Grande notícia. 2019 fez história, por ser um dos poucos anos desde sempre em que o Oscar de Melhor Filme foi para um filme… que genuinamente era um dos melhores filmes daquele ano. E isso é uma grande notícia. Embora eu pessoalmente tenha achado o Oscar de Birdman igualmente justo, o caso de Gisaengchung (Parasita), é mais unânime e também uma vitória do cinema internacional.
Pois bem, não vim falar de Gisaenghung, apesar de ser do diretor de Snowpiercer, um dos meus filmes favoritos de todos os tempos. Eu não vim aqui mostrar meu amor por filme bom, vim aqui falar de meus sentimentos negativos por filmes que eu julgo ruins. Vim falar do único indicado ao Oscar de melhor filme desse ano que eu não gostei…. Once Upon a Time in Hollywood.
Nono filme de Quentin Tarantino, e eu sou um nerd metido a besta que quer pagar se entendedor de cinema, então eu adoro os filmes do Tarantino, é um dos meus diretores favoritos e na minha opinião, Hollywood é o pior dele. Mas também o único dele a faturar a indicação a Melhor Filme. Porque como já falamos aqui, Hollywood A-M-A uma carta de amor a Hollywood. E esse filme tanto é isso, que o termo “carta de amor a Hollywood” é dito palavra-por-palavra em 99% dos comentários que se referem ao filme.
Meus inclusive, disse o termo com todas as palavras no parágrafo acima, eu não quebrei o ciclo.
Pois bem, mas como eu não venho aqui só descascar um filme sem estrutura nenhuma, eu venho aqui questionar o fato de que sempre que se fala de Once Upon a Time in Hollywood, falamos de seu final, e o comparamos com o final de Inglorious Basterds, e aqui é onde os elogios mais me incomodam, pois de onde eu vejo, os dois filmes não poderiam ser mais diferentes.
E a suposta rima de “A ideia de como lidar com o final é a mesma”, é muito pequena perto do quanto os dois filmes diferem em alguns princípios de storytelling que eu fico preocupado com o Tarantino ter ficado tão embriagado na referência, na auto-referência e na masturbação, que ele negligenciou um dos elementos mais importantes do cinema de ficção, que é contar uma história.
Vamos começar então logo com o primeiro ponto: o final. E ir de trás pra frente e entender porque o final não funciona.
Aliás, porque não funcionou pra mim. Eu reconheço que tem muita gente que gostou do filme, e porra, se muita gente gostou, então funcionou pra muita gente, é meio arrogante me definir como o parâmetro do que dá certo ou errado. Estou dando esse disclaimer agora, pois pelo resto do texto eu vou continuar me definindo como parâmetro do que funciona ou não funciona.
Parte 1: O Final de uma História.
Já vou logo tirar esse enviezamento da frente do caminho. Quando eu vi Inglorious Basterds, eu fui pego completamente de surpresa pelo final, em que Hitler e os demais nazistas morrem no cinema e a segunda guerra mundial acaba com isso. Enquanto eu já tinha minhas expectativas de que Sharon Tate fosse sobreviver aos eventos de One Upon a Time in Hollywood antes sequer de ver. Por que? Por causa dos princípios que o próprio Tarantino explicou ao falar de Inglorious Basterds anos atrás.
Tarantino acredita que uma vez que seus personagens não existiram em livros de história, então a existência deles impacta o rumo da história. Os Bastardos não mataram Hitler, pois eles não existiram, caso tivessem existido, existiria outra história, que é a que Tarantino está filmando.
E eu meio que tive certeza logo de cara que com Rick Dalton não seria diferente, não havia o porquê. Ele não existiu em Hollywood dos anos 60, então os eventos do filme também vão ser eventos que diferem do que aconteceu. Então na minha perspectiva o twist não iria funcionar de qualquer jeito, enquanto twist pelo menos.
O que é bom! Twist não presta! Sou contra louvarmos twists. Digo, muita cena que eu amo nesse mundo é um twist. Mas o twist é um pouco quem uma granada. Só é útil uma única vez. Um filme cujo sucesso depende de um twist, é um filme que não vale a pena de se rever, pois agora o twist já foi e não sobrou nada de valor.
E esse é o meu problema com o filme Soylent Green, por exemplo, cujo twist eu acho genuinamente brilhante e bem-feito, mas fora dele o filme não nos oferece nada, e especialmente, não oferece um final para a história após o twist…. Eu sinto que faltam uns 15 minutos de filme para nos revelar como a história acaba.
Esse não é o caso do twist de Inglorious Basterds, que é um filme que não piora ao ser reassistido, pois as cenas têm um peso muito maior do que te preparar para um twist. O filme não é uma coletânea de momentos cujo único objetivo é te preparar para ver Hitler morrer. Porque Hitler está no filme só como um símbolo do nazismo.
O filme é uma coletânea de momentos cujo único objetivo é te preparar para ver uma suástica cravada na testa do filho da puta que é o Hans Landa, o vilão do filme, e o personagem que esteve no centro de todos os subplots do filme, além de ser o personagem com mais tempo de cena, sendo assim o personagem mais relevante do filme.
E vemos seu fracasso proporcional ao tamanho de seu ego. Não só a menina que ele deixou escapar no primeiro filme foi a menina que derrubou o nazismo inteiro, mostrando que uma negligência/arrogância dele custou todo terceiro reich, como ele tentou escapar das consequências de suas ações, virando a casaca, apenas para ser surpreendido com a fato dos Bastardos não permitirem que ex-nazistas vivam no anonimato.
E essa é uma das melhores maneiras de se construir um final. Fazer uma cena que seja ao mesmo tempo maravilhosa, e também que pareça, que ela só é maravilhosa, pois o resto do filme inteiro existe para agregar todo o contexto que você precisa para entender que ela é maravilhosa.
E quem foi ver Knives Out sabe exatamente do que eu estou falando.
Isso é uma das várias maneiras de se fazer um bom final, e é particularmente a maneira que Tarantino empregou em Inglorious Basterds, assim como em seu filme-irmão Django Unchained (já analisado no blog), e em Hatefull Eight. Mas apesar disso, não foi a escola de finais que Tarantino empregou em Once Upon a Time in Hollywood. Embora eu não duvide que ele acredite que tenha empregado, e só tenha falhado. E o motivo para isso é precisamente uma das palavras mágicas do texto de hoje: Contexto.
Once Upon a Time in Hollywood, encerra seu filme com uma versão alternativa do ataque que os cultistas do Charles Manson fizeram a casa de Sharon Tate que foi um episódio marcante na história americana que matou o romantismo do movimento hippie nos anos 60 e essencialmente fechou uma era…
Mas o lance é… nada disso está no filme! Toda informação que temos desse ataque veio do nosso conhecimento sobre o ataque, mas não vem do filme. O que significa que o final quer afetar o expectador quebrando uma expectativa, que não foi o filme quem gerou.
E isso é um ponto que me fez pensar que o Tarantino definitivamente perdeu algo do seu storytelling ali, pois é algo que eu nunca vi ele fazer.
O filme te mostra várias cenas da Sharon Tate vivendo a vida, mas nunca te faz entender que ela está em perigo. E o motivo disso é claro… você conhece a história dela, você já sabe que ela está em perigo, então você completa a informação com seu repertório cultural e gera a tensão você mesmo.
E vou falar, isso não funciona! E nada deixa isso mais claro que ver Inglorious Basterds.
Inglorious Basterds é um filme que você poderia passar para um alienígena que nunca ouviu falar em Segunda Guerra Mundial, que ele entenderia perfeitamente exatamente o que está em jogo. E o twist da morte de Hitler funcionaria de maneira levemente pior, mas como eu disse, um filme com twist tem que ser capaz de funcionar sem twist, senão ele não é um filme, é uma piada, que perde a graça conforme repetida. O twist é só a cereja do bolo.
Mas logo na primeira cena de Inglorious Basterds, que é a cena mais elogiada do filme por nos mostrar o poder do Tarantino em passar tensão e suspense como ninguém, a gente recebe casualmente um recap de toda a segunda guerra mundial.
Mesmo com a Segunda Guerra Mundial sendo provavelmente o evento histórico mais conhecido por qualquer pessoa por sua onipresença na cultura pop, e no impacto que teve até o presente, o filme gasta bons quase vinte minutos com uma conversa entre o Coronel Hans Landa e um fazendeiro de uma fazenda leiteira. Nessa conversa, Tarantino estabelece muita informação para o expectador.
Que a Alemanha está ocupando a França. Que a Alemanha é governada por um Führer que ordenou a morte de todo judeu na França. E esse contexto histórico é usado para marcar a relação entre um coronel alemão específico, Landa, e uma judia específica, Shoshanna. E a relação dos dois vai ser relevante durante o filme inteiro.
Mas apesar de serem vinte minutos de muita exposição, a cena não é nada entediante, pois é uma cena de extrema tensão. A gente instantaneamente vê que vai dar merda, mas apesar disso, não sabemos aonde que vai dar merda. A informação de que aquela cena é uma cena que obviamente não terminaria bem, deriva um pouco do fato de identificarmos Landa como um nazista, mas especialmente pelo trabalho de direção.
A cena inteira, é um contraste entre Landa e o fazendeiro. Landa está na casa do fazendeiro, sendo incrivelmente educado, formal e respeitoso ao dono da casa. Mas é obvio, pelo maneirismo dos dois atores, que é uma situação de poder que Landa exerce sobre o fazendeiro que está impotente e acuado. E Essa cena poderia ser sobre qualquer regime fictício que funcionaria igual, como grande cena, e como maneira de fazer exposição a respeito de informações sobre o regime que serão úteis ao longo do filme.
A informação de que Landa matará os judeus que ele encontrar foi dada verbalmente pelo Landa em pessoa. Ela foi redundante com nosso conhecimento de nazismo, mas na perspectiva do filme, ela é uma informação que foi passada no filme, no começo do diálogo, para no instante que vemos a família embaixo do piso, entendermos o perigo que eles correm.
Ou seja, o filme tem que te informar o que está em jogo mesmo que você já saiba, pois o filme está te contando uma história e uma história estabelece suas regras e motivações. Hans Landa explicou que ia matar qualquer judeu encontrado na fazenda, para que a gente pudesse ter medo pelos judeus no subsolo, sem essa informação, nosso medo por eles não seria iminente. Fomos avisados verbalmente (mas em outros filmes não precisa ser verbalmente, pode ficar implícito por ações), que essa gente estava em perigo não pelo contexto histórico, mas pelo filme, e por isso o filme gerou que a gente tivesse medo pela família.
O que é importante entender nisso? A primeira cena de Inglorious Basterds não tem impacto em nós porque entendemos de Segunda Guerra Mundial. Ela tem impacto em nós, pois ela é conduzida de maneira brilhante, a nos deixar ansiosos. Apesar de ser um contexto sobre o qual estamos bem informados, os primeiros minutos geram nossa tensão justamente porque não sabemos qual é a merda que vai dar, e no que concluirá a visita de Landa. Num contexto tão bem informado, o que nós não sabemos é precisamente a primeira coisa que nos prende, e então somos informados de que há um extermínio de judeus, e então vemos os judeus, e por vinte minutos, vemos Landa se divertir vendo nosso coração na boca até encerrar a cena com um cruel massacre que estabelece perfeitamente o personagem como o vilão central do filme.
E isso é importante! A tensão que um filme gera, deve ser gerada pelos elementos do filme! Não importa o quão real seja a história. O impacto emocional de um filme deve vir da informação que o filme apresentou.
Um filme como The King’s Speech estabelece em seu começo, quem é a família real, quais graus de parentesco eles tem, qual é a linha sucessória, e quais os conflitos políticos na Inglaterra no momento. Por mais que boa parte da audiência saiba tudo isso, por ter sido o Rei da Inglaterra, pai da atual rainha. O filme estabelece essas informações, pois se elas não estão no filme elas não existem.
Pois isso não é um show em que o artista não canta o refrão da música e deixa para a plateia cantar. É um homem contando uma história, e os elementos que vão ditar como devemos nos sentir com a história devem estar na história.
Once Upon a Time in Hollywood, não estabelece que o culto de Charles Manson é um culto. Não estabelece que eles são liderados por Charles Manson. E não estabelece que Sharon Tante está em perigo. Essas informações são informações que o filme simplesmente não passa. Então se você mostra Once Upon a Time in Hollywood pro mesmo alien para o qual eu passei Inglorious Basterds, ao fim do filme, ele não vai sequer ter entendido que Charles Manson foi alguém que existiu.
O que significa, que o filme não te prepara para o climax no final do filme. Ele presume que você já veio preparado.
A Sharon Tate em si, mal é estabelecida como qualquer coisa no filme. Suas aparições não passam para o expectador nada do que esperar dela no filme. As cenas com ela não constroem uma cena futura com ela. Ela não está sendo estabelecida como um personagem, só como uma referência local a ser reconhecida. O valor de um cameo.
Um cameo que recebeu o terceiro maior nome no pôster e nos créditos finais.
Mas na prática, ela é um prop do filme, para delimitar uma época e um espaço em que o filme se passa. Diferente de Hans Landa, Shoshanna ou Aldo Raine cuja primeira aparição deu tudo o que precisávamos saber para entendermos seu desfecho no filme. Sharon Tate não tem um desfecho, nem nada passado em sua primeira aparição, ela só existe, e está ali para, eu reforço, ser reconhecida.
Ela é uma referência da Marvel! E eu sei que você é um fã do MCU, mas eu falo isso no tom mais pejorativo do mundo. Temos que parar de bajular essas referências aí como algo excepcional.
Suas cenas não tem valor para quem não conhece a história de Sharon Tate. E o filme não te dá contexto para valorizar a presença dela. Esse contexto você trouxe de casa.
O que me faz trazer a segunda palavra mágica desse texto: acessibilidade.
Vamos lá. Tarantino é um dos maiores mestres do cinema moderno em produzir o assim chamado middlebrow. O que é o middlebrow? Bom, tem gente que gosta de dividir a arte entre lowbrow (sobrancelhas baixas), que são obras extremamente comerciais e pouco reflexivas feitas para uma massa desconectada da arte. E o highbrow (sobrancelhas altas), artes densas e reflexivas para uma elite erudita apreciar. Uma divisão traçada por uma galera prepotente de monóculo que quer se sentir bem consigo mesmo. Pois bem, entre os dois existe o middlebrow, que é precisamente aquilo que tem o melhor das duas metades. Inclui a reflexão, densidade e conteúdo que você poderia buscar em um filme do Bergman, com a mesma acessibiidade e capacidade de atrair as massas que um filme como Transformers, Avengers ou Sonic. E esse conceito é o que gera o maravilhoso fenômeno do cara que fala “eu não gosto de filme hollywoodiano, gosto mesmo é de filme alternativo cult filosófico, como Fight Club, Amelie Poulain, Clockwork Orange e Pulp Fiction”, como se esses filmes não fossem filmes incrivelmente comerciais e acessíveis para as massas que não precisam de uma puta bagagem filosófica para serem entendidos.
E o Tarantino é um dos reis de fazer jovens de 18 anos se sentirem cult, por refletirem a respeito de filmes comerciais. E isso…. Não é um problema. É o oposto de um problema, é ótimo. O middlebrow é um termo pejorativo, e costuma ser muito criticado tanto pelo prepotente de monóculo que não o reconhece como alta cultura, quanto pelo cara que gosta do meme “Não sou obrigado a ser cinéfilo não existe filme melhor que As Branquelas”, mas o middlebrow, é na minha opinião, onde existe a real tentativa de se criar linguagem cinematográfica, sem elitizá-la e soltá-la para as massas. E isso pra mim é maravilhoso.
O que é meu ponto. Tarantino é um diretor acessível. Os trabalhos dele podem ser assistidos por todo mundo. Você não tem que estudar cinema para apreciar Tarantino, e ele próprio nunca estudou cinema. O que não quer dizer que todo mundo vai gostar dos filmes dele, pois cada pessoa é uma pessoa, cada filme é um filme, Tem as limitações do que você gosta e não gosta, dependendo do gênero do filme.
Mas qualquer um pode pegar Reservoir Dogs, e gostar o filme. Ou Inglorious Basterds, não são filmes que exigem bagagem referencial real para você pegar. Aí você vem e me fala que o Tarantino enche o filme de referência, e enche sim, mas aí é que tá, pra quem não pega elas, o filme pode continuar bom, sob o mérito de ter bons personagens agindo em situações interessantes. Eu mesmo não pego metade das referências dos filmes e me divirto horrores neles.
Porque diferente do que o MCU e o Last Player One tem tentado te ensinar, pegar as referências é divertido, mas não é o que importa. O que importa é o que o filme está contando, não piscar de volta para as piscadelas do diretor.
E é essa extrema acessibilidade que eu acho que Once Upon a Time in Hollywood quebra.
O filme perde essa capacidade de conexão com qualquer um, pela já mencionada, necessidade de tirar todas as emoções que o filme pode causar, não do filme, mas da sua familiaridade com o que já ocorreu.
O que não é o mesmo que dizer que o filme não tem nada a passar. Mas o que ele propõe é uma conversa avançada. Ele quer trabalhar a sua bagagem emocional em relação ao que foi a Hollywood dos anos 60. E em vez de contar uma história que passa no local, ele conecta alguns eventos relativamente insignificantes, para passar um sentimento que só faz sentido em diálogo com o seu próprio sentimento. Até porque sem o seu sentimento junto o filme não passa sentimento algum, mas eu chego lá mais tarde no texto.
Ou seja, virou um filme que você tem que estudar antes de ver o filme. Virou filme que só serve pra quem fez a lição de casa. Perdeu a acessibilidade.
E eu acho isso uma merda. E um honesto desperdício de três horas de tempo de filme, se você não consegue usar nada desse tempo para dar contexto aos seus acontecimentos.
E pra mim essa é a grande diferença entre o espírito de Inglorious Basterds, de Once Upon a Time in Hollywood. Enquanto Inglorious Basterds usa o contexto da segunda guerra, para nos situar a ver o que motivava Hans Landa, Shoshanna e Aldo Raine a fazer o que fizeram ao longo do filme. Once Upon a Time in Hollywood, não faz isso com Rick Dalton e Cliff Booth. A hollywood dos anos 60 não deu a eles contexto para fazer o que fizeram…. Pois eles não fizeram nada. Eles não são mais que observadores do que foi um período histórico na indústria do entretenimento.
Exceto é claro quando eles mataram os cultistas. Mas mesmo aquela cena, não foi consequência do filme. Foi por acaso. Os cultistas marcaram a casa de Dalton como alvo no improviso na hora do ataque, e este só se defendeu, então aquilo não foi catártico de verdade, pois não foi a conclusão de um conflito que cresceu ao longo do filme. Esse conflito literalmente não existia antes da cena começar.
A única catarse que pode ser tirada, é a vingança pessoal do público pela Sharon Tate, pois eles mataram ela…. Exceto que…. No filme eles não só não mataram, como não matariam de qualquer jeito, o alvo deles era o Dalton, então foda-se.
Dito isso, o Tarantino usa nossa antecipação pelo ataque dos cultistas no final para fazer teasing barato. Que também não funciona. Mas vamos mudar o assunto pra teasing barato.
Parte 2: Tensão e Suspense.
Então eu quero falar um pouco da cena do rancho. Porque ela é em muitos sentidos, uma clássica cena do Tarantino, com um único detalhe, sem o desfecho do Tarantino. E apesar de eu ter visto pessoas elogiarem a falta de desfecho como uma subversão, eu acho um bom sinal, de porque as cenas de Tarantino precisam de desfecho do Tarantino para funcionar.
Na cena, Cliff Booth dá carona para uma jovem Hippie para um rancho onde ela morava com sua comunidade Hippie. E uma vez chegando lá, Booth repara que a situação está estranha. Os Hippies parecem ser mais perigosos que o de costume, e o dono do rancho, um amigo pessoal de Booth, não parece estar lá. Booth aproveita que já está no rancho para investigar um pouco a situação que lhe chamou a atenção.
Ele decide ir para a casa aonde o dono do rancho supostamente devia estar e vemos uma longa cena, típica do Tarantino, onde os personagens estão em um standoff, se encarando, só esperando para dar merda. Eles tentam de tudo para que Booth não entre na casa, e uma vez que ele entra, uma garota lá dentro tenta de tudo para que ele não vá ao quarto do dono do rancho.
Mas quando Booth consegue chegar ao quarto, o dono do rancho estava lá, estava dormindo, e quando acorda, confirma toda a história que Booth ouviu dos Hippies e confirma que o que os Hippies disseram que estava acontecendo era exatamente o que estava acontecendo. Tendo visto que então suas suspeitas não tinham base, Cliff Booth vai embora.
Vamos lá. Uma cena de suspense, e de tensão, é baseada em investimento e recompensa. No sentido de que, geralmente, é uma situação em que algo muito banal está acontecendo, e nós estamos investidos nessa situação, pois só sabemos que tem algo por trás.
Alfred Hitchcock tem uma descrição famosa de como uma cena de suspense funciona. Ele descreve que várias pessoas se juntem em torno de uma mesa, e comecem a conversar sobre futebol, porém a câmera revela pra gente, e só pra gente, que existe uma bomba prestes a estourar debaixo da mesa. Uma vez que a revelação é dada, cada segundo em que as pessoas continuam falando de futebol, é um segundo em que elas estão alheias ao fato de que a bomba vai explodir, e essa antecipação coloca nosso coração na boca.
Entender onde está o conflito antes dos personagens e antecipar seu desfecho catastrófico, enquanto só personagens fazem ações banais, é o que faz a cena do jogo do nome-do-personagem-na-testa funcionar em Inglorious Basterds. E no geral, uma vez que sua tensão foi estabelecida, quanto mais longa a cena for melhor. Pois torna mais longa a sua tensão.
Mas isso só faz sentido se a sua preocupação se paga. Ou seja, se o conflito que você está vendo detrás dos panos vem a tona.
Imaginem que você está vendo um vídeo que consiste de um cara soprando um balão até ele estourar. E o vídeo tem meia hora, e ele é essencialmente um balão sendo enchido até estourar, e ele vai crescendo…… enfim, eu não sei quem é que aprecia esse tipo de conteúdo na internet, mas eu sei uma coisa…. Esse vídeo só faz sentido, porque o balão estoura. Se o vídeo terminasse com ele dando um nó no palão e largando ele na sala, o vídeo não faria o menor sentido.
E uma cena de tensão é isso, é você assoprando o balão até ele estourar, e sempre que ele não estoura, a tensão fica maior e o estouro fica maior.
E o Tarantino entende isso. Ele entende porque ele usa uma analogia muito parecida com a que eu acabei de usar. Ele falando de Inglorious Basterds explicou que vê o suspense como um elástico que ele quer esticar ao máximo antes de arrebentar….. E bem, o motivo pelo qual o elástico é esticado na nossa frente é pra que arrebente.
A primeira cena de Inglorious Basterds teria sido uma cena horrível, se ela acabasse com Landa confirmando que seu faro estava errado, e não haviam judeu escondidos na casa do fazendeiro. E então ele pedisse desculpas pela inconveniência e iria embora. Teria sido uma cena horrível.
Como foi a do Rancho em Once Upon a Time in Hollywood. Pois o balão não estourou, o Tarantino só observou o ar sair do balão lentamente depois de cansar de soprar. E com isso, o nosso investimento não teve recompensa.
O que foi patético.
E o filme inteiro é isso. A cena do Charles Manson na casa da Sharon Tate, para depois ser um personagem que nunca retorna, não dando nenhum retorno a essa cena? Mesma coisa.
Porque é um filme não passa essas três horas querendo passar uma narrativa, ou fazer um esquema de acontecimentos que faça sentido. O Tarantino queria só evocar um sentimento. Então vamos lá falar desse aspecto do filme.
Parte 3: Evocando um sentimento.
Já vi muita gente defendendo esse filme de críticas explicando que na real ele não devia ser julgado nos termos que eu estou julgando, pois ele é um Hangout Movie.
Um Hangout Movie é um filme que não tem o propósito de contar uma história tanto quanto tem o propósito de te mostrar o cotidiano daqueles personagens e através disso te passar um pouco da experiência do que é ser eles. Como é seu estilo de vida, seus valores, as pessoas com quem eles convivem. Geralmente tem uma historinha pra se amarrar no final, mas a maioria das cenas tem o propósito de fazer as pessoas que vivem aquilo pensar “hey, é assim mesmo.” e de fazer as pessoas que não vivem aquilo entenderem um pouco como é que é.
Assistir Clerks do Kevin Smith antes de ser balconista de locadora foi uma experiência. Assistir depois foi outra experiência, esse filme passa uma dor muito específica, que não tem um ajetivo correto pra definir, então foi definido em forma de filme. E isso é um Hangout Movie, ele quer mostrar um cotidiano, um sentimento e uma experiência.
E isso não é ruim! E também é uma meia-verdade. Once Upon a Time in Hollywood tem muitos elementos do Hangout Movie, e fala sim sobre um sentimento de melancolia e nostalgia, então vamos falar sobre esses sentimentos!
O filme fala de duas transições de uma época pra outra simultaneamente. A primeira, é do período em que o poder do cinema dos grandes estúdios que marcou a Era de Ouro de Hollywood havia sido transferido pra televisão, e com isso, Rick Dalton é um ator de uma série de faroeste tendo que ressignificar seu star power, e entender que o entretenimento está entrando em uma fase, simbolizada pelo seu vizinho Roman Polanski, da qual ele não faz parte.
O filme tem um tom nostálgico com como Hollywood estava mudando, e o quão melancólico era pra Rick estar virando um ator cujos papéis simbolizavam na verdade o fim de sua carreira. E conforme ele gravava ele percebia que não estava mais na mesma página que seus colegas de trabalho, e que a Hollywood que ele conheceu já havia acabado.
Durante a Era de Ouro de Hollywood, os estúdios tinham controle pesado sob diretores e atores que por contrato tinham que fazer filmes com aquele estúdio extensivamente. E ao mesmo tempo os estúdios controlavam a distribuição dos filmes usando do monopólio. Então, por exemplo, o Hitchcock foi um diretor da Paramount durante um período significativo de sua carreira, e isso significava que a Paramount só ia vender aos cinemas o direito de exibição de The Rear Window, se o cinema também exibisse uma outra seleção vasta de filmes de apelo muito menor da Paramount também, para o estúdio garantir a bilheteria deles. Naturalmente esses acordos eram feitos de maneira extensiva que cada cinema só conseguia exibir filmes de um único estúdio, no mesmo estilo que os restaurantes servem ou Pepsi ou Coca mas nunca os dois. E isso gerava um monopólio que tornava impossível alguém crescer fora desses estúdios.
Era uma merda, e foi na reta final desse mundo que Rick Dalton cresceu e se firmou e agora vê que ele deixou de existir. Rick ficou pra trás como vestígio de algo que não existe mais.
Esse sistema de controle de profissionais e distribuição começou a cair pela Lei Antitruste de 1948, que saiu de uma ação contra a Paramount. E que tornou ilegal a venda de filmes de estúdios por pacote pra obrigar a exibição de filmes b e gerar monopólio. E com os cinemas livres do monopólio, criou-se o terreno fértil para o crescimento de diretores sem rabo preso com estúdios. A era que seguiu foi uma era em que o nome do diretor importava muito mais que o nome do estúdio, e nessa cresceram nomes como Francis Ford Coppola, Martin Scorsese e Roman Polanski.
Enfim. Tem uma coisa muito errada e estranha no Tarantino olhar com tons saudosistas pra dor de uma carreira que está acabando com o fim da Era de Ouro. Aliás, três coisas erradas.
1- O sistema de estúdios era nojento e insano e é ótimo pro cinema que ele tenha acabado.
2- O Tarantino em pessoa nunca teria conseguido ser o Tarantino na era de ouro. Ele é um diretor cuja carreira só seria possível em um mundo que deixou o sistema de estúdios pra trás.
3- O sistema de estúdios, como um pêndulo depois que atinge seu ponto mais alto, está voltando com tudo. Talvez mais forte do que nunca.
O drama do Rick Dalton ser contado agora, soa incrivelmente fora de sua época se pensarmos que a mudança em Hollywood que gerou esse drama, recebeu um Ctrl+Z três meses depois que o filme foi lançado. Sim! Pois a lei antitruste de 1948 que impedia os estúdios de monopolizarem a distribuição e usarem esse monopólio pra prenderem seus atores e diretores em contratos absurdos começou em 22 de Novembro de 2019 a entrar em processo de dissolução pelo Departamento de Justiça dos EUA, sob o argumento de não acreditar que os estúdios possam recriar o poder que eles tinham no passado.
E é nessas que o Rato ri!
Porque o Zetgeist nunca esteve tão poderoso pros estúdios. Graças a esse um estúdio que cresceu demais e mudou as regras do jogo: A merda da Disney!! Os estúdios eram proibidos por leis de monopolizarem cinemas, obrigando um cinema a dedicar todas suas salas a um estúdio se ele quisesse exibir um blockbuster? Porra, meus amigos, e o loophole mangnífico que diz que o monopólio é legítimo se todas as suas salas forem o blockbuster em questão? E essa PUTARIA ESCANCARADA que foi a distribuição de Avengers: Endgame???
Cinemas independentes estão correndo o sério risco de fechar, e a Disney está ativamente ajudando cinemas independentes a fechar. Proibindo cinemas independentes de exibirem filmes da Fox, que agora são todos propriedade do Rato!
E não só isso, como a Disney pessoalmente fez o Cinerama Dome quebrar contrato com a exibição de The Hatefull Eight em Los Angeles para exibir Star Wars: Force Awakens no lugar. E o Tarantino teve uma briga muito pública com a Disney com isso.
O poder do Rato se manifesta hoje com os contratos enormes que prendem atores que se envolvem em filmes de heróis a ficarem contratualmente comprometidos a aparecer na sequência, que em épocas de franquias absurdas, rapidamente se transformam em contratos de 6, 7 filmes e em uma maneira do estúdio garantir que o ator não vai fugir deles por uns dez anos.
E no mercado dominado por franquias, filme de herói e monopólios da Disney, muitos diretores perderam completamente o espaço nesse mundo novo. Cronemberg anunciou que não dirige mais por ter broxado completamente do cinema. David Lynch também. E quando o maior nome vivo do cinema americano que é Martin Scorsese tentou falar da sua insatisfação com o que o cinema havia virado, a mídia comeu o cu do Martin transformando a crítica em uma guerra de Scorsese e Coppola contra a Marvel, em que Scorsese e Coppola eram o temível golias, e os filmes de herói eram o Daví. Que só quer dar alegria ao seu povo.
Numa briga de quem tem espaço ou não na indústria, todo o jornalismo de entretenimento vendeu uma narrativa medonha que dizia que o filme do Avengers era o elo fraco da briga e que os diretores velhos estavam xingando por serem Boomers. Os Irmãos Russo claramente se referiram ao Scorsese na briga como se fosse uma luta de classes e o diretor do povo estivesse se defendendo do diretor elitista.
Porque um filho de imigrantes que usou do cinema um meio pra quebrar o ciclo da probreza em um bairro dominado pela Máfia, definitivamente está sendo elitista na hora de peitar a Disney!
Os tempos estão tensos, e as estruturas que permitem que o cinema seja um meio autoral, e com espaço pra diretores inovarem e contarem suas melhores histórias está morrendo para ser um espaço onde diretores sem opinião dirigem projetos de empresários regurgitando histórias que já existem pra movimentar bilheteria na casa do bilhão, e isso é horrível. E as autoridades estão removendo qualquer impedimento legal para que isso cresça, pois a Disney sempre teve político na folha de pagamento pra assegurar a supremacia do Rato.
E essa realidade é tão assustadora, que é honestamente surpreendente ver o Tarantino fazer um filme sem história em que ele passa três horas com o pau desse tipo de indústria na boca, fique melancólico com o fim do sistema de estúdio e chame isso de “evocar um sentimento.”
PAU NO CU DA HOLLYWOOD DE ANTES DOS ANOS 60! É ÓTIMO QUE TENHAM ACABADO E QUE NÃO VOLTEM E FODA-SE A CARREIRA DO RICK DALTON!!!
Ok, mas eu divergi aqui, porque de fato temos um problema e estamos ignorando esse problema e nos tornando cúmplices desse problema porque gostamos de ver o Tony Stark no cinema. E a realidade das mudanças na indústria que a Marvel está trazendo com a sua ascensão precisam ser ditas.
Além da mudança em Hollywood o outro sentimento que o Tarantino trabalha, também de nostalgia e melancolia é menos presente no filme em tempo de cena, mas é culturalmente muito mais importante que é o fim da Era Hippie.
Os anos 60 foram uma década muito ímpar no século XX. Foi a década em que a revolta da juventude contra o conservadorismo atingiu o seu pico cultural, que tomou as mais diversas formas, como o movimento anti-guerra, a revolução sexual, o uso disseminado e socialmente aceito (em determinados grupos) de drogas como maconha e LSD, e uma cultura que surgiu englobando grande parte dessa onda que foram os Hippies.
Os hippies trouxeram uma onda de muito romantismo, otimismo, e crença no poder do amor e da união pra vencer os horrores do século XX. E bem, todo esse romantismo e otimismo morreram em 9 de Agosto de 1969, quando um grupo de hippies que faziam parte de um culto em um rancho comandados pelo notório psicopata Charles Manson invadiu a casa de Sharon Tate e mataram ela e Leno e Rosemary LaBianca. A maneira como Manson distorceu a filosofia hippie e seus discursos de paz e amor pra um assassinato chocante bateu forte na contramão, e freou em muito o romantismo do movimento.
O que só piorou quando ele alegou influência da música Helter Skelter dos Beatles na ideia dos assassinatos. Deixando uma mancha de merda pra sempre em cima de um dos melhores álbuns dos Beatles.
Então é isso, existe uma percepção da beleza e inocência do que foram os anos 60, de uma época mais otimista e esperançosa, onde Paz e Amor eram filosofias impregnadas que morreram com a Sharon Tate. E isso dá um peso muito grande no filme do Tarantino ser um Hangout Movie, que visa evocar um sentimento.
Exceto que…. O filme não dialoga com nenhum tipo de romantização do movimento hippie. Muito pelo contrário. Rick Dalton e Cliff Booth são justamente a geração anterior e conservadora que os hippies desafiavam. Eles odeiam os hippies por serem hippies. E demonstram isso com muita clareza ao longo do filme.
E nessa perspectiva, o filme nos induz a desdenhar os hippies, como se em um rancor prévio ao papel que o movimento terá no assassinato de Sharon Tate. E diferente de outros usos do personagem politicamente incorreto nos filmes do Tarantino, como todos os racistas em Django Unchained ou The Hatefull Eight, aqui não existe a contraparte ao Rick Dalton e Cliff Booth, ou seja, alguém que questione ou desafie a mentalidade deles.
Sharon Tate em muitas perspectivas personificava muito da inocência do movimento hippie, e isso é parte do motivo pelo seu assassinato ser visto também como o dia que essa inocência morreu. E o filme mostra parte disso em algumas das suas poucas participações do filme. Pelas músicas que escuta, e especialmente na festa na Mansão Playboy. Mas justamente por isso se mostrar numa festa da Mansão Playboy, muito se desconecta. Pra começar porque o fato de Rick Dalton admirar Sharon Tate e desprezar os hippies na rua é uma questão de classe social, conexões, e principalmente, a maneira como o poder simbólico de sua casa e seu marido a impedia que as pessoas que desprezavam os hippies pudessem lê-la como parte dessa cultura.
Esses fatores impedem o filme de fazer a conexão entre a morte de Sharon Tate e o sentimento de perda da inocência e de que teve uma porrada no coração dos anos 60 que foi dada naquele dia.
O próprio simbolismo de como esses assassinatos até hoje são mencionados quando falamos de Helter Skelter, e não pararam de ser associados aos Beatles, um grande símbolo da cultura da Paz e do Amor e da filosofia dos anos 60, no filme é ressignificado, pois quando os cultistas decidem matar Dalton em vez de Tate eles decidem que vão por a culpa nos filmes de cowboy e foda-se. Sendo que obviamente a associação não teria o mesmo peso.
O filme não se esforça em passar os sentimentos que o expectador sentiu. Mas o expectador sente mesmo assim, pois ele sentia antes de ver o filme, e o filme só o lembra que isso existe. Mas ele não conta nada.
E esse é o lance do filme. Ele não tem nada a contar de fato. E o que ele tenta emular, se baseia no expectador e não no filme. E isso é um péssimo storytelling, muito aquém do diretor de Reservoir Dogs e Pulp Fiction. E mais que isso, deprimente esse ter sido o primeiro filme que colocou ele na indicação da academia de melhor filme e melhor diretor, só pela carta de amor a Hollywood.
Já foi melhor o Tarantino. Reza a lenda que o próximo filme dele é o último, vamos ver se isso foi só um tropeço, ou se eu vou contar pros meus netos que o último filme dele foi Hatefull Eight.