E eis que eu assisto a versão do James Gunn de The Suicide Squad e gostei bastante. Acho que é um dos bons filmes de herói e se destaca positivamente tanto dos filmes do DCEU quanto dos do MCU. Porém o filme me deixou intrigado, pois eu senti que muita gente encarou o filme como uma crítica aos EUA e a suas políticas externas. E eu… não senti muito bem isso.
Digo, não me entendam mal, o filme faz algumas críticas sim. Faz denúncias pontuais que de fato saíram um pouco da caixa de assuntos que o expectador esperava ver o filme entrar, e são denúncias válidas que reforçam aspectos negativos da política externa do governo estadunidense. Porém quando eu digo que o filme não é uma crítica aos EUA, o que eu quero dizer é que ele não quebra os moldes da propaganda estadunidense da qual grande parte dos blockbusters fazem parte. E as críticas que o filme fez não desafiam a percepção geral do público sobre os EUA.
Então eu resolvi dedicar esse texto aqui para explicar como fazer esse tipo de crítica funciona no cinema. E com isso eu me refiro a entender que como o cinema opera mensagens políticas já tem décadas, e que tipo de linguagem funciona melhor e que tipo de linguagem funciona pior na hora de se apontar um dedo.
Para essa reflexão sobre crítica política a países em The Suicide Squad, eu quero refletir em como os heróis e vilões do filme são retratados politicamente, de que tom o filme toma com os elementos do filme que tem paralelos políticos reais e em quais as consequências das ações do governo estadunidense no filme.
E como exemplos de lugares onde o oposto do que The Suicide Squad faz pode ser observado eu quero usar a série animada Archer como um contraste claro. Archer é uma popular série animada prestes a estrear sua 12ª temporada, famosa por seu humor negro e ácido e pelo clima descontraído enquanto gira em torno de missões de espionagem. Que foi escolhida aqui, por ser uma série extremamente crítica aos EUA, e que recebe pouco, senão nenhum mérito por ir para lugares que os blockbusters de ação evitam ir. Então fica a dica de que terão spoilers de Archer também, além do filme.
…e também de: Avatar, Captain America: Winter Soldier, Captain America: Civil War e Batman v. Superman: Dawn of Justice.
Mas inicialmente eu quero falar do cenário onde a história de The Suicide Squad se passa. Pois isso foi a primeira coisa no filme que me chamou a atenção e me chamou muita a atenção.
O Cenário do Filme:
O filme se passa em Corto Maltese, um país fictício na América Central.
Vamos recapitular um pouco sobre como países fictícios funcionam.
A menos que o país esteja literalmente fora do alcance dos humanos como Atlantis e Themyscira, um país imaginário num mundo que reproduz o mundo real quase sempre é amplamente definido pela média do que imaginamos da região do mundo em que ele é inserido. Filmes de herói que nem The Suicide Squad, usam países fictícios para poder mostrar situações políticas e sociais lamentáveis sem apontar o dedo para nenhum país real. Geralmente países fictícios ficam em regiões que a percepção dos EUA desses países é de países cagados e abandonados entupidos de autoridades canalhas e povo oprimido.
Nesse sentido a Sokovia, do Marvel Cinematic Universe, serve como um genérico para a situação que o público projeta de como são os países que se separaram da Russia com o fim da União Soviética. O Nairomi, de Batman v. Superman, é um genérico para a situação que o público projeta da África dominada por senhores da guerra. O Qurac que ainda não apareceu em filmes, é o genérico da DC do Oriente Médio e seus governos teocráticos. E agora Corto Maltese é um genérico das ditaduras da América Central. Todos esses quatro países são países anti-democráticos e anti-estadunidenses. Países regidos a mão de ferro por pessoas cruéis que são críticos a maneira como os EUA resolvem os conflitos, e em sua resistência ao imperialismo, racionalizam a própria existência enquanto negam a liberdade das pessoas ao seu redor.
E tanto em Age of Ultron, quanto em Batman v. Superman, quanto em The Suicide Squad, os países se tornam palco de um massacre causado pelos nossos protagonistas gringos que vão até lá combater o mal. Em Civil War e em Batman v. Superman, responder pelo incidente internacional que foi o ataque de vigilantes estadunidenses se torna um ponto relevante do roteiro. E uma boa parte da trama dos filmes é sobre debater a responsabilidade e o direito que eles tinham de causar um massacre em outro país, mesmo que para deter uma ameaça maior.
Enfim. Os Estados Unidos têm mais defeitos enquanto nação do que eu quero enumerar aqui, pois a lista é longa, e os abusos e violações de direitos humanos que eles cometem com o próprio povo e com o povo de outros países é criminoso. Mas o país, mesmo com o mais disfuncional sistema de votação do mundo que várias vezes permite que o candidato menos votado vença o mais votado, mesmo com tudo isso, uma coisa é um fato. Os EUA nunca em sua história, desde sua fundação, foram uma ditadura. E o presidente sempre foi decidido por eleições, por mais que as vezes chamar essas eleições de democráticas seja explorar os limites dessa palavra.
Então faz 232 anos consecutivos que os EUA têm conseguido realizar eleições presidenciais com periodicidade. E dando mérito pra onde se merecem méritos, isso é algo que não dá pra dizer de todo país. Brasil tem um tiquinho mais de 30 anos e com um psicopata louco pra quebrar esse combo. Espanha é democrática faz 46 anos. E o Japão é uma democracia faz 74 anos. Não é todo país que pode clamar não ter tido uma fase totalitária por mais de dois séculos.
Por isso os EUA têm muito orgulho disso, e obviamente usam o seu direito de votar pra presidente, mesmo que com mil armadilhas do sistema para sabotar o poder de voto do povo, como prova máxima de que os EUA são um país que prega liberdade. Mesmo com a maior população carcerária do planeta e mesmo fazendo essa população carcerária realizar trabalhos forçados servindo de mão-de-obra de custo mínimo em um sistema tão análogo à escravidão que está previsto na própria 13ª emenda como uma exceção para tudo que a emenda prega. Mesmo com essa contradição, a palavra liberdade se sente confortável na boca de qualquer estadunidense, pois eles votam pra presidente e se sentem confortáveis imaginando que daqui a 50 anos eles ainda vão votar pra presidente.
E a propaganda estadunidense que não é nem um pouco besta, deita e rola no fato de que os países que mais antagonizam os EUA no planeta, não são democracias. São regimes totalitários. Cuba, Coreia do Norte, China, Venezuela não são democracias, e isso é frequentemente usado pela propaganda imperialista como uma maneira de falar “1×0, perderam por default” e de chegar à conclusão de que eles não tem nada a dizer quando criticam os EUA, pois sem democracia vocês não são melhores que o país da liberdade.
Mesmo que o país da liberdade seja uma enorme bosta.
Naturalmente, eu espero que o leitor seja capaz de ver a falácia por trás desse pensamento. Pra começar que esses países que eu mencionei são países socialistas, uma ideologia que os EUA combatem, desprezam e usam como bicho-papão já tem muito tempo. E enquanto as ditaduras socialistas, pela natureza antiestadunidense e anti-imperialista da ideologia, são aquelas que os líderes são vocais contra os EUA. O mundo está repleto de ditaduras cujos líderes na verdade se dão muito bem com os EUA. Que sempre foram um país pró-ditaduras, financiou várias ditaduras, negocia com ditaduras. E achar que a rivalidade dos EUA com esses países se baseia em liberdade vs ditadura é falso, quando o problema é a ideologia do governo.
E aqui no Brasil a gente sabe que no Estado Novo, ao regime militar aos simpatizantes da ditadura pouco discretamente ameaçando golpe de Estado aqui, todos eles tinham políticas de cooperação com os EUA, e que a nossa democracia sempre anda em ovos no que diz respeito aos EUA darem permissão para sermos uma democracia.
Enfim. Nisso estreia The Suicide Squad com Corto Maltese. Corto Maltese é uma ilha na América Central que segundo o filme, sofreu um golpe de estado semana passada em que uma família aristocrata que governou o país durante todo o século XX foi morta e os militares assumiram o poder. E a grande marca dessa retomada de poder é que os militares são antiestadunidenses e esse sentimento anti-imperialista é a ideologia que sustenta a nova ditadura.
Agora, vamos lá a América Latina já teve dezenas e dezenas de golpes de estado e de governo ditatoriais, porém revoluções feitas sem o apoio dos EUA que formaram ditaduras antiestadunidenses, tiveram duas: Cuba, em 1959 e Nicarágua em 1979. e é evidente que o regime retratado é pra simular esses dois polos anti-imperialistas na América.
E o que é que tem o filme se passar em um ponto inspirado em ditaduras anti-imperialistas? Na teoria nada, mas é realmente difícil criticar os EUA, quando você tá lembrando a audiência do que é exatamente que os EUA combatem com seu excesso.
Corto Maltese não é Nicarágua nem Cuba, embora seja inspirado em ambas. Isso significa que os roteiristas têm liberdade de mostrar atos de abuso que não são os abusos dos quais os países são formalmente acusados, e deixar para o expectador preencher na sua cabeça “Ah, então os países que se rebelam contra os EUA são assim.” e The Suicide Squad não poupou munições quanto a isso. O ato do general que governa Corto Maltese mexer com experimentos nazistas e matar crianças é demarcado no filme como o ápice do mal, ao ponto em que Harley Quinn diretamente compara o ditador ao Joker e mata ele.
Além de ser um governo sem honra nem palavra. Que antes mesmo dos créditos iniciais começarem aparecem executando o infiltrado deles no time inimigo que entregou a chegada da Task Force X. Eles matam os próprios aliados a sangue frio, por motivo nenhum. E principalmente pela ausência de solidariedade interna, em que não existe nenhum luto pela morte de Luna, em contraste a Flag cuja morte machucou os membros do Esquadrão, que são pessoas que tem dignidade.
E sabemos o nome disso, né? É espantalho que chama. Nós não batemos em Cuba, nós fazemos uma cópia de Cuba, misturamos na cópia, coisas que Cuba fez com coisas que Cuba não fez e aí xingamos a cópia e deixamos as pessoas fazerem a associação.
Os militares de Corto Maltese, membros dessa ditadura anti-yankee são constantemente usados no filme como se fossem Stormtroopers, a grande maioria das cenas de ação do filme são dos personagens do esquadrão suicida destruindo membros do exército anti-imperialista pro nosso entretenimento. Explodindo, rasgando em dois, mutilando, decapitando, espancando, atirando, mais da metade das cenas de ação do filme giram em torno do prazer de ver os fardadinho serem chacinados pelos protagonistas.
E nisso o filme deliberadamente serve como lembrete ao expectador, de quem é que os EUA combatem: nações governadas pelo Joker que exterminam crianças e financiam experimentos de abusos humanos. Sempre lembrando que nem Cuba nem a Nicarágua são formalmente acusadas de terem laboratórios de experimentos mengelianos. A única região em Cuba que já foi acusada de conduzir experimentos humanos que violam códigos éticos é a Baía de Guantánamo, que é usada pelos Estados Unidos para encarcerar e torturar acusados de terrorismo.
Pois bem, eu não preciso lembrá-los também que apesar de ditaduras socialistas serem parte da história da América Latina, ditaduras anticomunistas também são, e em uma escala não só maior, como são uma ameaça mais do presente. O filme afirma que o golpe em Corto Maltese ocorreu “semana passada”, para se referir a uma revolução que rima com golpes que não aconteceram nesse século, enquanto os atentados a democracia que a América Latina está sofrendo nesse momento estão nas mãos de apoiadores dos yankees e com a benção dos EUA.
Inclusive, eu acho coincidência, surpreendente que ninguém deu um google pra checar que o General Silvio Luna, presidente de Corto Maltese tem um nome muito semelhante ao General Silva e Luna, um dos membros do governo Bolsonarista atual. Eles dividem um nome e a natureza de sua ameaça, mas de lados ideológicos opostos.
Enfim o que é importante de se retirar aqui? Duas coisas.
1- Seja Harley matando o presidente, ou o esquadrão matando os soldados sempre que possível, sendo eles estadunidenses em uma missão oficial do governo, essas cenas nunca são enquadradas como intervenções dos EUA condenáveis. São cenas catárticas que nos dão prazer pois vemos os protagonistas sendo fodas, e vemos vilões sendo chacinados. Tal como nazistas em filme do Indiana Jones, a posição política dele nos garante que o público não tenha empatia nem pense nas famílias desses homens que estão ali para morrer violentamente pelo nosso entretenimento.
E nesse enquadramento do agente estadunidense matando soldados do governo de Corto Maltese como entretenimento, o pacto de Rick Flag com a guerrilheira Sol, se torna uma rima ao apoio e ajuda que os EUA deram para as guerrilhas em Nicarágua nos anos 1980, uma ação real de intervenção dos EUA nos países alheios, que aqui não é criticada, por causa da segunda coisa.
2- No final do filme, Sol vai na televisão atribuir créditos à Task Force X, explicando que sem eles Corto Maltese não seria uma democracia novamente. O destaque dessa cena é a filha de Bloodsport estar assistindo na televisão e ver que o pai devolveu democracia a um povo e é, portanto, um herói. Corto Maltese foi salva do anti-imperialismo pelos imperialistas. E isso é retratado como algo bom.
Enfim, como é que Archer retrata ditaduras na América Latina?
No final de sua quinta temporada, os personagens de Archer vão para San Marcos, outra Republica das Bananas fictícia na América Central, com o objetivo de vender armas para o ditador, Calderon, que pretende usar as armas para lutar com a rebelião. Calderon apesar de ser um ditador oprimindo seu povo, pela natureza anticomunista de seu regime, tem propaganda de seu governo sendo dita nos noticiários estadunidenses e é um aliado dos EUA.
Ou seja, a ditadura genérica deles na América Central não é uma referência a Cuba e Nicarágua, e sim às dezenas de ditaduras que os EUA financiaram para diminuir a presença comunista na região. San Marcos é o outro tipo de ditadura do continente, o tipo mais comum.
Quando os personagens chegam no palácio de Calderon, igualzinho em The Suicide Squad, o presidente se apaixona e resolve se casar com a mulher mais louca do time, pois gostava do espírito rebelde dela. E Cheryl, a mulher em questão, tal como Harley, aponta as atrocidades que o ditador cometeu como um problema. Mas em Archer o humor da cena claramente deriva do fato de que os EUA apesar de votarem pra presidente, também são completamente cagados.
Ao final os personagens tentam se juntar aos rebeldes comunistas para ajudar eles a tomar o poder, depois de criarem problemas com Calderon, mas o que eles descobrem é que os rebeldes eram financiados pela CIA, a mesma CIA que financiava Calderon. Mais que tomar um lado específico na guerra, o governo estadunidense fazia comércio com os dois lados para pegar tudo o que eles podiam do país, com o objetivo de eventualmente fazer a situação escalar em um ponto que justificasse uma intervenção armada para que a CIA tomasse o poder no local.
Que é o que acontece no fim da temporada, e no instante que a CIA aperta o botão do golpe do Estado, não existe mais luta pros nossos protagonistas, somente fuga. Pois não era mais uma batalha que dava pra ajudar um lado a vencer, no que a CIA declarou o golpe o país acabou e todos ali sabiam e não podiam fazer nada a não ser fugir.
Enquanto em The Suicide Squad, as ditaduras latino-americanas, pelo seu viés anti-imperialista, oferecem um sentimento de escape para os personagens poderem destruir soldados inimigos sem culpa, enquanto deixam claro os riscos e perigo da influência dos inimigos dos EUA. Arccher usa as ditaduras latino-americanas para mostrar como a CIA manipula os conflitos e financia ditaduras dos países que eles querem controlar, e que no fim não importa quem ganha, pois os EUA sempre podem só dar um golpe.
Sobre Corto Maltese é isso. Mas eu estaria sendo injusto se eu fingisse que o filme não mostrou crimes hediondos cometidos pelo governo estadunidense em Jotunheim. E não tenha apontado para alguns podres que são parte das intervenções estadunidenses como parte da identidade dos personagens Peacemaker e Amanda Waller. Então vamos falar sobre essa parte do filme. A parte que critica os EUA.
Como o filme retrata instituições estadunidenses:
Antes de entrar nesse ponto a gente precisa falar de outro ponto, pois esse filme não existe em um vácuo. E esse outro ponto é o seguinte fato: um número imenso de filmes de ação recebem dinheiro e recursos do Pentágono em troca de serem peças de publicidade positiva para as forças armadas dos EUA. Mais especificamente, os termos do contrato exigem que o Pentágono aprove o script antes dele ser filmado, caso o filme receba esses benefícios. Esse número é muito grande e o controle que instituições como o pentágono e a CIA tem sobre como eles são retratados na mídia é algo no qual se investe muito tempo, muito dinheiro e muitos profissionais, e, portanto, abrange um número muito grande de filmes e séries.
Eu não tenho tempo de falar de todos. Então quero falar de dois filmes que apesar de a princípio parecerem críticas aos EUA e ao exército dos EUA, na verdade eles tiveram o script aprovado pelo Pentágono e se não são propagandas claras do exército estadunidense eles são no mínimo inofensivos e incapazes de abalar a imagem positiva do exército. Esses filmes são Avatar e Captain America: Winter Soldier.
E entender por que esses dois filmes são filmes que o Pentágono não considera imagens negativas do que eles fazem, ajuda a gente a entender como a propaganda funciona e o que de fato ataca onde dói e o que parece um ataque, mas no fundo não é.
Comecemos com Winter Soldier. Pois esse filme é constantemente interpretado como uma crítica aos EUA, porque tem gente que acha que um personagem chamado Capitão América tem o real poder de fazer reais críticas aos EUA. Pois bem, qual é a suposta crítica do filme e por que ela passou pela aprovação do Pentágono?
No filme o Capitão América combate a organização governamental S.H.I.E.L.D, que é mostrada no filme usando tecnologia de espionagem na população de maneira que são associadas ao Ato Patriota e aos abusos de privacidade da NSA. E isso é ruim, certo? E o governo estadunidense fez isso, certo? E agora o filme está mostrando. Mas apesar disso, o filme jogou tudo na conta da S.H.I.E.L.D em vez de jogar na conta de uma organização real. A S.H.I.E.L.D fez isso, mas como esse grupo não existe, ninguém fez isso. Além disso, a S.H.I.E.L.D foi infiltrada por nazistas, e como os nazistas nunca se infiltraram na CIA ou o FBI, ou o Exército, então tá tudo bem. Os que foram trabalhar lá, não eram agentes infiltrados querendo formar o quarto Reich (e esse tipo de risco não é a parte problemática da CIA ter dado emprego para cientistas nazistas depois da segunda guerra).
Enfim: esse grupo fictício pode perder sua credibilidade se por pra mostrar que quem tá vigiando o povo dos EUA são os nazistas infiltrados e não os patriotas de verdade. O exército tá limpo, a NSA tá limpa, a CIA tá limpa, essas organizações estão não comprometidas pela narrativa.
De quebra o filme super faz um experimento nazista se apresentar com símbolos e visuais soviéticos, ajudando o público a não fazer distinção entre comunistas e nazistas como os inimigos dos EUA.
Mas em resumo, o filme apesar de apontar corrupção dentro do governo, foi um sucesso em retratar a origem do problema como sendo obra dos inimigos dos EUA, e usar isso para fortalecer os valores e incorruptibilidade do homem que personifica os reais valores por trás do país. O Capitão América, Steve Rogers, veterano de guerra e ex-integrante do exército estadunidense. Um garoto propaganda do valor das forças armadas in-universe interpretado por um garoto propaganda da CIA na vida real.
Em Avatar vemos um grupo militar tentar destruir um planeta de alienígenas com um estilo de vida semelhante ao dos povos indígenas e sendo completamente massacrados pelos nativos. É uma coisa bonita de se ver aquele bando de estadunidense tomando no cu e sofrendo uma derrota militar explícita. Qual é a pegadinha? Eles não são membros do exército, eles são mercenários. Eles são pessoas que podem ter acesso a equipamento militar e a conhecimento tático e empregar esse conhecimento em guerras. Mas sabem o que eles não têm? Eles não são parte do exército estadunidense, pois eles não têm o que é preciso para durar ali dentro. Eles não têm valores. O único membro do exército do filme é o protagonista Jake Sully, que não é membro da S.H.I.E.L.D nem de nenhuma subdivisão fictícia, não. Jake Sully é ex-membro dos fuzileiros navais dos EUA, uma organização que o filme menciona com orgulho, pois seu representante é um personagem que personifica os valores que o filme defende. Ele é disciplinado, justo, nobre, respeitoso com as diferenças, um guerreiro nato e um líder nato. E ele é bom o bastante para poder ser o melhor guerreiro e o melhor general na hora de defender os Na’vi, mais do que qualquer Na’vi seria, mesmo aquela não sendo a cultura dele nem o planeta dele.
Nesses filmes, os antagonistas podem ser codificados para fazer uma audiência mais antagonista ao governo ver paralelos entre eles e os EUA, mas enquanto essa associação é inconsciente e é uma projeção do público, os dois filmes possuem heróis que são um contraste com a corrupção e ganância dos personagens por ser uma pessoa com uma moral incorruptível, um senso de justiça imenso, e a determinação de nunca se dobrar ao mal, e esses personagens são diretamente associados a divisões reais do exército dos EUA às quais o membro da audiência pode se alistar quando quiser.
A moral e justiça deles está diretamente associada ao fato deles terem servido ao país se alistando. Enquanto qualquer otário pode por uma roupa camuflada e ser badass, mas se não tiver passado pela experiência de ser parte dessa organização honrada, ele não terá criado o caráter necessário para fazer o bem.
E esses são dois filmes lidos como críticos aos EUA, coisa que não pode ser dita de outros diversos filmes patrocinados pelo Pentágono, como Independence Day 2, Armageddon, Top Gun ou Captain Marvel. Todos esses filmes falam a mesma língua. Vilões não podem representar uma instituição real e identificável do governo dos Estados Unidos e membros do exército são retratados como pessoas de alto senso moral. Se você seguiu essas diretrizes o Pentágono não está realmente incomodado.
E eu não sei, eu de verdade não sei, se o Pentágono ajudou a financiar The Suicide Squad, e se eu tivesse que chutar, eu diria “muito provavelmente não”, mas o filme definitivamente fala parte da linguagem que o Pentágono educou os filmes a falar, e se isso não tiver sido pra agradar o Pentágono, o mais provável é que tenha sido feito por osmose, como um reflexo do quanto alguns desses conceitos estão naturalizados em Hollywood. E por terem sido naturalizados para fazer propaganda dos EUA, é difícil fazer críticas profundas que tragam algum questionamento sem quebrar essa naturalização.
As críicas de The Suicide Squad aos EUA podem ser divididas em três partes,
1- A acusação de que o governo dos EUA, 30 anos atrás, começou um centro de experimentos humanos mengelianos em solo estrangeiro, usando os inimigos do governo do país para fazer experimentos e desenvolver armas de utilidade pro governo.
2- Amanda Waller, a agente do governo, é uma força antagonista clara, e retratada no filme não-ambiguamente, como uma pessoa maligna e sem códigos morais.
3- O Peacemaker, um vigilante patriota que supostamente deveria representar os valores estadunidenses, é apresentado com um senso moral míope de que os fins justificam os meios e acredita que proteger a imagem do país e esconder seus podres é uma necessidade, e está disposto a matar por elas.
E de fato, o Starro, a Waller e o Peacemaker são os três maiores antagonistas do filme. De maneira que o exército de Corto Maltese não é. Eles são inconveniências, e bonecos divertidos de matar, mas não são um obstáculo que apresente tensão ao filme e devem ser detidos.
Então essas críticas são todas válidas. E precisas. Mas o filme ainda fala na linguagem das demais propagandas do Pentágono.
A divisão de Amanda Waller nunca é nomeada, não sabemos aonde ela se encaixa, nem que divisões respondem a ela, mas sabemos que ela não representa nenhuma organização real. E acima de tudo, sabemos que qualquer maldade que ela cometa é uma maldade a nível pessoal. Waller é uma pessoa ruim dentro de uma instituição governamental, mas Waller não tem a cumplicidade de seus colegas de trabalho. E uma vez que ela passe da linha moral, ela sofre um motim dos demais membros da organização que a impedem de cruzar a linha. O sistema funciona, pois quando uma pessoa sai da linha ela é detida imediatamente e o resto dos agentes do governo trazer a situação de volta.
Apesar de todo seu patriotismo, o Peacemaker nunca é apontado como tendo servido nenhum tipo de forças armadas. Assim como nos quadrinhos o personagem nunca foi do exército. O Peacemaker é um vigilante, e um vigilante tão problemático, que ele foi preso. Ele é parte daqueles que o governo estadunidense vigiou e puniu pela sua mentalidade distorcida. O sistema funciona, já que gente como o Peacemaker não consegue posições de autoridade facilmente. Apesar dele ter o mesmo arsenal de habilidades que Bloodsport, ele não era o líder da missão, o Bloodsport era. Ele era só um plano de retaguarda para garantir que caso os demais membros do time não estivessem dispostos a sujar as mãos, ele estaria.
E o Starro é um alien gigante aprisionado em segredo pelo governo yankee pra fins suspeitos. E isso é algo sobre o que eu quero falar daqui a pouco.
Agora eu quero falar que o Peacemaker é diretamente desafiado por um personagem chamado Coronel Rick Flag. Rick Flag não tem um codinome, um uniforme espalhafatoso ou uma ficha criminal. Ele tem uma posição especial no Esquadrão, ele é um coronel do exército estadunidense que coordena a Task Force X. Ele não é um vigilante, nem um criminoso, ele é um militar de uma divisão real e identificável do exército na qual os membros da audiência podem se alistar.
E seu senso de justiça inabalável é o que permite que ele desafie o Peacemaker. Ele, assim como Jake Sully e Steve Rogers, tem nele a habilidade de resistir a corrupção de engravatados e fazer o que é certo, pois esses valores são os valores do exército, e ele é um dos dois únicos membros do exército estadunidense do filme. Sendo o segundo o Bloodsport, que serviu ao lado de Flag nas Operações Especiais, divisão real, mencionada por nome no filme. A decência de Flag é observada e admirada por vários personagens do filme, da revolucionária Sol, ao patriota Peacemaker que deixa claro que considera Flag um herói antes de atacá-lo, até Bloodsport e Harley Quinn, que mesmo sendo criminosos reconhecem o valor e honra de um homem como Rick Flag.
E seu colega Bloodsport não fica pra trás, sendo alguém com histórico militar real que por conta disso desde o começo do filme era capaz de ver a hipocrisia do discurso de Peacemaker e foi quem colocou Waller na parede. Pela sua atitude de não desafiar quem estar errado, fazer a coisa certa e honrar o último desejo do herói com quem ele serviu, Bloodsport é visto como um excelente líder e excelente agente pela Waller. Reconhecendo que essa postura é do que os soldados estadunidenses são feitos, e até a ala mais corrupta ali reconhece isso.
Uma pessoa pode se tornar uma distorção dos valores estadunidenses, mas não no exército. Um membro real das forças armadas não usa uma privada na cabeça.
Por contraste, na série Archer, os personagens são precisamente o grupo que não representa nenhuma instituição governamental real, e embora eles todos sejam pessoas amorais, a desconexão deles do governo se torna uma desconexão, quando eles fazem o bem ou o mal, tanto faz. Eles podem estar protegendo o Papa ou roubando segredos de Cuba, eles topam qualquer missão, pois eles são, embora nunca se chamem por esse termo, praticamente mercenários.
Porém o governo aparece vilanizado em Archer representado em instituições bem reais. Que podem incluir a polícia ou o exército ou o FBI (que nunca apareceu, mas é mencionado). Muito embora quando eles vão pro espaço eles criam a organização fictícia ISA em vez da NASA, por algum motivo.
Porém a organização que mais aparece na série é a CIA. A CIA é uma antagonista recorrente em Archer, e toda aparição da CIA, carrega contexto negativos, que aponta que eles, não agentes infiltrados, mas os agentes da CIA constantemente estão cometendo atrocidades em nome da segurança nacional, envolvendo várias atrocidades em outros países.
Todo episódio com a CIA, ela é mencionada pelos seus podres reais do passado, como a Operação Gladio, o Golpe de Estado na Argentina, o projeto MK Ultra, a série não tem medo de apontar dedos e nunca joga na conta de um vilão manipulando os agentes ou de um inimigo externo aos EUA. E se puderem jogar uns podres do FBI na conta, por que não? E nada genérico, dando nomes, fatos e material para que o expectador dê um google.
Membros do exército raramente aparecem em Archer, mas é verbalizado pelo protagonista, que deixa bem claro que ele não gostaria de ser membro do exército. Apesar de trabalhar em situações de guerra todo dia, não acha que alistar-se vale a pena.
Dito isso, na uma vez em que membros da aeronáutica apareceram, eles levaram uma surra imensa de Archer que questionou a competência deles.
E criticar os EUA citando organizações e podres reais, é sempre mais eficiente do que falar: “mas se existisse uma subdivisão para gente com superpoderes, ela poderia se corromper, na teoria.”
Mas… The Suicide Squad ainda fala que os EUA fizeram uma base de experimentos humanos secreta e que estavam dispostos a matar pra proteger o segredo. O que me leva ao próximo ponto.
A confiança no governo.
Apesar de toda a propaganda que o exército e a CIA investem e toda a interferência que eles têm em filmes e séries para controlar a narrativa de como o povo percebe suas instituições, esse esquema não é perfeito. E se fazer críticas abertas aos militares e quebrar a narrativa de que os soldados são heróis, nobres e justos é algo que chama a atenção sempre que acontece… isso não quer dizer que as coisas sempre saem do jeito do Pentágono.
E assim como existem filmes famosos por terem sido financiados pelo Pentágono, tem filmes famosos por terem tentado esse financiamento e não conseguido, por desagradar o Pentágono. Esses filmes incluem Avengers, em que o Pentágono não gostou da ambiguidade da autoridade da S.H.I.E.L.D nos EUA e nem da ambiguidade sobre quem eram as pessoas sombrias que mandavam em Nick Fury. E o Pentágono não aceitou financiar Independence Day, por conta do filme mencionar boatos a respeito da Área 51. Uma zona militar em Nevada, com inúmeros rumores, a maioria, mas não todos, envolvendo aliens, que o Pentágono desmente todos os rumores desde sempre. E nunca vai aprovar nada que alimente fofocas sobre a Área 51.
…porra, só em 2013 que a CIA oficialmente admitiu pro público que a Área 51 sequer existe, isso é o nível do quanto eles não querem ninguém falando a respeito.
E bem… todo mundo sabe sobre a área 51. E por mais que seja absurdo sequer cogitar que o exército yankee guarda e estuda aliens em uma base militar secreta. Muita gente acha isso de verdade. E porra, aliens abduzidos em segredo? Parece algo muito além do racional, mas a galera acredita isso, e por definição duvidam do governo.
Pois os estadunidenses duvidam de seu governo. Pra cacete. 15% da população acredita que o 11 de Setembro foi causado pelo próprio governo. 10% da população acha que o governo fraudou o pouso na lua.
Se pros estadunidenses os homens e mulheres que serve as forças armadas são no geral figuras heroicas e justas como Rick Flag, o governo sempre foi algo meio sombrio e suspeito. E histórias sobre o poder simbólico dos EUA, como Forrest Gump, que conseguem passar pelo ataque ao Vietnã sem comentar as atrocidades e crimes de guerra cometidos ali, não realmente omitem o Nixon e como não se confia em presidentes.
Então assim como Independence Day, não fica menos patriota quando alimenta boatos sobre a Área 51, e Forrest Gump não fica menos patriota quando nos lembra que os presidentes são figuras nefastas. The Suicide Squad, não está sendo exatamente fora da caixa, quando diz que o governo estadunidense está armazenando aliens em segredo para estudar e realizar experimentos humanos.
Não em um país, em que são justamente os mais patriotas e mais apaixonados pelo próprio país que defendem que o Obama e a Hillary Clinton são satanistas envolvidos por uma rede de tráfico humano e pedofilia que envolve beber sangue.
O crime que é Jotunheim cai na conta ambígua do “O governo”, que não tem identidade visual na qual o expectador possa projetar qualquer coisa.
O Starro foi encontrado 30 anos atrás no universo do DCEU? Quem é o presidente que autorizou a construção de Jotunheim? Ele parece com o que? Por que o expectador do filme vai associar esse presidente misterioso a uma desilusão de seus valores nacionalistas? Por causa de um kaiju?
O Starro é normalmente encarado como uma metáfora pros efeitos de intervencionismo em outros países. Mas mesmo quanto a isso é uma situação estranha. Pois obviamente construir uma base para cometer crimes hediondos no país dos outros é intervenção. Mas quando a gente critica a intervenção dos EUA, especialmente hoje em dia, raramente é disso que estamos falando.
Houve um consentimento na construção de Jotunheim, o governo de Corto Maltese aprovou e se beneficiou de sua construção. E embora isso obviamente seja horrível, por ser uma construção intrinsecamente maligna, e tenha sido usado para atacar o povo. Isso não foi uma catástrofe diplomática, pois foi a cooperação de dois países para algo que dois governos queriam e eles trabalharam lado a lado.
E embora os EUA definitivamente ajudem governos a cometerem atrocidades com o próprio povo, o país é realmente famoso em sua política internacional pelas vezes em que eles invadem o país sem o consentimento de seu governo, para fazer algo que não é benéfico nem ao governo e nem ao povo. Atropelando qualquer noção de boa diplomacia com invasões, guerras, golpes de estado e outras práticas que desestabilizam esses países e forçam eles a serem dependentes dos EUA. E quando alguém fala “eu tenho raiva do intervencionismo dos EUA em outros países”, o mais provável é que estejam falando dessa segunda opção.
Mas esse tipo de ação diplomática, envolvendo agentes dos EUA invadindo o país em segredo, matando figuras influentes, desestabilizando a situação, é menos parecido com a construção de Jotunheim e mais parecido com o que a Task Force X foi fazer ali. Tanto é, que a primeira cena é essencialmente uma reprise da Invasão da Baía dos Porcos, com o plot twist de que aquela não era a invasão principal, mas uma distração para a verdadeira invasão ter sucesso. O filme reescreve uma das maiores vergonhas militares dos EUA, para os EUA saírem por cima. Olhem só isso.
E quando Harley literalmente mata o presidente, ou quando o esquadrão chacina o exército local, fazem alianças com guerrilhas locais para mudar a estrutura do governo ou mesmo o ato deles explodirem o prédio de Jotunheim, não é enquadrado pelo filme como “um bando de gringo se metendo nos assuntos internos do país dos outros”. A narrativa não passa a impressão de que é nessas cenas que a gente vê “a verdadeira cara do quanto os EUA são podres”. Não é nessas cenas que a diferença entre o Peacemaker e o Rick Flag floresceu e que o idealismo de quem acreditava no país foi embora. E o motivo central disso, é que eles estão trazendo a democracia de volta a Corto Maltese.
Em Archer, a conspiração e perda de confiança no governo nunca precisa ir pra laboratórios secretos na américa central. O foco pelo contrário está justamente pros abusos que o governo estadunidense comete em solo nacional.
Os abusos no estrangeiro não são segredo pra ninguém, é o intervencionismo que é o dia a dia dos personagens. É coisa que eles fazem todo dia.
A série diretamente aponta os nazistas que trabalham na NASA e pra CIA, mostra a área 51 e no geral deixa claro que os EUA não precisam ir pra outro país para fazer as maiores atrocidades do mundo em segredo, pelo contrário, quando eles vão pra outro país é pra fazer a maior atrocidade do mundo em público.
Ou resumindo tudo em um diálogo muito direto em uma das falas da série:
E a série ainda dá combustível para conspiração e paranoia com a revelação de que justamente, os podres da CIA que sabemos e que a série comenta foram segredos que a CIA deixou vazarem como uma concessão para proteger os segredos que a CIA não podia deixar vazar. Reforçando a ideia de que essas organizações não se abalam com algumas denúncias, desde que você não quebre a narrativa geral de poder do país.
Que é como eu me sinto com a questão do Starro. Está tão alinhado com o que já esperamos que o governo fosse fazer caso existisse, que a única coisa estranha é não terem feito no Texas para usar imigrantes como experimento. Mas isso não quebra a narrativa geral de patriotismo, pois o estadunidense médio já acredita que o governo tem a moral de fazer essas coisas.
E a reação do Peacemaker e de Waller é justamente a de que essa revelação destruiria a reputação dos Estados Unidos, como se o que faltasse pros EUA serem cancelados é descobrirmos que tem uma facilidade deles em Cuba cometendo tortura em segredo, quando tem uma que não é segredo nenhum agora mesmo…
…eu tenho que fazer um texto no futuro como a cultura pop ajuda a alimentar a ilusão de que vilões desmascarados pela percepção pública perdem seu poder, o que a última década no mundo provou não ser verdade.
Mas continuemos.
Soluções:
The Suicide Squad é um filme com um final feliz. Alguns membros do esquadrão morreram, mas somente Rick Flag era querido o suficiente pelos colegas para ficarem de luto. A Ratcatcher lamentou a morte do Polka-Dot Man, mas não dividiu a tristeza com ninguém e a câmera agilizou o luto dela para fazer Bloodsport e Harley se conectarem pelo luto pelo Flag que é um destaque muito maior. Já o Milton vira uma piada sobre o quanto ele era esquecível. E apesar dessa perda, todos superaram seus arcos, Harley, que vive somente no presente no mundo na própria cabeça, descobriu seu propósito na missão de carregar a lança. Bloodsport superou seu medo de ratos, e fez laços preciosos. Ratcatcher 2 provou o ideal de seu pai, de que ratos podem ser a diferença positiva no mundo. King Shark fez amigos. O Esquadrão ganhou uma arma de negociação contra Waller que retirou a chantagem dela sobre eles, a acuou e diminuiu seu poder. Corto Maltese foi salva e vai ser uma democracia pela primeira vez em 90 anos. A filha de Bloodsport viu na televisão que seu pai é um herói. Tudo está bem quando acaba bem.
E para um filme notável por passar quase que inteiramente em solo estrangeiro, é notável que quem trouxe esse final feliz foram os estadunidenses. Mesmo a revolução de Sol, é colocada pela própria na conta dos nossos protagonistas como os responsáveis pelo que ocorreu.
E isso acontece por causa de suas coisas.
Primeiro, porque os EUA limpam a própria sujeira. Se o problema começou neles, então eles vão resolver. Eles compensam o mal que eles fazem, fazendo logo em seguida um bem que reduza os danos o máximo possível. Vale pros protagonistas matando Starro, destruindo Jotunheim ou servindo de ajuda para Sol depois de por conta de um mal-entendido matar seus aliados. E vale pros subordinados de Amanda Waller nocauteando-a e ajudando o Esquadrão a se organizar. O sistema se autorregula, pois ninguém vai cruzar os braços e simplesmente assistir o mal ser feito sem questionar
E segundo, por insubordinação. Porque em vez de ouvirem o que engravatados e figuras de autoridade dizem que era pra ser feito. Eles fizeram o que eles sentiram que era correto, correndo o risco de serem mortos. Estadunidense não fica de braços cruzados quando injustiça ocorre na frente deles.
E o ato de ignorar ordens superiores, não respeitar a hierarquia para fazer o que sentiu que é correto é algo que podemos projetar como sendo contra o que os EUA representam, dependendo do filme. Mas é na verdade a marca máxima de personalidade dos maiores ícones estadunidenses.
Seja o Capitão América, seja o Homem sem Nome, eles fazem o que eles sentem que deve ser feito, e eles não seguem ordens. Eles não dão ouvidos para o que as pessoas acima deles falam, eles sabem resolver a situação. Sabe quem é que segue ordens? Os nazistas. Estadunidense age.
É assim que o Indiana Jones se porta, é assim que o Peter Quill se porta, é assim que o Rick Blaine se porta, é assim que John McLane se porta. E é assim que os eleitores achavam que Donald Trump se portava quando desqualificava qualquer um que tentava alertar o desastre que seria seu governo. E é assim que os EUA como país se portam perante a ONU ou qualquer órgão internacional que tente impedir que o país faça bosta.
A ideia que fica é a de que quando as pessoas que ficam atrás da mesa são mal-intencionadas, mas as pessoas que estão em ação possuem valores, então a situação se equilibra, graças a insubordinação que aflora quando você vê que recebeu ordens de fazer algo errado.
Que bateu em Rick Flag, que bateu no pessoal próximo a Waller e que bateu em Bloodsport.
Por isso a missão foi uma força do bem, mesmo que sua mandante não quisesse que fosse.
Em Archer, essa insubordinação é claramente apontada como algo que não te recompensa em uma vida militar e limita seu sucesso em trabalhos pro governo, em vez de recompensar por resultados e valores morais.
Na série os EUA raramente limpam a própria sujeira, e muito normalmente os agentes sabotam suas relações com os países em que invadem, como consequência dos danos cometidos na missão. Seja sendo banidos do país ou tendo que se livrar das autoridades locais que testemunharam suas intervenções.
E a incapacidade de Archer de seguir ordens é momentaneamente pintada como nobre (como quando ele desafiou os demais agentes para ajudar uma Coiote a atravessar uma fronteira com um camburão de imigrantes, por ser contra as leis de anti-imigração), mas ela é mais vezes do que nunca retratada como um sintoma de sua arrogância estadunidense e que Archer sente que o mundo gira ao redor dele, pois ele age representando os EUA em suas missões. E os estrangeiros com quem ele interage apontam isso mais que qualquer coisa.
Conclusão:
Eu não acho que o filme seja explicitamente propaganda estadunidense. E acho que ele é bem intencionado em sua mensagem, partindo do pressuposto que foi escrito por alguém imerso na cultura estadunidense, e que as críticas são filtradas pela cultura em que o filme foi feito. Mas eu acredito que The Suicide Squad ao não quebrar com as convenções de linguagem de filmes que são intencionalmente propaganda, ele enfraqueceu a própria crítica.
Ao oferecer um doisladismo de “Os EUA são ruins, mas olha só aqui a real cara do que eles combatem.” Ele cria o cenário em que a plateia só tira do filme o que quiser dele. E quem lembra do que foi Tropa de Elite sabe que a partir daí só falar “entendeu errado”, não adianta nada.
Mas acima de tudo, o filme não tenta em nenhum momento romper com a narrativa estadunidense.
O filme quis usar um formato estadunidense, com clichês estadunidenses e heróis valorizando os traços do típico herói estadunidense e isso dilui a crítica. Sempre lembremos que as ferramentas do mestre nunca vão desmantelar a casa-grande.
É curioso pensar em como esse filme tem um elenco bem menos diverso do que seu antecessor. Enquanto o péssimo filme de Ayer tinha três imigrantes no time principal, aqui temos somente Ratcatcher no time principal, e dois no time secundário que são mortos na primeira cena.
Com isso o filme nos priva da perspectiva não-estadunidense. Sol em algum momento faz o comentário “americanos atiram primeiro e perguntam depois”, e é só isso, e ela se alia e é grata a eles. Apesar de o filme se passar em solo estrangeiro, quem abertamente debate os abusos do governo estadunidense são os próprios estadunidenses. Mostrando como eles se sentem em relação a culpa e vergonha dos crimes do país. Mas não dão as vítimas estrangeiras a voz para elas próprias elaborarem as críticas.
Uma crítica que quisesse usar uma linguagem menos própria de filmes patriotas, poderia começar permitindo que o povo de Corto Maltese fale por si mesmo. E que personagens como a Sol diretamente recusasse a ajuda do Esquadrão e apontasse que quando eles os “ajudam” só atrapalham. Ou que a revolução vai ser vã se colocar Corto Maltese na palma da mão dos EUA. Fazer personagens como Milton serem mais agressivos aos imperialistas que ele ajuda. Ou mesmo permitir que a imigrante do time dê outra perspectiva a situação. A luta de Flag contra Peacemaker e o discurso de Thinker é tudo um bando de gringo debatendo qual é o jeito certo de ser gringo no país dos outros, mas sem nunca envolver o outro.
Os personagens ao decidirem fazer o bem e desobedecer suas ordens, eles não exatamente rompem com sua identidade de gringos intervindo, e seguem fazendo a mesma coisa que eles criticam, mas agora sob a lógica de “mas tem uma ameaça maior que não podemos ignorar.” Coube aos gringos salvarem o povo de Corto Maltese do kaiju.
Na primeira cena os membros do time secundário da Task Force X caminham com a bandeira dos EUA atrás deles conforme vem os créditos iniciais. As ações do time representam as ações dos EUA, e como elas foram positivas, a autocrítica não faz do filme um filme crítico. Faz do filme um filme otimista, que prega que enquanto as instituições tiverem pessoas boas com valores morais dentro delas, a situação se ajusta sozinha.
Eu não acho que fosse responsabilidade do James Gunn fazer uma crítica precisa aos EUA, nem que a qualidade do filme dependia dele realmente bater no país aonde doía.
Mas eu também não me sinto confortável elevando o filme como se ele estivesse em um movimento de oposição ao país, quando o filme não está.
O gênero de super-heróis no cinema é um veículo para propagar hegemonia dos EUA. E isso não é sobre a relação entre a Marvel e o Pentágono. É sobre The Dark Knight ser uma sutil passada de pano as ações do governo Bush contra o terrorismo. É sobre The Incredibles cultuar uma sociedade de pessoas incentivadas para serem excepcionais ser uma sociedade melhor do que uma que busque igualdade entre as pessoas, pois a igualdade barra a excepcionalidade. E isso é metaforizado no Dash sendo obrigado a ficar em segundo lugar nas corridas da escola, pois sua velocidade tinha carga negativa na sociedade. E os EUA como a terra onde você pode brilhar é a alma dos EUA.
É sobre o fã de Civil War achar que o ato de não responder e assumir responsabilidade por mortos em outro país faz dos Vingadores heróis, enquanto o Superman em Batman v. Superman estar disposto a ir ao senado responder por suas ações é um dos vários fatores que fazem essa versão do Superman ser lida como incapaz de passar esperança e bondade.
E como eu disse. Se em Civil War e Batman v. Superman, as consequências diplomáticas dessa intervenção estrangeira são parte grande da trama do filme, em Suicide Squad nada indica que existirão consequências. Por que teriam? Se esses gringos tinham o direito de fazer a revolução?
O filme é bom, mas precisamos baixar a bola. E estar de olho mais aberto, pois a boa propaganda, sempre vem junto de um auto deboche, é como eles fazem pra te fisgar.
E bem, se você quer só escapar do mundo e não pensar no que os blockbusters têm a dizer, é ok, eu reforço, eu não acho que The Suicide Squad tenha sido feito na maldade. Mas se você escolhe pensar a respeito a obra e procurar o que ela tá falando, é legal, especialmente nessa parte, sair do que é mais superficial e estar preparado para ouvir algo que podemos não querer ouvir.