2018 foi ano de eleições no Brasil e eu sinto que dessa vez literalmente toda a população do país percebeu que era ano de eleição. Nunca os nervos estiveram tão à flor da pele, nunca os riscos do resultado estiveram tão altos, foi a eleição mais impactante da nossa história ganhando da de 1990, e não tinha como não ser.
Enfim, não fiz nenhum texto sobre o assunto, embora imagino que quem leu meus textos sobre Er is Wieder Da e sobre a casa Slytherin de Harry Potter, além de minhas opiniões sobre P. T. Barnum, e sobre o modo de reinado estabelecido por Mufasa, deve saber o suficiente de minhas posições para saber que lado eu tomo nessas horas, mas o blog não é sobre política, é sobre ficção, e embora eu ache que ficção e política possam se misturar sim, e que eleições como essa pediam posicionamento, eu fico saturado de fazer analogias, quando a internet inteira fica cheia de memes do tipo “Como você é fã de Star Wars se na vida real torce pelo império?” ou, “Como você é fã de Harry Potter e não se levanta contra o fascismo?” ou “Como você é fã de X-Men e não está sempre do lado das minorias?”, porque embora eu ache que a ficção é uma saída para se debater política a sério, e muitas obras da cultura pop possam servir de porta de entrada para esses debates, eu acho que é simplista ficar fazendo esses paralelos na superfície sem pensar a fundo se a obra realmente se posiciona do lado que aparenta se posicionar na hora de ver heróis e vilões? Como eu por exemplo, não acho que Harry Potter enquanto obra realmente completou sua crítica a maneira como o fascismo se propaga, e fez desse modo para priorizar a venda da identidade de Slytherin como uma simbologia positiva. Enfim, passei metade dessa eleição linkando o texto sobre o Killmonger e o direito à revolução nos comentários de páginas que compartilharam esse meme.
Mas esse post não será sobre as eleições de 2018. Então porque estou abrindo com esse assunto? Porque eu acho que essa eleição nos fez observar um fenômeno importante no Brasil. A morte da televisão, que pode ser observada no fracasso que foi a campanha de Geraldo Alckmin.
A mídia brasileira sempre teve candidato e sempre se esforçou pra fazer seu candidato prevalecer. Aliás, para fins desse texto, eu estou tratando como mídia, a Globo, a Folha de São Paulo, o Estado de São Paulo e a Veja, por serem os maiores formadores de opinião do país, a postura de outros jornais e canais de TV me importam pouco nesse post, pois eles estão hierarquicamente abaixo desses quatro em seu poder de moldar os rumos da opinião pública dentro da política.
Enfim, a mídia brasileira desde o ano passado demonstrou medo de que a eleição fosse ser definida entre o PT, que no ano passado era representado pelo Lula e o Bolsonaro, e fez campanhas de despolarização do país e de buscar um candidato no meio dos dois, bem forte. E quando as campanhas começaram oficialmente, ficou bem claro, que a mídia queria que o povo fosse com o Alckmin. Postura que ficou clara nas entrevistas que rolaram entre os candidatos.
E o Alckmin não só falhou em ir pro segundo turno, como pegou o quarto lugar, ficando muito atrás dos demais candidatos, e não chegando nem perto. No lugar foram para o segundo turno, justamente os dois candidatos que a mídia não apoiou em nenhum momento, mas que por outro lado foram os mais fortes das redes sociais.
O fracasso da mídia em eleger Alckmin contrasta as eleições de 1990, onde a Globo foi um fator crucial para que Collor fosse eleito presidente, e ficou claro o papel histórico da mídia em moldar o cenário político atual. E é complementado pelo fato do Alckmin ter sido o único candidato com tempo o suficiente de televisão para poder fazer uma campanha televisiva decente.
E nada disso importou. Literalmente nada. Whatsapp e Facebook foram forças eleitorais muito mais importantes do que capa da Folha ou Jornal Nacional. Porra, foi um segundo turno sem debate, isso é histórico para a perda da relevância de televisão como força política. Os debates do primeiro turno foram todos transmitidos em streaming de Youtube, que tiveram recorde de audiência online, as pessoas se acostumaram a ver tudo online. Vídeos que os políticos soltavam de si mesmos nas redes sociais tiveram mais impacto que qualquer entrevista. E isso culminou com o país ignorando completamente o candidato favorito desses grupos, para privilegiar três candidatos que a mídia não queria nem fodendo.
Se eu fosse cientista político, eu falaria sobre a morte do PSDB. Mas eu estudo ficção e mídia. E falo que a televisão já não tem 1/3 do poder que já teve, e que as que não forem para o streaming nos próximos anos, estão fadadas a morrer. Prevejo muitas emissoras de televisão fechando nos próximos anos, a novela da Globo já não tem o impacto na vida das pessoas que teve vinte anos atrás, em que o capítulo final tinha o poder de parar o país. Os maiores humoristas do país brilham muito mais no youtube do que na TV (muito embora a Globo tenha oficialmente comprado o Choque de Cultura, eles começaram na internet), o Silvio Santos não vai continuar conosco por muito tempo e vai levar o SBT junto, e a Record, que teve duas demissões ao vivo em virtude da postura nessa eleição, está em uma tentativa sincera de se tornar a Fox News, lembrando que além de ser o canal de menos prestígio dos EUA, a necessidade da Fox de colocar o máximo de foco possível na Fox News, foi um dos motivadores para eles encerrarem todo seu investimento em entretenimento e permitir que a Disney comprasse as propriedades intelectuais da Fox.
Pois bem, diante dessa inevitável morte, eu acho que o timing está bom para revisitarmos quatro filmes, que eu achei que poderiam estar datados pela maneira como a tecnologia evolui, porém quando eu vejo em que mundo a televisão morreu, eu percebo que esses filmes na verdade, no dia de hoje estão mais atuais do que estavam inclusive em seu próprio tempo. Os quatro atualmente constando na minha lista de filmes favoritos, e que eu acho que desencadeiam reflexões interessantes ao serem assistidos nos tempos atuais.
Wag the Dog:
Quando eu comecei a estudar cinema, esse era meu filme favorito de todos os tempos, depois eu comecei a ver e pensar muito filme, e decidi que tinha pelo menos uns 20 que me impactaram mais do que esse, porém esse ainda é bom, e tem um lugar especial entre meus filmes favoritos até hoje.
O filme conta a história de Conrad Brean e Stanley Motts Brean é um funcionário da Casa Branca contratado para ajudar o presidente a se reeleger depois de um escândalo sexual entre o presidente e uma menor de idade tomar conta da mídia. E a estratégia de Brean é desviar o foco da mídia dando uma história ainda maior para a mídia cobrir, essa história em questão: uma guerra. Porém é completamente inviável ao presidente começar uma guerra em meio a esse escândalo e a uma semana das eleições, por isso, Brean contrata um produtor de Hollywood para produzir uma guerra falsa que a mídia acredite que é verdadeira. Esse produtor é Motts, um produtor frustrado, mas também arrogante e criativo que se anima com a ambição do projeto.
O filme parte de uma premissa que imediatamente causa a mesma pergunta: “mas isso não vai funcionar, as pessoas vão notar que não existe guerra.”, e Brean responde cinicamente como todas as guerras do passado não foram vistas pelo povo. O que foi visto foi um punhado de fotos, slogans, trilhas-sonoras que circularam pela infinidade, e todo grande evento do mundo pode ser resumido a isso. Uma foto de uma menininha nua fugindo do napalm, três músicas de protesto, um vídeo dos aviões decolando, e você deu à mídia material para falar por um mês sobre a guerra do Vietnã. E com isso ele convence Motts de que o projeto era possível. Motts chama o projeto de “um trailer”, ele sequer tem que entregar o produto final, só o trailer da guerra é o que ele produziria.
Com isso Motts produz um vídeo da Kirsten Dunst vestida de menina albanense fugindo dos bombardeios, e de uma senhora albanense agradecendo ao presidente, e pronto, era só isso que a mídia precisava divulgar, e o resto era o boca-a-boca fazendo seu trabalho. Mas Motts foi além, ele criou um herói de guerra chamado Schuman, que ele apelidou de “good old shoe”, a ideia era vender para a mídia que Schuman foi esquecido na Albania e precisava ser resgatado, um soldado nobre abandonado feito um sapato velho. Motts gravou então um disco com o single “good old shoe”, feito naquele ano para parecer com uma música velha, apostando que as pessoas se perguntariam “não tinha uma música com esse nome?” procurassem e encontrassem o disco acreditando ser um disco velho. Dado o quão familiar o tema soava.
O importante era o sentimento, se a nação inteira sentisse que os EUA estavam em guerra com a Albania, então o país estaria, mesmo que não estivesse. Não era só audiovisual o trabalho, era construir uma campanha inteira. Motts e Brean decidiram homenagear Schuman jogando sapatos velhos em postes de luz como um protesto para que os EUA resgatassem o sapato velho deles, em vez de abandoná-lo, e logo o protesto viralizou entre a juventude. Assim como a música Good Old Shoe viralizou. E a frase “Courage Mom” supostamente proferida por Schuman viralizou. O evento comoveu o país, e o presidente foi reeleito pela sua postura exemplar.
Nenhum albanês foi morto nessa guerra falsa, então o custo em vidas humanas foi baixo, porém pessoas envolvidas foram mortas, para garantir que elas nunca revelariam a verdade, então, é. Não posso falar que conseguiram fazer uma guerra sem matar ninguém.
Enfim, eu via esse filme sempre pensando que a internet havia matado essa historia, pois em um mundo com satélites, conexão direta com o povo da Albânia, acesso as suas redes sociais, em pouco tempo o povo descobriria que o país não está em guerra, e que portanto o filme só fazia sentido em um mundo em que a televisão e os jornais fossem a única real fonte de informação do povo. Hoje em 2018, eu acho o contrário, que no exato dia de hoje, é mais verossímil para o povo acreditar em uma guerra inexistente do que era em 1997.
Toda a tática estratégica de Brean não só ainda existe, ela é mais poderosa que nunca nos dias atuais. Uma única foto viralizada é o suficiente para validar qualquer informação falsa, diferente de 1997, Fake News hoje é um termo onipresente no jornalismo político, com o qual todo jornalismo tem que lidar. No filme, enquanto sugeria enganar o povo com uma guerra falsa, Brean ironicamente sugeriu que a Guerra do Golfo nunca existiu, e que ele estava envolvido e foi tudo filmagem de estúdio também, dando um senso de paranoia em Motts, que jamais saberá se ele estava ou não falando sério. Esse é o exato estado que a internet deixou nosso jornalismo atual. A enorme facilidade que temos de viralizar uma comoção em algo que não existe usando meia dúzia de fotos e vídeos falsos, desestabilizou nossa distinção de realidade a níveis alarmantes, que vão dos dois lados do espectro, de pessoas acreditando em mamadeiras de pênis sendo distribuídas, até pessoas que já estão tão paranoicas que sequer acreditam no formato do nosso planeta, uma vez que a mídia mente para nós.
O filme foi pensado para explorar os perigos da importância que a televisão tem como fonte de notícias para a população. Porém com a morte da televisão, os perigos na verdade aumentaram, saíram do espectro “ideia divertida para um filme” e entraram para um cotidiano assustador. A morte da televisão em vez de datar essa premissa, só tornou o filme mais verossímil.
Network:
No filme, após aguentar um fim de carreira degradante, o jornalista Howard Boyle, a semanas de sua última transmissão por ter sido demitido, surta, e declara ao vivo que irá se suicidar na televisão, prometendo audiência. Depois que o escândalo passa ele se retrata ao vivo no jornal pedindo desculpas pelo anúncio, porém ao mesmo tempo se justificando que a vida é uma merda, e fazendo um grande discurso sobre o quão desgastante é a vida e o sistema.
Com isso a ambiciosa e amoral produtora de televisão, Diana Christensen decide imediatamente que ele deve ter seu contrato renovado, para poder fazer discursos anti-sistema na televisão e dar audiência, enquanto o melhor amigo de Boyle, Max Schumacher, assiste sem poder fazer nada, como a televisão incentiva uma loucura e instabilidade mental que está crescendo em Boyle por lucro.
Paralelamente Diana dá a um grupo terrorista a chance de passar seus ideais em rede nacional, buscando a audiência da polêmica. E aos poucos, esse grupo corrompe seus ideais priorizando ter uma audiência que dê dinheiro ao partido a manter-se consistentes com sua ideologia.
O filme explora o sensacionalismo da televisão e como seu compromisso com ser um negócio lucrativo pesa mais que sua função social de informar, destruindo a ala do canal de trataria de notícias para priorizar a um grito anti-sistema vazio, uma vez que o sistema sustenta o grito.
É assustador como o filme retrata a televisão enquanto mídia como a maior propagadora dessa cultura, sensacionalismo, transformar o anti-sistema em mercadoria, falta de compromisso com a verdade, e destruição da oportunidade de ser uma força informativa e de conscientização para se tornar uma fonte de lucro.
Porque eu vejo que o que o filme apontou estar acontecendo com a televisão é o que acontece com a internet. O Youtube começar a remunerar os produtores de conteúdo danificou drásticamente a qualidade do conteúdo, e o poder que um veículo como o youtube tinha. Assim como posts patrocinados do facebook tiraram do facebook o seu potencial. Ambos meios vinham com o poder de democratizara informação e portanto disseminar o conhecimento, e foram reduzidos a lugares onde o sensacionalismo, e a loucura imperam em prol de manter o sistema lucrando. A corrupção inerente de tudo o que a televisão toca se estendeu a internet de maneira que o filme não conseguiu datar, e isso é assustador.
Mas não é o lado mais assustador da televisão…
The Nightcrawler:
O filme mais recente dessa lista, que retrata um homem com dificuldades de conseguir um emprego formal que constrói do zero uma carreira para si mesmo filmando cenas de crimes para serem transmitidas no jornalismo televisivo.
Embora fosse visível para a funcionária da televisão que as imagens eram obtidas sem nenhuma ética, ele sempre conseguia vendê-las pela qualidade sensacionalista de suas imagens, e aos poucos a ética vai perdendo mais e mais espaço perante a qualidade da imagem que está sendo obtido, culminando no protagonista alterando cenas do crime, causando cenas do crime e deixando o seu assistente morrer, para conseguir o melhor take possível.
A amoralidade do protagonista em ativamente colaborar para acidentes para poder filmá-los e vendê-los, anda lado a lado da amoralidade da emissora de televisão de comprá-los e exibí-los com o único propósito de gerar audiência e portanto lucro, ignorando completamente a função social do jornalismo que deveria ser a de informar. Dê ao povo o que o povo deseja, e o que o povo deseja é violência gráfica e repugnante. O problema da violência se transformar em um mercado lucrativo, é que isso cria pessoas que criam a violência para poder entrar no mercado. E nesse momento o jornalismo morre, como mostrado na cena em que a responsável pelas notícias se recusa a noticiar que as pessoas mortas que o protagonista filmou, não eram pessoas comuns, e sim traficantes que morreram em uma guerra de tráfico, pois a ideia de que aquele foi um crime contra uma família qualquer causa mais medo e portanto mais ibope.
Vou ser sincero, nunca vi uma imagem de violência muito gráfica na televisão exceto em filmes exibidos nela, mas nunca em programação original. Porém quando eu descobri a magia da internet, uma das primeiras coisas que procurei, foram as fotos das cabeças carbonizadas dos Mamonas Assassinas, que tinha lá no assustador-ponto-com. E não façam essa cara, que metade de vocês procurou ativamente por essa foto também.
Mais do que fake news, embora também, a cultura televisiva que esse filme retrata do sensacionalismo cego, é aquela que hoje se converteu no click-bait, que completa essa violência explícita com sexo, e imagens grotescas de diversas naturezas que atiçam nossa curiosidade mórbida de clicar, e alimentam sites milionários que existem só de acumular cliques e vender espaço pra propaganda. Atraindo cliques a todo custo, não importa o que esteja sendo mostrado. De montagens repugnantes a vídeos de decaptação. Um personagem como o protagonista de Nightcrawler faria muito dinheiro simplesmente upando os vídeos no próprio website sob a máscara de webjornalismo, e honestamente é um ambiente muito mais propício pros absurdos que ele filma que a própria televisão que precisa se preocupar minimamente com a faixa etária.
E eu poderia citar inúmeros outros filmes mais nesse texto. Fahrenheit 451, Truman Show, ou Archorman, filmes bons e ruins de diversos gêneros, o que mais houve desde a criação da televisão foram críticas fortes à sua ética e ao seu impacto na sua audiência, de maneira que foi umas das mídias mais criticadas da história, com filmes das mais variadas naturezas e épocas falando a respeito. E as críticas, sempre que olho para elas com cuidado, consigo ver, que qualquer impacto negativo que a televisão teve no mundo, e eu não acho que foram só negativos, tiveram impactos muito positivos também, mas qualquer impacto negativo, vai continuar existindo firme e forte, depois de sua morte. Inclusive fortalecido pela mídia que sucederá a televisão.
E nesse processo de ver a televisão estar no seu caminho de saída, mas pegar todos os efeitos negativos que a acusaram de ter na sociedade e deixá-los fortalecidos no mundo, me fazem pensar em como ocorre a transformação de uma cultura midiática em outra, o que me leva ao quarto filme.
Cradle Will Rock:
Filme que mostra a morte do Vaudeville nos Estados Unidos durante a Guerra Fria, anacronicamente mostrando duas histórias reais paralelas que não ocorreram ao mesmo tempo, na vida real, mas elas trazem a mesma reflexão. Qual é a relação entre política e arte?
A primeira história, que é a que da origem ao título é sobre o musical The Cradle Will Rock, produzido para a Broadway em 1937, dirigida por Orson Welles. O musical, sendo sobre um levante popular contra os patrões e sobre a formação de sindicatos e o avanço de leis trabalhistas, teve sua produção cancelada antes da estreia sob o pretexto de “cortes de gastos”, quando era óbvio que os ideais da peça estavam tentando ser barrados. Os produtores resolveram terminar a produção do próprio bolso para a peça sair. Quando ficou determinado que até o governo americano autorizar, os atores não poderiam subir ao palco, subiu somente o pianista e compositor do musical ao palco para tocar piano, e todos os atores cantaram a obra da plateia, se recusando a não estrear.
A segunda história, é sobre a disputa entre Diego Rivera e Nelson Rockfeller, em relação ao quadro de Rivera encomendado por Rcokfeller Man at the Crossroads, que na vida real rolou em 1933. Apesar de Rockfeller ter autorizado o primeiro esboço do mural que seria exposto no centro Rockfeller, quando ele percebeu que no mural haveria uma imagem de Lênin contraposta a Lincoln (de maneira que simbolizaria o comunismo contraposto ao capitalsmo), Rockfeller ordenou que Lênin fosse retirado do mural. Rivera se recusou, pois o quadro era dele e a visão era dele, e Rockfeller provou que como ele era cliente o quadro era dele, ele provou isso ordenando a destruição do mural e tendo assim a palavra final. Provando para o mundo, em um exemplo prático, que o artista não tem direitos sobre a própria arte, quem tem é o homem que pagou por ela.
Porém escondido pelo retrato ficcionalizado desses dois momentos importantes para entendermos o medo do mundo de politizar a arte, está o retrato 100% fictício do personagem Tommy Crickshaw, que forma a terceira trama do filme. Crickshaw é um ventríloquo de Vaudeville, que está treinando uma nova geração para aprender o Vaudeville e manter essa cultura viva nos Estados Unidos.
Vaudeville eram shows de variedade que começaram no século XIX na França. Em um palco inúmeras atrações desrelacionadas eram apresentadas, como se fosse os show de talentos que vemos em filmes de High School. Dança, mágica, canto, acrobacias e ventriloquismo se intercalavam no palco por entretenimento e foi uma forma importante de expressão e propagação da cultura estadunidense, onde ganharam a fama, lendas como Harry Houdini.
O Vaudeville morreu com a ascensão do cinema, e de astros como Buster Keaton, os Irmãos Marx, e do cinema como entretenimento. A diversão despretensiosa começou a ocupar os curtas metragens exibidos antes dos filmes, e mágicos e dançarinos viram ali a chance de atingir um público maior que a Vaudeville permitia. A morte do Vaudeville era uma transição midiática em que a arte no palco precisou se reinventar perante o que a arte audiovisual oferecia.
Nisso, Tommy Crickshaw que fez a vida na Vaudeville como ventríloquo, vê a morte do Vaudeville como culpa dos comunistas, que politizaram a arte e mataram o espaço pro entretenimento despretensioso. Ele passa o filme inteiro procurando comunistas paranoicamente por onde ia. Acusando todos de comunismo. E fazendo o máximo possível para eliminar o comunismo da arte, sob o medo de perder um gênero artístico que já estava morto.
Após denunciar ao governo todos seus colegas de trabalho comunistas, e com isso dar a martelada final no caixão que foi a Vaudeville, permitindo que os artistas fossem presos. Em arrependimento de ter em sua paranoia destruído o que ele queria proteger, em sua última apresentação ele enfim se politiza, e coloca na boca de seu boneco um discurso comunista. “Esse homem explora meu trabalho para lucro e me faz dormir em uma caixa de madeira sem direitos.” e sua última apresentação termina com o boneco cantando La Internationale e então ele se retira do palco, deixando seu boneco no palco, ele nunca mais o usaria.
Em paralelo aos artistas se recusando a ser calados cantando da plateia como resistência, e do mural de Rivera sendo quebrados, um funeral ao teatro fechado pelo governo sob acusação de financiar peças comunistas, é feito usando o boneco descartado de Crickshaw como corpo e realizado, por dançarinos, mágicos, palhaços e artistas de Vaudeville simbolizando a morte oficial do gênero. O teatro mudou, uma mídia forma de entretenimento chegou, e outra coisa surgiria no lugar.
Na cena final do filme, no túmulo do boneco a câmera mostra a Broadway “atual”(do ano de 1999), luzes e luzes de neon que mostram um teatro renomado e muitas vezes altamente centralizados cercados de propaganda e de símbolos claros do comércio prevalecendo no que seria um espaço de arte pura.
Se em uma história a arte venceu os poderosos, e na outra os poderosos venceram a arte, na terceira história, a inocência do Vaudeville morreu, não tendo chance em um mundo onde a arte é uma mercadoria e uma força política.
Talvez a única coisa que realmente esteja indo embora seja alguma inocência que a televisão deixou no imaginário coletivo. Que na realidade brasileira pode significar bonecos gigantes interagindo com apresentadoras infantis sensuais, fantoches interagindo com apresentadores, e programas de auditório cheios de misoginia. O que é zoado, mas hey, Vaudeville era cheio de racismo. E talvez exceto por uma coletânea de imaginários como esse, não tenhamos mais nada para nos despedir de verdade.
Talvez os únicos filmes com foco em televisão que estejam datando com sua morte sejam aqueles em que a televisão é usada de maneira muito literal como um eletrodoméstico que é uma caixa elétrica. Sabem, os filmes de terror como Poltergeist e The Ring. Mas The Ring foi concebido para ficar datado rápido… século XXI e fazem um filme de terror sobre um VHS.
A televisão foi duramente criticada durante toda sua existência, porém tudo o que ela trouxe de ruim ficará firme e forte, pois a única coisa que está mudando é como a consumimos. E a produção de conteúdo online herdará tudo o que a televisão trouxe de bizarro para a terra, de maneira que críticas ao sistema televisivo simplesmente não conseguem envelhecer em uma época em que o alvo da crítica perde a relevância.
Pensar que nascerá em breve uma geração que não terá consumido televisão aberta ou acabo na vida, somente a smart TV, me deixa pensativo, em especial quanto ao que realmente data um elemento em um filme. Que mudanças tecnológicas realmente impedem uma história de ser reproduzida em outra época enquanto outras somente fortalecem outras.
Digo, a mera existência de celular já impossibilita tantas tramas de espionagem nos anos 40 de existirem….