Putaqueopariu, os estadunidenses vão fazer outra adaptação de Death Note… e vai ser de novo pela Netflix. Só que dessa vez são os caras de Stranger Things que vão cuidar da série.
E indo direto ao ponto: eu tenho muito ceticismo em relação a um estadunidense ser capaz de adaptar Death Note, pois eu acho que a diferença cultural entre dois países de lados opostos do mundo fica evidente demais nesse tipo de história. Mais do que ficariam em um Cowboy Bebop ou um One Piece da vida. Death Note ganha novas implicações se visto sob uma perspectiva norte-americana, isso porque Death Note fala muito sobre como a justiça funciona, enquanto instituição.
Pra começar uma implicação racial. Digo, qual a chance de um jovem branco começar a matar pessoas que ele vê sendo noticiadas na televisão estadunidense como suspeitas de crimes, e isso não levantar pensamentos sobre as relações raciais dos EUA? Todo o debate sobre como o punitivismo e o sistema de justiça funcionam nos EUA passa pelo debate de que pessoas com uma cor de pele são acusadas de crimes com muito mais frequência que outra. Se a fonte do Light vai ser a mídia, o enviesamento dessas acusações será o de Kira, e a história vai ser a de um jovem branco matando negros e latinos. A menos que a história se esforce para fazer não ser, mas se deixa no território daquilo que não é dito, essa implicação existirá.
Death Note é um mangá prepotente, que puxa um debate sobre moralidade e justiça. Se ele faz um bom trabalho nisso depende do leitor, mas o centro do mangá é um debate moral, e eu gelo só de pensar nos gringo tentando fazer esse debate. Na primeira adaptação da Netflix eles já se cagaram todos, precisando dar uma volta enorme pra transformar o Light em um herói. Os caras foram fundo, transformaram o grande vilão da parada em um jovem carregando um fardo pesado, mas que ele é simplesmente uma pessoa ética o suficiente pra aguentar um fardo que qualquer outra pessoa usaria pro mal. Pois afinal alguém precisa carregar o fardo, e se alguém precisa, que seja o herói, que será ético. O maior filho da puta do mundo e transformaram ele no Frodo.
Esse texto é pra falar sobre isso! E para isso, ele precisa falar sobre o elemento de Death Note que aborda o maior contraste entre a cultura japonesa e a cultura estadunidense, que é a sua relação com armas de fogo. O Japão é um dos países mais desarmados do mundo e os EUA são um dos países mais armados do mundo. São extremos opostos em sua política de armas de fogo. E o mangá Death Note é um mangá que tem muito a dizer sobre armas. E não consigo confiar muito nos EUA produzindo uma série que queira ouvir o que o mangá disse.
Então vou pedir que venham comigo nessa análise sobre o mangá Death Note, sobre sua primeira adaptação da Netflix, e sobre como a sua relação com um caderno mágico dialoga com sua relação com uma arma de fogo. Eu sou Izzombie e sejam bem-vindos a esse texto do Dentro da Chaminé.
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Esse texto é feito em homenagem a todos os que já me apoiam. Os grandes heróis desse blog, e eu espero que gostem desse texto:
Armas de fogo em Death Note:
Quero começar descrevendo uma das minhas cenas favoritas de Death Note, que é a cena em que o Matt morre. E existe uma chance de você estar pensando agora: “Espera aí Izzombie, vai com calma. Quem caralhos é Matt?”.
Matt é um personagem muito pequeno em Death Note. Ele é uma das crianças-prodígio do orfanato onde Near e Mello cresceram. Matt é amigo de Mello e agiu como seu assistente na segunda metade de Death Note, ele foi introduzido no capítulo 83 e morreu no capítulo 99, ficando só 16 capítulos com a gente, e podemos contar nos dedos as falas dele.
Quando Mello decide sequestrar Takada, a jornalista que era cúmplice de Kira, Matt decide fazer uma distração soltando uma bomba de fumaça para distrair seus guarda-costas. Após Mello ter sucesso em sequestrar Takada, Mello se rende aos guarda-costas de Takada, racionalizando que ele não precisa resistir a nada, pois ele vai ser levado para ser interrogado, uma vez que ele é um cúmplice e o que ele sabe é valioso.
Porém, apesar de Matt acreditar que o correto era se render, sua rendição é recebida com uma rajada de tiros. Morto com dezenas de tiros no meio da rua em público por um grupo de guarda-costas. E a última coisa que ele questionou em vida foi “desde quando japoneses podem andar com armas?’.
A morte de Matt é singular em vários aspectos. Para começar porque ele não foi morto por Kira, mas por seus seguidores, altas chances do Light nunca ter imaginado que Matt sequer existia. Isso torna ele como um raro caso de um inimigo de Kira que é assassinado sem ter seu nome escrito no Death Note. Ele é uma criança da casa Wammy que opera sob codinome, mas ninguém precisou descobrir seu nome para matá-lo. Ele é o único personagem do mangá inteiro que morreu porque levou um tiro…
Na verdade, sob algumas perspectivas ele é o segundo personagem. Eu não sei se eu vou colocar a outra morte na conta do tiro, mas teve outro personagem que de fato levou um tiro em Death Note, e esse personagem morreu, e eu vou falar dele mais pra frente.
Matt acabou no final sendo uma vítima não de Kira, mas do mundo que Kira criou. Ele morreu nas primeiras páginas do volume final de Death Note em um momento em que Light já havia mudado a mentalidade do Japão e o mundo já havia começado a se reformar. E foi esse Japão de Kira que matou ele. Um grupo de civis armados que disparou em uma pessoa não identificada, em público sob o argumento de que essa pessoa era a escória.
E com isso ele deixa observação dele. No Japão pós-Kira, as pessoas podem andar armadas e cometer tiroteios no meio do Japão.
Enfim, dando aquele contexto básico, que é necessário: O Japão tem uma das mais rígidas leis de controle de armas de fogo do mundo, implantada após o fim da segunda guerra mundial. Somente policiais e membros do exército tem permissão pra portar armas de fogo, com algumas exceções podendo ser feitas pra caça, mas são trabalhosas e burocráticas. Estima-se que tenham 0,3 armas de fogo no país para cada 100 habitantes. O número de pessoas assassinadas por armas de fogo no Japão em 2021 é exatamente uma, de acordo com a polícia. E mesmo quando um atentado político ocorre e assassinam o primeiro ministro a tiros, o atentado é feito com uma arma caseira, pois o assassino não tinha uma arma de fogo.
Então um fuzilamento no meio de Tokyo, com testemunhas e ninguém se importando é pra ser uma visão incomum no Japão, mas o clima do mundo moldado por Kira tornou essa noção comum.
Dito isso, armas e fogo não são incomuns em Death Note. Elas aparecem o tempo todo. O tempo todo mesmo. Por qualquer coisa alguém aponta arma pra alguém, sejam heróis, sejam vilões. Os policiais andam armados, por serem policiais, e os agentes do L andam armados por operarem fora da lei. Os empresários da Yotsuba andam armados, pois são criminosos. E na segunda metade do mangá em que metade da trama se passa nos Estados Unidos, aí lascou, aí as armas triplicam.
A grande maioria dessas armas somente ameaçam, e servem pra criar tensão e fazer quem pontou a arma fazer exigências.
Um número menor dessas armas dispara tiros de aviso, ou tiros precisos para desarmar outro personagem.
E um punhado pequeno de personagens nomeados de fato levou um tiro. Se eu não errei a conta foram três. E se eu tiver errado a conta, então esse quarto aí definitivamente é um personagem pequeno demais. Dentre eles. O Matt. é o que morreu se questionando como que aquelas armas estavam nas mãos de japoneses.
Matt não foi o único que se recusou a naturalizar a presença de armas de fogo na série. O outro personagem é Soichiro Yagami, o pai de Light, e o personagem que o próprio autor já identificou como o único personagem completamente correto em uma série tão cinza. Quando o time de investigação se prepara para encurralar Higuchi, um dos afiliados de L dá um revolver para ele. Soichiro recusa o revólver, pois ele havia se demitido da polícia, e seria ilegal para ele andar armado. Soichiro foi um personagem marcado por um senso de certo e errado inabaláveis e uma eterna força tentando impedir L de cometer violações éticas para capturar Kira.
É inclusive um ponto relevante do roteiro, levantado quando o personagem mais tem destaque, que apesar de décadas atuando como policial, Soichiro nunca tirou uma vida. Em toda a sua vida ele nunca foi responsável por uma morte sequer, e ele não foi capaz de matar Mello quando a situação exigiu.
Ele pode apontar a arma diversas vezes, somente nos momentos do mangá em que ele é um policial, mas a única vez que ele puxou um gatilho, era uma arma de festim. Soichiro é um homem íntegro, e ele vive pela lógica de que matar é errado sempre. Ele é contra a existência de Kira, e acredita que as vítimas de Kira serem criminosos é irrelevante. Ele é contra que L teste o Death Note em condenados a morte como parte de um plano para encurralar Kira. Quando ele toma posse do Death Note ele não escreve nomes nele. E o mangá explicitamente comenta que existe uma maldição, de que aqueles que usam o Death Note são amaldiçoados pela infelicidade, mas Soichiro não usou o caderno e morreu feliz.
O Soichiro foi a outra vítima de armas de fogo, inclusive. Levou uma série de tiros pelas costas de um capanga de Mello. Após esses tiros, houve uma explosão, e a cena dá a entender que a explosão é o que realmente matou ele. Mas ao mesmo tempo, ele ter sido o único que morreu por causa da explosão enquanto o Mello sobreviveu com uma cicatriz, e ele ter sido o único que estava baleado e ferido quando ela explodiu… não sei. De qualquer jeito, ele e o Matt, são os dois grandes adversários de Kira cujos nomes não foram escritos no Death Note. Somente eles. E ambos levaram um tiro.
Mas eu quero falar sobre o Soichiro nunca ter escrito um nome no Death Note. Pois eu acho isso importante.
O Death Note é uma arma:
No último capítulo de Death Note, o policial Ide e o policial Matsuda conversam no carro sobre a teoria de que Near teria usado o Death Note para escrever o nome de Mikami como uma garantia de que seu plano daria certo, e de que isso faria de Near uma pessoa que usou o poder do caderno. Diante do debate, Ide fala que não tem certeza, mas que tem uma coisa da qual ele tem certeza:
“Esse caderno é a pior arma da história da humanidade.”
Ele fala isso para citar o que Near havia dito três capítulos antes, quando ele desmerece todo o ego e narcisismo de Light e desconsidera toda a racionalização que Light fez sobre ser Deus ou um símbolo da justiça, simplificando nos termos de: “Você é um assassino e esse caderno é a pior arma da história da humanidade.” E a situação não era mais complicada do que um psicopata portando uma arma terrível.
E bota terrível nisso. Se as armas de fogo mataram no máximo dois personagens na série, então o Death Note matou um número tão surreal de grande que eu não vou contar para mencionar aqui.
O caderno é um instrumento que existe pra matar. Os shinigamis precisam matar pra viver, e os shinigamis só conseguem matar com o Death Note. Para um shinigami o caderno não tem nenhuma outra utilidade. Para os humanos porém o caderno tem várias outras utilidades.
O caderno pode ser usado para manipular pessoas.
Para eliminar evidência.
Para fazer ameaças.
Para negociação.
Mas tudo isso passa pelo processo de matar alguém. O lance do Death Note é matar, e existe um foco em constantemente nos lembrar, que essas mortes são irreversíveis. Depois que um nome foi escrito, não existe nenhuma força no mundo que impede a pessoa com o nome escrito de morrer, e depois de morto, não existe força no mundo que reviva.
Por isso, o Death Note é uma existência maldita, tudo que sai dele é ruim. E a série insiste constantemente no ponto. Não existe justificativa para se escrever qualquer nome no Death Note, qualquer uso do caderno é anti-ético.
Esse é justamente o ponto do debate no capítulo final. Determinar se Near era uma pessoa decente ou não com base na ambiguidade de que não dá para saber se ele escreveu ou não o nome de Mikami no caderno.
Ryuk diz em alto e bom tom, que todas as pessoas que escrevem nomes no caderno são amaldiçoadas com a infelicidade. É cosmicamente impossível tirar benefício próprio do caderno, mesmo se usá-lo de maneira egoísta, pois qualquer tipo de vantagem ou felicidade obtidas através do caderno são falsas e na hora de sua morte, a ilusão terá sido quebrada.
A existência do caderno é tão injustificável no mundo que Light inventa duas regras que não existem no caderno, quando percebe que era inevitável que a polícia descobrisse o instrumento. A primeira regra dizia que se o usuário do caderno não escrevesse nomes nele por 13 dias, o usuário morreria, criando a falsa impressão de que escrever os nomes era algo obrigatório do qual o usuário não poderia se libertar jamais, e não um resultado da escolha do assassino, e de suas visões a respeito de ética, justiça, punição vida e morte. A segunda regra inventada é a de que o caderno não poderia ser destruído, para impedir que a polícia simplesmente salvasse o mundo destruindo o caderno e impedindo que novas mortes ocorressem.
O que é o que foi feito. No mesmo dia em que foi descoberto que as duas regras adicionais eram falsas, Near destrói todos os cadernos e livra o mundo dessa praga. Não existe motivo pra um Death Note existir no mundo. Nenhum uso do caderno jamais será ético. Todo ato de escrever um nome é um ato maléfico.
No final Near ainda conclui que ele tem mais facilidade de entender e sentir empatia com quem realmente usaria o caderno para obter vantagens pessoais, matar seus inimigos ou se vingar, do que com alguém que acredita ser uma força do bem usando o caderno. Que existe uma normalidade em pessoas que cometem crimes movidos a emoções como ódio ou ganância, mas algo assustador e fora dos limites da sanidade em alguém que consegue racionalizar a morte de milhares como algo necessário pro bem da sociedade.
Quando a gente pensa bem, o Death Note soa como uma evolução do que as armas de fogo têm de mais assustador. Se comparado com uma faca, um assassinato com um revólver pode soar mais fácil, você precisa de um nível menor de frieza para puxar um gatilho do que para enfiar um facão. É mais fácil, e pode ser feito uma distância, de onde a vítima tem uma chance menor de se defender ou reagir. Por isso cria-se muito a racionalização de que uma arma de fogo é uma defesa contra outras armas de fogo, por esse sentimento de impotência que ela gera. Pois bem, o Death Note eleva tudo isso mais, escrever um nome é ainda mais fácil e requer ainda menos frieza do que puxar um gatilho. A distância pode ser ainda maior, e diferente de um revólver, o Death Note não pode atirar na sua perna ou só atirar pra cima. Ele soa como uma hipérbole do que torna armas de fogo assustadoras. O fato de que elas são feitas com o objetivo de atirarem em um ser humano. Instrumentos da morte que facilitam o ato de matar.
Um elemento que o Japão tem um controle imenso, até o dia em que Light achou o Death Note e removeu esse controle. E gerou o contexto que permitiu que Matt fosse fuzilado em seu nome.
E eis que então os estadunidenses decidiram que precisavam de uma versão deles de Light Yagami.
O filme de 2017:
O filme de 2017 tem muito pouco em comum com o mangá. E esse não é o principal problema em si, mas é importante estabelecer. Mais do que só manter a mesma premissa em outro país para outro público, eles precisaram alterar dois elementos essenciais a premissa. Muita gente na internet fala que o Light está menos sério e não tá fodão ou coisa do gênero. Mas isso é besteira. O que é mais notável que isso é como o Ryuk e o Death Note estão drasticamente diferentes nos filmes de 2017. Pois quando você muda esses dois, você obrigatoriamente muda todo o resto.
O Ryuk do mangá é um agente passivo que ocupa uma posição somente de expectador na vida de Light e que só quer matar o tédio, sem ter uma missão própria.
No filme estadunidense Ryuk é um agente ativo e um corruptor. Ele ativamente pressiona Light a se tornar um assassino e é visível que ele tem objetivos de que o Death Note seja ativamente usado pelos seres humanos. Ele deixa bem claro que Light não foi o primeiro humano que ele observa, e não será o último, e ele visivelmente preferia que o Death Note estivesse nas mãos de alguém mais cruel e sádico.
As duas regras que Light inventou para atrapalhar a polícia se tornam realidade no filme estadunidense. No filme, Ryuk diz que se Light passar sete dias sem usar o caderno, Ryuk passará o caderno para outro ser humano e fará o ovo ser humano matar Light como a primeira vítima. Não só deixando claro pra Light que se ele parar de ser Kira ele vai morrer, e que tem um literal Deus obrigando Light a ser um assassino, como principalmente colocando a ideia, de que se Light não usar o caderno, outra pessoa usará e a outra pessoa provavelmente será pior.
Ao longo do filme Light constantemente expressa seu medo, de que o próximo usuário do Death Note pode ser um psicopata que vai ter um uso ainda pior do caderno… lembram que no mangá Near deixa explicito que o uso do caderno que Light fez era o uso verdadeiramente psicótico, e que Near entenderia bem mais alguém que só usou pra matar os inimigos ou enriquecer, sem liderar um genocídio? Não aqui, aqui Light é o mal menor.
Tudo isso porque, e essa é a diferença essencial. No filme estadunidense, o Death Note é algo que sempre vai existir no mundo. Sempre existirá um ser humano sendo pressionado por Ryuk a não passar uma semana sem matar alguém. O filme não aborda a ideia de destruir o Death Note diretamente, mas está claro que qualquer tentativa de destruir o caderno sofreria resistência de Ryuk que está em uma missão, de garantir que o caderno seja ativamente usado pra fazer humanos assassinarem humanos.
E essa noção de que o Death Note não é uma existência cretina que deve ser removida do mundo, mas sim um elemento inalterável da civilização que nunca deixará de existir, faz com que a racionalização do Light de que é importante o caderno estar nas mãos de alguém que busque usá-lo de maneira sábia se torna uma mentalidade mais válida, já que o conceito de todo uso do caderno é maligno não é praticável, pois o uso do caderno é uma exigência de Deus sob a humanidade e resistir em usar o caderno faz com que Deus te mate em punição.
Mas a maior diferença de todas, é que no filme estadunidense, é possível escrever um nome e voltar atrás. Se arrepender do que escreveu e impedir que a morte ocorra. Essa diferença é essencial, pois permite que o caderno seja usado pelos seus poderes paranormais, sem matar ninguém.
O filme nunca teve a intenção de ir pro caminho de “Escrever no caderno é errado e ponto final.” Para resolver o debate ético sobre as ações de Kira. Pois o filme não pode concluir que armas criadas para matar são elementos que não deviam existir.
O que cai no personagem de James Turner, a contraparte estadunidense de Soichiro Yagami. James que nem Soichiro é pai do Light, um policial honrado, chefe do departamento que investiga Kira, e o pilar moral máximo do filme. O personagem que no fim do dia pode ser afirmado como um homem ético e de caráter.
Na sua primeira aparição, James está dando uma bronca em Light, que pegou detenção na escola por fazer a lição de casa dos colegas. James explica pra Light que toda trapaça é sempre errada. E explica essa visão de mundo pela seguinte analogia:
“Um revólver só é bom, se a mira for boa.”
Para James, uma pessoa ética é uma pessoa que sabe usar um revólver. E sabe que você só pode usar uma arma pro bem se mirar ela em direção ao bem. E é essa lição que ele ensina pro Light.
Isso coloca James em contraste com o outro personagem que menciona armas de fogo na hora de explicar sua filosofia de vida: L. L explica pra Light que ele faz um ponto de não usar armas de fogo, pois ele não é um assassino. Ele é um agente da justiça e um agente da justiça não mata ninguém.
Ele conclui a sua linha de raciocínio com a frase “É você quem está voando perto do sol, eu só quero garantir que você vai queimar.”, e essa conclusão põe tudo num contexto curioso. Pois Ícaro morreu quando suas asas queimaram. E L estava muito ciente de que a captura de Light só poderia terminar na sua execução. Mas ele diz que ser um agente ativo pra garantir que Light fosse punido (não detido, punido) não significava que ele matou alguém.
O L do filme é ingênuo, ele tem uma visão de bem e de mal infantil, e isso significa que ele é inteligente, mas não é sábio. Exemplificado pra como ele negligencia seu sono, e as preocupações de Watari pela sua saúde. E por causa disso, ele não estava psicologicamente pronto pra enfrentar Kira. Quando Light separa L de Watari, L enlouquece sem ter alguém pra cuidar dele, e começa a andar armado com o objetivo de atirar em Light e se vingar.
O filme termina com um final em que James vai visitar Light no hospital, depois de Light literalmente se colocar em coma, só pra garantir que a psicótica e sádica Lady Macbeth que era a contraparte estadunidense de Misa, Mia, se tornasse a nova portadora do caderno e começasse a agir que nem o Light do mangá age. James agora sabe que Light é Kira e ouve a versão de Light da história, onde Light explica como ele está tentado ser o mal menor que impede o nascimento de uma força do mal ainda maior. Em paralelo a essa conversa em que James e Light se entendem, L encontra uma página de Death Note nas coisas de Mia, e começa a rir conforme ele coloca o lápis no papel encarando o rosto de Light em uma foto. O L começa a coringar quando vê uma chance de enfim matar Light, sem saber que isso não tiraria Ryuk do mundo.
Enquanto o personagem que não usava armas de fogo nunca, é retratado como um sujeito infantil e instável, que se pressionado demais ia quebrar e se tornar só mais um usuário de Death Note. O homem sábio que acha que armas são boas para quem sabe aonde mirar, se manteve sábio.
Na prática o que isso tudo faz é: transformar Light em um herói. Light é o único personagem ciente do quanto Ryuk é maligno e de quanta morte e corrupção ele quer trazer pra humanidade, e ele é quem resiste a isso. Isso é, será até L terminar de escrever seu nome no caderno e soltar Ryuk para procurar outra pessoa. Light faz um ponto de não cruzar as grandes linhas que seu personagem cruzou no mangá. O Light estadunidense acredita que todo mundo é livre pra criticar Kira na internet e não pune sua oposição. O Light estadunidense não escreve nomes de suspeitos ou de pessoas sem ter provas de que elas cometeram os crimes acusados. O Light estadunidense não escreve o nome de nenhum agente da justiça que queira matar Kira E o Light estadunidense prefere ser descoberto pela polícia a ter seu pai transformado em dano colateral. A pessoa que é a favor de cruzar todas essas linhas é Mia, que como eu disse, atua como uma Lady Macbeth, tentando fazer Light se tornar uma pessoa fria que acha que vender a ideia do Kira é mais importante do que evitar usar o caderno o máximo possível. Nisso Mia é pintada como a usuária ideal do Death Note, e alguém que Ryuk quer ajudar a usar o caderno, mais que Light.
Eu elogiei Death Note no passado por ser um dos grandes usos do vilão protagonista nos mangás no passado. Em que a típica história do herói contra o vilão é contada na perspectiva oposta. Near representa o típico herói da Jump. Uma criança deslocada, porém, obstinada. Incomum, porém especial. Órfã treinada por um mestre. Que possui um rival agressivo e um mentor sábio, e que vinga os dois ao derrotar o maior assassino do planeta e salvar o mundo, usando o poder da cooperação e dos laços que ele formou em sua investigação. E Light é esse vilão.
Mas nos EUA, Light é o herói, e o real vilão é o fato de que não tem nada que Light pode fazer para derrotar Ryuk, mas que ele pode atuar com Ryuk para minimizar seus danos.
E é nessas horas que eu penso que a galera fala muito de white-washing na hora de adaptar animes em live-actions estadunidenses, falam muito da branquitude dos personagens. Mas eu fico pensando mais no peso do quanto culturas em lados opostos do mundo realmente tem dificuldade de dialogar um mesmo assunto. Não é algo que escalar um ator asiático para interpretar o Light mudaria. Death Note é uma história que pode ser contada por uma cultura que não tem nada contra o uso massivo e excessivo de armas de fogo? Em uma cultura dessensibilizada pela ideia de que vigilantismo e justiceiros são pessoas horríveis? Death Note pode ser contada da perspectiva de que o uso do caderno é ético e crer em um mundo sem mortes é uma perspectiva ingênua para as forças da lei?
O que me leva a pergunta de: A gente quer mesmo outro remake estadunidense de Death Note? A gente confia nos caras do Stranger Things para isso?
Eu não acho que o Japão é um mega exemplo cultural pro mundo seguir no que diz respeito ao sistema de justiça. Não quero que pareça que tem uma utopia em relação a como ver o tema justiça só por conta do desarmamento. Não acho que a reputação de terminar 99% dos julgamentos com o veredito de culpado, uma boa reputação que indica boas práticas.
E eu não acho o Tsugumi Ohba flor que se cheire, acho que ele escreveu muito mangá cagado, e que os mangás dele tem uma misoginia criticável. E acho que apesar de gostar de Death Note e ter muita coisa no mangá que eu dou valor, é um mangá pretencioso, mais do que um debate profundo sobre ética, vida e morte. O próprio Ohba constantemente fala sobre não querer trabalhar nada profundo em seu mangá.
Mas assim como o Light Turner, eu ainda prefiro ver essa história nas mãos de um cara tosco, do que nas mãos de alguém que não vá usá-lo para expor os fracassos dos Estados Unidos. Acho que existe valor em alguns tipos de história, não termos que ver pela perspectiva dos Estados Unidos.