Who Framed Roger Rabbit, Los Angeles e a Anti-nostalgia.

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Chegou 2022, eu espero que todos vocês tenham tido um bom ano novo. Para mim o ano novo sempre tem um clima legal de novo ciclo em particular, pois janeiro é o mês de aniversário do Dentro da Chaminé, comemorando seus sete anos de existência. Então são duas viradas de ciclo, um novo ano pra todos, e um novo ano pro blog. E eu quero abrir esse mês especial com um texto sobre um dos meus filmes favoritos de todos os tempos. Um que eu queria dedicar um texto só pra ele desde que o blog foi criado: Who Framed Roger Rabbit.

Who Framed Roger Rabbit é famoso por ter misturado animação com live-action, de uma maneira tecnicamente impecável, de maneira que até hoje eles o filme é a referência máxima da técnica. O filme não pegou atalhos e foi usando movimentos de câmera e jogos de luz que obrigavam a animação a ser complexa para ficar consistente com os demais atores live-action, e os efeitos do filme até hoje se sustentam muito bem em vender a ideia de que os desenhos animados vivem no mundo real.

A maneira como ele deixa as marcas de mão na cadeira empoeirada é um detalhe que me fascina até hoje.

Sério, a qualidade de efeitos e animação de um Looney Tunes: Back in Action, Cool World ou de qualquer um dos Space Jams nem se comparam. E não é pela falta de dinheiro investido nesses projetos, mas pela falta de zelo. Roger Rabbit passou dois anos de pós-produção fazendo a animação para fazer todos os frames a mão, um tempo que raramente os projetos com esse tipo de apelo querem perder ou investir em troca de um primor técnico. E toda cena foi coreografada ao extremo para garantir que os atores estivessem sempre fazendo contato visual com alguém que não estava ali. O que inclui rodadas de ensaios com bonecos de coelho.

Ainda parte de não poupar despesas, o filme é um crossover ambicioso, com cameos da maioria dos astros de animação da época, a maioria que os produtores da Disney não tinha direitos de uso, incluindo o único encontro oficial entre Mickey Mouse e Bugs Bunny (Pernalonga), assim como um duelo de Donald Duck contra Daffy Duck (Patolino), dois encontros históricos dos personagens ícones dos maiores rivais da animação.

Who Framed Roger Rabbit, apesar de ser produzido pela Disney, não queria servir de propaganda somente para personagens Disney, eles queriam celebrar toda a mídia de animação e trouxe personagens de diversos estúdios, pagando seus direitos, fazendo concessões para que eles pudessem aparecer. A cena que eu mencionei do encontro entre Mickey e Bugs é justamente pois os termos de uso do personagem é o Mickey não aparecer mais tempo que o Bugs, então fizeram eles apareceram juntos. E trouxeram seus dubladores originais. Inclusive Who Framed Roger Rabbit é o último trabalho em que a lenda da atuação de voz Mel Blanc dublou os Looney Tunes, além de a última vez em que ele disse a icônica frase “That’s All Folks.” Um filme histórico em vários quesitos técnicos. Nunca foi feito um filme como esse antes, e nunca foi feito um filme como esse depois. Mas o texto não veio para focar na parte técnica do filme, então vamos para a parte que importa.

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Tendo dado esse aviso, vamos falar de qual é a parte que eu quero abordar de Who Framed Roger Rabbit.

Eu quero chamar a atenção aqui pra um mérito desse filme que não é pelo que ele é famoso. Não é segredo para ninguém, todo mundo que viu o filme sabe desse detalhe, mas a gente raramente pensa nele, que é: Who Framed Roger Rabbit é um filme de época, e está retratando a cidade de Los Angeles em 1947, setenta e cinco anos no passado. E que o filme ao olhar pro passado para celebrar personagens que na época tinham 50 anos, também olhou pro passado para como uma das maiores cidades dos Estados Unidos era em 1947.

Pois apesar de o filme ter sido escrito para homenagear grandes personagens da animação que existiam nessa época, e ter obviamente uma nostalgia como charme do filme, o filme não é cego quanto aos riscos da nostalgia, e nos oferece uma visão cínica sobre como era o passado que eu acho relevante para se pensarmos hoje em dia, em que a nostalgia é uma força maior do que já foi, hoje em dia em que todo estúdio quer seu expectador preso em memórias felizes eternamente.

Isso acontece, pois o filme não está revivendo somente a Era de Ouro da Animação, mas ele também está revisitando outra preciosidade cinematográfica da década de 1940 em Hollywood. Who Framed Roger Rabbit é acima de tudo, um filme noir

…bom, tecnicamente neo-noir, para quem se importa em fazer esse tipo de separação. Eu definitivamente não vejo muito valor nesse tipo de gatekeeping.

Mas é importante falar que de fato: quando falamos de filme noir, quase sempre estamos falando de filmes produzidos entre os anos 1945 e 1958, em um período muito específico dos EUA pós-guerra, migrando para uma sociedade que gira em torno do consumo, tendo uma crise de identidade nacional, e vivendo com a ressaca do que foram os horrores da segunda guerra mundial. Os estadunidenses viram o holocausto, a bomba atómica, e uma guerra que eles conseguiam definir entre bem e mal ser substituída por uma competição por domínio mundial. Isso se misturou com a influência pesada do cinema europeu em especial filmes franceses e o expressionismo alemão, cujos cineastas imigraram para os EUA para fazer uma carreira em Hollywood nesse período, e isso se misturou tudo no cinema.

Tudo isso no auge de um código moral hollywoodiano chamado Hays Code, que proibia uso de violência e sexo em cena, obrigando os filmes a lidarem com histórias repletas de crime e sexualidade se apoiando completamente em subtexto e deixando tudo subentendido.

Esse sentimento preparou o terreno para a chegada de filmes cínicos e moralmente ambíguos. Com personagens irônicos e violentos. Em que autoridades não são confiáveis, e um detetive particular durão que não se conecta com ninguém tem que lidar com membros das elites conspirando, mulheres sensuais tentando manipulá-los, e pessoas tentando tirar vantagem uma da outra, tudo isso em uma cidade tão corrupta que tira o pior de todo mundo.

Embora a produção desses filmes nunca realmente tenha acabado, muita gente demarca o fim dessa era em 1958 com o filme de Orson Welles The Lady of Shanghai sendo o último noir, e o que veio depois como aquele momento em que o gênero já entrou em um ciclo de repetição e lugar-comum em que os novos filmes se sustentam completamente em imitar o carisma dos velhos e serem vistos só por quem já gosta dos velhos e nada novo é produzido. Além disso thrillers de espionagem na guerra fria começaram a se tornar os grandes filmes de conspiração e tomar o espaço dos filmes noir

O suposto neo noir, vem justamente quando com o fim do Hays Code, novos parâmetros de como retratar sexo e violência, permitem uma chegada de uma nova leva de filmes cínicos em relação a crimes, classe e vida urbana. E desses novatos, o mais famoso é definitivamente Chinatown. Dirigido pelo pedófilo estuprador foragido e cineasta nas horas vagas Roman Polanski.

Chinatown saiu em 1974, mas a história se passa em 1937, também é um filme de época, e o filme conta a história de um detetive particular investigando um assassinato que desmascara um plano das oligarquias de Los Angeles, de pegar um bem público fundamental para todos, no caso a água, e manipulá-lo para torná-lo um bem controlado pelas elites e uma fonte de lucro. E como a construção do famoso aqueduto de Los Angeles foi parte desse projeto de tirar a água do povo. O filme é famoso pelo seu cinismo, pelo final pessimista em que o ambiente urbano local torna impossível tentar esperar bons resultados de pessoas tão perversas.

O neo noir já tinha saído do armário quando Chinatown surgiu, mas Chinatown foi um sucesso imenso que chamou outros e outros filmes para voltar a experimentar com o noir. Como Blade Runner em 1982, em que um caçador de androides se depara com androides aterrorizados com sua mortalidade querendo durar mais em uma Los Angeles futurista e distópica. Ou L.A Confidential de 1997 que mostra a conexão entre a corrupção policial em Los Angeles com o culto à celebridade que a cidade produz com Hollywood.

Enfim. Chinatown foi concebido para ser o primeiro de uma trilogia. O primeiro falando sobre monopólio da água, a segunda sobre extração de petróleo, e o terceiro sobre controle de terras. E o objetivo da trilogia era explicitar as estruturas de poder que controlavam os recursos de Los Angeles e a maneira como quem paga por isso era a população em três filmes de época contendo denúncias históricas.

O segundo filme da trilogia conseguiu ser feito, em um filme pouco conhecido e pouco apreciado chamado Two Jakes, que eu pessoalmente não vi, dirigido pelo Jack Nicholson em vez do Polanski. E que saiu só em 1990.

E os planos pro terceiro filme, segundo os boatos, foram a base e a inspiração para Who Framed Roger Rabbit, que saiu antes mesmo do segundo filme estar pronto e não é sob nenhuma perspectiva uma adaptação real da ideia, mas é algo que incorporou elementos do que seria o terceiro filme da trilogia. Usando a investigação de um assassinato para descobrir a maneira como a destruição do transporte público de Los Angeles e relocação de populações marginalizadas foram planejadas para permitir que a cidade se tornasse completamente dependente do carro e da indústria automobilística.

Los Angeles, em 2015.

O terceiro filme de Chinatown supostamente teria como seu título-provisório Cloverleaf, o mesmo nome da companhia do Juiz Doom, mas também o nome do trecho de estrada no centro de Los Angeles que conecta as estradas que o Juiz Doom queria construir.

Cloverleaf

…mas eu estaria sendo desonesto se eu não falasse que muita gente envolvida em Chinatown nega de pés juntos os boatos de que Roger Rabbit tocou em assuntos que o hipotético terceiro filme tocaria e de que essa conexão existe. Mas os boatos correm mesmo assim, e mais do que correm, eles encaixam, o que é o mais importante.

Mas a grande pergunta é: e daí? E daí que Roger Rabbit é um sucessor espiritual de Chinatowni tanto quanto é uma homenagem aos desenhos animados da década de 1940, o que isso tem a ver? Oras, isso tem tudo a ver, justamente pelo contraste.

Porque o filme não inventou a roda misturado esses elementos, mas ele misturou mesmo assim, e podem ser visíveis através dele, a maneira como mundo bonito, colorido e idealista que Hollywood vende é incompatível com o mundo perverso, cínico e amoral que Los Angeles era. E, portanto, explorar o glamour de Hollywood é um bom lugar para se explorar a corrupção por trás de Los Angeles.

…Bojack Horseman viveu desse contraste.

Afinal, Los Angeles é um dos grandes cenários para filme noir que existem. Los Angeles, Nova York, San Francisco, Chicago esses filmes ocorrem em cidades grandes. Double Indemnity, Big Sleep, Murder, my Sweet, são filmes famosos de noir que usam a cidade como cenário central.

Mas eu quero mencionar em particular Sunset Boulevard (Crepúsculo dos Deuses na tradução oficial), de 1950, que mistura crime e assassinato com a maneira como Hollywood descarta seus astros, mostrando Norma Desmond, uma atriz enlouquecida com a maneira como o fim do cinema mudo destruiu sua carreira.

Tem simplesmente algo nessa cidade, uma cidade para onde tanta gente dos EUA inteiro se mudou com esperanças de decolar numa carreira que é um sistema de apostas, com uma memória muito viva e muito clara de violência racial contra indígenas, latinos e negros, sendo um grande símbolo de glamour e entretenimento, enquanto mantém uma das mais violentas polícias do país e uma desigualdade social imensa. Que torna ela perfeita para ser o cenário desse tipo de filme.

Mas chega de dar contexto. Vamos falar do filme.

Vamos falar de Who Framed Roger Rabbit:

Recapitulando a premissa do filme: Who Framed Roger Rabbit, se passa em Hollywood na Era de Ouro da Animação, retratando desenhos animados como seres vivos, que estão atuando em seus filmes, mas que existem e tem vidas quando as câmeras não estão rolando. Além de sua aparência, as únicas diferenças entre eles e os seres humanos, é que eles são feitos de tinta e não de carne e osso, e que eles foram concebidos em um estúdio, e não no banco de trás de um carro.

Inclusive, eles são todos atores, o que significa que a personalidade deles não precisa ser igual a personalidade no filme, nem ser compatível com sua aparência, eles desenvolvem suas próprias personalidades, gostos, relacionamentos e hobbies. Como pessoas normais. O que eles fazem no desenho é só um trabalho.

Então a ideia é essa, Mickey, Bugs Bunny, Felix e Dumbo, eles existem, eles são reais nesse mundo, tão reais quanto eu e você, fantástico, né? Bom a primeira coisa que a gente descobre no filme é que não muito. Pois eles são incrivelmente discriminados e maltratados.

Em Who Framed Roger Rabbit, os desenhos visivelmente são membros de uma minoria discriminada em Los Angeles. O bem-estar deles durante as filmagens do desenho não é nem um pouco importante.

Eles são usados, para evitar pagar cachê de atores humanos.

E no geral só tem três tipos de lugares onde a presença de um desenho é bem-vinda aos olhos humanos: trabalhando na indústria do entretenimento.

Em serviços e empregos de baixo salário.

E como objetos de exploração sexual.

Fora desses três contextos, a maioria dos humanos não realmente quer um desenho por perto, devido a eles serem inconvenientes.

Os desenhos todos moram na mesma região na periferia da cidade, apelidada de Toontown, e os humanos agem como se os desenhos, enquanto comunidade, respondessem por cada crime que um indivíduo cometa.

E internamente, apesar de todos serem desenhos, e serem parte da mesma vizinhança, eles têm as próprias identidades embora os humanos liguem muito pouco pra diversidade de identidades deles.

E o mais importante: os desenhos recebem um tratamento mais cruel quando lidam com as autoridades legais, podendo ser mortos e abertamente perseguidos pelas forças da lei.

Ser um desenho era tomar no cu o tempo inteiro. E não precisa forçar muito a barra para ver que o tratamento deles em Los Angeles tem paralelos com o tratamento de um grupo de pessoas muito específico tinha também… as pessoas negras. Who Framed Roger Rabbit, retrata os desenhos sendo tratados em Los Angeles de uma maneira que evoca rimas deliberadas a como os negros eram tratados… aliás, estou falando no passado pois de fato em 1947 Los Angeles tinha muitas políticas racistas e de segregação que hoje foram abolidas. Mas longe de mim querer passar a impressão de que a cidade superou seu racismo e de que a polícia deles não é uma das mais racistas do país. 

Enfim, em nenhum lugar os paralelos ficam mais explícito que quando Eddie Valiant, o protagonista, visita o Ink and Paint Club, um cabaré onde desenhos fazem performances. As atrações da casa são desenhos, os garçons são desenhos, e o segurança do clube é um desenho. Mas os clientes são todos humanos, e desenhos não podem entrar para desfrutar do show. A casa é uma referência direta ao Harlem Cottom Club, casa de Jazz em Nova York onde os negros não podiam frequentar como clientes, mas eram quase sempre as atrações, tocando música para os brancos.

Quase uma década depois o musical animado Cats Don’t Dance, ia pra um caminho semelhante, fazendo um filme de época sobre animais sofrendo preconceito ao tentar se tornar atores na Era dos Estúdios de Hollywood, como uma maneira de mostrar para um público infantil a maneira como negros eram tratados em Hollywood, focando em métodos reais de exclusão de pessoas de uma minoria indesejada tentando entrar no showbusiness.

Os dois filmes inclusive cometem alguns dos grandes pecados do racismo fantástico, que é precisamente, falar sobre negros no subtexto, e no texto excluir eles completamente, com pouquíssimos negros recebendo papeis nesses filmes. E no caso de Who Framed Roger Rabbit, o de fazer o vilão ser um membro da própria minoria manipulando a situação por ser quem lucra com o racismo. Eu mencionei isso tudo lá atrás, quando falei sobre como Zootopia trocou os pés pelas mãos ao falar de racismo.

Enfim, nisso, o filme já nos faz a primeira crítica, quanto a hostilidade da indústria do entretenimento. A maneira como atores são explorados e descartados por executivos, e a maneira como para certos grupos da população, ser um artista é mais que uma vocação, é na real um dos poucos caminhos que podem tirar eles de trabalhar de garçom pelo resto da vida. E por isso os humanos que tem controle completo sob suas carreiras pode usar isso como chantagem para obrigar desenhos a fazer oque não querem, por não terem perspectiva e vida se não forem atores.

E a gente vê tudo isso pelos olhos de um detetive que odeia desenhos, Eddie Valiant, que teve seu irmão morto por desenhos e rejeitou todos eles. Naturalmente o arco dele não é só perder seus preconceitos com base na amizade que ele forma com Roger, mas principalmente, redescobrir seu senso de humor, e deixar os desenhos influenciarem a maneira como ele via o mundo. Incorporar um pouco da cultura de desenho animado dentro de si.

Mas o grande lance mesmo é a trama sobre o transporte público.

Los Angeles e o Transporte Público:

Em 2013 o diretor Spike Jonze fez um romance hipster de ficção científica chamado Her, o filme se passa em uma Los Angeles futurista, e conta a história de amor entre um homem solitário e a inteligência artificial que organiza a vida dele. E para firmar que esse filme é futurista mesmo, tem uma cena em que o protagonista pega um metrô para ir até a praia.

E o povo logo entendeu a piada: “Caralho, no futuro o metrô de LA chega até a praia. Nossa o futuro é bala mesmo.” Los Angeles é uma cidade conhecida pelo seu transporte público ruim, em especial se comparado com Nova York, San Francisco ou Chicago. LA é um lugar onde até é possível viver sem carro, só é incrivelmente difícil, e vai te atrapalhar em estar na hora nos seus compromissos. Ao mesmo tempo que o excesso de carro fazem a cidade ser notória pelo seu trânsito excessivo, com poucas alternativas ao trânsito.

E o lance é: assim como a gente ver o transporte público como algo funcional e prático para a população é um sinal de que um filme passado em Los Angeles é futurista, isso também é um grande sinal de um filme de época. Logo no começo do filme, uma criança pergunta para Eddie se ele não tem carro, e sua resposta?

Para que ter um carro em LA? Temos o melhor sistema de transporte público do planeta.”

Essa frase é repleta e ironia e o público na época todo pegou a ironia de cara.

Enfim, a conspiração inteira do filme gira em torno da história real de como Los Angeles perdeu um excelente sistema de transporte público, no começo dos anos 1950, e só começou a ver alguma coisa melhorar recentemente. Mas passou o resto do século XX como uma cidade excessivamente dependente de carros.

Fonte.

No filme, o Juiz Doom assassina Marvin Acme, o empresário que é dono dos imóveis de Toontown, e seu objetivo é com a morte dele poder demolir o bairro inteiro e construir as autoestradas de Los Angeles no lugar.

Um paraíso de postos de gasolina, motéis, fast foods e outdoors. Os EUA estava transicionando pra o começo do consumismo desenfreado que temos hoje, e o Doom estava na vanguarda.

E quando Eddie afirma que ninguém nunca vai usar uma autoestrada quando o bonde da cidade é tão acessível, Doom reforça, eles vão ser obrigados a usar a autoestrada, pois ele comprou o bonde e vai fechá-la.

Isso é uma história real. Vizinhanças negras foram destruídas para abrir espaço para a autoestrada de Los Angeles. 600 famílias negras perderam a casa para esse projeto, e isso teve um impacto social para uma cidade segregada que foi intenso. Inclusive, projetos de reparação histórica a respeito do absurdo que foi tomar a casa dessas pessoas, só começaram a sair do papel agora.

Literalmente agora. A partir de janeiro de 2022 o conselho municipal de Santa Mônica, uma cidade vizinha, vai começar um projeto de habitação social de dar moradia para seus habitantes, e aqueles que perderam a casa na construção da autoestrada, ou que descendem de quem perdeu a casa na construção da autoestrada, terão prioridade no projeto.

Mas antes disso foi 70 anos sem nada ser feito.

E para esse ataque a comunidades negras passar, o transporte público de Los Angeles foi desmontado completamente. A autoestrada precisava ser necessária para justificar sua criação, então destruíram aquilo que tornava ela desnecessária. O básico do capitalismo.

Em Who Framed Roger Rabbit, porém, temos uma virada de jogo, o Juíz Doom é derrotado, a autoestrada não é construída, o transporte público é salvo e Toontown segue existindo, e a posse da terra de Toontown é dada aos desenhos, para protegê-los de futuros ataques. Em uma vingança histórica, Eddie Valiant e Roger Rabbit conseguem impedir que o ataque ocorra, reúnem um vilão que representa o racismo, os abusos legais e a ganância que comandam Los Angeles, e o matam com crueldade, derretendo-o vivo.

O que é simplesmente Tarantinesco, exceto por ter saído antes do Tarantino surgir no cinema. Uma vingança histórica com um mal real sendo detido pelos heróis. É catarse demais. Indistinguível de nos mostrar Hitler ser assassinado.

O bem venceu o mal, pois esse filme ainda é bem mais leve, e descontraído que Chinatown. Noirs não são famosos por fazer o bem vencer o mal, mas aqui nos deram essa alegria.

Mas eu acho que o ponto que fica é: quando a gente ouve falar do filme eu vai colocar Mickey Mouse e Bugs Bunny para contracenar, a gente imediatamente pensa em nostalgia. E esse filme compensa essa nostalgia com uma anti-nostalgia, um lembrete de que os anos 1940 eram uma merda.

Com clipes nos lembrando que a Segunda Guerra Mundial foi outro dia, com a Jéssica Rabbit cantando uma música que se popularizou por ilustrar os sentimentos durante a Grande Depressão, e com um monte de memórias que a gente não quer de volta. Incluindo um lembrete de que crianças fumavam na época. Literalmente a única coisa que o filme mostra que as pessoas queriam de volta era o bonde.

Porque nós nos apegamos aos personagens, especialmente a juventude de 1988 que acompanhou esses personagens pela TV em um contexto diferente do que eles foram feitos. Quem tinha menos de 50 anos quando o filme saiu, não realmente viveu essa época. E a gente tende a criar uma conexão emocional a pessoas, organizações, lugares e épocas por conta de arte, sendo que as vezes isso nos cega pro fato de que a arte ser legal esconde coisa escrota em todos os itens relacionados. É essa uma das lições de Last Night in Soho, analisado aqui recentemente, inclusive.

Esses desenhos eram legais? Eram. Eles são legais até hoje? São. Seria demais se eles existissem pra conversarmos com eles? Provavelmente. Eles foram produzidos por empresas corruptas e abusivas? Foram. Eles se popularizara em uma época muito pior que o presente em condições sociais? Definitivamente. Eles são reflexo de uma época, em que o glamour da indústria do entretenimento escondia políticas urbanas racistas? Sim. O Bugs Bunny já fez blackface? Já. Existe uma lista de desenhos de exibição proibida por caricaturas raciais pesadas? Existe. Uma coisa não vem sem a outra.

Embora a Disney adore esconder seu passado negro, evitando mencionar a existência de Song of the South até hoje, mas Who Framed Roger Rabbit, não aponta o dedo, não fala do passado negro da Disney em si, fala do passado negro da cidade e da indústria, e com isso é mais fácil falar, fica menos pessoal.

Mas eu acho que mesmo assim, fazer esse contraste é bom. Homenagear o produto, sem deixar a situação bonita.

Porque hoje em dia temos dificuldade de fazer isso.

South Park foi brilhante de verdade quando fez a associação direta entre a nostalgia pela cultura pop dos anos 1980, a obsessão por reviver essa década, e a eleição de um patife que era o sucessor espiritual do presidente nojento que governou os EUA durante toda essa década. A nostalgia é um sentimento conservador por natureza, quando o passado era mais conservador que o presente. Querer voltar no tempo, é querer voltar para uma época mais sexista, homofóbica e racista.

E o entretenimento atual, completamente soterrado em nostalgia deliberadamente não quer pensar nisso. Os crossovers massivos que saem hoje em dia geralmente tentam ser mais uma celebração justamente das empresas mais do que dos personagens. E deliberadamente tentam fazer o expectados transferir o carinho pelas memórias de personagens em cima de organizações canalhas.

Space Jam: a New Legacy, se recusou a misturar animação 2D com Live-Action, e serviu como publicidade para tentar mostrar toda a propriedade intelectual que a Warner Bros ainda tinha. O objetivo do filme não era celebrar os personagens e sim celebrar a empresa que controla seus personagens. E Ralph Breaks the Internet é a exata mesma coisa, a homenagem à Disney enquanto empresa supera qualquer homenagem a personagens. Esses filmes soas mais como demonstração de poder. Como um gorila batendo forte no feito para nos intimidar.

E isso ajuda o público a confundir as coisas. Associar o carinho que eles têm por um filme ou personagem a achar que ele ama uma época, um diretor ou um estúdio.

Nunca mais vão fazer o Mickey e o Bugs Bunny se encontrarem, pois nunca mais vai surgir um projeto que não seja financiado para puxar saco de empresa. A Disney nunca vai emprestar um personagem pra Warner nem o oposto. E Who Framed Roger Rabbit ter feito esse acordo foi impressionante e também foram reflexos de outro tempo. Pois o filme definitivamente não puxa o saco de quem produz os desenhos.

Fizeram aquele meme na época que Infinity War estreou, mas esse até hoje em 34 anos depois, ainda é o crossover mais ambicioso de todos os tempos. Tão ambicioso que não conseguiu juntar a turma toda. Vários personagens não apareceram no filme, pois empresas não cederam os direitos. Não deu certo as negociações. Incluindo Felix the Cat e o Superman que iriam fazer suas aparições na cena do funeral de Marvin Acme, cortada justamente por não conseguir os direitos dos desenhos que apareceriam.

O filme também envelheceu bem, na hora de se comparar com os crossovers do presente, justamente pela maneira como o plano de Doom se assemelha com as estratégias de negócios da própria Disney. Comprar a empresa de bonde para tirá-lo de negócios, não deixa de ter rimas com a Disney comprando a Fox, e então imediatamente proibindo cinemas independentes que vivem de reprise de passarem filmes da Fox. Empurrando alguns desses cinemas para fecharem.

Fonte
Fonte

…puxa vida, eu me pergunto quem sai ganhando quando um cinema independente fecha e o número de opções em cartaz para quem vai ao cinema diminui…

Spider-man No Way Home foi um exemplo excelente esse ano de como o espírito de nostalgia e de celebração desprovido de qualquer noção de crítica ou comentário foi usado para abertamente distrair o público do quão absurdo eram os cinemas permitirem lotação durante a pandemia, e de quantos filmes foram pressionados a saírem de cartaz para abrir espaço para filme da Marvel, ajudando a fixar um monopólio.

Mas o espírito de festa e nostalgia realmente blindou essas práticas de serem criticadas.

Afinal esses produtores nos deram esses filmes, nos deram esses personagens, eles são os verdadeiros heróis, pois eles nos mimam.

Eu acho que em tempos atuais em que esse tipo de crossover é desejado e nostalgia é a norma, Who Framed Roger Rabbit tem muito a nos ensinar sobre como se olhar pro passado. O passado não é belo. O passado é uma tragédia e a gente se esforça constantemente para não o repetir, mas as vezes a gente fracassa e o passado se repete mesmo assim.

Vários filmes novos com o Roger Rabbit foram propostos desde seu sucesso, e a maioria das ideias envolvia fazer um filme que se passasse antes dos eventos de Who Framed Roger Rabbit, em ideias que todas essencialmente envolviam mostrar como Roger e Jessica se conheceram e mostrar a segunda guerra mundial.

Mas o diretor Robert Zemeckis alega ter pronto o roteiro de uma sequência que se passa no futuro, nos anos 1950. E ele afirma que só não filma, pois a Disney não está interessada. O que ele afirma ser porque é um filme sem princesas, e porque eles têm medo de fazer filmes com a Jessica Rabbit. Mas olha, eu acho interessantíssima a informação de que hoje, em pleno 2021, no ano que juntaram os três Peter Parkers, um ano depois daquela zona que foi o Space Jam, a Disney simplesmente não ter interesse em um filme que promova o nível de crossovers que Roger Rabbit propunha.

Parece mesmo que estamos em uma época em que esse tipo de cena não tem apelo com o público?

Certamente é porque Who Framed Roger Rabbit não opera na mesma lógica que esses outros filmes. Pois se o problema fosse só a Jéssica esse problema seria contornável.

Porque eu acho que a moral disso tudo é. Os crossovers ambiciosos, são aqueles dos quais os executivos têm medo. E que houve muita sagacidade nesse filme em se manter comerciável, sem para isso precisar abraçar o expectador em uma saudade do passado.

E esse foi o texto, fiquem bem, meus leitores, a sessão de comentários tá aí para vocês discordarem, concordarem ou quiserem adicionar algo a conversa.

THAT’S ALL FOLKS!!!

Sobre o autor

Izzombie

Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

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Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

Alertas

  • – Todos os posts desse blog contém SPOILERS de seus respectivos assuntos, sem exceção. Leia com medo de perder toda a experiência.
  • – Todos os textos desse blog contém palavras de baixo calão, independente da obra analisada ser ou não ao público infantil. Mesmo ao analisar uma obra pra crianças a analise ainda é destinada para adultos e pode tocar e temas como sexo e violência.

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