Comparando The Menu com Midsommar.

C

Um pouco antes do natal eu fui no cinema assistir o filme The Menu, e enquanto subi os créditos pensei comigo mesmo orgulhoso: “Esse filme é bem parecido com Midsommar, eu vou fazer um texto sobre isso. Eu sou muito inteligente. Hohoho.”, aí cinco minutos querendo ler o que falaram do filme na internet eu percebi que a torcida do Flamengo já falou que o filme é parecido com Midsommar. Então eu fui colocado em meu devido lugar. Era um pensamento obvio que passou pela minha cabeça. E aí eu naturalmente vi gente criticar quem apontava a semelhança, pois não seriam filmes tão parecidos assim.

Então resolvi fazer o contrário nesse texto. Um texto que passe as diferenças e as semelhanças entre os dois filmes simultaneamente. No meu texto sobre Cuck Cinema que eu lancei faz mais ou menos um mês, eu falei sobre a maquiagem e a alma dos filmes, mesmo termo que eu usei pra falar de Jurassic Park, mas o texto de Cuck Cinema foi mais lido. Mas esses termos são termos que quando eu usei, eu passei muito a impressão de que o que importava era a alma desses filmes e a maquiagem podia ser qualquer coisa. E bem, isso depende.

Pois Midsommar e The Menu são bem mais diferentes em sua superfície do que em seu esqueleto, mas essa estética é a diferença crucial entre esses dois filmes. Pois é a superfície que vai determinar em quem os filmes batem ou não. E ambos os filmes se conectam emocionalmente com o expectador com base nas porradas que eles. E esse texto quer pensar nisso. Em quem é que esses filmes batem, quem defendem, e como as decisões de maquiagem estão no centro disso. Afinal, apresentação é parte fundamental da arte, mas é tão visível e perceptível isso que as vezes, eu, ou qualquer um, pode se sentir inclinado a tentar ignorar a apresentação, para irmos atrás do que não está na nossa cara. Mas devemos olhar pra apresentação também.

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Esse texto é feito em homenagem aos que já apoiam o blog. A grande força por trás do Dentro da Chaminé. Que é dessa turma inclusive que pediram um texto sobre Midsommar, embora eu ache que eu fui pra uma direção diferente da intenção do pedido. De qualquer jeito, espero que gostem todos do texto.

Enfim. Por que eu lembrei muito de Midsommar vendo The Menu?

Porque apesar de um ser sobre uma comunidade pagã na Suécia que mata seus idosos e estupra seus turistas, e o outro ser sobre um cozinheiro se vingando dos seus clientes ricos por uma carreira infeliz, ambos batem em pontos tão semelhantes em sua estrutura.

Ambos são vistos da perspectiva do choque cultural. Vemos tanto os Hargas quando o Hawthorn pela perspectiva de uma mulher que caiu de paraquedas naquele mundo. Uma mulher que está ali só pra acompanhar um homem que é quem realmente está interessado. E sob a perspectiva dela nós vemos o quanto a cultura pagã ou a cultura foodie é estranha e gira em torno dos rituais mais esquisitos.

O acompanhante dessa protagonista, não é quem comete nenhum dos assassinatos do filme, e para todos os efeitos não é o vilão do filme, mas ele serve como o personagem menos apreciado do filme. Ele é marcado como uma pessoa que falta empatia e a decência com os outros ao seu redor, age com indiferença a mortes aos quais deveria ser impactado. Sua curiosidade e fascínio pela cultura que ele está experimentando faz ele não ligar pras coisas horríveis que acontecem ao seu redor, pois elas fazem parte. Ele é claramente abusivo e tóxico com a protagonista em si, com qual ele tem um falso relacionamento. Em Midsommar ele está desconectado emocionalmente de sua namorada, e adiando terminar com ela, pois não tem cara de admitir que não quer mais. Em The Menu ele é o cliente e a protagonista é a prostituta que ele contratou por aquela noite. Em ambos os casos eles posam como um casal, mas ele emocionalmente não está mais ali. E no geral ele é uma pessoa terrível de maneira pé no chão. Não é terrível por ser um assassino ou o líder de um culto, mas sim uma pessoa terrível que podemos encontrar no nosso cotidiano.

O local onde eles estão é apresentado de maneira clara como um culto e uma armadilha. Os locais passam um ar de tensão desde o seu princípio, pela maneira performática como agem, e fazem tudo de maneira ritualística e perfeccionista. O que é de se esperar, em um evento planejado e ensaiado do qual eles tem o roteiro pronto na cabeça desde o princípio. E tem o fator, de que esse culto se identifica com a protagonista.

Ela não é um desses visitantes escrotos, presos nos próprios vícios, ela é diferente, pertence ao culto mais do que pertence ao grupo dos visitantes. E rola esse convite para que ela mude de lado ao longo do filme.

Em grande resumo, os dois filmes, são sobre uma mulher acompanhada de um imenso canalha sendo levada até um culto que vai matar os canalhas, e apesar da enorme estranheza e dos assassinatos, sendo convidada a ser um deles. Com a diferença central de que a Dani entra pro culto, e a Margot escapa.

Além disso os dois filmes têm uma temática sutil rolando da relação entre arte performática, a morte e a natureza. A gastronomia é descrita como a arte que manipula a vida e a morte em The Menu e os ritos performáticos dos Harga também se expressam pela maneira como eles geral vida e morte. Ambos estando cientes do equilíbrio da natureza como algo maior e da própria insignificância deles próprios.

Ambos os filmes ditam o tom na nossa estranheza, e nosso sentimento de “vai dar merda daqui a pouco” que enfim vinga quando um cultista se suicida mais ou menos na metade do filme. Virando a chave pra maioria dos visitantes de que “isso não é normal”.

Em uma rima mais estética, os dois filmes terminam com a protagonista assistindo um incêndio que está matando igualmente cultistas e visitantes. E alguém pode talvez ver semelhanças entre a roupa de flores e a roupa de marshmallows.

Mas a pergunta que eu quero fazer é: apesar disso os filmes passam mensagens bem diferentes. E o segredo está na Dani ter entrado no culto enquanto Margot escapou? Não. Eu aqui nesse blog muitas vezes tento falar “a diferença não está no obvio”. Mas aqui está sim. A diferença é precisamente que um se passa em uma cerimônia pagã na Suécia e o outro se passa em um restaurante 5 estrelas.

E eu acho importante frisar essa diferença. Porque se você frequenta esse blog tem tempo, você pode ter se acostumado a me ver afirmar coisas que seguem a ideia de: “Jurassic Park é bem mais que dinossauros” ou “Matrix é bem mais que uma grande realidade virtual” e pedir pra vocês irem além da maquiagem. Mas assim. Jurassic Park é um monte de dinossauros também. A maquiagem dos filmes é parte fundamental deles.

Eu noto isso especialmente com fãs de Neon Genesis Evangelion, que vivem me falando que Evangelion não é sobre um monte de robô. E embora obviamente seja mais tenso que um monte de robôs, obviamente ainda é um anime que foca muito em luta de robôs. Os robôs não podem ser separados da experiência. E eu não recomendaria Evangelion para alguém com aversão a animes de robôs pelo mesmo motivo que eu não recomendaria Pirates of the Caribbean para quem tem aversão a filmes de piratas.

Especialmente porque os dois filmes lidam com a estranheza e com cultos. Com o contraste cultural em ver gente agir estranhamente em um ambiente estranho e não saber o que está havendo, que a maquiagem faz toda a diferença. Então vamos primeiro falar sobre as maquiagens desses filmes individualmente.

Midsommar:

Midsommar se passa na Suécia, em uma comunidade fictícia chamada Harga. Os Harga são uma religião pagã escandinava. O paganismo escandinavo foi uma religião que dominou a Escandinávia e que morreu no Século XII, com o contato do povo nórdico com os cristãos e com a conversão em massa da região ao cristianismo. Apesar dessa conversão ter culminado em um apagamento histórico de muitos fatos sobre essa crença que dificulta seu estudo, existem até hoje vestígios dessa religião sendo praticada na modernidade, o paganismo moderno, que ainda tem algum espaço na Dinamarca, na Noruega, na Suécia e na Islândia. Eles se formaram no século XIX e são chamados de neopaganismo germânico.

Os Harga são fictícios e não são inspirados diretamente em um grupo específico. Somente na ideia por trás de ainda existirem religiões pagãs na Suécia resgatando uma religião depois dela ter ficado morta por sete séculos após ser dominada pelo cristianismo, até hoje uma das religiões mais influentes do planeta.

O filme se passa na Suécia, foi filmado na Hungria e ele foi feito por um estadunidense. Um Nova Yorkino de família judaica chamado Ari Aster. Que estudou a cultura sueca pela primeira vez enquanto escrevia o filme, para poder montar a religião fictícia dele. Os elementos do filme não foram escritos e planejados de um lugar de familiaridade, mas a visão desse mundo como o mundo exótico entendido da perspectiva dos EUA modernos, vem da produção do filme já.

Visitando essa religião, está um grupo de três estudantes de antropologia. Dois deles estão indo visitar a comunidade Harga para estudar os costumes locais em uma tese. O outro está lá para fazer turismo sexual e se comportar como a pior faceta de um homem universitário possível. E acompanhando eles está Dani, namorada de um dos estudantes.

O turismo sexual sendo algo que os próprios Hargas incentivam, como parte da armadilha deles de atrair forasteiros para matar. Eles querem que os forasteros achem que a cultura deles é uma oportunidade única de se comer mulher.

Uma vez na comunidade, os estudantes de antropologia desrespeitam os Harga. Mark, o que só queria dormir com suecas, mija na árvore sagrada deles. E Josh, o que queria estudar o povo, rouba seu livro sagrado depois de ser informado que não teria permissão de olhá-lo. O terceiro é subjetivo, mas Christian é abordado para participar de uma cerimônia de procriação com uma jovem que acabou de atingir a maioridade, uma vez que para evitar os problemas genéticos do incesto, eles tentam fazer filhos com os visitantes estrangeiros. E Christian se recusa, alias ele se recusa e resiste em participar de vários rituais de flerte e cortejo dos Hargas, que simplesmente não se importavam que Christian tivesse uma namorada já, então por mais que na nossa perspectiva, Christian não esteja errado em recusar, é um ato de resistência direta a cultura Harga, da parte dele, que fez os Hargas o drogarem e o estuprarem.

Os estudantes de antropologia e os cultistas são todos retratados em luz negativa e nenhum saiu bonito na foto ao final do filme. E isso é a tradição do filme de terror, assim como a consequência do seu encontro. A desproporcionalidade. Midsommar é um filme de terror, muito influenciado pelo subgênero slasher, e filmes de terror são especialistas em fazer suas vítimas serem pessoas desagradáveis o suficiente para não nos sentirmos mal com sua morte, mas sem fazê-las cruzar uma linha moral que nos faça pensar que eles merecem morrer, de maneira que o assassino do filme possa ser marcado como uma existência horrível.

O filme segue a risca muitas tradições de filmes slasher, incluindo reforçar que a protagonista tem uma relação negativa com sexo, que a marca como pura e digna de viver, condenar os pecados carnais, o desaparecimento um a um dos personagens, e um tempo depois o reaparecimento repentino de seus corpos destruídos pelo monstro, e um título nomeado em torno de uma data festiva, indicando que os eventos do filme estão acontecendo, pois aquele dia é especial para o assassino.

Agora eu não vou mentir. Me pega bastante que as vítimas escolhidas pro filme sejam todas estudantes de antropologia. Eu entendo, eles parecem olhando friamente os alvos mais fáceis de caírem na armadilha de Pelle e morderem a isca que é fazer a viagem. Mas eu falo do enviesamento de quem é filho de antropóloga, e portanto tive muito antropólogo frequentando minha casa e ouvindo conversas deles, e tenho muito respeito por essa área da ciência. E eu acho ela subrepresentada na ficção.

Sério quem é antropólogo? Temos a piada recorrente em séries de fantasia de personagens não-humanos que afirmam estudar a cultura humana, e chegam a conclusões absurdas tiradas de má compreensão dos nossos objetos.

Temos aquela professora louca em Community que quase mata o Jeff.

Temos o Noah, de Archer o cara constantemente humilhado em Archer tratado como lixo por todos, inclusive a cultura que ele estuda.

…de representação positiva de antropólogos eu só consigo pensar na Charlotte de LOST, que é provavelmente a personagem mais esquecível de LOST e no professor Zei de Avatar the Last Airbender, que era um cara legal.

De resto, eu sempre sinto que antropólogos poderiam ser bons personagens para aparecer em filmes de aventura. E olha, acho que até os linguistas estão tendo destaque melhor que esse.

Mas o ponto central, é um filme trazer um monte de antropólogo pra comunidade, quando o filme em si olha pra ela com o olhar menos antropológico do mundo.

A antropologia é conhecida como a ciência da alteridade. E a alteridade é a sua relação com o outro e a habilidade de conseguir olhar o outro sem as barreiras que o fazem pensar que ele é estranho ou bizarro. O lema de que na antropologia deve-se familiarizar o que é estranho e estranhar o que é familiar é constante, nos lembrando que na perspectiva dos demais, nós somos os esquisitos, e tentando ver o mundo sem julgamento.

Porém, em Midsommar, a perspectiva do filme é a de sempre lembrar dos Harga como os esquisitos. Tudo o que eles fazem é para nos deixar confusos e ansiosos enquanto expectador. E cada novo traço de tradição que eles apresentam serve para fazê-los menos próximos de nós.

Por exemplo, institucionalizando o tabu que nenhuma cultura na história jamais aprovou, como uma maneira de torná-los repulsivos aos nossos olhos.

O filme também toma fortemente o cuidado de evitar individualizar os personagens. O personagem mais notável dos Harga, Pelle é o que a gente mais vê. Sabemos seu nome, seus interesses e sua personalidade.

Mas a maioria dos demais são divididos em dois grupos. Ou eles tem um nome e ficam em silêncio na maior parte do filme. Ou os que conversam com os personagens, dividem e explicam sua cultura e fazem o que podem para fazer os estrangeiros se sentirem parte da festa, que não tem nome, nem clareza da posição que eles ocupam ali. Eles nunca parecem ser personagens ou indivíduos, parecem sempre representar o grupo inteiro e os Harga enquanto um grupo seriam um único personagem.

Maja é uma personagem sem agência real, apesar de ter nome e ser a segunda Harga mais importante do filme. Ela fez 16 anos e segundo a cultura Harga ela deve engravidar de um dos estrangeiros, e ela faz um ritual com seus pelos pubianos para seduzir Christian. Porém ela nunca fala com Christian, são os anônimos genéricos que conversam com Christian em nome dela, ela não tenta falar durante o sexo, e é um personagem nada ativo. Ela recebeu um nome para ser marcada como a personagem que transaria com Christian, mas ela não faz presença real.

Christian até tenta repetir algo parecido com a noção de estranhar o familiar e familiarizar o estranho, mas no contexto do filme, Christian fala isso só como uma forma de tirar a agência de Dani e não permitir que ela vá embora da festividade que claramente deixa ela desconfortável, com sua bizarrice e apreciação da morte.

Tudo isso para concluir que: a escolha de Midsommar de centrar seu horror na estranheza cultural de um ritual pagão que não vê a vida da maneira que vemos e por isso acha aceitável nos matar, é uma escolha que reforça a ideia que existe algo assustador no outro. Que existe algo assustador no paganismo. E apesar do filme estar cheio de antropólogos que poderiam em outro filme fazer um ponte para permitir que o expectador sinta imersão na cultura Harga, aqui a falta de ética profissional de todos eles serve como pretexto para justificar suas mortes.

O filme cria uma visão assustadora de outras culturas, para nos mostrar como o outro pode ser assustador. E nos convida a sentir medo e ansiedade por estar no meio de gente estranha em celebrações que não fazem sentido pra quem cresceu longe dela. O filme não propositalmente ataca o paganismo, mas ele usa o fato de que a gente não conhece o suficiente sobre o paganismo para nos lembrar que as religiões dos outros é assustadora e que perspectivas diferentes sobre morte podem ser perigosas.

Inclusive tem um uma rima curiosa. Sobre como o paganismo escandinavo foi essencialmente devastado pelo cristianismo, e esse pequeno grupo de sobreviventes desse apagamento cultural, mil anos depois, sequestra, droga e manipula emocionalmente uma garota vulnerável até ela se desapegar desse homem chamado Christian e se converter a eles. O nome do cara mais desgostável do filme ser Christian me deixa pensativo em qual o ponto do filme em deliberadamente torturar ele, mesmo sua cultura ditando que sua morte deveria ser indolor?

No fim quem ficou feio no filme foram os relacionamentos abusivos, pessoas que fazem gaslight, e estrangeiros pagãos, as três coisas que o filme nos alerta para ter cuidado. O que na minha opinião é o suficiente para classifica-lo como Cuck Cinema. Uma história sobre um término com um relacionamento abusivo podia ser contada em qualquer maquiagem, mas escolheu a maquiagem sobre “Como é que os estadunidenses imaginam que os pagãos se comportam.”. Um filme em que o elemento não-cristão existe para matar o estadunidense, mentir, manipular e roubar suas mulheres com lavagem cerebral.

Eu não acho um alvo tão problemático, pois os Hagar são fictícios o bastante para até mesmo alguns suecos assistirem o filme e verem o Hagar como o outro, e estranharem a cultura bizarra deles como algo distante deles. Mas é um alvo, na minha visão, um tanto quanto canalha.

Vamos para The Menu.

The Menu:

The Menu se passa no assustador mundo dos espaços não só frequentados pela elite, mas daqueles que são completamente inacessíveis. O filme se passa praticamente todo dentro do restaurante Hawthorn, que só serve 12 pessoas por dia, todas com reserva; que cobra um salário mínimo por pessoa pela refeição e que fica em uma ilha onde só é possível chegar pelo barco do restaurante. Tudo para experimentar o auge da gastronomia molecular. Algo só reservado para a nata da sociedade.

Pra ser preciso, a conta do Hawthorn por cabeça é 90 dólares acima do salário mínimo.

Chegando no restaurante, logo vemos que o local não é normal. Eu tenho chamado o restaurante de culto desde o começo do texto, e o filme não exatamente usa essa palavra, mas o ambiente da ilha deixa claro. Todos os funcionários do restaurante moram ali e dormem todos juntos em condições menos que ideais, vivendo e respirando somente para obedecer a um líder, que mora em uma casa separada a qual nenhum deles tem permissão de entrar.

Além do aspecto de culto, toda a relação dos funcionários do restaurante com o Chef Slowik carrega um tom de disciplina, treinamento e obediência que nos faz pensar em um exército. Cada vez que eles tomam suas posições ou gritam “Sim, Chef!” em unissom.

Então assim, como em Midsommar temos a relação entre os antropólogos e um culto pagão. O que temos aqui é a relação entre a elite financeira e um culto não religioso, mas profissional. Um local de trabalho que opera como culto. Ocupado por pessoas que vivem pelo trabalho e só existem trabalhando.

E apesar dos horrores que eles testemunharam no restaurante. É fascinante que a elite financeira parece muito mais presas a cumprir as regras do culto. Se os antropólogos roubam o livro ou mijam na árvore sagrada, os clientes mesmo diante do fato de que estão em uma armadilha e de que vão morrer, seguem nas normas do restaurante. Eles seguem até o final do filme todos sentados na própria mesa com sua plaquinha de reserva, e o principal, todos eles pagam a conta antes de morrer.

Essa relação com regras é notável. Pois em Midsommar elas um pouco servem como demonstração dos vícios dos personagens. O pecado que eles cometem antes de morrer para não termos pena deles, assim como o alcoolismo e tesão das vítimas do Jason. Mas em The Menu, Margot deliberadamente quebra as regras, e mais do que se safar. Ela um pouco se safa por como Slovik recebeu o desafio dela. No começo do filme Tyler explica pra ela que em um restaurante chique é impensável falar pro Chef que quer devolver a comida, e é exatamente o que Margot faz. Ela devolve a comida, e o pior, ela pede uma nova comida para viagem, mandou o restaurante de dez estrelas fazer um x-burguer pra viagem. E esse pra viagem foi o código, quando Slovik falou que não tinha problema ela pedir algo pra viagem, ele deu o sinal de que ela escaparia.

Por falar em Margot, as duas protagonistas é o que os filmes têm de mais diferente. Margot é o extremo oposto de Dani. Se Dani era insegura e permitia que Christian a manipulasse ou a desconsiderasse, Margot era extremamente assertiva, confiante de si mesma e não permitia nem que Tyler nem que Slovik a manipulassem. Isso culmina justamente no quão diferente a jornada delas termina:

Dani consegue olhar com clareza que o culto dos Harga é horrível e quer ir embora, mas ela é então emocionalmente manipulada por Pelle e termina se tornando parte do culto e sendo convencida a ser um deles.

Margot igualmente é a primeira a notar que o restaurante é uma roubada imensa, e que o local era bizarro. Slovik tenta manipulá-la a ser parte do culto, mas ela rejeita. Ela não perde sua visão, e nem seu senso de identidade. Curioso falar em identidade, pois Margot é um nome falso, um nom de guerre de sua ocupação como prostituta. Seu nome verdadeiro é Erin, e ela fala isso no meio do filme, sabendo que ninguém ia fazer nada com a informação. Ela responde até o final do filme como Margot Mills, de Nebraska, a personagem que ela inventou pra esse trabalho. A Margot foi até o restaurante a trabalho, e ela não permite nem por cinco minutos que Slovik pudesse falar com Erin.

The Menu manteve a assimetria de Midsommar, todos os cozinheiros sabiam quem era cada um dos convidados, mas os convidados não conheciam individualmente os cozinheiros. Mas diferente de Midsommar, isso é um defeito explícito dos convidados. Uma maneira de evidenciar seu desinteresse. Eles não se importam com os cozinheiros, pois são clientes em um restaurante. Eles se veem acima das pessoas que lhe providenciam serviços. E a falta de individualidade dos cozinheiros é mostrada como um problema daquele ambiente e elite.

Por último temos Tyler. Tyler assim como Christian é o par romântico da protagonista. Christian está com Dani por inércia, e por não ter coragem de terminar com ela, em uma relação da qual ele não gosta, por não querer oferecer de verdade o apoio que Dani precisa. Tyler por outro lado está com uma prostituta, que ele contratou para substituir a sua namorada, que terminou com ele antes de irem no restaurante. Então ambos existem em um relacionamento que existe nas aparências, mas não na prática, e desprovido de sentimentos, com nossas heroínas.

Tyler, assim como Christian, é o membro do elenco mais punido de todo o filme. Ele é retratado em uma má luz, como uma pessoa não-empática e autocentrada. Apesar de ele estar entre seus iguais supostamente, ele é enquadrado como o pior dos convidados. E os cultistas armam uma armadilha especial para ele. Slovik faz questão de humilhar Tyler e convencê-lo a se matar antes do final do evento, e deixa claro pra Margot que com a morte de Tyler ela se libertou.

Só que Margot não comprou o discurso de Slovik, enquanto Dani riu com a morte de Christian, Margot não teve nenhuma reação positiva diante da morte de Tyler, mesmo ele tendo colocado ela em uma situação sabendo que ela morreria. Mesmo ela tendo gritado que queria mata-lo ela mesma. Ela não recebeu como catarse o morto que Slovik lhe entregou da maneira que Dani recebeu a morte que Pelle lhe entregou.

Então a principal diferença entre os dois filmes, ao olhar seus personagens, arquétipos, pontos de virada, e a jornada da protagonista, é essencialmente, que Midsommar é sobre uma mulher que cai de paraquedas em um culto, levada por um parceiro emocionalmente distante, onde ela nota que todo o local é uma enorme cilada cruel elaborada por gente que tem uma relação bizarra quanto a morte, mas é seduzida a adotar essa filosofia e se tornar um deles. E The Menu é a mesma coisa, com a mulher rejeitando o culto, e conseguindo escapar da situação intacta e sem respeito algum por nada do que ela testemunhou.

Mas temos a outra diferença A diferença mais óbvia. A de que uma religião pagã e um restaurante são coisas completamente diferentes. E essa é a diferença que eu mais me interesso.

Paganismo vs Restaurantes:

A história da garota sendo seduzida a ser parte de um culto mortal que mata o grupo do qual ela não faz parte, mas o boy-lixo dela faz, podia ser colocada em qualquer ambiente. Dá para fazer essa história rolar em uma entrevista de emprego, dá para fazer essa história rolar em uma colônia hippie, ou em uma faculdade. Dá pra fazer uma história de época, na idade média, ou no futuro, ou num mundo de fantasia. Mas esses filmes escolheram seus cenários, um grupo pagão na suécia e um restaurante de cem estrelas.

E fazer escolhas é fundamental, para decidir como dar a porrada e em quem. Especialmente porque a presença de um culto obriga o filme a estabelecer uma noção de “o outro”.

Midsommar não chega a pontos em que possa ser considerado ofensivo para a cultura sueca, e não sofreu muitas críticas dos locais por como retratou o local, em especial, porque ficou muito claro para os suecos que eles não estavam no filme e que a cultura Harga é fictícia. Mas é difícil não olhar a maneira como eles retratam o paganismo sem ser pelo prisma de um filme feito por um diretor de criação judaica em uma sociedade predominantemente cristã. Digo, o cara que os Harga particularmente marcaram como o pior alvo literalmente se chamava Christian. E sendo os cultistas o elemento que torna esse filme de terror algo desconcertante, seu status de “pessoas de uma religião não predominante na minha sociedade” é parte do que eles tem de desconcertante.

No começo do filme os antropólogos comentam, que a beleza fisica daquele povo vinha deles roubarem as mulheres de outras culturas para eles, e no final eles corroboram esse comentário fazendo exatamente isso. Os filhos que eles têm entre si são aberrações, pois são incestuosos, e eles sequestram e drogam estrangeiros para nascerem sem defeitos. E tradicionalmente, uma das maneiras de inflamar o preconceito contra outras culturas é convencer um povo de que essa cultura vai vir roubar suas mulheres.

É um filme sobre os perigos do outro, e de querer conhecer o outro.

Em The Menu, no caminho oposto, o outro é uma população que faz parte da nossa sociedade de maneira muito clara. O outro é a elite. E se em Midsommar não exatamente pelo processo de familiarizar o estranho, em The Menu definitivamente passamos pelo processo de estranhar o familiar. Sabemos que os foodies, que comida gourmet e esse mundo existe, mas ele soa completamente alien na tela.

Eu vi um vídeo no youtube sobre The Menu que menciona a comparação que a internet puxa com Midsommar e fala que discorda, pois The Menu é um filme anti-capitalista e Midsommar não. E isso é verdade. E justamente, é um filme que trata a ideia da gastronomia inacessível em que comer é uma experiência caríssima da elite com o mesmo sentimento de choque cultural e estranheza que olharíamos uma pagã engolindo um arenque inteiro de uma vez.

E The Menu em especial balanceia o contraste entre os dois lados em conflito com uma protagonista que era sob certa perspectiva ambos, e sobre outra nenhum. Ela não era a elite económica, e ela não era uma artista frustrada com como o capitalismo destruiu sua arte. Mas ela era uma cliente ali, e ela era parte da indústria de serviço. Ela sabia de primeira mão quanto sapo a gente engole quando trabalha pra cliente, e como um cliente rico pode oferecer um dinheiro muito grande para fazer seu serviço se tornar muito mais degradante.

E tem um aspecto interessante. Em que, na perspectiva de muita gente, o trabalho de Margot poderia ser um trabalho ingrato em qualquer contexto, dada a visão que muita gente tem da prostituição. Mas Margot descreve seu trabalho como algo que um dia ela já gostou de fazer até perder completamente o prazer, por culpa da dinâmica cliente-profissional. E nesse momento ela e o cozinheiro que perdeu o tesão em cozinhar se igualam. E eu aprecio a ideia de que não importa se você é um Chef-Celebridade, renomado e dono de um restaurante, ou uma prostituta, os dois tem que servir gente potencialmente desagradável e são parte da indústria do serviço. Slovik é um homem rico, ele fez muito dinheiro com o restaurante, mas ele tem muito mais em comum com a prostituta do que com os ricos que motivaram seu suicídio.

Mas apesar disso, Margot era uma cliente, e ela não cedeu a tentação, e exigiu ser tratada como cliente do restaurante até o final. E na perspectiva de cliente, ela não acredita em ser humilhada ou tratada mal como parte da experiência. Quando Margot fala pra Tyler, que os cozinheiros não tem que gostar deles, pois eles estão pagando, ela demonstra o quanto não importa se ela está do lado que paga ou que recebe, ela já tem naturalizado de que a transação financeira substitui qualquer necessidade de emoção no serviço. Ninguém tem que gostar de ninguém, mas todos devem ser bem tratados. Ela se ofende que Tyler não quer saber o nome do cozinheiro, ela se ofende que não serviram pão pra ela. Ela se ofende que Tyler ache que estar pagando dá a ele o direito de ser grosso com ela. E ela acha ridículo a noção de que devolver o prato sem comer ofenderia o chef.

No final do filme, ela resolve ser uma boa cliente, ela devolve pra Slovik o seu prazer em cozinhar, e permite que a última refeição que ele preparou na vida devolva o sorriso em seu rosto. Um certo perfil de cliente tirou dele todo o tesão na sua arte, e ela encarnou o outro perfil. E ela pagou Slovik, reforçando que a relação deles era exatamente essa. A de cliente-profissional. Não se tornaram amigos, e ela não adquiriu respeito por ele.

E olha… eu já passei uns bons anos atrás de uma caixa registradora, ouvindo gente reclamar de preços que eu não decidi, e tentando não pagar pelo produto. E trabalhar no comércio, operando a caixa, dando o troco, negando descontos e conferindo se o produto estava ou não com defeito, me fez ter uma perspectiva completamente nova em como eu falo com as pessoas que me atendem. A gente entra nas lojas em outro pique quando sabe o que as pessoas ali passam. E eu acho que The Menu é o filme que mais fez eu me sentir visto desde Clerks. Lidar com cliente é complicado.

Em um geral, eu sinto que The Menu me mostrou o mesmo sentimento de inquietude, e estranheza que eu havia sentido em Midsommar, de maneira que eu conseguia ver facilmente a semelhança, mas criticando algo que eu queria de fato ver sendo criticado. Enquanto Midsommar queria bater em gente que eu não queria vilanizar naquele ponto….

…e isso é completamente subjetivo. Tenho certeza de que pra muitas pessoas, apontar os problemas dos Christians e Joshs da vida era uma demanda emocional muito maior do que bater nos Tylers do mundo.

Os filmes dialogam com a gente, interagindo com nossas bagagens, e por isso que mesmo filmes quase idênticos, nunca são verdadeiramente iguais. Tal qual irmão gêmeos, filmes recriados cena-a-cena sempre tem uma diferença que faz toda a diferença pra como um filme se conecta.

Mas Midsommar e The Menu não passam nem perto de ser quase idênticos. Eles só têm muito em comum. E muito de diferente. E eu acho importante observar os dois. São filmes parecidos em muitos aspectos e não parecidos em outros.

Mas acho que tanto as semelhanças quanto as diferenças fazem os filmes merecerem ser olhados em conjunto. Ambas as perspectivas permitem usar o filme para dialogar entre si. Afinal, a arte dialoga entre si. Eu não sei, mas eu não duvido que The Menu possa ter sido inspirado por Midsommar, conscientemente ou inconscientemente.

Caso também tenha pensado em um filme assistindo ao outro, se incomode com a comparação, prefira Midsommar ou prefira The Menu, os convido a continuarmos essa conversa nos comentários do texto. Eu fico por aqui e vejo vocês texto que vem.

Sobre o autor

Izzombie

Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

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Izzombie

Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

Alertas

  • – Todos os posts desse blog contém SPOILERS de seus respectivos assuntos, sem exceção. Leia com medo de perder toda a experiência.
  • – Todos os textos desse blog contém palavras de baixo calão, independente da obra analisada ser ou não ao público infantil. Mesmo ao analisar uma obra pra crianças a analise ainda é destinada para adultos e pode tocar e temas como sexo e violência.

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