Viver no capitalismo é um grande jogo da morte. – O Jogo da Lula e outras histórias.

V

Em 2021, a série coreana Ojing-eo Geim (O Jogo da Lula em tradução literal, Round 6 na tradução oficial) se tornou a estreia mais assistida da história da Netflix. O que chamou a atenção para a ascensão da Coréia do Sul na exportação de fenômenos culturais, que incluem o K-Pop e o vencedor do Oscar Gisaengchung (Parasita). A Coréia do Sul está aumentando muito seu soft power e seus filmes, séries e músicas estão se espalhando pelo mundo, se tornando muito queridos por pessoas que querem valorizar obras não-estadunidense atingindo o mainstream.

E nisso notamos o fenômeno do quão comuns são críticas à desigualdade social da Coreia do Sul, à economia do país e ao estado atual do capitalismo nos artistas que estouram no ocidente. Desde Gangnam Style, esse tema é um tema que não está presente em toda mídia sul-coreana, mas está presente em boa parte das que explodem por aqui. Ajudando a quebrar parte da fama da Coreia do Sul, como um país de extremo sucesso, muito usado para servir de comparação com seus vizinhos de cima, e; exemplificando os méritos do capitalismo em contraste com a Coréia do Norte.

Pois bem, apesar disso tudo, eu assisti O Jogo da Lula e achei… só ok. Foda-se. Parecia uma versão piorada de outras histórias que eu havia acompanhado em mangás como Tobaku Mokushiroku Kaiji e Liar Game. Que também faziam grandes críticas ao capitalismo fazendo pessoas endividadas arriscarem tudo em jogos onde elas podem morrer.

Pois bem, eu não vim aqui cagar em cima do Jogo da Lula. Nem de quem gostou. Mais do que falar sobre o que o Jogo da Lula não fez, eu acho mais produtivo usar seu sucesso como porta de entrada para falar mais sobre o subgênero ao qual a série pertence, que é o Jogo da Morte, traduzido literalmente do inglês: Death Games, Ou mais especificamente, como esse subgênero tem um diálogo forte com o capitalismo que vai muito além do que o Jogo da Lula foi.

Mas antes de começar, quero lembrar que o Dentro da Chaminé possui um sistema de financiamento coletivo no apoia.se, para caso o leitor queira contribuir com o blog com a quantia que ele achar justa. Esses textos demandam tempo, esforço e pesquisa, e eu ainda vivo na mesma sociedade capitalista que a grande maioria dos leitores, em que dependo mais de dinheiro do que gostaria de admitir e cuidar desse blog não deixa de ser meu trabalho. Quem não quiser contribuir não perde nada, mas para quem quiser, eu fiz o esquema tradicional de recompensas, que vocês podem conferir na página do apoia.se. Qualquer quantia ajuda, e recebe minha gratidão máxima. E aproveito e já mando aqui aquele abraço e deixo uma homenagem para os que já são meus padrinhos: Maria Cavalcante, Alberto Nunes, Ruan do Nascimento e Gabriel Almeida. Sério, minha gratidão é imensurável.

E quem quiser apoiar o blog, mas não quiser se comprometer com um esquema de financiamento mensal, pode mandar um pix de qualquer valor na chave franciscoizzo@gmail.com. E tendo feito aqui esse pedido honesto, vamos falar agora do motivo para vocês estarem aqui: histórias com jogos da morte.

O jogo da morte:

O jogo da morte é um subgênero que pode existir tanto em histórias de ação quanto em histórias de terror. E a premissa é simples: histórias de jogo da morte são histórias em que a trama principal acompanha um grupo de personagens sendo obrigados a jogar um jogo, onde o jogador aposta a própria vida. Isso vale tanto quanto a chance dele morrer no jogo, mas também para apostas em que o perdedor é escravizado, tem partes do corpo removidas, ou sofre algum destino mais cruel que a morte. Bem autoexplicativo, ne? Tecnicamente é isso.

E esse tipo de história vem em todo o tipo de formato. Temos a popular franquia de terror Saw (Jogos Mortais na tradução brasileira), em que um assassino moralista pune pessoas com pecados obrigando-as a desvendarem quebra-cabeças para não morrerem. Temos o clássico da literatura The Most Dangerous Game, onde um caçador rico resolve caçar seres humanos, acreditando que animais normais deixaram de oferecer desafio. Temos o clássico da literatura japonesa Battle Royale, onde estudantes de uma mesma sala são enviados a uma ilha, onde eles devem se matar até sobrar somente um. Ou Danganronpa, em que estudantes isolados tentam matar seus colegas e se safar na investigação, para poder escapar do isolamento.

E deixo um eterno lembrete de que se tiverem a chance de ler Battle Royale fora da internet ou da tradução estadunidense, priorizem. A localização que eles fazem prejudica bastante a história. Versão da Conrad do mangá é a versão superior.

Tem muito jeito diferente de se fazer um jogo da morte, e muita mensagem diferente para se passar. Tanto tem coisa diferente pra criticar, que as vezes eles podem criticar literalmente nada. Como no péssimo filme Circle, onde o jogo foi organizado por aliens porque sim, e a existência do jogo é essencialmente sem contexto.

Essas histórias costumam achar seu apelo no choque e terror da casualidade com a qual os personagens morrem. Essas histórias tentam salvar algum drama pros personagens que morrem na segunda metade, com os quais nos envolvemos, mas na primeira metade é nos mostrar gente desconhecida morrendo instantaneamente, geralmente a tiros ou explosões. Isso tem poder de choque, faz parecer que a vida humana vale muito pouco nas regras do jogo, e de um minuto pro outro alguém deixa de existir. Isso é algo que chama a atenção. E captura logo tanto nossa curiosidade, quanto deixa claro o desespero da situação o que ajuda a nossa conexão emocional com uma história.

Outro ponto de apelo desse tipo de história é a noção de que dentro do jogo, desesperadas e com medo de morrer, as pessoas mostram quem elas realmente são, traem seus aliados, mentem, manipulam, e demonstram ter completa apatia pela morte dos outros, pois só se importam consigo mesmas. Essas histórias se baseiam muito na ideia de que é na hora que se deparam com a morte que as pessoas mostram sua verdadeira face, e de que a civilização é só uma grande máscara, mas que estamos todos prontos para nos matar assim que virmos oportunidade. Uma visão niilista da vida que tanto poderia ser a filosofia de vida do Joker que na real ela já é.

E com essa situação de matar-ou-morrer, muita história faz muito sucesso pela sua atmosfera de desespero, e pelo jeitão edgy de mostrar como a humanidade é toda podre e egoísta e a sociedade é uma ilusão.

Mas tem muitas obras que usam esse esquema para fazer críticas explícitas ao capitalismo, pela maneira como elas descrevem os organizadores do jogo, o jogo e os participantes, muitas mesmo, deve ser o tema central de mais ou menos metade do que o subgênero produz. E em vez de enquadrar as mortes como as pessoas mostrando o que realmente são, elas focam na maneira como pessoas desesperadas de frente com um sistema de regras se adequam  qualquer coisa para sobreviver. E é pra essas que eu quero dirigir meu foco nesse texto.

Por isso antes, vamos ter que falar do maior jogo da morte do planeta.

O capitalismo:

O capitalismo é um sistema econômico que se instalou na Europa no século XVI baseado na propriedade privada dos meios de produção, no trabalho assalariado e na troca voluntária. Ele substituiu o feudalismo como o sistema econômico Europeu e foi imposto ao redor do planeta por influência das potências, mas principalmente por colonização. A transição pro capitalismo demarcou uma transição de poder na sociedade, em que o poder passou a estar menos concentrado no conceito de nobreza e mais concentrado no conceito de riquezas. O que dava mais mobilidade aos grupos sociais, pois a possibilidade de um pobre ficar rico ainda é maior do que a de um plebeu virar nobre.

No capitalismo, as relações sociais são baseadas em dinheiro e a busca pelo lucro se torna uma motivação para as pessoas trabalharem, e formarem de maneira voluntária contratos de trabalho, em que você oferece serviços a um indivíduo em troca de dinheiro para sustentar a sua vida pagando pelo serviços de outras pessoas. Fazendo assim esse dinheiro circular…. claro que quando posto em prática, a maneira como essas relações se formam é mais complicada.

E existe um mito criado por gente de má-fé, mas espalhado por pessoas ignorantes, de que o que define o capitalismo é a liberdade e a falta de intervenção estatal no livre-mercado. O que não é verdade. Uma sociedade pode ter uma forte intervenção estatal e seguir sendo capitalista, por seguir usando a posse de capital como maneira de hierarquizar a sociedade, resumindo as relações sociais a relações de dinheiro, e sustentando a produção com base na exploração do trabalhador.

Em Breaking Bad, Gus Fring é um dono de cadeia de fast food, um serviço com muita intervenção estatal, em especial devido a normas sanitárias, e um traficante de metanfetamina, um comercio sem intervenção nenhuma, pois é ilegal e feito escondido do Estado. Ele conduz ambas do mesmo jeito, e trata os funcionários da mesma maneira.

O capitalismo é muito criticado já tem muito tempo. E honestamente, o capitalismo é tão difícil de defender, que a maneia mais comum de defender o capitalismo é dizendo: “não tem nada melhor.” E apontando defeitos em qualquer alternativa ao capitalismo.

Provavelmente o mais famoso crítico ao capitalismo foi o sociólogo Karl Marx, que fez críticas fortes à exploração do trabalhador no sistema através da mais-valia e acabou se tornando o pai de uma alternativa ao capitalismo chamada socialismo que substituiria a propriedade privada pela propriedade social. E usaria de planejamento econômico para redistribuir a renda eliminando o lucro como motivação, e removendo a divisão entre ricos e pobres.

E ao longo do século XX, vários países se tornaram socialistas. E tem dois tipos de países que se tornaram socialistas no século XX. Tem os que a CIA mandou matar o presidente, desfez qualquer mudança socialista e instalou um governo autoritário para vigiar o crescimento dos ideais socialistas no país, perseguindo a população, e reforçando que os valores capitalistas sigam fortes via uma ditadura.

E os países que desenvolveram governos totalitários e militarizados que conseguiram se defender dos atentados dos EUA, e conseguiram se manter socialistas.

Em resumo, ou o país ficava totalitário pra se defender dos EUA, ou os EUA derrubava o socialismo e implantava autoritarismo no lugar. E isso aconteceu em muito lugar no mundo, inclusive aqui no Brasil.

Mas as consequências disso, é que gerou um ponto em que se disse: “Todo país socialista que existe é uma ditadura totalitária, portanto o único jeito do socialismo funcionar é com um militar no poder sendo totalitário. Portanto o socialismo é por sua natureza um inimigo da democracia. E por ser inimigo do capitalismo, isso significa que o capitalismo é sinônimo de democracia”. Ignorando que funcionar nesse argumento significa: “Administrar o país e se defender de tentativas de assassinato da CIA ao mesmo tempo.”

Os cara meteu essa cambalhota argumentativa medonha sim. E funcionou e é usada até hoje, tanto por gente ignorante, quanto por gente de má fé. Inclusive até falo aqui que a própria dicotomia é falaciosa. Tá a pessoa odeia o comunismo e o socialismo com todas as suas forças, mas isso não trás mérito nenhum ao capitalismo. As pessoas tratam como se fosse uma escolha entre duas opções, e eles tivessem sido forçados a escolher o capitalismo. Não é verdade. Eu pessoalmente sou um simpatizante grande e tenho inclinações fortes ao anarquismo, que não é o socialismo, é uma outra coisa. E tem obras que parecem ser socialistas que eu acho que olhando de perto são mais anarquistas, como Snowpiercer por exemplo.

Enfim, o importante é: o capitalismo, o socialismo, o anarquismo, e qualquer outro ismo, existem a alguns séculos, o que é muito pra nossa vida mortal, mas é uma parte muito pequena da história da humanidade que cinco milênios atrás já sabia organizar socialmente reinos surpreendentes. E sistemas políticos e econômicos não são consequências naturais da sociedade, eles são ideias implantadas. E muita gente depende de desmerecer outros modelos para explicar que o capitalismo é a única opção. Mas mesmo se fosse, ainda existiria a opção: “criar um modelo justo”, todos os modelos foram pensados por pessoas que queriam um mundo mais justo, e se ele ainda não tá justo e as pessoas estão sem referência, elas podem também criar a nova opção. Foi o que Marx fez. Ele não disse “ok, não curti o capitalismo, vamos voltar pro feudalismo.”, ele criou a alternativa. E o povo do presente ainda pode fazer isso. Não existe desculpa para defender capitalismo.

Mas porque eu estou falando isso?

Pois muitos jogos da morte, vão funcionar descrevendo governos autoritários, e muita gente na má fé vai acusar esses jogos da morte de serem ações socialistas criadas por governos socialistas, forçando a falácia de que socialismo é quando não existe liberdade e capitalismo é quando existe liberdade.

Capitalismo inclusive usa pessoas privadas de liberdade como fonte barata de trabalho com o esquema das prisões privadas. Os países com liberdade são sempre com liberdade para alguns, e os não-livres são essenciais em manter o capitalismo funcionando.

E eu não vou deixar essa asneira passar quieta aqui.

O maior problema do defensor do capitalismo na minha opinião é a seletividade da argumentação deles. Só sabem criticar o socialismo, pelas coisas que você igualmente encontra no capitalismo. A luta contra o socialismo destruiu inúmeras democracias, incluindo a democracia brasileira. A luta contra o socialismo caçou liberdades e fuzilou pessoas. A luta contra o socialismo coloca países em situação de fome. Sempre que o capitalismo fica acuado com a chance de perder pro socialismo, ele se defende com os exatos mesmos métodos que eles acusam o socialismo de empregar.

Mas quando eles vêm esses métodos empregados na ficção, pessoas de desonestidade intelectual, tentam ao máximo associar essas obras como críticas ao socialismo.

Mas não! Eles seguem sendo críticas ao capitalismo.

Um bom exemplo disso é o livro Battle Royale. O autor, Koushun Takami, afirmou ter tido a inspiração do livro, pela maneira como polícia japonesa respondia com violência e opressão aos protestos estudantis marxistas dos anos 1960, para fazer um livro sobe o Estado atacando os estudantes para conter revoltas. No livro o estado totalitário fascista mantém o sistema capitalista como o sistema econômico da nação, e é descrito como tendo sido formado porque o Japão venceu a segunda guerra mundial. Ou seja, sendo uma extensão de um governo histórico antissocialista.

Battle Royale não é particularmente anticapitalista, mas é incrivelmente antiautoritário, e na experiência de vida do autor, que viveu no Japão, um país que nunca foi socialista, ele criticou o autoritarismo que ele viu no próprio governo. Assim como a maioria desses autores farão. Assim como o autor do Jogo da Lula fez, e assim como a Suzanne Collins fez em Hunger Games.

Nenhum desses autores viveu sob o socialismo, mas eles viveram sob governos que usam violência e divisão de classes pra manter as classes baixas na linha, e isso é descrito no Jogo da Lula, o protagonista descreve um massacre que ele testemunhou quando fez greve em uma fábrica de carros. Ataque esse que foi inspirado em um ataque de violência real em um grupo de grevistas. E isso rolou na Coréia do Sul, que é capitalista.

Essas histórias não são escritas para criticar o país do outros, elas são quase sempre uma crítica interna, para o que os autores testemunham no quintal deles, e não para o que eles leem nas notícias internacionais. O que inclusive se manifesta no quão perceptíveis são as diferenças culturais entre os jogos da morte ocidentais e orientais. Nos ocidentais, o impacto da televisão, dos Realities Show, da cultura de celebridade muitas vezes são fatores importantes em manter o jogo da morte ativo e legal. E esses jogos sempre tem uma camada a mais de precisar jogar de maneira eficiente e ser carismático com o público ao mesmo tempo.

Enquanto nos orientais, os jogos sempre existem as margens da sociedade, sendo ilegais, porém protegidos pela fortuna e recursos dos organizadores, mas longe dos olhos públicos.

O que fica mais visível do que nunca na maneira como o mangá de Battle Royale foi localizado nos EUA para se tornar um Reality Show, em um caso com pouco precedente em que a tradução oficial do mangá literalmente alterou os elementos da história para fazer uma história que se adeque ao público estadunidense… principal motivo para eu recomendar que nunca leiam Battle Royale pelos scans que tem na internet, é outro mangá que tem lá. Cacem a versão da Conrad.

Enfim. Maneiras diferentes de se abordar um jogo da morte, pensadas por pessoas que vivem culturas diferentes.

Pois os jogos estadunidenses não são escritos pra pensar na China, são escritos pra pensar nos EUA. E os Japoneses são sobre o Japão, e os coreanos sobre a Coréia do Sul.

E eu realmente queria fazer esse disclaimer, pois me incomoda ver a forçada de barra que as pessoas fazem para fingir que a crítica não é com elas. Mas agora que eu tirei essa do caminho, vamos falar sobre o que esses jogos têm em comum quando eles querem criticar o capitalismo. E só para deixar claro: nem todo jogo da morte é anticapitalista. Saw não é, nem Danganronpa. Mas muito são, bem mais do que eu fui capaz de ver na real. Então a lista de jogos da morte anticapitalistas que vão receber atenção nesse texto são: Ojing-eo Geim (O Jogo da Lula, Coréia, série (2021)), The Hunger Games (EUA, livro (2008) e filmes), Kaiji (Japão, mangá (1996), anime e filmes), Liar Game (Japão, mangá (2005) e série), The Running Man (EUA, filme e livro (1982)), Btooom! (Japão, mangá (2009)), Les Prix du Danger (França, filme (1983)), Alice in Borderland (Japão, mangá (2010) e série), Ready or Not (EUA, filme (2019)) e 13 Beloved (Tailândia, filme (2006)). Então espero que possam notar que são obras feitas já tem muitas décadas por vários países….a propósito já fica aqui o aviso de que pra esses dez tem spoilers.

Enfim… para olhar a fundo essas dez obras e esses dez jogos eu quero dividir os jogos da morte em seus três componentes mais relevantes: os jogadores, as regras e os organizadores. Começando pelos jogadores.

Os jogadores:

Como os jogadores desses dez jogos foram parar em um jogo em que eles precisam apostar a própria vida? A primeira coisa que precisa ser dita é que na maioria dos exemplos os jogadores tinham a opção de não jogar o jogo. As exceções sendo Btooom! e Alice in Borderland, eu falo sobre elas em breve. Na maioria dessas obras eles aceitaram ser jogadores de próprio acordo. O que de certa forma é o mesmo que dizer que eles são voluntários. Os jogadores dão seu consentimento antes do jogo começar.

Mas eles estão de livre e espontânea vontade?

Pois é…

No século XVII, um homem chamado Thomas Hobson possuía um estábulo com 40 cavalos. Mas quando o cliente entrava, Hobson avisava eles que eles tinham duas escolhas, eles podem levar o cavalo que estiver mais próximo a porta, ou ele pode não levar cavalo nenhum. Hobson fazia isso pra impedir que todo cliente escolhesse sempre o melhor cavalo que eventualmente sofreria por ser cavalgado em excesso.

Em homenagem a ele, criou-se o termo “A Escolha de Hobson”, que é uma situação em que a pessoa tem duas opções. Mas uma das opções é impraticável, absurda e algo que quer se evitar a todo custo. Então na verdade temos somente uma opção. É a ilusão da escolha, mas não existe uma escolha real.

Passagem do livro The Grim Grotto de A Series of Unfortunate Events.

Suponhamos que tem um homem correndo atrás de você com uma faca, e você está correndo desesperado. Ele vai te alcançar daqui a pouco, pois ele é mais rápido que você. E então um estranho em um carro para pra você, abre a porta e pergunta se você quer uma carona pra fugir. Entrar no carro tecnicamente seria uma escolha sua, mas ao mesmo tempo… é uma escolha? A opção de só não entrar no carro e deixar o homem te alcançar era uma opção válida?

E os jogos da morte todos são escolhas de Hobson. Os participantes escolhem estar lá? Sim. Mas qual era a outra opção?

Katniss Everdeen, de Hunger Games, entra no jogo para que sua irmã não entrasse. Ben de The Running Man, aceita jogar o jogo, para impedir seus dois aliados de jogarem também. Kaiji e Gi-hun entram no jogo, pois estavam tão endividados que não tinham como conseguir viver uma vida tolerável até conseguirem quitar suas dívidas. A Nao e o Akiyama de Liar Game não estavam endividados, eles se mantinham no jogo para ajudar os demais participantes que igualmente, todos incrivelmente endividados e na merda. Phuchit de 13 Beloved é convidado a jogar e aceita, por estar desesperado por dinheiro. E François Jacquemard se voluntaria pro jogo, por não ver perspectiva de vida na pobreza e acreditar que precisa correr o risco.

Temos também o filme Gamer em que um homem no corredor da morte, aceita participar do jogo em troca de uma chance de liberdade, e sua esposa participa de outro jogo abusivo por dinheiro. Eu acho esse filme estúpido demais pra ter destaque nesse texto, mas ele existe e ele é sobre Jogo da Morte. E ele usa a escolha de Hobson para fazer seus participantes entrarem.

Um participante de um jogo da morte da vertente anticapitalista, já começa mostrando sua vertente aqui. Ele aceita participar do jogo, porque a alternativa é ainda pior. É mais ou menos o mesmo motivo pelo qual alguém aceitaria ser motoboy, uma das profissões com maior taxa de mortalidade do país, por conta de acidentes de trânsito. É um trabalho que não para em situação de pandemia, que ganha mal, que não recebe respeito algum das pessoas, que opera na informalidade é um risco a vida que se toma, pois a alternativa é o desemprego, e ser incapaz de sustentar uma vida para si e para a família. Ninguém é obrigado a ter esse tipo de emprego, sob algumas perspectivas é uma escolha… mas para muitos, isso pode ser uma escolha de Hobson.

E para ser realmente colocado na escolha de Hobson nessas histórias, você precisa ser uma pessoa que não tem uma boa vida e não tem nada a perder. Tem que ser uma pessoa as margens da sociedade e socialmente lidas como descartáveis. E esses grupos sociais nessas histórias transitam sempre entre duas categorias principais: criminosos e pobres.

Em alguns casos ambos.

Esse grupo social, tanto as pessoas sem emprego ou endividadas quanto os criminosos são vistos como estorvos sociais, como parasitas que tomam recursos do Estado para serem protegidos, e muitas vezes se deparam com narrativas de que eles colocaram a si mesmo em sua situação por escolha. Que os únicos responsáveis por eles estarem nessa posição são eles mesmos. E na televisão, quando eles morrem, seja levando tiro de policiais, ou por falta de condições de vida, raramente isso é retratado com o peso que merece. Raramente é uma tragédia.

E políticos e autoridades montam planos pra resgatar a economia que raramente são sobre reinserir essas pessoas na sociedade, mas sim feitos as custas delas. Sejam as ideias de privatizar prisões para transformar os presos em mão de obra barata e involuntária, ou como vimos recentemente, a remoção do bolsa família no Brasil, para diminuir os gastos em ajudar quem precisa de ajuda.

É por serem pessoas pra quem a sociedade deu as costas que eles conseguem participar do jogo da morte. Afinal, se eles morrerem, dificilmente o organizador do jogo vai sofrer qualquer tipo de consequência. São grupos invisíveis, solitários e sem instituições que lutem por eles, por isso é fácil desses jogos abusar deles

O propósito dessa cena era outra. O policial foi informado que ele acharia o site organizando o jogo só procurando o nome de seus participantes no google. Mas o resultado é que o nome do participante não existe no google simplesmente. Um completo ninguém.

E mesmo não sendo jogadores voluntários, os jogadores de Btooom! e Alice in Borderland definitivamente se encaixam. No caso de Alice in Borderland, os jogadores são todos pessoas que desejaram um dia desaparecer do mundo devido as serem incapazes de se verem inseridos na sociedade. E por terem desejado desaparecer eles foram enviados pro jogo da morte. O que é quase que voluntário, só não foi uma escolha que fizeram conscientemente. Btooom! por outro lado os personagens são voluntariados, alguém indica o nome deles pro jogo em um formulário, e em resumo em Btooom! os jogadores eram pessoas que os demais queriam que desaparecesse. O protagonista inclusive voluntariado pela própria mãe, frustrada com o desemprego do filho. Tanto em Btooom! quanto Alice in Borderland o resultado é o mesmo. Pobres, criminosos, minorias, e pessoas invisíveis.

Um incel prepotente que não saia do próprio quarto e uma mulher trans que fugiu de casa descobrindo qual era o grande elemento que eles tinham em comum, para irem parar no jogo.

Mas não é só essa turma que forma os participantes de um jogo da morte. Eles são somente a maior parte. Mas uma outra figura recorrente é aquele cara. Nossa, esse daí aparece demais. Vocês sabem de quem eu estou falando, não é?

O cuzero que está ali pela aventura. O cara que por tédio, competitividade, sentimento de glória, psicopatia ou por diversão resolveu participar do jogo da morte só por participar. Esse personagem é o mais básico arquétipo de antagonista desse tipo de história. Ele não tem empatia nenhuma pelos demais participantes, e o fato de que ele é capaz de normalizar aquele ambiente de morte faz dele uma oposição direta do personagem mais moral, aquele que acredita que todos participando do jogo são vítimas.

Nos casos dos Reality Shows de Caça Humana, esse papel é cumprido pelos caçadores.

O que não é surpreendente. Pois nenhum trabalho horrível que ninguém escolheria fazer se a escolha tivesse sido uma escolha de verdade, vem desacompanhado de uma pessoa interpretando esse trabalho como uma luta nobre, gloriosa e o trabalhador como alguém foda e exemplar por fazê-lo. E esse personagem está lá para nos lembrar que sempre tem alguém vendo glória em quem luta pela sobrevivência, e para cobrar essa postura dos demais participantes, exigir que eles vejam a própria situação como uma oportunidade ou uma aventura

Mas apesar de terem os filhos da puta que estão no jogo pela aventura, no geral esses jogos têm uma noção muito clara de que os jogadores são todos uma classe. Eles competem entre si, mentem, traem e se jogam aos leões, mas sempre tem um personagem idealista que entende que os jogadores que jogam o jogo nos termos do jogo não deixaram de ser vítimas. E que todos eles estão no mesmo barco. Mesmo o cuzeiro que não precisava estar lá e entrou pela diversão está nesse barco. Pois uma vez que você está ali, agora você está ali, você é abusado pelos organizadores do mesmo jeito.

Uma cena do personagem mais idealista tentando salvar o jogador mais frio e calculista é uma cena recorrente nessas histórias. Por reconhecer que ninguém deveria estar naquele jogo, ele tem empatia por todo mundo. Mesmo os que na perspectiva do expectador, não merecem.

E isso é ter uma visão de classe clara. Pois o mais nojento e cruel dos jogadores. Mesmo o jogador que mais esteja disposto a sujar a mão pra ganhar, mesmo esse cara nunca é o verdadeiro vilão. O verdadeiro vilão é sempre o cara que organizou o jogo. Sempre mesmo.

O pior e mais filho da puta dos jogadores tem mais em comum com o idealista do que tem com o organizador do jogo, que esse é o vilão. Essa regra é absoluta. E ela é parte da crítica ao capitalismo. Não deixar que as diferentes personalidades e posturas perante o jogo tirem do protagonista uma noção clara de classe e de qual é a relação de poder real ali. Quem está explorando quem.

O cara que quer destruir o jogo e o cara que não se importa em sujar as mãos pra vencer e voltar pra casa. Todos são só marionetes pra quem organiza o jogo.

Agora, a gente coloca esse bando de gente considerada descartável, que são aos olhos do cidadão médio “matáveis”, e coloca nessa situação em que elas são obrigadas a arriscar a vida… mas como elas arriscarão a vida?

As regras:

O jogo da morte é um jogo. Isso significa que ele tem regras. Se ele não tivesse regras ele seria o The Purge. Só uma matança desenfreada. Não. Ser um jogo significa que ele tem regras, tem vencedores, tem penalidades, tem juízes e tem organização. Não é putaria, é um jogo.

Smokey, isso aqui não é o Vietnã! Tem regras!

E as regras são bem variadas, tem de todo tipo. Tem jogo que é pros jogadores ativamente se matarem, tem jogos em que eles se matarem é só uma jogada estratégica. Tem jogos em que eles são caçados. Tem jogos que podem sobreviver mais de um, tem jogos que acabam quando tiver só um de pé. Tudo depende do jogo. Mas o que eles têm em comum então?

Esses jogos costumam sempre se basear em um esquema de “cenoura e vara”. A cenoura e a vara se trata de uma metáfora para descrever uma combinação de recompensa e punição para fazer uma pessoa ter um comportamento desejado. E esse princípio aparentemente vem lá de Jeremy Bentham e da revolução industrial.

Em grande resumo, para fazer um jumento andar, precisamos de uma cenoura e uma vara. A cenoura é pra lembrá-lo de que ele vai comer se andar, e a vara é pra lembrá-lo de que ele vai se machucar se não andar. Então ele anda. E esse princípio tem sido usado por patrões para colocar seus empregados na linha desde as primeiras indústrias.

E tal como a escolha de Hobson esse conceito é explicado na série A Series of Unfortunate Events, dessa vez para ilustrar a visão de mundo do vilão, Olaf.

Imaginem que seu chefe pediu pra você depois de bater seu cartão, voltar pro trabalho para fazer mais uma hora a mais de trabalho sem hora extra. Existe uma cenoura nesse pedido, que é agradar seu chefe e talvez ser promovido no futuro. E existe uma vara, que é ser demitido, caso diga não. E esse exemplo é retirado de relatos reais de colegas de trabalho meus que já trabalharam no Mcdonalds.

Em um jogo da morte, a cenoura e a vara são quase sempre a mesma coisa, independente da obra. A cenoura é uma quantidade imensa de dinheiro. A maioria dos Jogos da Morte oferece dinheiro o suficiente pra resolver sua vida inteira. E a vara é a morte, com a exceção de Kaiji e Liar Game em que a vara é uma dívida tão imensa que precisa ser paga com seu trabalho escravo e possível venda de seus órgãos (se chegar nesse ponto, é morte).

E tanto em subempregos desumanos quanto nos jogos da morte a vara e a cenoura são aplicadas para impedir os jogadores de questionarem o jogo. Eles têm problemas sérios para se preocupar, e se eles jogarem o problema desaparece. Mas se eles ficarem pensando se o jogo deve ou não existir, eles morrem.

Os bons Jogos da Morte, tanto na minha perspectiva de quem quer ver a crítica ser mais eficiente e bater mais, quanto na perspectiva de quem realmente gosta de ver histórias desesperadoras e edgy, são aqueles em que os organizadores do jogo não são quem sujam as mãos. E sim os jogadores. Os jogadores ativamente escolhem se matar entre si para avançar no jogo.

Porém, eles não precisam realmente. No sentido de que é possível avançar no jogo sem matar ninguém. É só mais difícil. Em Hunger Games, Peeta vence o primeiro jogo com mínimas mortes, uma por piedade, e uma por acidente. A heroína de Btooom!, Himiko também, vence o jogo com somente uma única morte, que foi em autodefesa. Em Liar Game, Nao insiste em não sacrificar nenhum oponente para avançar no jogo. E Kaiji constantemente tenta ganhar em conjunto com o maior número possível de pessoas e dividir o prêmio igualmente.

As regras são escritas para pressionar os personagens a matar o oponente. Diretamente, como é nos jogos de batalha real, ou indiretamente, em que você sabe o que vai acontecer com o oponente, mas mesmo assim não o ajuda, pois não seria eficiente pro jogo. E é nesse ponto que eu acho que o Jogo da Lula falhou.

Os organizadores de macacão rosa matando todo mundo, tira dos personagens o poder de decisão. Em determinado momento o gangster, Deok-Su resolve matar os demais jogadores entre os jogos para aumentar suas chances, mas isso não dava vantagem nenhuma para ele, uma vez que tanto faz se são 400 ou 20 pessoas jogando bolinha de gude, ele só vai ter um único adversário.

A cena boa de Jogo da Lula, é quando Sang-Woo joga o vidraceiro na ponte para testar qual era o vidro bom. Ele aposta a vida de outro para ganhar com mais eficiência, e é nesse tipo de situação que esse tipo de história brilha. E esse é o feijão com arroz da maioria dessas histórias.

Outra característica que a maioria dos Jogos da Morte tem em comum é que eles são sempre propositalmente injustos. Se o jogo for uma batalha real, como Btooom! e Hunger Games são, os jogadores não têm todos acesso as mesmas armas, existindo armas melhores e piores, que desbalanceiam o jogo. Se o jogo for várias rodadas de jogos diversos, os jogadores terão que aprender as regras do jogo enquanto jogam a partida definitiva. É bem raro deixarem fazer a rodada teste só pra ver se todo mundo entendeu bem, e as regras sempre têm twists. Espera-se que os jogadores tomem decisões importantes no começo do jogo, sem saber exatamente o que significam essas escolhas.

Os jogadores de um Jogo da Morte são incentivados a estarem constantemente lendo nas entrelinhas para descobrir onde está a pegadinha, e como eles vão conseguir uma vantagem, pois o ato de simplesmente escutar as regras e fazer o que os organizadores mandam geralmente guia eles até a morte. E o jogo quer recompensar justamente os jogadores que encontram loopholes, que se aproveitam da injustiça do jogo, e que usam a cabeça, manipulação e negociação para estar no topo.

Ou seja, a ausência de transparência a respeito de como os jogos vão funcionar, serve para selecionar os jogadores, garantir que os menos cruéis, os menos frios, e os menos ardilosos vão morrer. E nessa brincadeira fica parecendo que é culpa dos jogadores que morrem por terem feito escolhas erradas.

E reter informação para garantir que pessoas desesperadas por dinheiro caiam em armadilhas é uma realidade imensa no capitalismo. É no que esquema de pirâmides, timeshares e NFTs operam. E o que tem de empresa que dá golpe em idoso, fazendo-os assinar contratos que vão contra seus interesses. E isso vai desde gente que vende remédio falso até casas de repouso sem o bem-estar do idoso como prioridade. O segredo é nunca passar a informação completa, e falar que se a vítima não entendeu onde tava se metendo foi por falta de atenção dela, pois ela tinha os meios pra entender.

Em 13 Beloved um dos desafios era amarrar um cabo no meio da rua, sem contar pra pessoa que era um plano para matar motociclistas.

E nessas histórias, você pode notar, que existe sempre o dilema se o personagem que entendeu o jogo vai explicar pros demais jogadores a verdade sobre o jogo ou vai guardar a vantagem para si. O herói sempre quer ajudar todo mundo a ganhar, mas o antagonista vai querer vencer tirando vantagem da falta de informação dos demais competidores.

As regras são feitas para tirar seu lado mais individualistas. Pois na maioria dos jogos não se ganha em equipe. Com exceções. Em Btooom!, as regras do jogo preveem que no final 4 jogadores venceriam o jogo, mas eles não falam isso pros jogadores, deixam para eles concluírem isso sozinhos. Em Hunger Games, Katniss força o jogo a aceitar dois vencedores para não ficar sem vencedor. Então é possível ganhar mais de um, mas a natureza afuniladora dos jogos, em que a cada round temos menos e menos participantes, faz com que os jogadores se sintam inclinados a acreditar que uma hora terão que condenar seus aliados a morte.

Isso sem contar os jogos que são individualistas por definição. Em Le Prix du Danger, François jogava sozinho. Assim como em 13 Beloved.. Existem os jogos em que se joga sozinho, e existem os que se competem com outros jogadores. Mas não existe jogo da morte cooperativo.

Exceto quando os jogadores forçam a ser. Que é o que o Kaiji constantemente faz. E isso é importante, pois cooperação é o ponto fraco de um jogo da morte.

Por isso as regras são desenhadas para evitar ao máximo a cooperação e incentivar a competitividade. Mas se o jogador consegue achar o loophole nas regras, ele consegue fazer a cooperação triunfar, aí é sucesso. Pois os jogadores têm o poder.

São os jogadores que mantém o jogo da morte funcionando. Se os jogadores só se sentarem e conversarem, os organizadores até podem só matar todo mundo, mas o jogo fracassou em existir mesmo assim. Os organizadores ainda perderam. Porque não se enganem, os jogos da morte são um negócio, que gera lucro. Exceto no Jogo da Lula em que o dinheiro só passa de mão de um bilionário para o outro, nos demais jogos não, o dinheiro passa das pessoas comuns pros organizadores, é um negócio, é lucrativo, e depende dos jogadores querendo jogar. Matar todo mundo é perder dinheiro.

Eles não querem só executar aquelas pessoas, é do interesse dos organizadores ter o jogo. E os jogadores precisam entender isso. Eles precisam entender que eles têm o poder, pois sem eles o jogo não existe.

É isso que Katniss entende, quando ela ameaça se suicidar com Peeta se o jogo não aceitasse dois vencedores. Ela blefou que o jogo não encararia a ideia de não poder anunciar um vencedor ao público e ganhou a aposta. Katniss virou o jogo, pois ela forçou a organização do jogo a fazer uma escolha de Hobson e a propor duas alternativas, uma que ia contra os interesses do jogo, mas a outra sendo simplesmente inaceitável, para forçar o jogo a consentir com o que não queria.

É isso que Sakamoto de Btooom! entende quando ele decide organizar um ataque contra os organizadores, pois afinal, os jogadores estavam armados. E mesmo sob ataque os organizadores de Btooom! priorizaram tentar eliminar alguns pra dar o exemplo, mas incentivar o resto a jogar. Eles precisam que os jogadores joguem.

E sabem qual é o nome disso? É greve! Os jogadores subvertem as regras do jogo e criam as próprias regras, pautadas em cooperação e poder dos números, quando percebem que os organizadores do jogo precisam dos jogadores jogando mais do que precisam dos jogadores sendo executados por quebrar as regras. Inclusive a quantidade de jogos em que os organizadores colocam jogadores problemáticos em uma segunda edição do jogo, só reforça isso. Eles precisam dos jogadores, mesmo dos que dão trabalho.

Lembram que eu falei da escolha de Hobson lá em cima? Entrar no jogo é uma escolha de Hobson. A outra opção era seguir na mesma vida miserável sem perspectiva que eles queriam escapar. Mas jogar o jogo é o oposto. As regras são escritas para fazer parecer que jogar o jogo e ser cúmplice das mortes é uma escolha de Hobson, pois a outra escolha é morrer. Mas existe a opção “fazer greve de jogo”, e se uma pessoa resiste sozinha, ela é insignificante, mas se todos os jogadores resistem, ela é efetiva.

E o maior obstáculo é que tem sempre um jogador que não quer resistir, pois enxerga uma chance real dele ganhar e poder resolver a sua vida…. e essa cenoura é realmente apetitosa enquanto não tem uma cenoura na opção de resistir. Temos a vara se fracassarem e voltar ao status quo se ganharem.

As vezes o jogo não consegue acabar só com a rebeldia de dentro. Ele precisa combinar a rebeldia dos jogadores com alguém de fora cooperando com eles…. e a pessoa de fora é quem? Vocês sabem?

Isso mesmo! É os revolucionários comunistas. A maior arma contra um Jogo da Morte. Em The Running Man eles não são chamados de comunistas, mas são visualmente associados a eles por seus uniformes de guerrilha, boinas e barbas. Em Btooom! eles deliberadamente usam o exército comunista, os chamando pelo nome, como o maior inimigo do jogo da morte. Em Hunger Games foi necessário começar uma revolução popular que derrubasse o governo para acabar com os jogos.

Por outro lado, em Le Prix du Danger, em que a aliada fora do jogo que François esperava que fosse ajudá-lo, Ballard, era uma executiva da televisão. Ballard se sentia culpada e desconfortável com o sadismo do jogo, e ajudou François a sobreviver no meio do jogo por simpatizar com ele. Porém quando ele precisou dela no final, após ganhar o jogo, ela o traiu, o enfiou em um segundo jogo contra sua vontade e abraçou o sadismo da televisão para assegurar sua posição na empresa.

As pessoas que ajudam os jogadores de um Jogo da Morte têm um perfil específico. Em 13 Beloved, é uma colega de trabalho a única conseguia perceber que Phuchit estava envolvido em algo bizarro, pois ela olhava pra ele de posição semelhante. Enquanto o chefe de Phuchit e a polícia estavam mais interessados em prendê-lo do que em entender suas ações. E a existência do jogo samba no fato de que a polícia ou os poderosos não têm interesse em deter o jogo… ele só acaba com revolução. Interna, externa ou ambos.

Mas vamos falar da executiva da televisão que traiu François, e como que havia expectativas de que ela não o traísse… Vamos falar desse terceiro fator de um Jogo da Morte.

Os Organizadores:

A maior sacada que Alice em Alice in Borderland teve foi perceber que apesar da natureza quase mágica dos jogos que ele jogou nas Borderlands, os jogos eram todos manipulados por seres humanos. Tinha humanidade nas regras. Não importa o quanto aqueles jogos parecessem obra de Deus.

E isso é importante. Pois jogo nenhum existiu sem ser desenhado por alguém.

Primeiro vamos dividir os organizadores em dois grupos.

Temos os donos do jogo. Que são as pessoas que criaram, desenharam e são os que diretamente colhem os benefícios da criação do jogo. É o Presidente Snow em Hunger Games, o mestre de cerimônias e produtor da televisão em The Running Man e Le Prix du Danger. O Il-Nam e o cara da máscara preta no Jogo da Lula. Os empresários estadunidenses em Btooom! O Kazutaka em Kaiji…. grupos de poucas pessoas que são a autoridade máxima no jogo.

E temos os… vamos chamar eles de juízes do jogo? Vamos! E temos os juízes do jogo. Que são os que tem que de fato por a mão na massa pro jogo funcionar. São os otários de macacão rosa no Jogo da Lula. Os mascarados em Liar Game, os engravatado em Kaiji. A turma operando os computadores em Alice in Borderland. Eles montam o jogo, colocam as peças no lugar, instruem os jogadores, e cuidam da parte prática.

Os juízes são um aspecto interessantíssimo de um jogo da morte.

Pois se os jogadores seriam os pobres.

E os donos do jogo seriam os ricos.

Então os juízes do jogo representam a classe média. E eles representam a contradição mais notável da classe média.

Os donos do jogo convencem os juízes, de que os dois estão do mesmo lado. Mas os juízes têm muito mais em comum com os jogadores do que com os donos do jogo.

Os juízes não estão lucrando com o jogo. Organizar o jogo não é do interesse deles, é só o trabalho deles. E o que motiva eles a coordenar o jogo é que os donos do jogo mostram pra eles uma cenoura e uma vara. A cenoura é a esperança de um dia estar no mesmo local que o dono do jogo ocupa. Ser promovido e subir na vida. E a vara é que o fracasso deles pode matá-los.

Em Hunger Games, Seneca Crane, que organizou o jogo e cedeu à greve de Katniss e Peeta é obrigado a tomar veneno e morrer, pra pagar pelo seu fracasso.

Em Kaiji, Tonegawa organizou e coordenou os navio-cassino e o atravessar da ponte que Kaiji jogou. Porém Kaiji desafiou ele para um jogo, onde apostou o próprio ouvido, mas se ele ganhasse, ele queria que Tonegawa se desculpasse pelas pessoas que matou nos jogos anteriores. Quando Kaiji ganha, o chefe de Tonegawa, Kazutaka, exige que as desculpas de Tonegawa tenham significado, e que ele honre o que foi apostado. E exige que ele se desculpe para Kaiji ajoelhado em uma chapa quente. Onde fica muito implícito que ele não sobreviveu a essa punição. Ironicamente, apesar do discurso de que esse método de tortura era pra fazer as desculpas terem valor, foi nesse ponto que Kaiji entendeu que as desculpas não tinham valor algum, afinal, estava saindo da boca de um subalterno com pouco poder sendo completamente descartado na sua frente. Kaiji vê Tonegawa como alguém no mesmo barco que ele nessa hora.

Em Alice in Borderland, duas juízas são enviadas para se disfarçar de jogadoras para conduzir um dos jogos, onde ambas eventualmente foram mortas para manter o jogo funcionando sem os demais jogadores suspeitarem.

E no Jogo da Lula, a turma do macacão é assassinada quando alguém atrapalha o jogo.

Em Running Man e Le Prix du Danger, as pessoas que perseguem o protagonista para matá-lo são parte do jogo. Mas na nossa perspectiva eles parecem jogadores também, pois estão completamente vulneráveis a qualquer tentativa do jogador de exercer autodefesa.

Eles estão jogando um jogo da morte também. Mas não é um jogo. É só um trabalho normal. As regras são: obedeça ao chefe e faça o que ele quer. E se eles falham eles morrem.

No Jogo da Lula é notório inclusive que a turma do macacão é tratada de maneira pior que os jogadores do jogo. Eles dormem e um cubículo completamente filmado, e tem uma câmera filmando o banheiro. Enquanto o banheiro dos jogadores é o único momento de privacidade deles.

Mas, mesmo assim, eles todos se veem acima dos jogadores. E acreditam em uma hierarquia interna baseada em símbolos nas máscaras. Eles são tão desumanizados quanto os jogadores e eles estão em uma posição em que eles podem ser presenteados para um dos bilionários gringos usar de brinquedo sexual. Mas a crença de que eles estão acima dos jogadores e podem mandar neles mantém o jogo funcionando.

Que é o que rolou no fim de Le Prix du Danger, com a traição da Ballard. Ela tinha empatia com François, mas ela não se via como uma igual a François. E quando a barra pesou, ela se aliou com quem ela via como seus iguais.

E os donos do jogo, esses estão na maior parte do tempo implícitos e não presentes. Sério, o Presidente Snow mal dá as caras no primeiro livro de Hunger Games. O Kaiji só encontrou o Kazutaka uma vez. E os jogadores de Btooom! só interagem com os bilionários no final. Os juízes têm também a função de ser um intermediário para não deixar os jogadores terem a dimensão de quem são as pessoas que de fato estão se beneficiando de sua morte. Os jogadores estão sendo induzidos para olhar pros demais jogadores, e uma minoria vai olhar pros juízes. Mas conseguir olhar pro dono do jogo é difícil. Isso somente gente capaz de protagonizar uma dessas histórias consegue. Usando o poder do protagonismo.

Inclusive essa parte é tão fundamental que ela é a parte central de um filme que eu falei lá em cima do texto que eu ia abordar aqui, mas essencialmente ignorei até agora: Ready or Not. O filme segue os fundamentos que eu disse bem indiretamente. E pode soar desrelacionado do tema dos demais jogos, especialmente por não ter o fator “sociedade” no filme, o jogo é contido somente dentro de uma família.

Em Ready or Not, Grace é uma mulher de classe média, casando-se com o filho de uma família rica. E parte da tradição da família é que quando alguém se casa, a pessoa com quem se casou deve jogar um jogo aleatório com o resto da família. Com uma chance baixa do jogo em questão ser um jogo da morte, em que a família deve sacrificar a pessoa que noivou um dos filhos em um ritual. E parte do ritual e o jogo de esconde-esconde em que a família inteira caça uma pessoa só.

O filme não segue a escolha de Hobson, porém pula direto para a maneira vaga de se passar informações com armadilhas. Casar-se com Alex é uma escolha normal. Porém ela aceita participar da tradição quando convidada, sem estar ciente do risco que corria. Diferente dos demais genros e noras que sabiam que tinham a chance de morrer quando participaram da tradição. Somente Grace foi no escuro participar da tradição.

A diferença de classe como subtexto da matança é clara. Clara o suficiente pra família casualmente matar seus criados em uma tentativa de encurralar Grace. A riqueza da família é tratada como se fosse fruto de muito esforço no negocio de comercialização de jogos. Mas o fundador da empresa era um pescador pobre que enriqueceu fazendo um pacto com o Diabo. E sua empresa foi inteiramente financiada pelo Diabo. A família testa seus genros e noras, forçando-os a jogar, como uma maneira de testar quem tenta subir na vida casando-se com alguém rico, e adquirindo, via casamento, uma vida melhor. E é por isso que todos eles sabem que talvez eles sejam mortos num jogo assassino e aceitam mesmo assim.

E Grace precisar correr esse tipo de risco para entrar em uma família rica, que acredita que merece a própria fortuna e que moldou um império, mas não tem méritos reais. É tudo presente do Diabo, nada foi merecido. Mas mesmo assim quem é de fora precisa merecer entrar. Isso é essencialmente o discursinho do Tonegawa em Kaiji de novo.

Mas o principal ponto do filme é justamente o que eu venho dizendo. Grace confia em seu noivo Alex para protegê-la, mas no final do filme, ele trai ela e se alia a família. O sentimento de grupo, de pertencimento e de classe falam mais alto. Ele alegava amar Grace mais do que sua família, mas no final ele não se via como igual a Grace. Diferente de Daniel, seu irmão, que estava disposto a morrer para proteger sua cunhada. Daniel entendia que proteger Grace significava destruir a família inteira, incluindo a si mesmo. E estava disposto a pagar esse preço, pois era o correto.

Pois tem isso também. A família de ricos no final está jogando o mesmo jogo. Se eles falharem em matar Grace serão mortos pelo Diabo, que é quem é realmente dono de tudo o que eles acham que são donos. A família se iludiu achando que eles eram poderosos, mas o poder real deles era de alguém maior, que os via da mesma maneira que eles viam Grace. Eles achavam que eram os donos do jogo. Mas eram juízes. E no final, quando Grace sobrevive, o Diabo a cumprimenta reconhecendo um mérito. E Grace caga para a aprovação do inimigo.

E o essencial é esse elemento. Essa noção clara de classes, de união. A noção de que os jogadores pertencem a mesma classe, as regras desenhadas para transformar aliados em inimigos, e a ilusão de que os juízes do jogo estão do lado dos poderosos, quando eles estão na mesma merda que a gente, mas nunca lutarão do nosso lado até notarem isso.

Essa dinâmica de classe é presente também em histórias que não são jogo da morte, pois não tem o jogo, só tem a morte. Como em The Purge. Em que o fato dos Novos Pais Fundadores serem as únicas pessoas ilegais de se matar em um expurgo é ignorado pela maioria das pessoas participando a literal luta de classes que viram as ruas dos EUA quando o expurgo começa.

E também nos que não tem a morte, só tem o jogo. Como Total Drama Island, em que a apresentadora de Talk Show, Blaineley vira uma jogadora surpresa das torturas de Chris McLean, mostrando que todo mundo que não era o Chris, mas trabalhava com o programa estava tão vulnerável quanto os participantes.

E essa dinâmica é a base de qualquer crítica ao capitalismo. O conflito de classes. 

E também é notável, que obras que enfatizem conflito de classes e anti-capitalismo, mas que não fazem jogos da morte. Também gostam de mostrar a alienação e visão de mundo distorcida das classes altas, mostrando que eles veem o mundo como um jogo.

Concluindo: esses jogos da morte que eu passei por cima, e muitos outros que eu não passei por cima, pois esse gênero é extenso, só existem porque nem os jogadores nem os juízes têm uma noção clara de classe. Os jogadores precisam ter a noção de que eles estão todos no mesmo barco. E os juízes têm que entender que eles estão todos no mesmo barco que os jogadores também. Em vez disso juízes creem que possuem status elevados perante os jogadores. Jogadores que sabem jogar o jogo acreditam serem pessoas mais preparadas e dignas que os jogadores que não tem frieza para lidar com o jogo da morte. E quem está na base da pirâmide se distrai odiando os demais jogadores e juízes que o menosprezaram e não olham pros donos do jogo.

As regras nublam essa visão de classes, tirando vantagem do fato de ambas as partes terem necessidades e precisarem ganhar a vida. Oferecendo recompensas, e punições pela obediência. Incentivando a rivalidade e a competição para impedir que exista uma cooperação. E garantindo que sempre terá alguém ali no meio que romantiza o ato de vencer o jogo como uma prova de sua superioridade e que se sente confortável com a atrocidade que é o jogo, pois tem as habilidades necessárias pra vencer.

E honestamente. Isso é o meu dia a dia. E é o de muita gente. Nós já vivemos em um jogo da morte.

O Jogo da Lula não inventou a roda quando fez a analogia entre jogos da morte e o capitalismo. Muito pelo contrário, a série se sentou no ombro de gigantes, reproduziu só conceitos que já funcionaram no passado e aproveitou a Onda Coreana para colocar essas ideias no mainstream que metade das obras que eu citei aqui não atingiu.

E se tornou um sucesso absurdo da Netflix.

E agora eu acho legal apontar então qual é a desse gênero que a série trouxe à tona. O quão vasto ele é. E como o mundo está aí faz anos usando histórias repletas de violência sobre jogos desumanos para enfatizar que usar um sistema de individualismo, competitividade e pressão em ser mais frio e calculista que seus pares para determinar quem são as pessoas que merecem comer três refeições por dia e quais não merecem, é uma ideia maléfica. Literalmente, é uma ideia do diabo em pessoa.

Somos incentivados a constantemente ver a vida como um jogo. Olharmos ela em termos de vencer e perder. Em termos de aprender as regras, e de superar seus competidores. Em termos de que nosso dinheiro é nossa recompensa pelo nosso talento em jogar o jogo, e que queremos jogar bem pra não sermos punidos. E que essas são as diretrizes de se obter sucesso no mundo.

Mas eu acho o seguinte: nós podemos ver a vida como um jogo cooperativo. Pois isso é o que os jogos da morte nunca fazem. Um jogo em que se vence em equipe, em que se dividem os ganhos, e em que não se deixa ninguém para trás e em que nós jogamos não contra outras pessoas, mas contra o próprio jogo.

Sobre o autor

Izzombie

Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

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Alertas

  • – Todos os posts desse blog contém SPOILERS de seus respectivos assuntos, sem exceção. Leia com medo de perder toda a experiência.
  • – Todos os textos desse blog contém palavras de baixo calão, independente da obra analisada ser ou não ao público infantil. Mesmo ao analisar uma obra pra crianças a analise ainda é destinada para adultos e pode tocar e temas como sexo e violência.

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