Então vamos começar o texto aqui com uma história: o ano era 2010, eu estava atolado de trabalho na faculdade, e tendo que matar tempo antes de uma reunião com meu grupo com quem estava fazendo o trabalho eu fui ver o filme Black Swam de Darren Aronofsky. E eu pirei no filme. Achei tão bom que viramos até tarde da noite fazendo o trabalho em grupo, deu três da manhã e dormimos na casa de um colega mesmo, acordamos, trabalhamos mais, e quando eu fui voltar pra casa, lá pelo entardecer do dia seguinte, eu antes de voltar pra casa passei no cinema só pra ver o filme de novo, dessa vez com a cabeça leve sem pensar no trabalho, pra agora sim ver o filme melhor.
Eu amei esse filme, fiquei impactado, quando vi pela primeira vez fiquei só esperando tempo livre pra ver de novo. E quando vi de novo, só queria falar desse filme e nada mais. Foi minha torcida pra ganhar o Oscar de Melhor Filme em 2011, e eu ainda estou meio frustrado que perdeu pra O Discurso do Rei.
E então eu fui falar pra um amigo o quanto eu adorei esse filme e ele responde: “ah, é só uma cópia barata de Perfect Blue do Satoshi Kon”
E com o passar do tempo eu fui ouvindo mais e mais esse tipo de comentário. E foi me marcando. E bem, uma pessoa mais bacana teria aproveitado a deixa pra ir assistir Perfect Blue e comparar. Mas eu fiquei com medo da comparação, porque eu acreditei nela. Eu achei que se tinha um filme por aí que quando visto ia me fazer gostar menos de um filme que eu adorei, então eu não queria ver esse filme, eu não queria ter que tomar um lado desse debate. Eu não queria ver um filme que ia me impedir de gostar de Black Swam.
E eu deliberadamente evitei ver Perfect Blue por 14 anos. Até minha namorada me convencer a assistir no fim do ano passado. Ela me disse que o debate era nada a ver e pôs o filme pra eu ver. E quando eu assisti eu vi algumas semelhanças a Black Swam, mais semelhanças estéticas do que de conteúdo. Eu vi que os filmes tinham bem menos semelhanças do que 14 anos ouvindo falar sobre o “plágio” me sugeriram.
Eu sou um cara que é bem mais afetado por mensagem, temas e conteúdo do que por estética, então, apontar dois enquadramentos iguais em cenas de contextos diferentes tem bem pouco efeito em mim pra invalidar um filme. Eu não acho que a estética não seja importante, mas em qualquer filme eu foco principal é aonde o filme quer chegar, e eu definitivamente acho que os filmes não querem chegar no mesmo lugar.
E bem, aí eu resolvi agora, meses depois, escrever sobre isso.
Mas não escrever um texto só falando “parem de falar que meu xodozinho Black Swam é cópia”. Se eu tivesse interesse em fazer esse tipo de texto, eu faria sobre Kimba e Rei Leão, ali sim tem um debate estúpido. Mas eu tenho interesse em aproveitar que a polêmica já existe e diretamente comparar os dois filmes. O que tem de igual. O que tem de diferente. O quanto eles falam de fato sobre o mesmo assunto, ou se são só assuntos parecidos. E principalmente, se esses dois filmes existindo ao mesmo tempo se antagonizam ou se cancelam?
Mas antes de tudo, eu quero falar um pouco sobre a área cinza separando plágio, homenagem, e a diferença de poder entre Hollywood e o cinema não-estadunidense.
Mas antes de me aprofundar em qualquer coisa quero falar sobre o financiamento coletivo do Dentro da Chaminé, sobre as pessoas que permitem a esse blog navegar em águas tranquilas e sobre você, isso mesmo você, poder ser uma delas.
Porque o Dentro da Chaminé é financiado por seus leitores. No Apoia.se do Blog, e você pode contribuir com o valor que acha justo e ajudar o site a pagar suas despesas, eu não tenho muitas recompensas pra prometer infelizmente, mas eu tento fazer enquetes sempre que dá sobre o próximo tema e o texto de hoje é o vencedor da última enquete, inclusive. Sua ajuda é apreciada, e se não quiser fazer uma contribuição mensal, você pode só fazer um pix de qualquer valor pra chave franciscoizzo@gmail.com que sua ajuda vai ser notada, apreciada e devidamente homenageada igual.
Pois esse texto é em homenagem a todos que já me apoiam. Obrigado pelo apoio, comentários, presença, sugestões e eu espero que vocês curtam o texto.
E esse texto é sobre dois filmes: Perfect Blue de Satoshi Kon e Black Swam de Darren Aronofsky.
Mas como a questão entre esses dois diretores começou antes de Black Swam sair nos cinemas, quero antes falar sobre os bastidores da relação dos diretores, pois ela impacta nossa percepção e quero tirá-la do caminho.
Vamos falar da bendita cena da banheira e de outros assuntos.
Essa história só é amplamente conversada entre os fãs, pois o Satoshi Kon conversou sobre ela primeiro. Mas o Satoshi Kon nunca conversou sobre Black Swam, pois ele faleceu antes de Black Swam estrear. Então ele conversou sobre Requiem for a Drem um filme do Aronofsky de 2000. Mas que começou a ser produzido em 1997, no exato ano em que Perfect Blue saiu nos cinemas.
E resumindo a história. O Aronofsky viu Perfect Blue, ficou maluco com o filme, adorou, achou um exemplo de tudo o que tem de bom no mundo, e quando foi a hora de filmar Requiem for a Dream, dentre um número de cenas parecidas, se destacou a cena da banheira, em que a cena de Requiem é quadro-a-quadro uma reprodução da cena de Perfect Blue.
E em outra realidade isso seria uma trivia interessante pra colocar no IMDB. Mas o Satoshi Kon viu o filme, ficou incomodado com a cena da banheira ser copiada, e foi vocal a respeito disso.
Ele usou termos como cópia e plágio ao descrever como se sente vendo a cena da banheira em outro filme, e sobre o tema do vestido vermelho e deu entrevistas a respeito. Apesar do vestido vermelho ser descrito no livro de Requiem for a Dream, Kon notou que ele achou suspeito demais os dois filmes terem um vestido vermelho e se incomodou com essa semelhança. Diferente da cena da banheira que são idênticas e de fato uma é réplica da outra, os vestidos vermelhos que incomodaram Kon não são idênticos.
Segundo Satoshi Kon, ele falou com Aronofsky a respeito, e ao ouvir Aronofsky chamar o que ele fez de homenagem, ele ironizou que não é homenagem, mas sim uma cópia.
E qualquer conversa sobre se Aronofsky plagiou ainda mais em Black Swam não pode começar sem antes olharmos de perto esse incidente.
E o Satoshi Kon que me desculpe, mas não existe um único problema ético, ou quebra de decoro profissional em copiar a cena da banheira. E eu não consigo frasear isso de maneira mais direta, não tem absolutamente um único problema. Não precisa medir palavras, é uma cópia sim, e tá tudo bem ser cópia, pois o Satoshi Kon não é dono desses frames.
Não existe direito autoral em frame e enquadramento. E usar outro trabalho como uma referência plano-a-plano não só é normal em Hollywood, é como a indústria é construída. E faz 100 anos, a indústria sempre tratou isso nos termos de uma homenagem.
E acho fundamental a gente tirar isso do caminho instantaneamente.
Você faz um filme, jogou ele no mundo, e qualquer um pode usar uma cena sua de template pra fazer sua própria cena.
Exemplos famosos incluem a cena de Os Intocáveis que reproduz a cena do carrinho de bebê no Encouraçado Potemkim, e nunca foi lida como um ataque ou desrespeito do Brian de Palma pelo cinema soviético.
O Wes Anderson fez isso com o Kubrick. O Peter Jackson fez isso com O Mágico de Oz, e o mais importante: My Little Pony fez isso com Star Wars.
E que conste, eu estou dando exemplos que não são pra serem lidos como uma homenagem-pelo humor. Porque temos essa tradição de filmes de comédia de as vezes reproduzir integralmente uma cena famosa de Hollywood, e não tem piada nenhuma na cena, mas o fato de ter sido idêntico a uma cena que todo mundo na plateia vai reconhecer, é lido como uma piada e todo mundo ri que viu uma cena igual a outro filme.
Os exemplos que eu estou dando não são esse tipo de homenagem. Embora esse tipo é um bom lembrete de como não existem direitos autorais pra plano e enquadramento, todo mundo pode por a cena do esfaqueamento no chuveiro de Pisicose no próprio filme.
Você chega na pré-produção e fala diretamente “quero que minha cena seja igual a desse filme bom aqui”, e isso é normal. É praticado por qualquer um.
Eu próprio, no exato filme que eu descrevi que eu estava fazendo quando assisti Black Swam, nosso grupo colocou uma cena ali que era explicitamente igual a um momento de Resident Evil. O que significa que meu amigo que reclamou da acusação de plágio tinha as mãos sujas também da exata mesma prática que o Aronofsky é culpado.
A carreira INTEIRA do Tarantino gira em torno em só fazer essa cópia de cenas. E o Tarantino de fato chama de cópia, afirmando que segundo ele “Todo bom artista rouba.”. O que é também ele roubando a frase de Pablo Picasso Um bom artista copia, um grande artista rouba.
Academicamente falando. Esse tipo de cena idêntica é frequentemente usada pra traçar a árvore genealógica do cinema e seus gêneros e estilos. Uma das mortes mais famosas do filme Friday the 13th Part 2, é a cena em que Jason mata um casal na cama com uma lança. Perfurando o casal e a cama tudo junto. Essa cena é idêntica a uma cena no filme Ecologia del Delito de Mario Bava. E essa cena é usada de ponte pra estudar o impacto do cinema de Mairo Bava e dos filmes italianos giallo em particular no desenvolvimento do gênero Slasher.
Da mesma forma que o personagem Sam Loomis do filme Halloween, ter o exato mesmo nome do protagonista de Psycho do Hitchcock, também chamado Sam Loomis, forma a ponte pra se analisar o quão importante foi Psycho pra construção de Halloween, e o papel de Hitchcock nisso tudo. Ninguém se importa se o Hitchcock gostou disso ou não, ou se ele acharia Halloween um filme de mal gosto, ou se ele diria “vai inventar seu próprio nome pros personagens esse é meu?”, mas pra traçar a genealogia de como um filme sempre inspira o próximo, esses estudos pouco se importam se o autor referenciado gosta da referência. E todo o cinema é construído nisso.
E que conste, é perfeitamente válido falar coisas como: O Cinema não devia assim. Todo artista envolvido nisso é igualmente anti-ético. E só ampliar a crítica de sair do Aronofsky e jogar todo mundo no buraco com ele. Mas que conste, a mídia dos animes e cinema oriental não está em um mundo separado disso não. Todo mundo sabe que o Tezuka copiou muito da Disney pra criar seu estilo.
Kurosawa pensou na maneira como queria enquadrar os Samurais, imitando os planos abertos de John Ford, e quando John Ford descobriu isso, ele foi até o Japão apertar a mão do Kurosawa e fazer amizade.
E assim, se o Satoshi Kon não gostou, tá tudo bem não gostar. É direito dele não gostar. É direito dele falar que tem uma parte dele que quer gritar com a Jennifer Connely, mas que ele se contém pois sabe que não é culpa dela. Ninguém tem que gostar de nada. Seria escroto se ele tivesse de fato ido gritar com a Jennifer Connely por algo que não é culpa dela, mas como é algo que ele só quer fazer e não algo que ele faz, tá tudo bem.
Mas o problema é que o Satoshi é um cara querido. E quando ele confunde falar coisas como “não gostei de ver outro filme usando meus planos” com uma acusação de violação ética, aí os fãs, que naturalmente olham o conflito de uma perspectiva leiga, sentem que é papel deles validar e defender o ídolo deles.
E a briga virou uma questão de Davi e Golias. Pois o Satoshi Kon colocou outro ponto na crítica ele ao Aronofsky. O fato de que o Aronofsky tem capital cultural e financeiro, e é uma figura aceita e popular em Hollywood. Enquanto ele é um cara fodido e com problemas de dinheiro e Perfect Blue não se pagou. Então a ideia central aqui é: se Perfect Blue foi homenageado, porque a pessoa homenageada não ficou com o dinheiro?
Perfect Blue foi o primeiro filme dele, e foi um filme elogiado pela crítica, mas um fracasso de bilheteria.
Mas um filme com a MESMA CENA DA BANHEIRA foi indicado ao Oscar (de melhor Atriz, pra Ellen Burstyn que não fez parte da cena da banheira).
E existe uma humilhação nisso.
Satoshi Kon nunca foi rico, sempre teve que lutar muito por cada um dos cinco filmes que fez antes de falecer e sempre teve problemas com financiamento. E ele parece se sentir muito humilhado com a questão. E isso trás a tona um assunto maior. Aronofsky apesar de seu sobrenome que herdou de seus ancestrais poloneses, é um estadunidense. E Satoshi Kon é um estrangeiro. Alguém fora de Hollywood. Os EUA são a indústria cultural que dominam o mundo e eles predam em filmes orientais, usam de referência, vendem pro mundo todo e o diretor japonês é usado e jogado fora.
Essa perspectiva é válida. E é importante. Ela é talvez mais importante até que a acusação de plágio.
Eu mencionei ali em cima o Tarantino que vive de pegar o cinema japonês. Usar como template pra reproduzir imagens que mexem com ele, e lançar num filme americano que fez num fim de semana o que os filmes usados de base não fizeram em sua história. Esse tipo de coisa é o que o Tarantino vive de fazer. Naturalmente o Tarantino nunca pagou um centavo pros diretores dos filmes cujos frames ele se apropria.
Em 2020, Parasita fez história por ser o primeiro filme não-estadunidense a ganhar o Oscar de Melhor Filme, prêmio que ganhou junto de Melhor Diretor, Melhor Filme Estrangeiro, Melhor Roteiro Original, Melhor Montagem e Melhor Direção de Arte, sendo o grande vencedor da noite, honra que nunca foi reservada antes pro cinema fora dos EUA, muito menos pro cinema asiático.
Em seu discurso de aceitação do prêmio, o diretor Bong-Jon-Ho, agradeceu especificamente o Tarantino, e o trabalho de divulgação que ele faz do cinema asiático. Dizendo que se não fosse o Tarantino constantemente mencionando filmes asiáticos, incluindo especificamente os de Bong Jon Ho, para o público assistir e formar repertório, ele provavelmente não teria conseguido o espaço necessário nos EUA.
O Tarantino gasta muito do seu capital cultural pra soltar nomes de filmes e diretores asiáticos que ele considera excelentes, e como ele tem nome, e fãs de cinema levam ele a serio (as vezes, mais a sério do que ele merece, mas esse é outro papo pra outro texto), a palavra dele tem o poder de abrir portas. Tarantino ter dito que Battle Royale é um dos melhores filmes de sua década e fanboyzando o filme ao ponto de por uma de suas atrizes pra atuar em Kill Bill, aumentou o interesse ocidental por esse filme que permitiu ele ganhar um lançamento em DVD e Blu-Ray nos EUA e Europa.
Agora tem uma questão importante: Satoshi Kon é um diretor cujo alcance no ocidente se tornou maior que no Japão, e o John Lichman, que trabalhou no Rotten Tomatoes declarou que Satoshi Kon é um dos três diretores de anime mais mainstream do ocidente, junto de Hayao Miyazaki (que fez Viagem de Chihiro) e Mamoru Oishii (que fez Ghost in the Shell). O Diretor da Mappa também concordou que acha uma lástima que apesar de ser um gigante no mercado internacional até hoje o Satoshi Kon não seja devidamente reconhecido no próprio Japão.
Eu acho relevante que de fato, o Kon no ocidente é gigante, todos os filmes que ele dirigiu podem ser encontrados no mercado ocidental com facilidade com tratamento de edição de colecionador, nunca é difícil conseguir uma cópia legal de um filme do Satoshi Kon para um estudante de cinema no ocidente assistir. E o Aronofsky não calar a boca sobre como Kon é um dos grandes diretores do mundo é parte da visibilidade grande que ele tem no ocidente. Aronofsky chegou a escrever um discurso quando Kon faleceu, discurso que foi publicado no livro que fez a retrospectiva de sua carreira e foi publicado no Japão. Reforçando, quando Kon faleceu, a maior voz de homenagem que circulou no Japão pra explicar o gênio de Kon, veio do ocidente.

E o impacto do filme no ocidente vai além do Arronofsky ser fã. A Madonna em sua Turnê Mundial de 2001 deixou passando cenas de Perfect Blue intercalada com outros animes em um telão durante o interlúdio. Nunca achei comentários de gente se perguntando porque o dinheiro do Tour da Madonna não foi pra pagar as contas do Satoshi Kon também. Esses questionamentos a gente faz mais com gente com quem a gente antipatiza e ninguém antipatiza a Maodnna.
Enfim, onde eu quero chegar é que o Satoshi Kon via o mundo de sua perspectiva. E sua rixa com o Aronofsky tinha muito a ver com como ele via as coisas. Tinha a ver com uma noção do que era orgulho e o que era respeito. Mas tinha pouco a ver com uma violação real de algum código ético. O Satoshi Kon fez um ponto em não ter colhido os frutos financeiros do “plágio”, e a tragédia disso é que ele pode não ter tido tempo de viver o suficiente pra isso.
A questão do dinheiro ronda esse debate, por isso acho relevante lembrar também. Quando um artista rico copia uma cena, fica em visibilidade, pois o artista tem visibilidade. Mas artista pobre rouba também. O Van Gogh, o mais famoso e célebre caso de “era um gênio, mas não fez um único centavo”, roubava enquadramento dos quadros dos outros nos quadros que não vendiam dele. Mas como ele não conseguiu vender, é menos revoltante. Ainda é injusto que um gênio como Van Gogh não tenha conseguido vender os quadros que ele copiou de alguém.
E o próprio Satoshi Kon não é imune a rimas visuais. No filme na hora de explicar pra Mima que uma cena de estupro vai ser bom pra sua carreira, o seboso menciona a Jodie Foster. Uma atriz que na vida real foi stalkeada por conta de sua cena. O Stalker era um fã obcecado do filme Taxi Driver, em que Jodie Foster interpreta uma prostituta de 12 anos. O filme termina com o taxista em um estado de ambiguidade quanto ao seu estado mental encarando o retrovisor do carro, e dos seus olhos no retrovisor e nossa dúvida se ele está são ou não é sanada. Travis segue louco. Perfect Blue termina da mesma forma, a mesma dúvida a mesma ambiguidade e vem o reflexo e a dúvida é desempatada Mima está sã. Desse foco nos olhos no retrovisor sobem os créditos.

Talvez o Satoshi Kon tenha mencionado a Jodie Foster sem saber que um fã de Taxi Driver obcecado com a noção dela de inocência a ser protegida ter sido quebrada em uma cena de estupro e que stalkeou ela ia fazer rimas com seu filmes e portanto não conhecia Taxi Driver e portanto não reparou que ele encerrou os dois filmes da mesma maneira. Ou seja, que os filmes não tem relação direta. Ou talvez ele só tenha feito o que todo diretor faz o tempo todo. Quando perguntado se Perfect Blue tem influências em filmes italianos Giallo ou em filmes do Hitchcock, Satoshi Kon sempre foi firme em negar ter se influenciado em qualquer um, e nunca citou filmes que serviram de inspiração pra Perfect Blue. Então não temos como saber pra quem Satoshi Kon realmente olhava quando tinha ideias.
Mas eu acho a briga normal, ninguém tem que gostar de nada no mundo, mas que os fãs acharem que o papel deles é manterem a briga viva em 2025 é um problema, pois propaga boatos de que literal plágio rolou. Ou que alguma infração ética foi cometida. Ou que o dinheiro de bilheteria do Aronofsky é dinheiro sujo, obtido explorando um coitado. Eu acho a briga normal, mas acho que a briga existe na esfera privada de dois profissionais em que um não gostou da maneira como foi usada pelo outro. Mas Satoshi Kon não está aqui pra brigar e a briga existe na esfera pública, de se isso deve afetar a imagem que o público tem de Aronofsky e de sua obra.
Como se a cena marcante que Requiem que deu prestígio ao filme fosse a da banheira. A marca visual do filme que de fato entrou no imaginário de todo mundo que viu, foi a sequência de close-ups muito próximos seguidos de montagens muito rápidas que mantém ritmo pelos efeitos sonoros. Que é algo que o Aronofsky chamou de “montagem hip hop”, a indústria acolheu o termo, e fazer montagens hip hop virou a marca registrada de Edgar Wright, para quem Aronofsky jamais pediu direitos autorais por fazer uma carreira em cima de uma técnica de edição que ele cunhou.

Enfim. Aí o Aronofsky tentou comprar os direitos de adaptação de Perfect Blue pra fazer um remake estadunidense. Ele não conseguiu os direitos, e daí vieram os boatos de que como ele não conseguiu adaptar legalmente o filme, ele então fez a própria cópia do filme em Black Swam. Além de virem fãs do Aronofsky espalhar desinformação de que o Aronofsky pode copiar, pois ele tem os direitos, o que ele não tem, não foram vendidos.
Aliás importante esclarecer também que adaptações ressentidas de produtores que não conseguiram adaptar diretamente obras existem. E não possuem violação ética ou anti-profissionalismo nelas também. Não é segredo pra ninguém que Frozen é só a Disney frustrada por não ter os direitos de adaptação de Wicked, chegando ao ponto de fazer a mudança mais radical de contos de fadas que a Disney já fez (transformar a grande vilã do conto na heroína incompreendida pela sociedade), e de contratar a atriz que fez a Elphaba na Broadway pra interpretar essa protagonista. Nosferatu, é também famoso por ser uma cópia legalmente segura de Drácula, que ganhou vida própria, pois em adição aos diversos remakes de Drácula, também são feitos em paralelos remakes de Nosferatu, que levam a sério as principais mudanças que o filme fez só pra poder evitar problemas legais.
Mas podemos presumir que o Kon não ia gostar de Black Swam, eu tenho certeza que ele odiaria, mas é pura presunção, uma vez que o filme saiu só depois do falecimento de Kon. Fazendo com que todo o motivo pelo qual Black Swam tem reputação de cópia de Perfect Blue, vem dos fãs projetando o que é que o Kon iria achar e comprando briga online baseado nisso.
O que ironicamente é uma situação que tem mais rimas com Perfect Blue do que Black Swam tem. Mas vamos agora enfim falar dos filmes.
Começando pelo que eles tem em comum… mais ou menos.
Filmes sobre Perfeição.
O principal motivo pelo qual Black Swam é acusado de ser um plágio de Perfect Blue, e uma adaptação ressentida de um filme que Aronofsky não conseguiu literalmente adaptar, é porque o filme imita as cenas de Perfect Blue, em que a dualidade da protagonista é demonstrada em uma cena de espelho em que a protagonista muda seu olhar e seu reflexo não muda, nos apontando pra uma segunda persona dentro dela.
Ele fez de novo. Outro frame imitado. Enfim, eu acho que já falei o suficiente de como esse tipo de imitação é indigno de polêmica.
Mas a segunda acusação, é que ambos os filmes falam sobre a mesma coisa: sobre perfeição. Especificamente, sobre os custos pra sanidade de uma mulher artista para atingir a perfeição em sua performance.
E aí já é um ponto melhor.
Porém eu não sinto que apesar dos dois filmes usarem o tema perfeição. Eles estão falando da mesma coisa. Na real eles estão falando de uma situação muito parecida e pondo o nome de “perfeição” em estágios diferentes da situação.
Aliás tecnicamente a palavra “perfeição” nunca é dita em nenhum momento de Perfect Blue, exceto que ele ronda nossa percepção do filme, devido ao seu título, jamais explicado no filme. Não é incomum ver gente indo em fóruns perguntar porque o título. Mas a palavra do título ainda ronda nossa visão.
Os dois filmes falam da transição de performance da protagonista. De uma performance pura, inocente e virginal, para uma performance forte, assertiva e sexualizada. Elas tem que parar de interpretar um personagem notório por sua pureza, para interpretar um personagem que seja parte da corrupção do mundo.
Em Perfect Blue, a personagem Mima Kirigoe teve uma carreira de sucesso como uma idol, e sua imagem como idol era essa. Pura, intocada, inocente, um brilho de luz não corrompida pra trazer escapismo ao público que tem que lidar com a sujeira do mundo. O mundo suja tudo, mas não as idols, não a Mima. Portanto ela é perfeita. Esse sentimento se alinha com o sentimento cultural que se tem a respeito de como idols devem se portar no Japão. Elas tem essa persona que elas assumem quando estão no palco e tem a responsabilidade de viver essa persona sempre que o público está vendo pra nunca quebrar a imagem do público de sua perfeição. E essa persona mais vezes do que não é uma de pureza. Idols tem sua vida pessoal muito vigiada, e escândalos como descobrir que elas fazem sexo, tem namorados ou fumam maconha, destroem carreiras, pois destroem a fachada de perfeição delas e criam uma quebra de confiança entre elas e público. O público não acredita na mentira de sua perfeição, e portanto não existe espaço pra ela mais.
Quando Mima decide se aposentar da vida de idol e começar uma carreira de atriz, ela é extremamente criticada pelos fãs, pois ela vai abdicar de sua perfeição. Como atriz ela vai se envolver em outro mundo. Um com cenas de nudez, um com cenas de beijo, cenas de sexo, cenas de violência, um em que ela faz mulheres cruéis, e a reputação dela de perfeita vai pro saco.
Em Black Swam temos o oposto.
Nina é uma bailarina cuja especialidade é a dança pura e virginal, extremamente apropriada para o personagem do Cisne Branco no Lago dos Cisnes. Mas o diretor da apresentação que sua companhia está fazendo tem a ideia ambiciosa de fazer a mesma atriz fazer o virginal e puro Cisne Branco, e o sedutor e perigoso Cisne Negro. O diretor acredita que a atriz que conseguisse fazer os dois papeis, sem ser isolada a um único lado da moeda seria a atriz perfeita. E ele acredita no potencial de Nina de se tornar perfeita ao encontrar dentro de si um lado distinto de seu lado puro e virginal.
Aquilo que faz Mima perder sua perfeição são o que trará perfeição pra Nina.
Pois pra Mima, perfeição é a reputação dela com seu público.
Mas Nina não tem público, ela não é celebridade, nem famosa, pra ela perfeição é a aprovação do diretor de fazer a performance ser impecável.
A perfeição que Nina procura se parece com a perfeição que o protagonista de Whiplash procura, a satisfação de que independente dos danos pessoais, sua performance foi excelente. Mas a perfeição que Mima abandonou é mais parecida com a do protagonista de Birdman, a de descobrir se o amor das massas ou o prestígio da crítica qual dos dois fazem a carreira perfeita.
Em Black Swam a figura do público é inexistente. Ele existe, mas ele parece desconectado de como Nina se vê. Ela não espera a resposta da crítica pra entender que ela fez a dança perfeita. Ela sabe que fez, ela entende que atingiu a perfeição. E quando ela é aplaudida pelo público a cena mostra as demais bailarinas aplaudindo. Nina se importa muito mais com a opinião de seus pares, diretores e outras bailarinas do que com a ideia de ser amada ou reconhecida. Ela é uma artista, mas não é uma celebridade.
A perfeição de Nina era uma régua que só interessava a ela e ao seu diretor, ambos querendo saber que deram a melhor performance que a arte poderia conceber, mas a reação a essa performance não é realmente parte dessa perfeição que eles buscam. Mas a perfeição de Mima é algo que só pode ser dada pelos outros, que é cobrada pelo público e que critica as decisões que ela toma como artista.
No fim de Black Swam, Nina mata a si mesma (presumidamente) pra atingir a perfeição. No fim de Perfect Blue, uma fã de Mima tenta matar Nina por não ser perfeita. Vamos falar sobre essa parte. Ela é interessante.
Filmes sobre Mulheres Enlouquecendo:
Perfect Blue é um filme sobre gaslightning. Que esconde o gaslight que Mima sofre, escondendo a agência de Mima em decisões que ela tomou offscreen.

Mima escolheu ser atriz e fazer uma transição de carreira, mas ela fez isso antes do filme começar, e nós enquanto expectadores não vemos ela fazer essa decisão. No filme ela é bem silenciosa quanto as decisões que fez, deixando sua Agente e Melhor Amiga, Rumi, falar por ela. Rumi está incomodada com a transição de Mima pra carreira de atriz, e como ela representa os principais interesses de Mima, a gente presume que Mima está secretamente incomodada.
Mas na verdade Rumi é obcecada pela carreira de idol de Mima, ao ponto de se imaginar como sendo a própria Mima tamanha obsessão, e ela prioriza que a imagem de Mima fique imaculada, longe da sujeira da indústria cinematográfica.
Mas com Rumi repetindo que isso não era o que Mima queria. E os fãs repetindo que isso não é o que Mima queria. E a mãe de Mima repetindo que Mima não quer desapontar seu tio que compra 20 CDs todo lançamento. Mima começa a acreditar que a decisão que ela tomou é uma que ela se arrepende.
Ela é convencida que o desejo do fã, é o desejo de seu subconsciente.
Curiosamente As únicas pessoas que comentam entre si que Mima na real tem um lado mais adequado a sujeira da indústria cinematográfica, e que poderia gostar de posar nua e se envolver nessas baixarias, são as duas Idols colegas de Mima. As duas únicas que viam Mima não da perspectiva de fãs, não como uma figura mágica no palco. E a Mima que elas viam era mais compatível com o mundo onde Mima queria entrar.
Conforme Rumi começa a assassinar todas as pessoas que estão envolvidas na carreira de atriz de Mima. Mima começa a suspeitar que ela mesma deve ser a assassina, e ela mesma está sofrendo de dupla personalidade, formando uma outra personalidade do rancor dela por ter abandonado a carreira de idol. Rancor que Rumi e os fãs projetam nela.
Para piorar, a série que ela está fazendo, resolveu inventar que sua personagem é uma assassina com dupla personalidade, realmente nublando a separação de realidade e personagem de Mima.
Em grande resumo. Mima sofreu gaslight pra achar que ela era maluca, assassina, estava esfaqueando coisas, não tomou decisões que tomou, e tinha dupla personalidade. Mas na real era só que tinha gente surtada tentando roubar a vida dela.
É muito louco que isso é o espelho perfeito de Black Swam. Em que Nina acreditava que tinha gente surtada tentando matar ela e roubar a vida dela. Mas não tinha não, ninguém queria roubar nada da Nina, era só ela sendo maluca e sonhando que esfaqueia alucinações enquanto esfaqueia a si mesma.
A paranoia de Nina era a realidade de Mima. E a paranoia de Mima era a realidade de Nina. Vivendo em posições opostas.
Acho que a grande diferença disso é que Perfect Blue é um filme com uma vilã. A insanidade de Mima foi deliberadamente causada por alguém. Foi parte do plano de uma outra pessoa, igualmente sem a capacidade de distinguir realidade, e por mais que o filme não mostre uma pintura bonita da indústria do entretenimento. Não é a indústria em si que enlouquece ela.
Como expectadores, nós sabemos como essa merda funciona. Sabemos do abuso. Sabemos no machismo. E o filme reforça esse desconforto nos mostrando que merda que é a cena de estupro e o fotógrafo que pressionou Mima a posar nua. E embora esses sejam aspectos desagradáveis que abalaram Mima emocionalmente, mas que ela tem que aguentar pelo bem de sua carreira, não são essas escrotidões que enlouquecem Mima. Mas é atrás dessas escrotidões que Rumi se esconde. Mima sabe que ela odiou posar nua, então ela acredita com mais facilidade na ideia de que talvez ela tenha subconscientemente matado o fotógrafo. Mas foi Rumi, usando esse fato pra fazer gaslight em Mima.
Pois Mima sabe que esse é o preço nojento do trabalho que escolheu. Mas ela ainda dá a palavra final. Rumi tenta fazer de tudo pra Mima não ter uma cena de estupro, mas Mima atropela Rumi e aceita a cena de estupro. Escolhe ser parte dela, ossos do ofício, mas é o ofício que ela quer. E o filme usa o fato de que a gente sabe que essas coisas são uma merda, para nos convencer junto de que “mas no fundo ela não escolheu”.
A gente acha que vê o filme da perspectiva da Mima, mas no fundo o filme guia a gente a ver a Mima da perspectiva da Rumi, e é por isso que a vilania de Rumi se esconde o filme todo. Nós estamos caindo na ladainha da vilã também. A cena do estupro simulado é uma das cenas mais visualmente pesadas do filme, e notoriamente mais memorável do que a cena de estupro real que temos no fim do filme. A cena é feita pra nos deixar perturbados, embora saibamos que é uma simulação. Mas quem está sofrendo de verdade é Rumi. Mima tem sua cena de desespero momentos depois quando volta pro apartamento, mas as lágrimas que vendem o quão pesada é a cena são as de Rumi, a vilã.
Black Swam não tem vilão. É o oposto. O diretor de Nina e a mãe de Nina tem seu papel muito direto em por pressão na cabeça dela. Mas a pressão que Nina sofre ainda é auto-imposta. Ela está surtando com a competitividade, ela está projetando suas inseguranças, e ela está em uma jornada de auto-destruição, o tema recorrente de toda a filmografia de Aronofsky é como nossas obsessões fazem com que a gente tome decisões que nos destroem e nos matam. E para isso não pode ter um vilão. Ninguém enlouqueceu Nina, ela enlouqueceu a si mesma pela maneira como sua relação insalubre com o balé floreceu, uma relação insalubre que foi validada pelas demais relações insalubres de outros personagens com o balé, mas foi dela.
E por isso os filmes podem ter finais tão diferentes.
Como em Perfect Blue a origem da loucura de Mima é externa, ao se livrar da origem de sua loucura, Mima recupera sua noção de realidade. Ela ganha independência de sua vida, e refaz sua imagem, e o filme termina com ela olhando no espelho e afirmando que ela sabe exatamente quem ela é. Ela segue como atriz, conseguiu se manter na indústria que escolheu e é isso aí, ela se livrou da pressão de voltar a ser idol e agradar fã.
Como em Black Swam a origem da loucura é interna, Nina não consegue voltar ao palco pra agradecer os aplausos dos fãs, ela sangra de maneira perigosa nos bastidores enquanto chamam a ambulância, e no transe de estar as portas da morte a única coisa que ela pensa é que ela foi perfeita. Ela pode ou não ter morrido, mas se morreu ela morreu satisfeita por morrer fazendo o que ama, autodestruição em nome de uma obsessão.
São filmes que usam a mesma base pra retratar conflitos muito deferentes que são resolvidos de maneiras muito diferentes. Mas a base ainda é tão parecida. Dá pra falar que esses filmes são diferentes só porque eles vão pra lugares diferentes?
Mas a real pergunta é, se um desses filmes foi pra uma direção e o outro foi pra outra? Se eles são opostos? Se um é preto e o outro é branco? O Lago do Cisne não precisa justamente tanto do preto quanto do branco pra peça fazer sentido?
Filmes complementares:
Foi muita crueldade da seleção natural nos dar a habilidade de reconhecer padrões em casos em que não vem naturalmente a capacidade de aplicar bem eles. Na análise de cultura pop acontece demais. A gente reconhece um padrão, então a gente instintivamente acha que viu algo ruim. A gente reconhece: “Ei, eu sei o que é isso, isso é um mcguffin, e isso aqui é um herói típico, e ali temos um plot device. Kkkkkk esse filme é muito ruim eu estou notando tudo.” E isso rola muito.
E rola muito também com o conceito de cópia. “O quê? Esse filme tem um leão sendo considerado o Rei da Selva? Esse leão conhece um macaco? Uma ave? Um Javali? A Disney plagiou deliberadamente Kimba o Leão Branco?” como se essas ideias fossem anti-intuitivas e como se ninguém além do Tezuka pudesse conceber que um Leão-Rei-das-Selvas fizesse amizade com outros animais africanos. E nisso pensamos pouco em “o que o filme está dizendo”.
Filmes podem pegar a mesma estrada pra ir pra caminhos diferentes. Mesmo em adaptações diretas que são propositalmente igual. A versão estadunidense d’O Chamado vai pra um caminho bem diferente de Ringu.
No caso de Perfect Blue e Black Swam, de onde eu vejo me soa mais que Black Swam é uma resposta a Perfect Blue, um filme que mostra uma situação inversa pra poder ir até onde Perfect Blue não vai. Um filme que tira os fãs, os agentes, e a pressão da demanda da indústria, pra focar justamente, em como nossas obsessões nos matam.
Em Perfect Blue, vemos apresentado a dicotomia entre a Santa e a Puta. Em que os fãs categorizam as celebridades entre Santas e Putas, e no que Mima fez a cena de estupro numa série, já era, a percepção dela mudou, e um fã foi convencido de que precisava matar Mima pra honrar a imagem pura da “verdadeira Mima” que jamais se envolveria com esse tipo de cena. Essa dicotomia entre a Santa e a Puta não é algo que Mima performa, mas é como a mídia e os fãs vão interpretar o trabalho dela independente do que ela quer.
Em Black Swam a dicotomia da Santa e da Puta existe na própria peça que querem apresentar, no Lago dos Cisnes, o Cisne Branco é puro e virginal, e o Cisne Negro é perverso e sedutor. E tradicionalmente são interpretados por duas mulheres diferentes que naturalmente apresentam essa distinção. Mas aí o diretor da peça apresenta o twist de que ele quer uma bailarina que possa ser os dois. Simultaneamente performar a virgem e a puta. Que a perfeição está na capacidade de intercalar essas duas performances e transitar entre esses dois papéis. Nina era só a santa, ela não sabia ser a puta, e ela se esfaqueou pra conseguir ser.
Duas leituras distintas pro mesmo assunto.
Mima levou uma facada por estar virando puta, e Nina levou uma faca por não conseguir ser puta. Lado a lado, os dois filmes juntos mostram a desesperança da existência desses arquétipos. Esses dois modelos idealizados de feminilidade te empurram pra tragédia independente de qual dos dois lados está sendo valorizado.
É quando dois filmes passam por lugares iguais pra verem perspectivas diferentes, eu acho que isso torna os filmes complementares. Ou seja, filmes em que um engrandece o outro quando se vê os dois. Mima estava perdendo o controle de sua vida e precisava recuperar o controle de suas decisões, Nina tinha controle demais e precisava aprender a se soltar e a deixar de ser obcecada em estar no controle de tudo. Cada uma em um extremo, nas duas terminou em sangue.
Os abusos e pressões que uma pessoa sofre ao viver de performar, especialmente mulheres, especialmente quando seu trabalho é vender uma ideia específica de sexualidade e feminilidade, é um tema complexo e relevante, e ver ele ser abordado em múltiplas perspectivas.
Eu disse que Black Swam soa como uma resposta, algo feito pra continuar o debate levantado, por outros pontos. Mas o Aronofsky negou diretamente que Perfect Blue tenha sido a inspiração de Black Swam. E ele ter negado é o que deixa todo mundo mais suspeito pois todo mundo sabe que ele é um fã do filme que queria ter dirigido o remake estadunidense, mas não deixaram. E aí parece que ele está escondendo um grande segredo, negando a influência. Estaria ele mentindo, porque o Satoshi Kon expôs ele pelo plagiador que ele é?
Ao mesmo tempo ele fala “esse filme não é baseado em Perfect Blue, é baseado na peça Lado dos Cisnes“, e de fato, quando se fraseia desse jeito, um frasear que não cita também Polansky e Dostoievsky, que ele admite serem inspirações diretas, é claro que o Lago do Cisne ocupa uma porcentagem muito maior de daonde o filme tira seus temas e estética do que o filme de onde ele tirou a cena do espelho.
Ele cita outras influências em seu trabalho, incluindo Dostoievsky, Polanski, e um roteiro sobre um ator sendo atormentado por uma cópia sua chamado The Understudy.
Mas ele principalmente cita a si mesmo, alegando que Black Swam é um filme que ele criou pra complementar o seu filme anterior que saiu um ano antes The Wrestler, sobre um lutador de wrestling, que após ser alertado de que ele ia morrer se não largasse a carreira, tem que se deparar com o fato de que ele não tem nada pelo que viver fora de sua carreira. Aronofsky alegou que os dois filmes exploravam a maneira como essas pessoas faziam uso de seu corpo como ferramenta de expressão de uma maneira muito parecida e seus protagonistas se relacionam com sua arte de uma maneira igual. Só que um ocorre na arte menos respeitada enquanto arte e mais vulgar, e o outro na mais prestigiada e erudita das artes, mas ao se ver os filmes um acompanhado do outro, a diferença entre alta arte e baixa arte some.
Essa distinção também está em Perfect Blue, em que é notório que a distinção entre Idol e Atriz é que a atriz tem mais prestígio e respeito enquanto profissional, mas a Idol tem mais amor das massas. O wrestler destrói seu corpo pelo amor das massas, e a cisne negro destrói seu corpo pelo prestígio. Mas eles destroem igual.
O Aronofsky olha esse mundo como um terreno fértil pro narcisismo. Os holofotes fazem um bem enorme pro ego dos seus personagens que fazem seus personagem ignorarem os danos ao seu corpo. Mas Mima não é uma narcisista. A primeira coisa que ela faz quando abandona a carreira de Idol é jogar fora o postar de si mesma no quarto, como uma marca da vida anterior. Ela nunca se embebeda nos holofotes. Perfect Blue é um filme que marcou Aronofsky, mas é um filme que o Aronofsky nunca faria, pois seus personagens não vivem os defeitos internos que o Aronofsky quer trabalhar em sua arte. Ao mesmo tempo, Satoshi Kon provavelmente não faria Black Swam também.
Afinal Perfect Blue já é uma adaptação de um livro, também chamado Perfect Blue, um livro que tiveram vários detalhes e pontos de roteiro, inclusive não tendo o twist da Rumi, pois o Satoshi Kon está fazendo o próprio filme. Chegou a um ponto que o autor do livro falou pra fazer o que quiser, só não tirar a parte que a protagonista é uma idol sendo perseguida por um stalker, o resto pode tirar. E todo o resto o Satoshi Kon tirou. Ele não queria ser fiel, ele queria usar Perfect Blue como trampolim pra ele contar uma história dele.
Eu acho que Kon e Aronofsky os dois são diretores que qualquer ideia que jogarem na frente delas, eles vão distorcer em algo que fale sobre eles, ao estilo deles com as mensagens deles. E essa pessoalidade naquilo que tocam faz com que uma guerra entre se os dois filmes são parecidos inútil. Mais produtivo ver como cada um deles vê esses acontecimentos. Em especial, pois são dois filmes sobre a indústria do entretenimento, e os dois são seres humanos que vivem nessa indústria, então a perspectiva deles tem esse lado também.
Metalinguagem:
No ano 2000, Natalie Portman e Dareen Aronofsky se encontraram para poder conversar sobre fazerem juntos um filme sobre balé. Natalie Portman foi atrás de Aronofsky, pois ela pessoalmente estava querendo filmes que explorassem mais ela como mulher adulta, e que tirassem ela de uma imagem de criança fofa. Natalie Portman começou sua carreira como atriz-mirim, e estava tendo essa conversa com 19 anos, um ano depois de se tornar estrela de um novo Star Wars. De criança fofinha pra Star Wars ela não queria a imagem de atriz bonitinha, lindinha, queria papéis mais adultos e foi atrás do diretor que tinha acabado de fazer Requeim for a Dream pra dar um papel pra ela.
É curioso no meio de toda essa polêmica do plágio existe a Natalie Portman querendo fazer na vida real o que a Mima fez no filme, uma mudança na brand, pra quebrar a imagem de pureza e inocência que marcava a visão dela. E foi atrás de um diretor que ia por ela em um filme com situações sexuais. Natalie Portman foi colocada em cena de masturbação, em cena de sexo lésbico e ela ganhou seu primeiro Oscar por esse filme.
Essa curiosidade não tem relação nenhuma com o que torna os filmes parecidos. Mas ela aponta algo. As situações que Aronofsky e Kon descrevem, o tipo de personagem que eles criavam e a maneira como a arte afeta eles não é algo que foi produzido do vácuo pois eles são tão criativos que conseguiram imaginar o conceito de pressão, busca pela perfeição, holofotes e fãs distorcendo a cabeça de um artista. Eles vivem esse mundo, e eles interagem com esse mundo todo dia.
Kon já declarou que ele próprio não queria criticar a indústria do entretenimento no filme, e que as críticas que foram feitas acabaram sendo feitas acidentalmente enquanto ele queria focar mesmo na jovem amadurecendo e mudando os seus valores. Olhem só, o Kon também nega que um ponto que claramente está no filme esteja no filme.O filme não tem críticas ao tratamento das idols da mesma forma que Black Swan não tem inspiração de Perfect Blue, os dois diretores deram suas palavras. E é isso, está na vida do Kon e vai pro seu cinema ele negando que isso exista ou não.
Especialmente ele que tem uma tendência tão grande a se tornar metalinguístico.
Agora sabem o que é meta de verdade?
Que em Perfect Blue existe esse blog sobre Mima, escrito por sua agente pra alimentar a relação parassocial de Mima e fomentar a exigência dos fãs por uma Mima mais pura e mais longe do mundo sujo da atuação. Que esse blog é o vilão e uma janela por onde as alucinações de Mima com seu gaslight se manifestam com ela não sabendo se ela poderia estar escrevendo esse blog sem saber. Esse blog é uma violência pela maneira como ele afeta a relação parassocial de Mima com fãs que acham que podem falar por ela e decidir eles quais as vontades dele.
E na mesma época Kon começou o seu próprio blog. Para se comunicar com seus próprios fãs. E nesse blog ele desabafou seu desconforto com a maneira como a cena da banheira de Requiem for a Dream, e seu encontro pessoal com Aronofsky deixou ele desconfortável e fez ele se sentir usado por Hollywood.
E por causa desse comentário no blog que os fãs até hoje colocam em Cisne Negro o fantasma de filme que teria ofendido e revoltado o Satoshi Kon se ele tivesse vivido pra ver. Os fãs sabem que o Satoshi Kon ficaria mal, pois leram seu blog.
Nossa relação parassocial com o Satoshi Kon é uma que a gente evita ver como algo que tem rima com como os fãs in-universe de Perfect Blue se portam. Mas o que somos nós fãs, senão gente tentando falar com a voz do artista, nos sentindo dignificados de representar ele e a verdade sobre ele, pois lemos um blog?
Conclusão:
Assim. Eu acho que o Satoshi Kon ter ficado bolado com a cena da banheira, uma bobagem, e ele levando isso como algo mais grave do que é. Ao mesmo tempo, ele é só uma pessoa como todo mundo nessa indústria é uma pessoa. Ele tem o direito de ficar bolado com bobagem, tanto quanto eu e vocês temos. O filme Cisne Negro tem rimas mais temáticas do que uma cena 12 segundos que a gente presume com evidências que deixariam ele mais bolado, mas a moral é que tanto faz se ele ficou bolado ou não, e ele ter ficado bolado com um incidente tão menor e mais insignificante só faz eu achar que importa menos se uma semelhança maior afetaria ele.
Fico feliz que ele não cruzou a linha e não foi gritar com a Jennifer Conely no avião, mas só dele ter cogitado ir ser hostil com ela por causa da cena da banheira eu já acho ridículo. Querer gritar com a Jennifer por ter entrado na banheira não é diferente de gritar com a Mima por ter feito uma cena de estupro. Ele se conteve, e que bom, mas o coração dele está no lugar errado.
E todo o rancor dele por não ter pegado uma fatia da bilheteria de Requiem for a Dream, é mal direcionada. Pois a real é que Perfect Blue foi um fracasso na bilheteria local, e até hoje ele é um diretor menosprezado no mercado interno japonês que não conseguiu sucesso com seus compatriotas. O Aronofsky, o Guillhermo Del Toro, a Madonna e vários fãs ocidentais de renome abriram a porta pra ele no mercado ocidental onde ele é gigante. Onde ele é um dos diretores de anime mais prestigiados de todos os tempos. O documentário que fizeram pra honrar o impacto cinematográfico dele não foi feito no Japão, foi feito na França, pelos franceses. Ele não ganhou prêmios no Japão, mas ganhou prêmios póstumos nos EUA. E eu sinto muito por ele, mas se ele queria que fosse fácil conseguir altos orçamentos, e grandes estúdios facilitando projetos dele ele ia ter que aprender a conquistar o mercado interno também, aprender a vender pros japoneses. Eu não sei dizer se o fracasso de bilheteria de Perfect Blue pode ser jogado na conta dos estadunidenses.

Mas ele não é um Deus, ele era uma pessoa, uma pessoa de talento, um artista, um bom contador de histórias, e alguém com o direito de dar dessas. Ninguém tem que gostar de nada não. Ele não é obrigado a reagir bem. Ele fez a arte dele, jogou no mundo e tem o direito de ficar incomodado ou até puto com como a arte dele afetou os outros.
E eu sinto também que ele próprio não era a pessoa mais transparente com suas influências. Muito do sucesso dos filmes dele no ocidente tem a ver com rimas que os filmes dele tem com filmes ocidentais. Mas quando perguntado sobre, ele sempre nega as influências também. Eu rodei e rodei a internet e não achei uma declaração dele de um filme que ajudou ele a fazer Perfect Blue. Gostaria de ter encontrado. Ninguém produz nada do vácuo.

Em uma entrevista no Japão o repórter perguntou se era possível ter influências de Se7en, Silence of the Lambs ou de Fatal Instinct no filme. E Satoshi Kon respondeu que não só não existe nenhum filme que influenciou Perfect Blue, como que esses filmes estavam desgastados e ele quis fazer um filme que fosse na contramão de todos eles. Mas que apesar disso, a série Double Bind, que é a série que Mima está filmando, é pra ser lida como uma paródia de como esse tipo de Hollywood tem afetado as séries japonesas.

E Kon responde: “Sim, tive essa consciência. O chamado ‘terror psicológico’ é um gênero que já foi explorado inúmeras vezes ao redor do mundo, a ponto de estar um pouco desgastado. No entanto, embora eu não tenha me baseado em nenhuma obra específica, a maioria desses filmes parece focar em mostrar o quanto o criminoso é um pervertido ou completamente insano. Por isso, eu quis ir na contramão disso e coloquei o foco em ‘como a mente do protagonista vai se deteriorando aos poucos ao ser perseguido por um stalker’.
Por outro lado, no caso do filme dentro do filme, chamado ‘Double Bind’, eu realmente me inspirei diretamente em obras do gênero ‘psicológico’. Ou melhor dizendo, foi quase com uma intenção paródica. Trata-se de uma crítica à maneira como os dramas televisivos japoneses copiam superficialmente as modas de Hollywood e são produzidos de forma simplista.”
E cá entre nós, quando um filme dele é parecido com um filme ocidental de propósito, porque o diretor adora o filme dele, ele se sente humilhado. E quando um filme dele é parecido com num filme ocidental acidentalmente, e ele só desconversa, reforça que tudo veio dele sem dialogar com nenhum outro filme, isso quando não diminui o filme mencionado, a impressão que passa é que ele não tem vontade de construir pontes e diálogos com o os locais que melhor respondem a sua arte. Cinema é arte colaborativa, e é um espaço profissional social onde quem são seus amigos dita que porta vão se abrir pra você.
Ele tem raiva de que o dinheiro massivo que circula em Hollywood não veio pra ele, que a Jennifer Connely é mais rica que ele, mas ele não tem o menor desejo de ser parte do mundo dessas pessoas, só de que o mercado de anime independente japonês circule esse tipo de dinheiro. Mas isso é uma interpretação minha aos vários depoimentos que ele deu, e isso não é importante de verdade. Não tenho real interesse em julgar personalidade alheia e acho que importa pouco pra qualidade dos filmes dele.
Mas ele faleceu, não está aqui pra brigar, e não deve ser a herança de ninguém manter uma briga que nasceu de bobeira viva. As bobeiras têm que morrer com o ser humano, e ficar pra trás, só o que é bom.
O cinema não só é um grande telefone sem fio. Como ele deve ser. E quanto mais diferente o resultado final ficar, melhor. Todo mundo cria usando o que veio antes de base.
A situação deve sim trazer holofote pro quanto o cinema estadunidense se apropria do cinema oriental, mas não em uma acusação de plágio, ou em uma noção de que o Aronofsky deveria dinheiro ao Kon. Mas sim, o Aronofsky em sua inspiração com Satoshi Kon seguiu um padrão que se mantém na inspiração de George Lucas com Kurosawa, e de Tarantino com filmes de Kung Fu. E essa tradição paga de volta a esses filmes, usados como ampla inspiração, com visibilidade. E perguntar se esse tipo de inspiração pode ser paga em visibilidade é válido. Afinal pagar em visibilidade é sempre picaretagem. Mas não acho que esse é um debate onde palavras como plágio ou cópia são bem vindas. Nem onde a ideia de “homenagem” deve ser usada ironicamente. Só que a relação de poder entre Hollywood e seus milhões, e o soft power que Hollywood dá ao imperialismo estadunidense, e os cinemas locais de outros países deve ser considerado. Eles nunca estão em pé de igualdade com o cinema de outros países pela forma como o cinema deles dominam os outros países.
Mas no geral esse debate todo nos impede de ver os filmes pelo que eles são, perspectivas distintas sobre um debate que ao se juntarem forma uma imagem maior. Que é o que qualquer par de filmes desrelacionados podem ser também. Todo filme pode ser uma peça que se encaixa em outro filme, e não falo de encaixar Império Contra-Ataca em O Retorno de Jedi. Mas é mais parecido com como Stepford Wives é um filme que intensifica a experiência de ver Get Out.
E não tem motivo pra se perder tempo em rivalidades.
Bom é aqui que eu queria chegar. Mas você pode continuar essa conversa nos comentários, falar de que lado está na rixa pessoal dos diretores ou o que acha dos filmes, de suas semelhanças e suas diferenças. Que eu vejo vocês no próximo texto.