LOST é disparada minha série de televisão favorita de todos os tempos. Eu periodicamente remaratono do começo ao fim tomando um tempo que me permitiria estar em dia com aquela série que você gostaria que eu assistisse para poder fazer um texto aqui, e eu peço sinceras desculpas por isso. E cada vez que eu reassisto eu ainda me emociono com o drama dos personagens e percebo novos gestos simbólicos de evolução e trabalho em suas jornadas que eu não havia notado na primeira vez, se tornando uma série que se torna progressivamente melhor conforme se reassiste.
Enfim, LOST é uma série que apesar de eu amar, eu demorei pra vir aqui falar dela, porque eu gosto de vir aqui escrever um texto quando eu sinto que não estou repetindo coisas que todo mundo já falou (claro as vezes eu estou repetindo e só não sei, pois não li os textos certos), e bem, LOST foi tão, mas tão comentada, que tudo o que eu tinha a dizer já tinha sido dito. A série foi um fenômeno e todo mundo falou a respeito na época. Em especial com seu final controverso.
Claro, eu podia vir aqui explicar o final que tanta gente não entendeu (em especial o Marcelo Adnet em seu clipe de spoilers, e o cara que roteirizou o piloto de Arrow, esses dois visivelmente não entenderam), mas isso seria um texto muito curto. Seria: “Eles não morreram na queda de avião, porra! A série termina com 10 personagens centrais vivassos. Vivos pra caralho. Mais vivos que o Yusuke.” e fim do texto, pois é, não vim aqui falar do tão polêmico final também não.
Eu vim aqui falar de dicotomias. E por quê? Bem, porque é um dos grandes lances de LOST, como a série trabalha disputas entre dois lados opostos em diversos campos. Da disputa de bem versus mal, até a de razão versus fé, destino versus livre arbítrio, individualismo versus coletivismo, natureza versus civilização, etc… Esse tipo de trabalho foi o pilar da série desde o começo. Marcado logo no logo da série que era meramente as letras LOST brancas em um fundo preto, até na primeira cena, marcada pelo notório contraste de um homem vestido de terno e gravata acordando em uma selva sem civilização aparente.
Enfim, mas como eu disse, a série foi analisada bastante e todas essas dicotomias foram bem dissecadas por muita gente que tinha muito a falar bem e mal da série. Eu vim falar de uma que eu pelo menos não vi ser tão dissecada. Eu vim falar sobre a maneira contrastante como a série é narrada e sobre como a maneira como a série escolheu contar a história, e suas escolhas de linguagem nos evidenciam um contraste entre a vida mundana e a vida aventureira, entre o realista e o fantástico, que são a principal arma para colocar os protagonistas da série e suas personalidades em evidência.
LOST se destacou logo de cara pelo formato de seus episódios. Cada episódio era focado em um único personagem e nos conflitos que ele vivia na ilha onde ele estava sendo obrigado a permanecer depois de uma queda de seu avião, o Oceanic 815. As situações que o personagem vivia na ilha eram intercaladas com um flashback mostrando esse personagem no mundo exterior, antes do acidente. O flashback não era em ordem cronológica, e podia ser de qualquer tempo, podia ser o personagem no aeroporto logo antes de pegar o avião ou podia ser o nascimento dele ou qualquer coisa entre os dois eventos.
Logo no começo da série a ilha foi estabelecida como um lugar cheio de mistérios e de aventura. Com o primeiro episódio nos dando indícios de um monstro misterioso vivendo na selva (que depois descobrimos ser feito de fumaça), e após isso: ursos polares, pessoas vivendo na ilha se escondendo dos protagonistas, ilusões de pessoas mortas, propriedades de cura mística na ilha, um cabo estranho conectando a ilha ao mar, uma escotilha, números amaldiçoados, e vários outros elementos da narrativa fantástica se instalaram lá. Ficou claro que não ia ser somente sobre a sobrevivência dos personagens, ia também ser sobre eles interagindo com os mistérios da ilha.
Os flashbacks, na contramão disso, não carregavam consigo o elemento fantástico e nem as chaves para desvendar os mistérios da ilha, no lugar disso, a série de mistérios e complicações de plot gastava metade de seus episódios explicando sobre porque o casamento do Jack não estava funcionando. Ou sobre o quão difícil pra Charlie foi lidar com sua dependência química. Ou sobre a vida de fugitiva da polícia de Kate. Enfim, colocando focos em coisas que podem não ser necessariamente nosso cotidiano (Eko era um mega traficante afinal de contas), mas que vão pra vertente de histórias não-fantásticas.
Os flashbacks geralmente nos ajudavam a entender porque o personagem estava tomando uma determinada decisão naquele episódio ou obcecado com determinado assunto. Mas olhando de perto, dá para ver que essa decisão ou esse assunto é algo muito trivial para justificar metade do episódio ser um flashback. Tipo, o episódio é sobre a Kate querendo muito abrir uma mala com um aviãozinho de brinquedo, e um flashback explicando a conexão dela com aquele avião. Aí quando abrem vêem que além do aviãozinho tinha armas e a trama avança, mas na perspectiva da trama, foda-se demais o motivo da Kate estar investida no aviãozinho, se o que importasse fosse avançar a trama, isso podia ser explicado em três frases a mais num diálogo. O real propósito do Flashback era mostrar como apesar de estarem em uma ilha cheia de mistérios, aventura e isolamento, o mundo fora da ilha ainda exerce poder sobre os personagens. Eles ainda são regidos pela vida que viveram antes do acidente.
Seja a vontade de Locke de escapar de seu pai abusivo, e ficar em uma ilha que faz ele se sentir especial do jeito que o mundo exterior não permitia; seja a vontade de Jack de sair da ilha para provar a si mesmo que ele era capaz de ajudar todo mundo e corrigir a tragédia que foi a queda do avião e se sentir um herói; seja a culpa de Hurley que acredita que todas tragédias são culpa sua e de sua maldição; nenhum personagem genuinamente nasceu de novo quando o avião caiu. Eles são as pessoas que eles eram quando pegaram o avião, e por mais que se transformem, a história deles no mundo fora da ilha nos mostra quem são essas pessoas, e como elas não esqueceram ou deixaram para trás aquele mundo, como a vida ordinária e normal que eles viveram até cair na ilha, é o que rege eles.
E em contraste a isso, eles agora estão em um ambiente, onde as pessoas, preocupações, medos e limitações que os tornaram as pessoas que pegaram aquele avião não estão mais no alcance deles, é como se nem existissem. Eles estão na ilha, e a ilha é longe de tudo isso, longe da vida deles que ficou pra trás.
O fato é que enquanto vemos Jack nos flashbacks lidar com a burocracia de embarcar um caixão com o corpo de seu pai em um avião para ele poder ser enterrado nos EUA, vemos Jack na ilha sendo guiado pelo fantasma de seu pai até uma fonte de água potável que permitirá aos demais náufragos continuarem sobrevivendo. E que enquanto vemos Charlie lutar para manter um emprego e um relacionamento estável sem sucumbir ao seu vício em heroína, em seus flashbacks, na ilha ele está matando um espião a sangue frio que sequestrou a sua amada e causou amnésia nela. Também, enquanto vemos John Locke se mostrar um exímio e competente caçador de javalis para os demais na ilha, vemos que nos flashbacks ele era um homem preso a um cubículo menosprezado e principalmente, preso a uma cadeira de rodas, símbolo da sua incapacidade.
Os flashbacks firmam esse contraste: o do mundano, do nosso mundo, de burocracias, empregos, vícios, e relações familiares, com a do fantástico, de espiões, sociedades escondidas, ficção científica ou no mínimo a boa e velha sobrevivência na selva. Víamos simultaneamente o mesmo personagem navegar em um mundo realista, e em uma selva com propriedades misteriosas. E ver o mesmo personagem reagir simultaneamente nesses dois mundos nos permitia ver quem esse personagem realmente era através das diferenças e das semelhanças de suas vidas.
Por exemplo. Sayid foi um soldado iraquiano, que foi ensinado a ser um torturador, contra a própria vontade, por um soldado americano. Após capturado, os americanos não conseguiam torturar o superior de Sayid, por não falarem iraquiano e o torturado não falar inglês. Então, Sayid foi chantageado a ser o torturador do próprio aliado, quando sua cidade-natal foi colocada de refém, sendo ameaçada de ser invadida pelos soldados. Sayid traí seu superior, o tortura e ganha uma habilidade muito útil em uma guerra. Ele não retorna desse incidente como um traidor, mas como um excelente torturador, e seus superiores no exército transformam o incidente que é a vergonha de Sayid em sua rotina, fazendo-o torturar inúmeros inimigos do Estado.
Na ilha, Sayid atormentado pela ideia de que ele é um homem maligno, por seus talentos serem malignos, tenta se destacar entre os sobreviventes como um grande técnico de comunicação, consertando rádios, equipamentos eletrônicos, mandando sinais, e entendendo como toda essa tecnologia de rádio funciona. Porém os sobreviventes logo descobrem que ele é um torturador, e ele se vê em posição em que querem que ele use sua habilidade maldita. Sayid vai então oscilar entre ser o torturador do time, acreditando que a única maneira dele ser útil, é sendo o vilão que ele foi treinado pra ser, e entre evitar ao máximo cometer outra atrocidade, acreditando que ele pode ser melhor, e esse eterno dilema vai guiar todas as ações e escolhas que Sayid terá que realizar na ilha. Em alguns momentos Sayid continuará sendo o torturador frio, em alguns ele tentará ser um novo homem, e o lado que Sayid escolheu naquele momento da série sempre tem um puta peso. Ver Sayid transitar entre esse dilema eterno nos permite olhar diretamente na alma do personagem e ver do que ele é feito.
E isso é somente uma faceta do Sayid. Existem outras, como seu eterno amor por Nadia, seu senso de lealdade principalmente perante Jack, suas já mencionadas habilidades técnicas com rádios e tecnologia de comunicação, seu ódio mortal pelos Outros, entre várias outras facetas do personagem que são trabalhadas.
Agora, vamos ter que ser honestos aqui, para avançar o plot, não precisamos de todo esse background, só precisamos saber se o Sayid vai conseguir a informação, e se não conseguir, se algum outro sobrevivente tem meios de consegui-la. E é aqui que quero chegar, no fundo, no fundo mesmo, as informações que conseguimos no flashback dão uma puta profundidade pro personagem, mas ela são informações que não importam pro plot, são pura trívia. Saber como foi o dia em que Sayid se tornou um torturador não ajuda os mistérios da ilha a se desvendarem.
E é aí que percebemos que a série nunca foi sobre mistérios serem revelados, os mistérios só faziam os personagens se movimentarem, mas eles em si importavam muito pouco. O importante não é saber, se Hurley vai descobrir a verdade sobre os números. Isso é só metade da série. A outra metade é ver a relação do Hurley com suas inseguranças e o desejo de ser ouvido e respeitado sem ser considerado louco. E entre essas duas metades está Hurley. Hurley conecta a trama do flashback e a trama da ilha, e é entender quem é Hurley, e o que faz o personagem ser quem é, que genuinamente recompensa o expectador e dá valor aos seus episódios.
Eu acompanhei LOST semanalmente como muita gente, e admito que na época estava distraído pela antecipação pela trama central da ilha. O importante era conectar as pontas soltas, entender tudo, e esse exercício existiu sim alguma frustração na última temporada (mas não tanta quanto falam por aí). Porém enquanto eu reassisto, eu noto o poder que os personagens têm em gerar cenas emocionais que só fazem sentido porque reconectam com a vida inteira do personagem. Não com uma ação específica na ilha ou no flashback.
Se vendo LOST pela primeira vez, o grande momento emocional da série havia sido o diálogo entre Desmond e Penny em The Constant, hoje eu vejo várias cenas que são tão belas quanto e que podem ser vista nos controversos flash-sideways, onde vemos o quanto a vida inteira dos personagens os transformaram e eles tem que perceber e lembrar dessa vida para entender quem são seus entes queridos.
Quando Ben, um homem que em vida lutou por poder independente do sacrifício, matando colegas, subordinados e seu pai abusivo para adquirir cada vez mais poder, acaba em um blefe mal aplicado sacrificando a própria filha, ele quebra e pela primeira vez na vida perde algo que ele valorizou mais do que a própria autoridade. Nos flash-sideways, vemos o mesmo Ben, no pós-vida, mesmo sem lembrar do incidente, se recusando a destruir a vida de Alex, que sequer sua filha é, em troca de seu status. Firmando o quão aprendida foi a lição e o quanto Ben era um homem diferente do que ele foi. Essa visão de um Ben transformado em uma realidade diferente é contrastada com o mesmo Ben arrependido em nossa realidade, literalmente cavando a própria cova e esperando ser executado pelos seus crimes, e sendo odiado por todos sem um único aliado.
Peguemos Hurley, que tinha um puta complexo pelo tempo que passou no hospital psiquiátrico, e que só queria poder contar para alguém sua teoria dos números que o perseguem, sem a resposta imediata ser “você está louco.” (algo que ele consegue uma única vez na vida com a Rousseau, atormentada pelos mesmos números), e sem ter seu histórico de loucura jogado contra ele na hora de dar suas teorias sobre o que está acontecendo na ilha. Pois bem, esse mesmo Hurley supera suas inseguranças graças a companhia de Libby, que também já foi internada por questões psiquiátricas, Libby o convence de que ele não é louco, e o faz se sentir incluso e aceito. No flash-sideways, uma inversão de papéis ocorre, Libby internada no hospital psiquiátrica, divide com Hurley a teoria de que em uma outra vida eles se conheceram em uma ilha misteriosa, e sobre como todos desmerecem sua teoria, pois ela é louca. Mesmo sem nenhuma prova que o convencesse de que isso era verdade, Hurley acredita em Libby e diz a ela que ela não é louca. No flash-sideways, Hurley acreditava nunca ter passado pelo hospital psiquiátrico ou ter sido chamado de louco na vida, mas ele tratou Libby como o Hurley da ilha gostaria de ser tratado. Esse momento do Hurley no pós-vida é contrastado com Hurley descobrindo o quanto ele é respeitado pelos demais sobreviventes, como Jack, que seguiram seus conselhos baseados em uma mentira, sabendo que era mentira, mas por confiarem no julgamento moral de Hurley.
Esses dois flash-sideways não ganham peso comparados somente com uma ou duas passagens dos personagens, mas com suas vidas inteiras. Vendo a vida inteira dos sobreviventes do vôo Oceanic 815, nós sabemos o que é importante pra eles em diversos contextos diferentes, o que muda quando o contexto muda, e o que não muda. Quais suas constantes e variáveis, e é com isso que trabalhamos ao vê-los agir no flash-sideways. Ver como depois de tudo que Sawyer passou, não tinha como ele continuar sendo um golpista comum, mas sim um policial. Ver Eloise dar ao filho a vida que seu filho sempre sonhou, mas ela proibiu. Ver Jack viver o outro lado da moeda e tentar ser um bom pai.
E isso não vale só nos flash-sideways, mas em todas as mudanças narrativas da série. Ver Kate saindo da ilha e sendo perdoada pela mãe. Ou ver Locke ser o único sobrevivente que se deu ao trabalho de visitar Walt, reforçando a amizade que eles tinham. Fora dos flash-forwards, temos a viagem no tempo, que foi o contexto que permitiu a Juliet que realizasse o primeiro parto de sucesso em três anos e poder ver a mãe viva depois do parto, que é um momento emocionante justamente porque sabemos toda a história da Juliet. E podemos ver também Sawyer finalmente se acomodar em uma vida a dois e rotineira e ser feliz pela primeira vez na vida.
Em geral, não importa se é a vida anterior a ilha nos flashbacks, posterior a ilha nos flash-forwards, ou uma vida paralela no pós-vida nos flash-sideways, o fato é que o personagem está sempre sendo contrastado em uma outra vida, e a sua narrativa pessoal, sempre procura mostrar a essência do personagem comparando como contextos diferentes podem fazer o personagem tomar a mesma decisão (mostrando determinação e sua essência) ou uma decisão diferente (mostrando sua evolução e influenciabilidade). E esse é um elemento narrativo fundamental em LOST, que foi parte de como a série é narrada e estruturada desde o primeiro episódio até seu último.
Como a cena em que a morte de Boone acontece paralelamente ao nascimento de Aaron mostra mais claramente do que qualquer outra, LOST se sustenta em justaposições, contrastes e divisões de tudo em “dois lados”, como parte de sua essência. E por mais que isso recheie os conflitos de praticamente todos os personagens, e os principais temas da série, a própria linguagem em que a série se narra pra nós, é onde essa paixão por dicotomias é mais presente do que nunca.
Muitos amigos meus que não pegaram LOST em seu tempo me perguntam se dá realmente pra apreciar a série agora, que você acompanha sem hype e sem grupo na internet pra debater mistérios e teorias e lore. E se a série não morre sem isso. Eu acho o contrário, esses elementos ofuscam o que a série tem de melhor, e que agora é o momento que realmente dá para sentarmos e apreciarmos essa série, na época no hype era dificílimo, mas agora é tranquilo.