One Piece: Sobre Luffy e histórias de predestinados.

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ALERTA ESSE TEXTO, CONFORME A POLÍTICA DO BLOG CONTÉM SPOILERS DO MANGÁ DE ONE PIECE INDO ATÉ SEU CAPÍTULO MAIS RECENTE O 1043. ESTEJAM INFORMADOS!

Então. Com um comentário aqui ou ali, o fandom de One Piece tem ficado cada vez mais inquieto com um assunto, que explodiu com tudo agora, com o final do capítulo 1043, quando fomos deixados com o cliffhanger em que Zunisha anunciou que Joy Boy retornou enquanto algo estranho acontecia com o corpo do Luffy. O que reforçou uma conexão direta entre o Joy Boy estar retornando no Luffy. Se isso é possessão de corpos, reencarnação, efeito do Gomu Gomu no Mi ou o que seja, vou descobrir só quando o capítulo 1044 sair. Mas isso fez o fandom inteiro vibrar, alguns de hype e alguns em decepção.

E agora se fala muito no conceito do predestinado. Se Luffy está destinado a se tornar Joy Boy, e do quanto a história potencialmente poderia enfraquecer se os sucessos do Luffy existirem por que ele é a reencarnação de um pirata zika de 800 anos atrás. Inclusive pra galera tanto faz se o Luffy é a reencarnação do Roger, do Joy Boy ou do Nika, para essa galera as três opções (que não são excludentes) são o mesmo pecado.

Esse texto é para falar disso. Falar sobre que tipo de história é One Piece, que tipos de história costumam ter personagens escolhidos pelo destino, e porque eu não vejo nessa revelação, seja ela qual for, nada que desminta os rumos pelos quais o mangá sempre seguiu. Então sejam bem-vindos ao Dentro da Chaminé, e vamos pensar sobre a predestinação do Luffy.

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Aos que já apoiam, eu dedico esse texto a vocês. Que me dão força de verdade. Pra vocês eu tenho uma gratidão imensa que eu quero expressar nesse pequeno espaço. Espero que curtam o texto e a reflexão.

Então vamos refletir sobre Monkey D. Luffy. O Pirata do Chapéu de Palha. Eu vejo aí nas redes sociais uma leva grande de fãs reclamarem do que eles chamam de narutização da série, se referindo a maneira como em Naruto gradativamente descobrimos que Naruto não era um pobre coitado, e sim um garoto abençoado por uma profecia e a reencarnação de um grande guerreiro e por isso ele podia salvar o mundo. Vamos começar a falar sobre isso.

De que maneira o Luffy não é o Naruto:

Nossa, no texto passado mesmo eu estava escrevendo sobre o Naruto, eu não gosto de fazer isso. Eu gosto de variar meus temas para não fazer parecer que esse é um blog de mangá, ou de desenho ou de filme, mas uma coisa mais diversa. Mas abri essa exceção aqui. Enfim, texto passado eu falei sobre como Naruto se vendeu como uma história de underdog, e que traiu o princípio do que define o underdog.

O famoso poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade tem um poema em que ele menciona um anjo torto, desses que vivem nas sombras, amaldiçoando-o sem seu nascimento dizendo “Vai Carlos, ser gauche na vida.”, e isso é como eu imagino que o Naruto se sinta. Que um anjo veio pra ele quando ele nasceu declarar que os céus não estavam do seu lado. Ele não tinha pais, ele não tinha afeto, ele não tinha respeito e ele carregava o fardo de crimes que ele não conhecia. Ninguém achava que ele era capaz de triunfar em nada, ninguém queria que ele triunfasse em nada, e algumas pessoas estavam dispostas a usar seu poder e influência para não permitir que alguém na posição no Naruto triunfasse.

Naruto tinha que lutar sozinho e sem apoio, e gradativamente, bem aos poucos achar aliados que acreditassem nele. E aos poucos mesmo, pois no começo Sasuke e Sakura não punham fé nele, ele teve que conquistar a confiança de seu time, e então dos demais genins até conseguir enfim o respeito de toda a vila como resultado de suas ações. E transformar os haters em admiradores sendo foda o suficiente.

Por isso quando revelam que o Naruto era alguém que nasceu destinado a grandeza, isso soa errado. Ao menos pra mim.

Mas o Luffy não é esse tipo de personagem, pelo contrário. Quando o Luffy nasceu o anjo deu um beijo de língua nele e falou que esse sim ia ser o campeão. E isso está no mangá desde o princípio.

No primeiro capítulo, um pirata veterano, e um grande pirata dá para ele seu chapéu favorito como parte da crença de que ele seria alguém que iria longe. Ele tinha sete anos e foi abençoado por um pirata de verdade dos bons como alguém que conseguiria chegar lá. Antes da gente saber que o Shanks não só era bom, era um dos imperadores do mar (embora ainda não fosse na época), e antes de sabermos que o chapéu era do Gol D. Roger em pessoa. Antes de tudo isso, One Piece é uma história que começa com uma benção. Com um pirralho de sete anos ouvindo alguém que manja das putarias falar: “você consegue, você aguenta a barra, e você vai me alcançar quando crescer.”

No final do capítulo, Luffy sai de sua vila, e exceto pelo ranzinza ancião da vila, Whoop Slap, que é contra a pirataria, Luffy tem toda a sua vila torcendo por ele quando ele sai. Ele tem gente torcendo por ele. E ele tem gente esperando por ele. Ele tem os poderes de um fruto do diabo, em uma área do mundo em que esses poderes são raridade. Ele não é um underdog, ele não está dando murro em ponta de faca.

O motivo pelo qual ele pode sonhar grande.

O Naruto queria ser a maior autoridade da vila, um caminho difícil, mas convenhamos, um lugar onde seis pessoas da vila dele chegaram antes dele. Não é um título que é por definição inacessível, mas algo que era inacessível pra laia dele e era essa barreira que ele quebraria.

O Luffy por outro lado, quer ser o rei dos piratas, conquistando uma ilha que somente um único homem chegou na história, e esse homem morreu faz vinte anos. Luffy quer fazer algo que ninguém vivo fez, e ele se atreve a ter um sonho inacessível.

E a ideia do personagem é que sua confiança é tão grande, que ele convence as pessoas de que ele consegue, mesmo ninguém tendo motivo para achar que qualquer um conseguiria, o Luffy passa essa fé, pois ele passa a aura de que ele é a pessoa que faz o impossível ser possível.

Ele não é a zebra. Que vai ganhar a corrida mesmo tendo as duas pernas quebradas. Ele é o cara que vai ganhar a corrida que ninguém tem nem coragem de correr, mas que faz toda a torcida acreditar que ele consegue.

E ele tem uma aura forte de que nada dá errado pra ele. O quão forte?

No capítulo 99 no mangá em um de seus momentos mais icônicos, ele é salvo da morte certa porque um raio cai na cabeça de seu carrasco. Tendo a vida salva por algo que não pode ser descrito como nada além de interferência dos céus.

Os céus estão olhando pelo Luffy, ele nasceu pra triunfar, e o mundo quer que ele triunfe. O Luffy não é odiado pelos céus, ele é amado. E é por isso que ele serve pra protagonizar uma história sobre esse tipo de herói.

Que tipo de herói é o predestinado?

Mas calma lá. Vamos definir o que é o tal predestinado. A gente fala e fala desse tropo como uma desculpa para xingar Naruto, mas histórias de predestinados vão muito além de Naruto.

Para os fins desse texto, o predestinado, que também pode ser “o escolhido”, é um herói passivamente envolvido em uma história maior que ele. Ele não pediu para estar no centro de uma batalha épica, ele não se candidatou a nada, ele não é o Capitão América que implorou pra entrar no exército. Mas ele foi puxado a força pra ela, e agora ele tem que cumprir um papel.

Na percepção da cultura pop os termos destinado e escolhido são tão intercambiáveis que os Digiescolhidos são Digidestines em inglê.,

Ele pode ter sido escolhido por uma profecia, que nem o Harry Potter. Ou ele pode ter acionado algum objeto que indica o escolhido, como a Akko que acionou o cajado da Shiny Chariot em Little Witch Academia, ele pode ser a reencarnação de um herói, como Aang em Avatar, the Last Airbender, ou ele pode na cagada ter colado um objeto poderoso em si mesmo e ser obrigado a ser o usuário dele, como Ben em Ben 10. Ele pode ter sido escolhido por uma entidade, que nem o Rei Arthur foi escolhido pela Dama na Água para portar Excalibur. Ou ele pode ter sido escolhido por uma pessoa, que nem o Po em Kung Fu Panda foi escolhido pelo mestre Oogway, ou ele pode ter sido escolhido pelo mais puro acaso, ganhando um sorteio ou achando uma tampa de superbonder no chão. Não importa.

E a pessoa que os escolheu pode nem sequer estar ciente que está fazendo uma escolha dessa proporção, Madoka de Puella Magi Madoka Magica foi escolhida por uma colega de sala que não tinha ciência do poder cósmico que estava dando para a menina no ato.

O que importa é que o predestinado não entende exatamente pelo que ele luta, mas ele é cercado de gente que sabe. Gente que sabe de uma história improvável de batalhas perdidas, grandes vilões, grandes poderes, e tudo o mais. E agora, esse herói tem uma imensa responsabilidade em suas mãos.

E essas histórias são sobre amadurecimento. E sobre aceitação. Esses personagens mais vezes do que não, são crianças e adolescentes, e o processo deles entenderem o papel que eles tem que cumprir nessa batalha é o processo deles aceitarem as suas responsabilidades na vida, redefinirem quais suas reais prioridades e entenderem quem eles são no mundo. E isso ocorre durante a passagem deles da juventude pra vida adulta, pois essas duas jornadas dialogam.

Geralmente esses personagens hesitam em querer aceitar ou não a sua missão, por terem seus próprios planos, ou por não terem confiança em si próprios. E eles precisam de contexto. A jornada de um predestinado muitas vezes envolve a de tornar a luta de um povo, uma nação ou um mundo, como própria.

Neo precisa entender que não só a cidade de Zion depende dele, ele tem que entender a causa pela qual ele luta e que é do interesse pessoal dele lutar. E isso é sempre parte do processo. O predestinado foi escolhido para lutar pelos outros, mas por um senso de comunidade, ele entende que a luta dos outros é a própria.

Ou no caso do pau no cu do Harry Potter, ele tem que entender que apesar da profecia ser sobre ele, que a luta dele também é a luta dos outros. Nossa como o Harry Potter podia perfeitamente levar um soco todo livro, esse otário.

De todo modo isso requer uma briga com o destino.

Aang foge de suas responsabilidades e acaba congelado, ele acorda 100 anos depois em um mundo devastado por ele ter dado as costas ao mundo, e igualmente, suas responsabilidades ainda estão lá e ainda são suas.

O predestidano pode resistir o quanto ele quiser, no final do dia, o trabalho dele é dele para realizar. E por isso que parte importante do processo é ele entender que a missão ele é uma missão que vale a pena de ser feita. Não é incomum a história do predestinado ter a figura também do falso destinado, que escolheu não cumprir seu destino e isso o demarca como um vilão. Então aceitar o fardo de fazer a coisa certa é uma escolha, e tomar essa escolha marca um herói.

E o outro passo é a jornada para se tornar digno de ser o escolhido. Geralmente eles são escolhidos quando eles são uns bostões, e eles agora além de tudo precisam fazer bonito, descobrir como adquirir ou dominar o poder que esperam que eles usem, e acima de tudo, isso é uma jornada de autodescoberta. Eles precisam entender o próprio valor, e o que é que eles tinham de tão especial.

O filme Kung Fu Panda é sobre um Panda que foi nomeado como o predestinado acidentalmente, mas ele precisa se tornar a pessoa que os mestres do Kung Fu esperam que ele seja, e ser digno de um título que ele acha que não mereceu. Para isso ele precisa descobrir o que é que existe em sua personalidade, seu corpo e seus talentos inatos que podem ser desenvolvidos e estimulados para ele se tornar um mestre. E isso é um processo de alguém que não valorizava a si mesmo ver em si algo digno de ter valor.

No fim é tudo sobre identidade.

Histórias sobre predestinados são histórias sobre pessoas descobrindo quem elas são. E aprendendo a serem elas mesmas. E a ocupar o lugar delas no mundo.

Eu espero que vocês tenham notado o quão pouco isso tem a ver com a jornada do Luffy. Tipo, é sério, não dialoga em nada.

Isso é porque histórias sobre predestinados são sobre personagens se envolvendo com aquilo pro qual eles foram escolhidos em antecipação a tal da batalha que eles devem travar.

E o Luffy não sabe de nada.

A ignorância de Luffy:

A maioria absoluta dos protagonistas de battle shonen é falsamente acusada de burrice. E esses heróis raramente são burros, eles podem se distrair facilmente, terem uma mentalidade simples, ou só serem desinformados. Mas Goku, Naruto, Gon, essa gente não é burra de verdade. Quanto ao Goku eu escrevi um texto aqui defendendo ele de acusações de burrice.

Desses personagens o Luffy é definitivamente o menos inteligente, e ele definitivamente pode cometer burrice. Ele tem genuína dificuldade de acompanhar pensamentos complexos e de entender como as coisas funcionam. E ele soma isso ao fato de ele também ser simplista, ingênuo e ignorante, ele é tudo ao mesmo tempo. E se empilhar todas as coisas que o Luffy não sabe dá para chegar na ilha do céu.

O que significa que o Luffy é incrivelmente ignorante de tudo que conecta ele a qualquer coisa épica no mundo. Ele é ignorante, mas a informação não está exatamente escondida, ele só não se informa a respeito de nada. Então ele por exemplo demora mais de 400 capítulos para entender que o pirata que ele admira é um dos quatro maiores piratas do planeta. Ele também não sabia que seu pai é Monkey D. Dragon o revolucionário, e quanto descobriu ele não reconheceu o nome. Ele não sabe que seu sobrenome D. tem um significado especial.

E as coisas que ele sabe, ele não valoriza. Ele nunca achou que o Ace ser filho de Roger fosse uma informação importante. E é casual quanto ao que foi um twist imenso para a maioria dos fãs. Ele não trata pessoas importantes e pessoas normais diferentes, e ele vive em um mundinho na cabeça dele onde nenhuma hierarquia simbólica no mundo é digna do seu respeito.

Isso faz com que ele além de não estar ciente de nenhuma das inúmeras coincidências que conectam ele ao Gol D. Roger, também deixe bem claro que se ele soubesse, ele não iria fazer nada a respeito, pois ele não se importa. Ele não reage à sua predestinação, pois ele é indiferente a ela.

E isso é um ponto que gera justamente boa parte da resistência a ideia do Luffy ser um predestinado. A ideia de que ele pode não ter livre arbítrio, de que toda a sua liberdade teria sido desenhada pelos céus e não ser genuína.

Mas eu acho que é o oposto.

Alguns fãs podem achar contraditório que uma pessoa esteja destinada a ser a pessoa mais livre do mundo. Mas acho que a contradição só existe se a história colocar ela lá.

Luffy não está em uma jornada de autodescoberta. Ele sabe exatamente que lugar ele quer ocupar no mundo. Ele sabe quem ele é. Ele sabe muito bem sobre si mesmo já.

E Luffy é uma pessoa que passa um senso de felicidade muito forte e muito cativante por isso, por ser a si mesmo.

Luffy é espontâneo, fala o que pensa, ele é teimoso e determinado, ele sabe o que ele quer, e ele vai fazer o que ele quer. E por uma incrível coincidência o que ele quer também costuma ser o gesto simbólico mais importante que alguém poderia cometer naquele país, mas ele não liga. Ele está agindo por satisfação própria.

Eu falei que Luffy não tem inteligência, mas ele na real tem uma grande inteligência emocional. E eu falei satisfação própria, mas ele quase sempre está lutando por alguém que não é ele mesmo e sim um amigo. E o Luffy não precisa entender contexto para entender que vale a pena lutar por um amigo. Então ele foi o único que não ouviu a história do que Arlong fez com a mãe de Nami, ele não tinha interesse em ouvir nada, mas quando Nami pede ajuda ele ajuda. Ele não tinha ideia do que o Arlong fez, mas a Nami chorou e isso era o suficiente pra ele comprar essa briga.

Ele não sabe nada do Norland, da luz de Shandora ou da importância do sino de ouro em Skypiea, mas ele toca, pro Clicket ouvir e parar de se matar procurando a cidade de ouro no mar.

Ele não tinha a mais remota ideia de quem foi Hiruluk, mas ele sabia que a bandeira que ele deixou no castelo de Drum tinha um peso emocional grande demais para um merda feito o Wapol danificá-la.

E ele definitivamente não sabe a história da Robin, nem pelo que ela passou. Mas ele sabia quem era o inimigo dela, e ele decidiu que o inimigo dela era inimigo dele também, mesmo que esse inimigo fosse o mundo.

O Luffy luta pelos seus amigos, e isso não se resume aos seus companheiros de navio, ele luta pelas pessoas com quem ele simpatiza, ele luta a luta das pessoas que ele quer ajudar por ir com a cara. E ele entende o mundo nos termos de como o mundo afeta seus amigos. Ele não era capaz de entender a complexidade do plano do Crocodile em Alabasta, e sua visão do conflito era simplista demais para Vivi. Mas uma coisa ele entendia, que o Crocodile mesmo tecnicamente não tendo terminado seu golpe de Estado já havia roubado o país, pois ele notou que a Vivi não reconheceu seu país quando voltou pra lá. E ele iria devolver o país para ela, pois ela é amiga dele.

O Luffy arrisca a vida pelo que é importante pros outros o tempo todo. E ele é muito bom em entender o que é importante pra alguém. Então ele constantemente está inserido em uma luta muito maior que ele. Mas a diferença, é que ele não quer saber o contexto da luta e o quão maior que ele essa luta é, ele só quer socar um enorme filho da puta, pois isso vai deixar uma pessoa que ele gosta feliz, e isso vai deixar ele feliz.

E não dá para tirar essa espontaneidade dele. Se tiver uma profecia dizendo que ele faria aquilo ou não, não faz diferença, pois ele não ouviu a profecia, ele não se voltou contra a profecia, ele seguiu seu coração. E ele depois de fazer o que ele fez, gargalha do fundo do coração, pois ele vive nos próprios termos e faz o que quer e quando quer.

Luffy está revivendo os passos de Roger e de Joy Boy sendo ele mesmo. O que significa que por ser ele mesmo, ele é especial, pois ele mesmo é uma pessoa de qualidades especiais.

Como Mihawk declarou na guerra dos melhores, o poder do Luffy é o de fazer todas as pessoas ao seu redor quererem ajudá-lo. Todo mundo quer fazer o que está em seu poder para ajudar Luffy a triunfar. Especialmente pessoas muito importantes que criam simpatias com o Luffy pois ele é uma pessoa especial.

Ele transforma inimigos em aliados.

Ele puxa as pessoas para si.

Pois quando ele luta todo mundo entende, que se o Luffy vencer aquela luta, todas as pessoas que moram naquela ilha vão ficar felizes.

One Piece tem esse hábito infame da sua narrativa. Que todos os fãs notam, e muitos reclamam, e eu já reclamei bastante. Que são as falsas mortes. Ao longo do arco e das batalhas, muitos personagens que parecem que morreram, se revelam vivos, e no final ninguém morreu em batalha, o inimigo foi expulso e os heróis ficaram.

E uma das coisas que essa falta absoluta de mortes gera, é o final perfeito completo.

No fim de cada arco, o Luffy dá uma festa.

E essa festa reúne todos os personagens do arco.

E a alegria do Luffy, e seu prazer de festejar contagiam todas as pessoas que estão lá. E todos riem, todos cantam, todos fazem bagunça e todos festejam.

Pois a vitória do Luffy foi completa.

Não tem ninguém na festa que está agridoce, ninguém está pensando: “nossa, mas se fosse de outra maneira, meu melhor amigo estaria vivo”, ninguém está de luto. Todo mundo que está ali na festa está rindo à beça, pois está tendo um dos melhores dias de suas vidas. Pois todo mundo ali está vivendo o dia em que o desespero virou esperança, e que anos de resistência silenciosa vingaram de maneira catártica.

Tudo deu certo.

O Luffy é o oposto da Lei de Murphy, tudo que podia acontecer de perfeito aconteceu. Ele não sai da ilha enquanto ainda estiver uma pessoa insatisfeita com o resultado do fim do arco.

E não importa a ilha em que ele pisa. Ele salva a ilha, de maneira perfeita, e todo mundo na ilha é capaz de reconhecer ele como um salvador, uma figura admirável que trouxe liberdade e felicidade para lugares que estavam sendo dominados por filhos da puta.

O Luffy espalha felicidade, porque ele é uma pessoa especial. E a ideia não é falar “O Luffy é só uma pessoa ordinária sem nada especial.” Pois embora a gente ache que se tudo o que a pessoa tem é carisma, então podíamos ser eu ou você, pessoas com carisma ímpar são pessoas singulares que mudaram os rumos da história, pro bem ou pro mal.

E por isso o Luffy é designado para salvar toda ilha em que ele chega.

Não por ser um herói nos moldes do Superman, um campeão da injustiça.

Mas por transformar o problema dos outros no problema dele, pelo poder da amizade, e por se tornar um para-raios onde todas as pessoas de um contexto mais complexo do que ele entende, podem projetar suas esperanças, seus sonhos e dar um significado pros anos de paciência em que eles sofreram em silêncio.

E ele faz isso sendo ele mesmo.

Independentemente do que significa o Joy Boy ter retornado no Luffy, se estamos falando de reencarnação ou se Joy Boy é um título ou o que aquilo significar, o Luffy de fato tem uma profecia que descreve ele circulando por aí. Uma profecia da qual ele nunca ouviu falar. E essa profecia diz que ele é a pessoa que vai realizar aquilo que Roger não realizou. Uma profecia bem vaga, pois, a gente sequer tem certeza do que é que o Roger não realizou. Mas é por causa dela que o Roger e o Oden esperaram um homem muito específico que ainda não havia nascido para realizar o sonho deles.

A profecia descrevendo dois nascimentos lendários. Supostamente Shirahoshi e Luffy.

Então apesar de sabermos que o Luffy tem um destino, a gente não tem os spoilers de qual é esse destino. E o Luffy também não.

Pois o Luffy é contra esses spoilers, ele abdica de qualquer chance de ser verbalmente guiado ao seu destino, pois a aventura dele é só dele e ele não quer interferência.

E nisso One Piece na verdade quebra a maior constante que uma história sobre predestinados trás, que é o enviesamento de que o destino vai se realizar.

O mentor de Luffy ao ser questionado por spoilers, vira para a tripulação do Chapéu de Palha e fala que não quer que eles tenham enviesamentos, pois quando eles descobrirem tudo o que Roger descobriu, eles podem chegar a outra conclusão.

O Luffy tem agência para decidir como interpretar o mundo, e para decidir para onde ele vai, e se tem uma profecia dizendo que tudo o que ele está fazendo estava previsto, não muda nada pro Luffy, ele não tem nada a ver com isso, ele está vivendo nos seus termos e a aventura é dele.

A consequência final disso é que a história do Luffy não é uma história sobre amadurecimento.

Ao longo dos últimos 1000 capítulos, Luffy não realmente precisou ficar mais maduro, mais sábio, ou abandonar um vício de personalidade para poder avançar. E não existiu uma pressão narrativa de que ele parasse de cometer os mesmos erros e evoluísse como personagem. Ele ficou mais forte e com base na experiência desenvolveu novas técnicas, mas ele é essencialmente a mesma pessoa de sempre.

O próprio capítulo 1000, um marco na série, eu senti que foi exatamente sobre isso. O grande momento do capítulo é quando o Luffy ignora o Kaidou, fala para Kinemon que ele assumiria a luta dele dali em diante, então ele mete um murro na fuça de Kaidou declara para ele sua catchphrase, a de que ele seria o rei dos piratas.

Esse capítulo veio pouco depois do Yamato confirmar que o Luffy é o garoto da profecia que Roger e Oden ouviram e que ele tem um super destino, e ele estabeleceu num capítulo icônico como o 1000, de que o Luffy ainda era o mesmo cara de sempre, ele estava fazendo o que ele sempre fez, e se portando como sempre se portou.

Apesar de Luffy começar a história com 17 anos, a história dele não é um coming-of-age, ele não está fazendo a jornada para a vida adulta na sua viagem. Ele já é uma pessoa completa, e em vez da história ser sobre como ele muda, a história é sobre como ele muda os outros.

Como ele inspirou os membros dos seus bandos a acharem uma força neles para lutar uma luta da qual eles tinham desistido.

Como ele faz as pessoas questionarem a ordem que comanda o mundo.

E como ele cria fãs por onde ele passa.

Conclusão:

One Piece é uma história de predestinado? Sim, sempre foi, desde antes da profecia surgir. Mas nunca foi uma história de predestinado comum, One Piece usa os elementos da profecia e do propósito herdado e das semelhanças de Roger com Luffy para poder trazer o elemento do predestinado à tona, mas não lida com as questões de crescimento, identidade, responsabilidade e questionamentos nas quais história de predestinado se sustentam… ao menos não usa esses elementos como questões desencadeadas por uma profecia. Pode usar para o desenvolvimento de diversos personagens secundários.

Isso torna One Piece uma subversão do predestinado na verdade. A história não é sobre o quão difícil é, ou sobre o fardo de vestir o chapéu do Roger ou o manto do Joy Boy, que podem soar grandes demais para um moleque de 17 anos. A história é sobre o quão admirável é que esse encaixe seja perfeito. E de como ele não precisa ser informado desse fardo nem ser guiado. Ele soa como o retorno desses homens, pois ele quer a mesma coisa que eles querem, e se nem Roger nem Joy Boy conseguiram ir até o final, ele consegue projetar a esperança de que agora vai.

Agora, para fechar, quero observar que a ignorância do Luffy quanto a qualquer questão de destino, coloca ele em oposição direta ao personagem que é construído pra ser seu espelho sombrio desde o começo. Marshall D. Teach, o Barba Negra.

Teach embora saibamos pouco de seu passado, é alguém para quem nada foi dado, tudo foi adquirido por muito esforço e planejamento. Ele comeu dois frutos do diabo poderosos e notórios, que ele pessoalmente caçou, sabendo com antecedência quais poderes queria. Ele suportou décadas de anonimato para poder armar um plano que o levaria ao topo do mundo. E ele escolheu a dedo baseado em suas reputações quais figuras notórias ele queria em sua tripulação pirata. Ele é estrategista, ele é paciente, e ele é frio, e hoje ele colhe os frutos de décadas de puro esforço e planejamento. Porém, mesmo assim, Teach e seu bando parecem acreditar muito em destino e levar destino muito a sério.

Ele e seu bando parecem ser os personagens mais conectados a noção de que existe um destino para cada pessoa, e aparentemente, esse destino que existe com o qual Teach é fascinado não é sobre ele.

Teach chora de covardia na cara da morte, apesar de aparentemente ser o destino de todo D morrer sorrindo, e na luta deles, o Barba Branca confirma que Teach não é o homem que Roger previu.

Então dentre vários outros contrastes entre Luffy e Teach tem esse também. Um é o homem escolhido pelos céus, que não liga para essa escolha. E o outro é um homem que não foi escolhido pra nada, mas passou 20 anos planejando sua chegada ao topo mesmo assim e apesar disso ele é simplesmente fascinado pelo conceito de destino. E os dois vão brigar. E é a briga mais antecipada do mangá já tem 20 anos.

Eu acho que a gente ainda vai ver muito sobre destino e predestinação em One Piece quando chegar a luta desses dois.

Mas eu não acho que estamos vendo a mesma história de sempre. E definitivamente não acho que estamos narutando. Videntes existem no mundo de One Piece e o mangá raramente faz eles estarem errados. As previsões vem sempre na mosca. Mas o mangá também não recompensa as pessoas que preveem o futuro antes de ir para uma luta.

Em vez de recompensar quem joga seguro, o mangá recompensa quem segue seus instintos, é espontâneo e faz o que quer.

E isso é parte do que faz o Luffy ser um herói tão singular. Mesmo no mundo da cultura pop onde tudo é cópia de tudo, não tem muitos heróis como Luffy. Ele é uma pessoa que surge uma a cada milhão, tanto dentro de seu universo quanto fora.

Sobre o autor

Izzombie

Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

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Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

Alertas

  • – Todos os posts desse blog contém SPOILERS de seus respectivos assuntos, sem exceção. Leia com medo de perder toda a experiência.
  • – Todos os textos desse blog contém palavras de baixo calão, independente da obra analisada ser ou não ao público infantil. Mesmo ao analisar uma obra pra crianças a analise ainda é destinada para adultos e pode tocar e temas como sexo e violência.

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