada que está sendo aplicada ali.
E esse é o um dos segredos de South Park, pois o grande lance é que mesmo depois que a notícia de jornal que fez o episódio existir em primeiro lugar deixa de ser lembrada ou conhecida, alguns episódios seguem relevantes, pois o que o episódio critica segue sendo aplicado em outro contexto.
E como isso se encaixa com a maneira como a série retrata minorias?
Isso encaixa no fato de que South Park raramente trata minorias como um monólito, e sim como pessoas imersas em um mundo com seus contextos E que pessoas que pertencem a minorias podem adotar qualquer série de mentalidades ou narrativas para seus interesses tanto quanto alguém que não pertence a uma minoria faria.
Nathan, o garoto neurodivergente, deliberadamente interpreta o papel da pessoa-com-deficiência-modelo que o Diretor PC generaliza que o monolito é, e que é compatível com sua visão de mundo. Com isso ele consegue manipular o diretor contra Jimmy, que briga com a maneira condescendente com a qual é tratado pelo Diretor PC, e que é um rival pessoal de Nathan por motivos privados dos dois.
Quando Randy, o pai de Stan, é racista em rede nacional e precisa limpar sua imagem de racista, ele vai até o Reverendo Jesse Jackson pedir desculpas em público e é perdoado por Jesse Jackson depois de se humilhar. Stan então fala pra seu colega de classe Token, que seu pai foi perdoado por Jesse Jackson e Token não precisa mais ter raiva, mas Token só responde que o Jesse Jackson não é o Imperador dos negros e o quanto ele está ofendido não tem relação com o que o Jesse Jackson acha ou deixa de achar, pra surpresa de Stan.
E temos os episódios, em que o Sr Garrisson, estava tentando ser demitido por homofobia e propositalmente tendo atitudes inaceitáveis em sala de aula buscando a demissão, para poder processar a escola, e o comportamento dele faz as crianças suspeitarem se elas são homofóbicas. Quando elas desabafam com Chef sobre seu medo de terem virado homofóbicos Chef ensina pra eles que eles não podem definir o que eles acham das pessoas LGBT com base no Sr. Garrisson, que já era uma pessoa horrível e um professor ruim antes de sair do armário.
A ideia de que os personagens não precisam falar por suas comunidades é presente e forte na série, e o tema dos episódios é frequentemente menos a comunidade e mais a mentalidade por trás de como os personagens agem.
Agora tem um segundo alvo recorrente das críticas de South Park que é um alvo mais genérico, mas é importante. E esse alvo é você, sendo você o espectador médio e qualquer um que vestir a carapuça.
South Park é uma série que constantemente pede pra que a audiência não se considere como pessoas que não são parte de seja lá qual for o problema que eles estão mostrando no episódio. No episódio sobre a maneira como o Wallmart é um comércio agressivo e predatório que faz mal pras cidades onde ele aparece, eles explicam que o Wallmart é sustentado por pessoas que sabem todos os seus problemas, mas seguem comprando nele, pois acham que “tudo bem se for só eu”, e sentem que os outros é que deviam mudar os hábitos e não a si mesmo.
Que é o que eles falam também no episódio em que o Mark Zuckeberg viola a privacidade de todo mundo em South Park, mas todo mundo deu permissão pro Mark Zuckeberg violar sua privacidade e agora está voltando atrás.
Quando eles falam que a decisão de recuperar a economia envolvia o povo parar de ter medo e ir circular seu dinheiro em vez de ir rezar pro Deus da economia para melhorar a situação para eles voltarem a consumir, eles apresentaram um problema em que a solução estava na audiência.
South Park pede que as pessoas, enquanto população e enquanto grupo grande de pessoas não se vitimizem e reconheçam, que muitas das coisas ruins que acontecem, acontecem pois coletivamente demos permissão/fomos negligentes, e antes de cobrar o vizinho, devemos cobrar a nós mesmos. Isso é uma moral constante.
E têm algumas vezes em que concordo com essa moral. Mas acho que South Park te uma tendência a individualizar o máximo possível de problemas e de negar a existência de alguns problemas estruturais as vezes, o que eu não acho legal..
Essa discordância é uma de natureza política. Afinal eu sou uma pessoa de esquerda. E muita gente confunde South Park com um show de esquerda, pois o show é apesar de sua zoeira, pró-LGBT, contra o racismo, e defende algumas pautas legais, além do visível fato de que a série odeia tudo o que Donald Trump representa. Mas essa presunção é simplista e…
South Park e a política.
Os Estados Unidos, apesar de se afirmarem uma grande democracia, são conhecidos por ter somente dois partidos políticos com o peso mínimo pra ter atuação política real, e pela pouca pluralidade de ideias que existe em suas eleições. Os republicanos e os democratas. E bem, South Park explicitamente odeia os dois partidos. Por isso muita gente acha que isso significa que a série é uma série que não é nem de direita nem de esquerda, e sim uma série de centro.
Um episódio famosíssimo é o em que eles declaram que toda eleição já realizada foi entre um Imbecil e um Bosta, mostrando a completa insatisfação com os dois partidos e com os dois lados pelo qual a política estadunidense é tratada. E isso passa a imagem de uma neutralidade política, que é só uma impressão. Causada pela maneira como dois partidos monopolizam os dois lados, estando do mesmo lado em várias questões.
Um dos criadores de South Park, Trey Parker é abertamente adepto do libertarianismo, a ideologia política da liberdade absoluta pautada em um estado mínimo que não regule nada, e não interfira no estado, e que as leis priorizem a liberdade individual acima de uma ideia de bem coletivo. Ideologia com uma intersecção tão grande com o anarco-capitalismo, que a maioria dos ancaps brasileiros usam esses dois termos como sinônimos.
E tanto o anarco-capitalismo quanto o libertarianismo são pensamentos a direita, e a única ideologia anarquista que é considerada de direita, sendo a ovelha negra de todas as correntes do anarquismo e muitas vezes nem sequer sendo considerados verdadeiros anarquistas, pela tradição de esquerda que o anarquismo possui já tem muito tempo. Muita gente acha que anarquismo = nenhum lado = nem esquerda nem direita, e isso não é verdade, é só falácia que as pessoas repetem pra enganar otário.
Agora o curioso é que embora no Brasil estejamos acostumados a ver essa turma aí abraçar muito o pânico moral, e uma resposta a uma decadência moral e abraçar líderes muito voltados a religião que pregue por um retorno aos bons costumes cristãos, nos EUA, não é incomum os libertários acharem que liberdade absoluta inclui a liberdade de ser gay, a liberdade de abortar e a liberdade de usar drogas recreativas. Não é algo que pode-se presumir de qualquer um aliado ao pensamento, especialmente dos trumpistas que são libertários que existem aos montes, mas é um nicho bem mais visível nos EUA do que é no Brasil.
Inclusive, lá no começo dos anos 2000 entrou no vocabulário estadunidense a gíria South Park Republican, que servia pra descrever a ideologia de uma pessoa que seja um grande conservador de direita, mas que seja a favor do casamento gay, liberação da maconha, e outras pautas sociais ligadas à esquerda. O nome viria dessa ser a mensagem política que se tirava da série.
Agora apesar de criticarem tanto os Democratas quanto os Republicanos, os criadores de South Park deixaram explícito nos seus episódios o quanto eles foram contra a candidatura de Donald Trump e torceram contra ele e todos os níveis. O que é importante, pois tem gente que acha que a série não toma lados. A série toma lado pra cacete, ela só muitas vezes não reconhece que tomar lado é escolher um dos dois partidos políticos estadunidenses pra seguir.
É essa a moral da eleição. De que o ato de tomar lado perde o valor se as únicas posições defensáveis são uma Bosta e um Imbecil. O que faz sentido quando eles tem um partido político que eles apoiam, mas que não conseguem disputar eleições justamente. Existe um terceiro lado em quem se gostaria de votar.
Tem também um episódio em que as crianças escrevem um livro escatológico e ofensivo só pela zoeira, e os adultos todos surtam em querer achar que o livro é uma metáfora para qualquer coisa que eles já acreditem, sendo que o livro era só escatologia mesmo. E muita gente usa esse episódio como uma maneira de falar que não é pra ver declarações políticas sérias em South Park. Mas eu acho absurdo não ver essas declarações. Eu concordo com o episódio, de não se procurar metáfora complexa na escatologia. Pois a política de South Park não está escondida atrás de metáforas tão elaboradas que ficam ambíguas, nem atrás. A política de South Park é escancarada.
O que é o motivo pelo qual tantos episódios reduzem os problemas aos indivíduos e não a a problemas estruturais. As morais das histórias passam pelo filtro de como eles vem o mundo.
Agora: South Park acredita que pode falar o que quiser na televisão, e isso vale pra palavrões, isso vale pra palavras que atacam minorias, isso vale pra um close no rosto do O. J. Simpson sob os gritos de “assassino!”. Isso vale para permitir que o culto-do-episódio-que-critica-cientologia se chame cientologia e não seja uma metáfora, seja a literal religião. South Park não dá uma volta grande pra xingar que eles querem xingar sem citar nomes, eles citam os nomes.
Eles xingam. Eles podem falar o que querem, então eles falam muita coisa, não se resumem a só falar uma palavra tabu na excitação do homem branco em querer muito permissão pra falar o que disseram que não podia.
Vários episódios terminam com um dos personagens declarando “eu aprendi uma lição hoje” (mais vezes do que não, o Kyle, que junto com o Stan serve de avatar pra opinião dos autores em vários episódios) e falando a moral do episódio, e essa moral é explícita. Então de fato, é perda de tempo procurar simbolismo no peido, quando tá lá. South Park fala de uma maneira muito direta qual sua opinião a respeito dos assuntos do momento.
Sério, o que o Porco-Urso-Homem representava era escancaradamente claro, pois quem anunciava sua ameaça era o Al Gore. E o objetivo aqui não era evitar nomear o aquecimento global diretamente, era só falar que a ideia de um aquecimento global existir era tão estúpida e irreal quanto a de um Porco-Urso-Homem. Não era um smbolismmo ambíguo, South Park não tava com receio de deixar óbvio e claro qual era a crítica deles.
E francamente. Não vi Family Guy ou Simpsons passarem um ano fazendo os personagens usarem máscara, quando começou o Covid. Falar qualquer coisa passa por isso também, muita gente não sabia como abordar a questão do Covid, então não abordou, não foi o caso de South Park, que fez do Covid a nova realidade das crianças em vários episódios especiais (que foram feitos especiais, por se acomodarem as mudanças de rotina de trabalho que vieram na pandemia). O poder de não serem contidos no que dizem é algo que eles usam pra constantemente fazer o que seus rivais não tão fazendo.
E é por isso que quando eu disse ali em cima que quando eu acredito que South Park usa o seu poder de “falar sobre qualquer coisa” com alguma sinceridade. Pois eles falam de questões sensíveis e falam de uma maneira que muita gente não quer ouvir, e que deixa muito filha da puta confortável e ouvir. Mas eles também falam “Se George Zimmerman atirasse em um branco em um contexto de clara auto-defesa, a justiça daria a pena de morte pra ele sem pensar duas vezes.”dando nomes e não dando volta alguma pra mostrar a cumplicidade do racismo da justiça estadunidense na questão do Zimmerman e que a lei Stand Your Ground é só um golpe pra alegar auto-defesa onde ela não existe. E falam isso num tom que honestamente, nenhuma outra série animada usa atualmente.
Se Rick and Morty fosse usar essa piada, eles usariam um alien como alegoria para não ficar tão direto.
Um episódio que me marca bastante é o Cartman Sucks, em que o pai de Butters suspeita que Butters seja gay e o manda para um campo de conversão, em que um grupo religioso tenta “curar” a homossexualidade de crianças, e a consequência disso é uma tonelada de suicídios infantis que o grupo causa. O tema de jovens que se suicidam é resposta a pressão religiosa para se adequarem a padrões heteronormativos é um tema sensível e pesado, e crianças se suicidando por culpa de grupos religiosos é algo que muita série de televisão acharia pesado demais para mostrar, mesmo todo mundo sabendo que isso existe. E South Park escancarou como o grande motivo pelo qual campos de conversão são o centro do mal. O episódio termina com Butters motivando seu colega de quarto a não se suicidar, ao mandar o pessoal ali se foder e declarar que se todo mundo ali foi feito por Deus, então ele acha que Deus deve ser gay também.
South Park tem coragem de atacar instituições que são vistas como intocáveis, indo na contramão da Disney e deliberadamente sendo proibidos na China para não se submeter aos códigos do que pode passar ou não passar na China, e essencialmente chamando a Disney de covarde por não fazer o mesmo e preferir dinheiro seguro. South park fez alusões a brigas que praticamente nenhum outro desenho no ocidente teve coragem de se manifestar, por medo de respostas violentas, como foi o caso da charge de Maomé publicada na Charlie Hebdo.
Mas é isso, South Park fala sobre absolutamente qualquer coisa, ataca todo mundo, se for censurado foda-se, eles não param. Mas o que isso significa?
Mas a mensagem é boa ou é ruim?
Eu acho, falando da perspectiva de quem escreve sobre mensagens e temas por trás de obras de ficção, que um erro comum que cometemos atualmente tentando localizar obras fictícias que reforcem ou não nossas visões, é a crença, de que progressismo ou conservadorismos são conceitos em que quando você toma um lado você compra um pacote completo com tudo o que ele implica, e abdica de qualquer opinião do outro lado.
E frequentemente vemos na internet pessoas surpresas que uma celebridade X é homofóbica, mesmo ela tendo feito algum comentário progressista no passado que não tem nada a ver com sexualidade.
Porque a visão política de uma pessoa é algo que ela construiu ao longo de seus anos de formação juntando diversas visões que ele tem de diversos pontos e que nunca vão encaixar 100% com o panfleto de nenhum manifesto. E isso vale pra todo mundo. As pessoas não compram um rótulo na loja, dizendo como elas querem ser rotuladas, e recebem uma lista de tudo aquilo no qual elas acreditam agora.
Digo, tem quem se comporta assim, mas é artificial, fraco, e está sempre a uma contradição ser descoberta pra pessoa entrar em crise.
South Park vive nessas contradições. Eles não escrevem pra agradar um grupo específico, e não seguem uma cartilha de lados em que eles precisam estar, eles escrevem o lado que eles estão. As vezes esse lado é extremamente transfóbico e reproduz as narrativas anti-trans de pânico moral de maneira explícita, no que diz respeito a atletas trans competindo em esportes. Porém, ao mesmo tempo, eles fazem um episódio sobre como não deixar pessoas trans usarem o banheiro do gênero que eles se identificam é algo estúpido e ninguém decente deveria se incomodar de ter uma mulher trans usando o banheiro feminino.
E esse exemplo da questão trans é um exemplo importante justamente porque eles mais de uma vez fizeram episódios e comentários transfóbicos. Quando eles reforçam essas posições e ainda assim acreditam que expulsar pessoas trans dos banheiros que elas querem é absurdo, eles essencialmente se distanciam de ter feito qualquer um dos episódios para tentar agradar um dos lados específicos no debate. Eles viram as duas situações cada uma em seu contexto e chegaram a conclusões contraditórias.
São tratados como assuntos diferentes, pois o assunto pra South Park não é “pessoas trans” num geral, o assunto é o que está acontecendo. É ver cada caso no contexto! E eu obviamente sou contra a mensagem passada em todas vezes que eles foram transfóbicos. Mas eu já vi na internet usar esses episódios como uma prova de que havia uma falta de sinceridade quando a série defendeu outras pautas sem relação com gênero e identidade de gênero, e eu não acredito ser um caso de falta de sinceridade.
Eu pessoalmente acredito que é um caso forte de boomer que não aceita mudar a visão de como gênero funciona que eles foram educados décadas atrás. Por que cá entre nós, eu acho que o que o desenho tem de mais conservados é um eterno tom de “na minha infância ninguém pensava nessa merda e todo mundo cresceu de boa e agora inventaram essa coisa nova e todo mundo ficou chato.” que é 100% coisa de nerdola boomer e que eles fazem o tempo todo.
Fizeram quando chamaram ADHD de frescura (que eles falaram que pode ser curada com pais voltando a bater nos filhos). É quando foram contra educação sexual nas escolas, sugerindo que as crianças aprendam sobre sexo do jeito que sempre aprenderam, em casa. Quando eles criticam a maneira como pessoas que pararam de come carne são frescas, e depois criticam pessoas que começaram a evitar o gluten. E é claro a maneira como eles fazem chacota da geração woke constantemmente. Não tem mudança de hábito, ou conhecimento novo que não cause um sentimento de estranheza e suspeita na série, como se todos fossem uma nova moda liderada por gente fresca. O que é a exata definição de reacionário, alguém que reage a mudanças sociais. E eu acho que eles lidam muito mal com como o senso comum do que é gênero mudou nos últimos anos, como parte disso tudo.
Mais episódios que o oposto usam a saída para lidar com qualquer fenômeno social recente ou mudança de mentalidade com um “o correto é não se importar”. E que levar a sério qualquer coisa é sempre apontado como um defeito dos personagens que só precisam baixar a bola e parar de querer se envolver de verdade em qualquer coisa.
É a grande ironia disso tudo. No fim das contas, Trey Parker e Matt Stone são dois caras comuns, que se informam primariamente pela mídia, tem receio quanto a tudo o que é novo, e não são muito mais qualificados do que as celebridades que eles odeiam por falar sobre política. Mas eles tem um programa de televisão que serve como plataforma pra eles falarem de política. No fundo eles não são tão diferentes. Mas eu acho que isso entra no território mais arrogante quando a série dá takes ruins sobre saúde pública, motivos pelo qual eu reforço os episódios negando a existência de ADHD e tratando cuidados com o Gluten como exagero e sugerindo que autocontrole é a solução pro alcoolismo.
Agora A gente pode encontrar desenhos mais progressistas como Futurama, fazendo a exata mesma transfobia contra atletas trans, mas não fazerem a crítica de “quem expulsa mulher trans de banheiro feminino é que tem que se foder”. South Park tem episódios com mensagens que eu considero condenáveis de verdade, mas o bizarro é que esses não são os episódios fora da caixa, esses são os episódios que qualquer outro desenho adulto poderia ter feito igual. Eu comentei aí que South Park não lidou bem com a descoberta do ADHD, mas os Simpsons também criticaram. E Simpsons se passa por um desenho “Democrata”, o que alguns confundem com “de esquerda”, mas não, ainda é um partido de direita.
Os Estados Unidos são um país conservador, e pra minha métrica, muitas celebridades no campo progressista soam conservadoras quando contam com detalhes o que elas realmente pensam.
Reforço, o que é de fato fora da caixa é comprar briga com a cientologia diretamente, algo que Bojack Horseman, um desenho claramente feito pela ala progressista de Hollywood, precisou colocar um disclaimer para fingir que sua piada sobre cientologia não era uma (enquanto deixava os bem-informados entenderem a crítica).
South Park cunhou a piada do Simpson’s Did It, para tirar dos próprios ombros (e dos de todo o resto dos animadores), a pressão de ter que fazer premissas que os rivais nunca fizeram, mas é South Park quem com mais segurança foge de premissas repetidas, justamente por não fazer rodeios em volta do ponto. Faz um episódio sobre os funcionários da Amazon fazendo greve pelos abusos que sofrem, com foco na pressão do público pelo fim da greve, pois eles querem suas conveniências de volta, e em como a Amazon manipula os trabalhadores que furam a greve por terem medo de não poder perder o trabalho. E pronto, você falou algo que todo mundo pensa, mas ninguém quer falar abertamente.
E se isso é pro bem ou pro mal, depende do episódio. South Park já meteu mensagens ótimas e péssimas. Já exageraram, já rejeitaram coisas importantes, e já foram didáticos e inclusivos em outras coisas importantes. O episódio sobre a síndrome de tourette até hoje se destaca pelo quão didático e bem-pesquisado ele é a respeito da condição, e foi bem elogiado pela Tourette Syndrome Association a respeito de uma condição que ainda é majoritariamente retratada em diversas outras comédias menos controversas como “a doença que te faz falar palavrão”.
Conclusão:
Eu sempre gostei muito da parábola do Ovo de Colombo.
Diz a lenda que Colombo ao voltar pra Europa foi acusado de ter feito uma viagem fácil, e que qualquer imbecil poderia sair em frente da Europa e chegar na América. Colombo supostamente respondeu com um desafio, ele perguntou quem ali conseguiria por um ovo de pé, e todos os críticos falaram que era impossível. Colombo então quebrou a casca do fundo do ovo para que ficasse achatada e pôs o ovo de pé. Todo muno falou que ele não tinha dito que podia fazer isso, que desse jeito muda tudo e que da maneira como ele fez é fácil, qualquer um pode fazer. E Colombo respondeu que sim, tudo depois que alguém descobre como fazer, se torna algo que qualquer um pode reproduzir.
E muita gente trata o humor negro como se fosse um grande ovo de colombo. Depois que o primeiro comediante se safa com uma piada que poderia ter destruído sua carreira, agora qualquer outro comediante pode fazer atacar os alvos daquela piada e usá-lo como escudo pra não ser criticado. Só precisa uma pessoa ter tido sucesso que a piada se tornou ok. Não existe contexto e não existe conjunto da obra, existe só a ofensa.
E essa tentativa de igualar todo mundo que toca em um tema sensível como um igual removendo o contexto é uma maneira de reduzir o humor ao tema do humor e a em que assunto ele tocou, e não ao que ele deixa implícito. Achar que ao ir em um stand-up elogiar a escravidão, e ao fazer um video-game em que ao aumentar a dificuldade do jogo você escurece a pele do jogador, você fez uma piada de mesmo nível é rebaixar o conceito de humor. É ignorar o cada caso deixou implícito. Humor faz um uso muito grande daquilo que fica não dito, o elemento não dito é tão essencial pra uma piada funcionar, que explicar uma piada é visto como uma maneira de eliminá-la, então se a pessoa acha que a piada se resumiu a “eu falei sobre pessoas negras” e isso iguala todas as conclusões implícitas possíveis, então essa pessoa está desmerecendo o próprio princípio do humor. O que torna particularmente grave quando são humoristas profissionais que procuram simetrias falsas quando acuados em relação a má repercussão de uma piada deles.
E nisso South Park, por ter se arriscado em uma multitude de temas sensíveis, é visto como um grande exemplo de como o politicamente incorreto nunca terá regras, pois no dia que tiver regras, o mundo terá que sacrificar South Park. E isso não é verdade.
Sabe qual é a verdade? A verdade é que no mundo do entretenimento você precisa de prestígio pra ter segurança. E duas pessoas fazendo a mesma coisa não possuem o mesmo valor, pois o valor que elas tem é a percepção que se tem delas e do dinheiro que elas são capazes de fazer.
South Park poderia repetir palavra por palavra uma frase que na semana anterior teria causado a demissão de um roteirista em outro canal e nada acontecer? Por que? Por que South Park é especial. South Park. South Park recebe amor da crítica especializada desde seu começo pela sua crítica política em dia com os eventos atuais. South Park têm 5 Emmys. South Park tem um Peabody Awards. E é participação frequente em qualquer lista de melhores séries animadas da história.
O episódio Big Gay Al’s Big Gay Boat Ride, em que Stan descobre que seu cachorro é gay, e que martela a moral da necessidade de se respeitar e aceitar os homossexuais foi indicado pra um GLAAD Media Awards em 1997, sendo esse um prêmio para reconhecer representatividade lgbt no entretenimento.
O episódio With Apologies to Jesse Jackson, em que a palavra “nigger” é repetda 43 vezes pelos personagens, foi elogiado pelos co-fundadores de uma organização para abolir essa palavra da língua inglesa, como um episódio educativo quanto ao problema do uso da palavra. E com uma margem de erro de que eu posso estar esquecendo algo, mas eu acho que é o único episódio em que a palavra é pronunciada.
Timmy e Jimmy frequentemente protagonizam artigos e estudos sobre a representatividade positiva que South Park faz de seus personagens com deficiência, geralmente escritos por pessoas com deficiência também..
E isso é importante. South Park construiu mais de vinte anos de prestígio, em que eles abordam assuntos tabu, cutucam vespeiro, mas em diversas ocasiões terminaram muito bem elogiados pelos grupos que eles abordaram. Eles compram briga, se envolve em controvérsias, falam merda e são criticados, mas quando se passam 20 anos tentando provocar pessoas na televisão na conta, o resultado final é que eles, com alguns episódios tendo mais sucesso que outros, eles tentam ter conversas. Eles falam de assuntos que mesmo se eles não forem as pessoas mais qualificadas a falar, o fato deles terem sido um dos únicos a puxar o assunto tira a invisibilidade desse assunto.
E nada disso é fácil. Construir essa reputação não é fácil, e é parte do motivo pelo qual muita gente se pergunta “como South Park não tem medo de ser cancelado nos tempos atuais?” Muita gente acha que é o tipo de série que não deveria conseguir existir hoje, e mesmo assim estão firme e fortes caminhando em direção ao que eventualmente terá 30 temporadas. E ter 30 temporadas não é algo que se consegue seguindo o caminho fácil.
Ofender pessoas é fácil. Qualquer imbecil pode repetir uma tonelada de estereótipos e direcioná-los a falar o que as pessoas não querem ouvir. E qualquer um pode responder a críticas com “eu só fiz uma piada, o que eu fiz não é sério.” Mas não é isso que South Park faz, por isso quando as pessoas decidirem que elas não querem lidar com quem toma o caminho fácil, South Park não será o elo fraco da corrente.