Alerta, esse post é livre-de-spoilers. Embora aqui Dentro da Chaminé exista uma política de não poupar o leitor de spoilers, nesse caso em que o tema é um livro bem recente e desconhecido, não vou sair fodendo experiências. Podem ler sem medo.
Vamos falar um pouco sobre o seguinte gênero literário: Sagas em Mundos Fantásticos para Jovens Adultos. É um gênero bem popular, e que embora livros de fantasia em sagas existam faz muitas décadas, o gênero da maneira como ele é visto hoje segue uma tendência que começou com Harry Potter lá no ano 1999 quando o livro começou a estourar de verdade na proporção que a franquia tem hoje. Harry Potter foi adaptado ao cinema, e do sucesso dos filmes, decidiram adaptar outras franquias literárias ao cinema, começando com Lord of the Rings, que já era consagrado desde décadas antes de Harry Potter, mas não é como se imediatamente após Harry Potter já existissem tantos exemplos de seguidores da tendência nas livrarias, mas depois de Lord of the Rings, vieram os livros da Twilight Saga, os livros do Percy Jackson, os livros de Hunger Games, os livros de Maze Runner, os livros de Divergent, e isso falando só dos que viraram franquias cinematográficas.
E o que essas obras têm em comum? Todas contam uma história que se estende ao longo de vários livros, passado em um mundo imaginário, sobre adolescentes que estão lidando ao mesmo tempo com problemas pessoas de amadurecimento e com tensões políticas e guerras e batalhas do bem contra o mal que estão prestes a acontecer. Temos uma organização vilanesca que deve ser derrotada pelo bem do mundo e temos heróis se juntando a amigos e se preparando para a grande batalha.
Claro que isso tudo é muito genérico, e cada uma dessas franquias lida com isso de uma maneira específica. Em Harry Potter, Percy Jackson e Lord of the Rings, o vilão é um ser que foi derrotado em uma guerra muito tempo atrás cujos protagonistas temem seu retorno. Em Hunger Games e Divergent, o vilão é o governo distópico que já está no poder. E na maioria dos casos isso eventualmente culmina em uma guerra.
Tudo isso pra estabelecer que embora não exista uma fórmula, existem tendências para esse tipo de literatura que eu quero ressaltar para poder enfim falar do real tema do texto: o livro Aaron Fischer e a Prova dos Elementos, primeiro livro de uma série de fantasia brasileira escrita pelo autor Carlos Melo e que foi lançado essa semana na Bienal do Livro.
Sendo um livro de fantasia, ele obviamente vai conversar direta ou indiretamente com a maioria dos seus antecessores, e honestamente, é um livro que me chamou muito a atenção por como ele construiu alguns detalhes de seu universo, justamente por eu já estar tão acostumado com os universos de fantasia.
O mundo de Aaron Fischer se passa no Império de Taur e, conforme manda a tradição, está se recuperando de uma guerra civil de 15 anos atrás, chamada a Guerra dos Deuses Caídos, onde um maníaco genocida psicopata e mal encarnado chamado de O Lobo, tentou impedir que um cara chamado Jorg Marok, também conhecido como o Anjo Caído, se tornasse o líder do império, mesmo que ele fosse o sucessor legitimo do antigo marechal. O Lobo matou muita gente e reuniu um exército grande, mas ainda sim Marok venceu a guerra e se tornou o Marechal do Império, embora muita gente ainda tenha medo que o que restou do exército de Lobo possa recomeçar a guerra a qualquer instante. Nesse mundo também a população é dividida em dois grupos, os elementais, que apesar do nome são pessoas que possuem qualquer tipo de super-poder, não necessariamente poderes diretamente relacionados aos elementos da natureza (e são poderes dos tipos mais variados); e os comuns, que são pessoas normais que não possuem poderes como eu ou você, e naturalmente existe atrito entre os dois grupos, com a sociedade sendo estruturada para privilegiar elementais, garantindo a eles inúmeros privilégios enquanto os comuns são mantidos na base da pirâmide social.
Embora as pessoas tratem o Lobo como um grande mal derrotado cujo retorno deve ser impedido, em um paralelo semelhante ao Voldemort, o Sauron ou o Kronos, a realidade que o protagonista descobre logo no começo do livro é outra. Marok é o real tirano, e amplificou toda a tensão entre elementais e comuns a níveis muito maiores em comparação a como eram antes dele vencer a guerra, então supostamente Lobo foi o herói? Aparentemente também não.
O livro me surpreendeu logo no começo por nos apresentar que a grande guerra que moldou todo o contexto do livro, foi entre dois caras maus. Então temos simultaneamente o vencedor, um vilão que está no momento moldado pra ser o grande vilão da série; e um derrotado, um vilão também, com muitas pessoas receosas quanto ao fato de seus seguidores seguirem vivos e organizados. E no meio disso, o protagonista Aaron Fischer, um filho de pescador que foi criado como um comum, mas no leito de morte de seu pai, descobre que ele é na verdade o filho do Lobo, escondido sob a criação de um pescador. Ele que sempre odiou a política de Marok, principalmente por crescer levando o tipo de vida que um comum leva e sentindo na pele os abusos que o tirano causa aos comuns, agora tem a desculpa perfeita pra se juntar ao Exército Negro, com os seguidores do Lobo e lutar contra Marok quando a guerra recomeçar, afinal seu pai adotivo lhe disse que Lobo foi um bom homem, e ele acreditou. Mas durante o livro ele constantemente se questiona de o Lobo foi bom mesmo e se depara com relatos das atrocidades que seu pai fez. Aaron não tem a certeza de o Lobo pode ter sido um homem bom, e nem o leitor, mas ele é um grande símbolo da oposição ao Marok, cujos problemas o protagonista sofreu na pele, então não temos muita opção a não ser torcer pelos seguidores do Lobo, não existe um lado obviamente bom no conflito. Além de questionar a moralidade do pai, Aaron também lida com o fato dele ser símbolicamente o legado dele, o que se manifesta tanto no seu poder quanto na sua arma por opção, uma lança que é tão simbólica que está na estilização do título do livro.
A guerra civil pode recomeçar a qualquer momento, e a maioria dos personagens tem um partido tomado quanto a isso, mas é difícil ignorar o fato de que eles estão lutando por um lado “menos pior.” Um dos personagens mais fascinantes do livro é o General Balor, um dos militares mais poderosos do Império, e a primeira vista um grande defensor de Marok, afinal lutou ao seu lado na guerra, mas, na prática, ele usa sua posição interna pra fazer o máximo de redução de danos e tenta sempre que pode defender os comuns da opressão dos elementais, mesmo que suas mãos estejam sujas de sangue da guerra, o que resulta em uma espécie de desprezo que ele sente por ambos os lados, pelos comuns por ser aliado ao Império e pelo povo do Império por ser simpático à causa dos comuns. Na minha opinião disparado o personagem mais interessante do livro.
Ao se descobrir um elemental, Aaron Fischer descobre que pra poder lutar contra o império, o melhor caminho é a Escola para Elementais de Lysmor, onde ele aprenderia a usar seus poderes de elemental e poderia então se tornar uma figura relevante na guerra que está pra recomeçar. Para entrar na prova é necessário passar em um exame de seleção, a prova dos elementos indicada no título, e no processo de se inscrever pro exame e prestá-lo, Aaron fará amigos entre os elementais, onde ele descobrirá que diferente do preconceito que ele tinha quando vivia entre os comuns, nem todos os elementais vivem de oprimir os comuns, alguns são ativamente contra os maus-tratos aos comuns, e alguns não tocam no assunto, mas parecem ser pessoas decentes, ao longo do livro Aaron faz alguns aliados bem carismáticos, e não temos a menor ideia da posição de alguns deles quanto ao separatismo entre elementais e comuns. Porém os que enfatizam todos os maus-tratos aos comuns existem, e existem aos montes. Entre eles Kracht, um dos principais antagonistas desse primeiro livro, embora não seja o único.
Assim como foi com Avatar, Aaron Fischer me chamou a atenção por ser pouco maniqueísta mesmo em uma história e em um contexto onde é muito fácil se ver maniqueísmo a primeira vista. Os personagens tomam suas posições moldados pelo contexto em que cresceram e sua criação, mas nenhum deles soa inerentemente maligno quando os vemos de perto. Mas ainda sim, muitos deles vêm o mundo em bem e mal, pois estão em guerra, e nós como leitores estamos direcionados a identificar o mal, mas isso não obriga a obra a se apoiar em maniqueísmos e ela não se apoia. Mesmo Kracht que é apresentado como um completo psicopata a primeira vista, ganha desenvolvimento o suficiente pra nos fazer questionar o que o fez ser daquele jeito.
Mas nesse contexto todo, o que mais me chamou a atenção no livro, foi como ele fez a questão de colocar um fator que a maioria das sagas épicas prefere omitir: a importância da cumplicidade da igreja para firmar o Império. Muitas sagas épicas têm grandes impérios que devem ser derrubados: Hunger Games, Avatar, Harry Potter, Star Wars, e todos eles se omitem de criar uma religião que tome partido nas guerras civis retratadas, mesmo que historicamente, os nossos grandes impérios tenham na maior parte das vezes tido o auxílio da religião e da igreja, muitos dos grandes imperadores da nossa história uniam a própria imagem a imagem de um Deus, e aqui é esse o caso. Na cidade onde Aaron foi criado como um comum, ele tinha que ver diariamente uma estátua de Jorg Marok ao lado da estátua dos cinco deuses formam a religião politeísta da série.
Mas a igreja não aparente ser uma subordinada completa do Império, soa mais como uma aliada e cúmplice. O papel da igreja no caso é legitimar todo o rolê errado que ocorrem com os comuns, pregando que os elementais são assim por serem escolhidos pelos deuses e devem ser tratados como os deuses. A religião em si não diz nada disso, quem diz isso são os sacerdotes aliados ao império que distorcem a religião, e as leis direcionam o povo a ter poucas opções a não ser seguir a religião. Religião é uma das poucas matérias que tem em colégios comuns, ir a igreja toda semana é obrigatório e blasfêmia é um crime passível de morte, então é seguro não questionar o que a igreja diz, claro que essas pessoas não tiveram a oportunidade de realmente descobrir o que a religião diz, só de ouvir a versão distorcida promovida pelos bispos para legitimar as crueldades do Império.
Além disso, o fato do autor ser brasileiro ajuda muito na elaboração de mundo, é realmente gratificante ver na fauna de Taur, curupiras caminharem lado a lado com animais da mitologia grega como hidras ou animais da mitologia nórdica como fenrics, adições que não se achariam em outras obras.
Aaron Fischer e a Prova dos Elementos, é só o primeiro de uma série, e naturalmente, muita coisa não ainda foi revelada sobre seu mundo, inclusive o leitor fica com muitas tramas no ar interrompidas esperando para serem continuadas no segundo livro, porém é sempre bom ver os universos de fantasia se renovando com detalhes que estejam fora do genérico.