Em setembro de 2015, morreu um cineasta que genuinamente me inspirava muito. Wes Craven, criador não só da franquia Nightmare on Elm Street, e do personagem Freddy Kruegger, como também criador da franquia Scream e do ícone do terror, Ghostface. Esse post é para falar deste último.
Fazer um filme de terror é sempre andar na corda bamba. Um pequeno desequilíbrio na corda e o filme de terror cai no território da comédia, e uma vez que ele cai nesse território, é uma causa perdida, o público não está mais levando aquilo a sério, e o senso de seriedade é algo que uma vez perdido, não volta nunca mais. Só ver que o pobre Chucky que nunca mais foi respeitado depois de A noiva de Chucky.
Por outro lado, o filme tem que ter algum humor, para descontrair o publico que estará constantemente tenso, isso é parte de manipular as emoções do espectador, que é justamente o propósito do filme de terror, caso o filme seja bem feito. Esse equilíbrio é bem difícil de se realizar.
Mas Scream realiza, na minha opinião. Não só isso como vai além de equilibrar suspense e comédia. Scream também gera a dúvida se ele é uma sátira, uma homenagem ou um estudo de gênero dos filmes de terror do subgênero slasher ou uma desconstrução do mesmo subgênero, e o segredo é que é os quatro juntos, ao mesmo tempo em que é um autentico filme slasher. A veia cômica que se manifesta da meta-linguagem e pós-modernismo do filme, não contradiz as cenas de tensão dos momentos em que Ghostface está em cena.
Pois Ghostface nunca aparece no filme como um personagem cômico. A parte de paródia e desconstrução dos filmes surgem nos momentos em que o vilão está ausente. Ghostface é um psícopata sério, e após o filme ele se tornou um ícone dos filmes de terror, como muitos outros vilões de filmes semelhantes, independente de quanta descontração tenha no filme.
Tradicionalmente, ícones de filmes slasher costumam se manifestar em criaturas que um dia foram humanos, mas se tornaram seres sobrenaturais implacáveis que não vão parar de assassinar pessoas jamais. Apesar de seus status monstruosos e de terem poderes e imortalidade (a imortalidade é importante, para ele voltar no próximo filme), como um dia eles foram humanos, eles tem nomes humanos: Freddy, Jason, Michael, Chucky, para citar os mais famosos, dentre os menos clássicos temos I Know What You Did Last Summer, que tem como nome de seu vilão Ben Willis e The Ring que tem a garota Samara. Esses nomes servem como um lembrete de que o demônio com que as vítimas estão lidando, um dia foram gente como eu e você.
Ghostface é o oposto, ele é o tempo todo, nada além de um cara com uma máscara e uma faca. Não muito distante de Leatherface, que também é um ser humano ao contrário de um monstro em The Texas Chainsaw Massacre. Ghostface não tem superforça, nem invade sonhos, nem se teletransporta. Ele somente rende a vítima e a esfaqueia. Mas sendo ele somente um cara com uma faca, ele não é humanizado por meio de um nome comum, ele é sempre o Ghostface. Todos sabem que é só um humano, mas, ao mesmo tempo na hora do ataque podemos esquecer isso, pois ele em seu disfarce é mais que uma pessoa, ele é um símbolo que pode ser desassociado do humano que veste sua máscara.
Ah, mas mesmo sendo um cara comum sem poderes ou misticismo, ele é tão imortal quanto Jason ou Freddy. Sua imortalidade não é literal, ela se manifesta através de seu legado.
Ghostface pode ser somente um cara com uma máscara, mas ele não é somente UM cara… ao longo dos quatro filmes da franquia sete pessoas já colocaram essa máscara para matar sob a identidade de Ghostface. Exceto pelo terceiro filme, são sempre dois assassinos ao mesmo tempo, o que permite que eles simulem o “teletransporte” dos monstros sobrenaturais, estando literalmente em dois lugares ao mesmo tempo. Mas a pior parte de serem sete assassinos, é que o novo sempre tenta terminar o que o anterior começou. Ele é um psicopata capaz de inspirar outros psicopatas a continuarem matando em seu lugar, após sua morte.
Sabem todo o argumento do Bruce Wayne sobre o Batman ser um símbolo de esperança, justamente porque debaixo daquela máscara pode estar qualquer um. O Ghostface é a mesma coisa, porém trocando esperança por medo, por assassinatos meio que sem motivo.
Meio que, pois o psicopata sempre declara seu motivo, mas como a protagonista Sidney Prescott desconstrói no terceiro filme, os motivos soam mais como desculpas, para fazer um psicopata dar o primeiro passo. Nunca é realmente genuíno. No fundo aquelas mortes são todas só pelo prazer de ser um assassino igual os dos filmes de terror. Sempre tem uma motivação inicial, mas, no fundo, é sempre mais simples, aquelas pessoas são psicopatas, e veem prazer em matar, e na atenção que os assassinatos recebem.
Sete pessoas já tentaram matar Sidney Prescott, deixando um rastro de conhecidos da garota mortos, no processo. Ela vai passar o resto da vida dormindo com um olho aberto, só esperando um novo psicopata aderir ao legado, vestir uma máscara e tentar matá-la, até eventualmente, um conseguir. Nunca vai parar, é sempre questão de tempo até a história se repetir, e ela vai viver com esse medo eternamente.
E quando o novo psicopata aparecer, ela nunca saberá em quem confiar, pois o assassino é sempre alguém próximo a ela, e sempre é um segredo até o final do filme, sempre levanta a dúvida de em quem se pode confiar. Novamente, debaixo da máscara, pode estar qualquer um. A pessoa que vai te esfaquear, pode ser qualquer um que você deixe se aproximar demais, por isso o símbolo e seu mistério é poderoso.
O primeiro Ghostface foi o namorado de Sidney. O último foi sua prima. Pessoas próximas, sempre. Qualquer um pode ser um psicopata, esperando somente receber um empurrãozinho que o convença a matar a primeira pessoa.
E diferente de Jason, ou Freddy. Isso é algo que podemos aplicar à nossa realidade, podemos acreditar que poderia acontecer de verdade. Não literalmente da maneira que o filme retrata, porém próximo o bastante.
Pois é… ironicamente todos os filmes fazem questão de levantar o ponto de até onde um filme pode influenciar um crime real, e aí ele acabou influenciando um crime real. Uma lástima.
Outro ponto assustadoramente real cercando Ghostface, é a falta de empatia que as pessoas no filme tem pelos assassinatos. Os filmes sempre retratam o grande público, os personagens não nomeados, em sua maioria adolescentes, como uma massa que transforma a catástrofe em entretenimento, como se estivessem vendo um filme de terror na vida real.
No primeiro filme, após o primeiro assassinato, a polícia confirma que a fantasia do assassino é uma fantasia conhecida como Father Death, a fantasia mais vendida de halloween, (curiosamente, a máscara criada pro filme se tornou uma das mais populares de Halloween nos anos que sucederam o filme, a vida imita a arte) e que era impossível identificar o comprador, pelo fato de que se vende em todo lugar. Após Ghostface tentar pela primeira vez matar Sidney Prescott (e falhar), e no dia seguinte no colégio, dois alunos comparecem vestidos de Father Death para zoar com Sidney. Uma completa imbecilidade de humor negro e falta de empatia que você pode encontrar hoje na internet com facilidade em comentários sobre tragédias feitos por internautas no anonimato.
Esses dois colegas recebem uma dura do diretor do colégio. Em um papel raramente atribuído aos personagens adultos nesse tipo de filme, ele é uma autoridade decente que toma o lado da vítima do assassinato, e não tolera nada que dê moral ao assassino, e no fim do dia, Ghostface assassina esse diretor.
O diretor morto contraria em muito o estilo de vítimas que o Ghostface escolhia, afinal era a única vítima sem envolvimento pessoal com Sidney ou com os assassinos, Billy e Stu. As duas primeiras vítimas foram Casey e Steve, a ex de Stu e o novo namorado dela. Sidney que eles não conseguiram matar era namorada de Billy. Tatum que morreu depois era namorada de Stu. Randy que sobreviveu a um ataque era um amigo dos dois e frequentava a mesma turma, e Kenny, o motorista da van que foi morto, foi morto por investigar os assassinatos com uma câmera dentro da casa de Stu. Concluindo, as vítimas eram todas do círculo social dos assassinos, exceto por uma que era uma testemunha, e pelo diretor. Então, porque o diretor foi morto? Ah, ele foi morto como retribuição, ele expulsou os garotos que se disfarçaram de Father Death da escola, e o Ghostface não quer que esse tipo de celebração seja censurado, ele quer a fama e que comentem e se fantasiem dele, portanto em um ato de cumplicidade com a insensibilidade cometida contra Sidney ele puniu o diretor da escola, matando-o. O fato do próprio Stu ter adorado a brincadeira dos dois e rido muito quando aconteceu, confirma essa relação entre o Ghostface e seu público.
No segundo filme, após a morte de Billy e Stu, os acontecimentos do primeiro filme são o tema de um livro sensacionalista tentando lucrar com o massacre, e esse livro é adaptado em um filme de terror tosco chamado Stab (afinal se Scream dialoga com todos os slashers de seu tempo, Scream 2 deve dialogar com o Scream também, e portanto esse filme deve existir naquele universo). E então, na estreia, o novo assassino, inspirado pelo filme, mata dois espectadores, o primeiro no banheiro, e a segunda na frente de todo mundo durante a sessão.
E o público do filme, todos vestidos de Father Death e brincando de se esfaquear de mentirinha, não notam que está acontecendo um assassinato real entre eles, pois estão todos no clima de rir e zoar. Eles viam o assassinato, mas não levavam a sério e gritavam “mata ela!” todos vestindo a mesma máscara que o assassino. Uma cena particularmente agoniante, em que a vítima se vê cercada por gente, e ninguém disposto a ajudá-la ou mesmo a entender que ela está sendo assassinada. Todos tão na vibe do homicídio como entretenimento que só perceberam que não era zoeira quando era tarde demais.
No quarto filme, descobrimos que todo ano, no aniversário da primeira tragédia, os postes da cidade são decorados pelos jovens da cidade com rostos do Ghostface por toda parte. Jovens vendo graça em tudo sempre serão o vilão secundário da série. O ato simbólico de se vestir de Father Death para se divertir a custa dos inúmeros massacres ocorridos na série é carrega o mesmo símbolo que o Ghostface se vestindo de Father Death para dar continuidade aos massacres.
Pois se o Ghostface é quem mata, os jovens que riem são seu combustível, são o que todos que seguem o legado de Ghostface querem, são quem fazem esses psicopatas sentirem que eles se tornaram o vilão de filmes de terror que eles sonham em ser. Que eles são grandiosos como nos filmes. A exposição fortalece o Ghostface, e essa massa de jovens sem empatia garante a exposição. Essa cumplicidade entre o Ghostface e o público do entretenimento que consome sua imagem, é um tema que todos os quatro filmes exploram.
Agora, esses adolescentes são todos personagens não-nomeados, vistos como uma grande multidão sem rosto ou personalidade, não são personagens independentes. Os personagens independentes da série são adolescentes, também um pouco imaturos, mas com um distanciamento dos otários que celebram o Ghostface. Eles gostam de festa, de se divertir, e adoram filmes de terror. Eles assistiram vários filmes de terror na vida, sabem a fórmula, conhecem o gênero bem o suficiente para perceberem que foram colocados à força dentro de sua lógica, e morrem mesmo assim.
Filmes slasher, por tradição costumam ter em suas vítimas os seres humanos menos empáticos do mundo. Um bando de adolescentes desmiolados consumindo álcool e drogas como se não tivesse amanhã e com hormônios a flor da pele. Fazendo festas em locais inapropriados e ignorando avisos que poderiam deixá-los a salvo do vilão do filme. Tudo isso, para que não tenhamos empatia nenhuma por essas vítimas e possamos torcer pelo assassino. Ao final só sobrevive a garota mais pura e virginal desse grupo inicial, como uma recompensa por uma vida fora dos pecados.
Scream põe em evidência e quebra essa pegada moralista de suas vítimas. São vítimas das quais podemos ter pena ou simpatia ou identificação. São jovens normais. No primeiro filme, tem uma cena de festa inapropriada, cheia de álcool e pegação, porém a maioria dos membros da festa abandonam a festa quando descobrem que o diretor foi assassinado e sobrevivem ao massacre por isso. Serem os jovens toscos que são é o que garante que Ghostface não os matará.
Os que não sobreviveram, não morreram por ignorar avisos, por ficarem bebendo e transando e sendo o estereótipo do adolescente tosco. Pelo contrário, a única cena de sexo do primeiro filme é entre Sidney, a protagonista que sobrevive os quatro filmes, e Billy o próprio Ghostface. Os demais, eram personagens identificáveis. E o fato deles serem grande fãs de filmes de terror aproxima esses personagens do expectador, que estará vendo um filme do mesmo gênero. Ao contrário da vítima slasher que é pensada para causar apatia, a vítima de Scream é pensada para causar identificação.
E aí eles morrem. São atacados primeiro psicologicamente, com um telefonema que agressivamente revela que eles estão sendo stalkeados dentro das próprias casas (onde muitas vítimas costumam ser mortas) e então são esfaqueados por esse psicopata que eles tinham como amigo próximo. E isso é o Ghostface.
A personificação da matança sem sentido, da ideia de que alguém próximo a você um dia poderá surtar. Um símbolo do terror que as pessoas lembrarão e celebrarão para sempre. Menos sobrenatural que Jason e Freddy, sem dúvida, porém jamais será menos demoníaco.
Com a morte de Craven, as chances de existir um quinto filme da franquia é praticamente nula. Porém, fizeram uma série de Scream onde o assassino herdou o nome Ghostface, porém não herdou sua máscara e menos ainda, o seu legado, já que a série não segue a continuidade dos filmes.
Também na série o expectador descobre relativamente cedo a identidade do assassino, deixando pouco mistério para o púbico. Porém, ainda sim, o Ghostface da série tem muito em comum com o assassino dos filmes, como o hábito de ligar para a vítima pouco antes do assassinato para causar medo, o anonimato da máscara e a tensão de não saber em quem confiar, além da noção de imortalidade, com um novo assassino assumindo a máscara e recomeçando os assassinatos. Pois sim, são essas características que garantem que Ghostface seja assustador, um flerte com a realidade do que é possível, do que devemos realmente ter medo.