Em 1938 foi publicado pela primeira vez na história uma história do Superman na Action Comics Nº1, contendo uma das mais famosas e icônicas capas de história em quadrinho que existe. E nisso fomos introduzidos a esse personagem: Superman. Ou Clark Kent. Ou Kal-El.
Ele tem um gibi de próprio nome que até o momento ainda é a série de história em quadrinho mais vendida da história da humanidade. E é também a única história de super-heróis que em números absolutos, ainda vendeu mais do que o mangá mais popular do mundo, One Piece.
Acadêmicos discutem e discordam de qual foi o primeiro personagem que tecnicamente já é um super-herói, mas geralmente concordam que o Superman foi o primeiro a encarnar todos os tropos que se esperam de um super-herói e quem codificou o arquétipo. O Superman foi o número 1.
Concebido pra possuir uma super-força (capaz de levantar um carro), super-velocidade (capaz de ultrapassar um trem), um super-pulo (capaz de pular até o topo de um prédio), e ser a prova de balas. Porém com o passar dos anos, seu arsenal de super-poderes foi progressivamente aumentando pra incluir voo, visão de raio-x, raio laser pelo olho, sopro gelado, super-audição, controle mental e ocasionalmente viagem no tempo se ele voar contra a rotação da terra.
Com o passar do tempo os limites da intensidade com a qual ele consegue usar esses poderes foi aumentando.
E nos últimos 86 anos, ele tem sido o grande símbolo de esperança pra humanidade em seu universo. Em especial a parte da humanidade que mora nos EUA. Em especial a parte que mora em Metrópolis, também conhecida como A Cidade do Amanhã. Uma cidade fictícia que existe pra representar Nova York nas histórias em quadrinhos.
Apesar de Metrópolis não existir, o universo da DC é pra ser relativamente parecido com o nosso exceto pela presença de aliens, ciborgues e pessoas com super-poderes. Quando o presidente aparece em uma história exceto pelo curto período em que Lex Luthor foi presidente, ou qualquer outra história que exige um presidente específico costuma ser o presidente atual. E o Superman já encontrou pessoalmente presidentes estadunidenses como Kennedy, Reagan ou Roosevelt. Ele também lutou com Muhammad Ali.
Isso significa que o mundo do Superman também está sofrendo catástrofes climáticas devido ao aquecimento global que exigem protestos por parte do Superman.
E também que o mundo do Superman está em constante guerra, a maior parte delas com os Estados Unidos, país do Superman cometendo crimes terríveis contra outras nações. Que o Superman não impediu o 11 de Setembro, que o país do Superman foi o país recordista em maior número de mortos pelo Covid-19, sem ninguém pra impedir essa tragédia.
Apesar de o país dele ser uma distopia caótica, e de nenhuma mudança ser feita com a presença dele, ele ainda traz esperança para o povo. Com seu S no peito, seu sorriso contagiante e regatando uma pessoa de cada vez.
Pois o Superman faz o que pode, afinal mesmo poderoso, ele é só uma pessoa, ele faz o que o cidadão comum pode fazer. Afinal se um dia ele fizer algo drástico, ele vai se tornar uma figura terrível: O Superman do Mal.
Esse texto vai ser um pouco sobre isso. Sobre o Superman, sobre como o contraste entre sua bondade imensa, e seu poder inimaginável expõe a maneira como ele vive em um mundo que jamais melhora, continuando o que eu comecei no texto sobre se o Batman é ou não um bilionário oprimindo as classes baixas.. E sobre como o arquétipo do Superman do Mal existe como esse grande risco de porque o Superman não deve ter poder político real no mundo.
Mas acima de tudo, esse texto é sobre os Estados Unidos, como o país é, e como os Super-Heróis afetam a imagem nacional de seus leitores estadunidenses, e por extensão de seus leitores de outros países que acredita que os Estados Unidos são referência de modo de vida.
Quero falar sobre todos esses assuntos.
Mas quero especialmente me perguntar: de onde vieram os Supermans do Mal?
Mas antes de falar tudo isso, eu vou falar é de como você, isso mesmo, você pode ajudar esse blog. E é através do financiamento coletivo no apoia.se.
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Pois esse texto é escrito em homenagem a todos que já me apoiam. E é um agradecimento a paciência deles, mês passado não teve texto, pois esse aqui ficou gigantesco, ficou o dobro do tamanho de um texto normal, e eu não quis dividir em dois, pois eu realmente achei que precisava chegar a conclusão da linha de raciocínio. Vocês são um grupo magnífico em como apoiam esse blog e dão forças. E eu espero que gostem desse texto.
E esse texto é sobre o Superman…. Como um exemplo de algo que ocorre com muito personagem no mundo dos heróis.
E pra começar, a gente tem que entender algumas coisas sobre o que o Superman simboliza. Ele simboliza a esperança, o heroísmo, a justiça, e alguns conceitos positivos universais, que fazem qualquer pessoa olhar pra ele com admiração, não importa de onde venha. Mas acompanhado de tudo isso, ele representa os Estados Unidos.
Superman e os Estados Unidos.
O Superman é um ícone estadunidense. Da mesma forma que o Elvis, a Marilyn Monroe, os Cowboys o Mickey Mouse e o Ronald McDonald são. Ele representa o que significa ser um estadunidense e a importância dessa cultura, e através da maneira como essa cultura domina o mundo e usa a cultura pop pra deixar sua marca nos outros países. E pela aceitação ele se torna um símbolo global da humanidade…. Da mesma que o Mickey Mouse e o Elvis são símbolos globais da humanidade… não sendo, sendo só um efeito de como os EUA dominam o mundo.
Mas ele não é somente um símbolo dos EUA no sentido de que ele é um símbolo e ele foi feito nos EUA… a bondade dele, sua maior marca, representa os EUA. Ser bom é uma maneira de ser estadunidense.
Pois afinal, o Superman é um caso clássico de como criação supera a natureza. Que sua personalidade, seu senso de justiça e sua ética inabalável são resultados de ter sido adotado e criado pelos Kents, pessoas exemplares que deram ao Clark uma boa educação. Com o tempo foram polindo e dando detalhes a esses personagens, e os Kents foram estabelecidos como um casal de fazendeiro em uma cidadezinha rural chamada Smallville.
Em 1978, o filme Superman determinou que a cidade de Smallville ficava no Kansas. Mesmo que o filme não tenha sido filmado no Kansas, mas sim em Alberta no Canada. E desde que o filme saiu os quadrinhos consistentemente marcaram que Smallville fica no estado do Kansas.
O estado cuja fama e maior notoriedade vem de ser o palco do grande conto-de-fadas estadunidense The Wizard of Oz. Uma história muito famosa, muito relevante, e muito estudada pela maneira como vende o assim chamado Sonho Americano, e ajuda na formação da identidade estadunidense.
Wizard of Oz é um filme que pode ser frequentemente citado como uma metonímia do que é a cultura estadunidense, quando um personagem se encontra em solo estrangeiro e precisa reforçar sua identidade.
Enfim, e é no Kansas que o Superman aprende a ser uma boa pessoa, pois é onde ele aprende uma coisa fundamental pra ele. O American Way of Life ou o Jeito Americano. E essa expressão é importante, pois ela está no slogan do Superman: Truth Justice and the American Way (Verdade, Justiça e o Jeito Americano).
E esse slogan foi inventado pelo programa de rádio The Adventures of Superman e foi o slogan do personagem de 1940 até 2021, quando oficialmente ele foi substituído por Verdade Justiça e um Amanhã Melhor, mas mesmo após a substituição, a frase original continua aparecendo, pois ela é de fato icônica.
O Jeito Americano é um ideal. E como todo ideal, ele existe independente de ser posto em prática ou não. E ele existe pra vender a ideia de que os Estados Unidos foram fundados para ser uma terra em que todo ser humano, tem o direito a vida, a liberdade e a procurar a própria felicidade. Esses três pontos são retirados precisamente da Declaração da Independência dos Estados Unidos, e nela esses três pontos são considerados os três direitos inalienáveis de todo ser humano.
Em algumas paráfrases dessa frase em outros textos feitos nos Estados Unidos, incluindo a constituição estadunidense, a parte de “procurar a própria felicidade” é substituído por “propriedade”, então alguns podem interpretar o Jeito Americano como a defesa à vida, a liberdade e a propriedade… mas a maioria vai considerar que é a procurar a própria felicidade.
Implícitos no Jeito Americano, está a sua conexão com o Sonho Americano, que é o ideal de que por todas as pessoas serem iguais, e sua situação social ser um resultado único de suas escolhas na vida, qualquer um pode ascender a qualquer posição social e atingir sucesso se trabalhar duro e trabalhar eticamente; e com o Excepcionalismo Americano, que é a crença de que os Estados Unidos foram fundados em valores morais maiores que os demais países, e pela sua particularidade, os Estados Unidos devem servir de exemplo para o mundo, e ocupar um papel protagonista em dinâmicas internacionais. Pois nenhum outro país tem os méritos culturais e morais dos Estados Unidos.
O Jeito Americano não existe. O Sonho Americano também não. E nem o Excepcionalismo Americano. Os três são mentiras, que são repetidas pro povo pra deixar o povo confortável com absurdos e injustiças promovidos pelo seu governo em nome desse ideal. E eles tem um preço. Se essa mentira vem a tona, ela causa um sentimento de desilusão nacional forte e fazem o povo perder a fé na realidade sem conseguir se apoiar em nada. E essa desmotivação social pode se tornar uma crise.
Investir nesses assuntos na população é pedir um empréstimo de esperança que o futuro vai cobrar de volta com juros, deixando um povo desesperançoso no lugar. Pois são mentiras, e mentiras um dia se revelam. Isso é um foreshadowing.
O motivo pelo qual o Superman usa O Jeito Americano em seu slogan, é porque entre os anos 1939 e 1945, bem na época em que ele tinha acabado de ser criado, existiu um evento histórico de impacto mundial chamado Segunda Guerra Mundial. E bem, era a visão de muitas pessoas nos Estados Unidos, em especial de muitas pessoas na indústria do entretenimento, de que os Estados Unidos tinham a responsabilidade de entrar na Segunda Guerra Mundial e parar o nazismo, usando o seu poder e moral superior por uma boa causa. E para criar a comoção popular necessária pra exercer essa pressão, muita propaganda sobre o Jeito Americano como a antítese máxima do que significa ser nazista foi usada.
Foi nessa época que o Capitão América foi criado.
Nessa época, foi o programa The Adventures of Superman que cunhou a frase “Verdade, Justiça e o Jeito Americano”, então não foi uma frase cunhada pelos seus criadores, Jerry Siegel e Joe Shuster, mas eles em entrevista já falaram que eles concordam com a frase, justamente por causa do nazismo. O Jeito Americano era necessário pra combater o nazismo. E Siegel e Shuster apoiaram essa mensagem.
Se perguntar pra Jerry Siegel e Joe Shuster os ideais e inspirações por trás do Superman, existem muitos fatores relevantes. O pai de Jerry Siegel foi morto por tiros, o que inspirou ele a criar um herói a prova de balas. Os dois são judeus filhos de imigrantes, e eles quiseram fazer uma história que tivesse rimas com Moisés, do bebê acolhido em uma outra terra. Além é claro da vida dupla de Clark e suas duas identidades e dois nomes sendo equilibrados é fortemente equilibrado como uma metáfora do que significa ser imigrante judeu nos EUA
E tem também o fato de que crescendo na Grande Depressão, eles tinham uma admiração muito forte pelo 32º Presidente dos Estados Unidos, Franklyn Delano Roosevelt. Que com o seu New Deal ajudou as pessoas na Grande Depressão a recuperarem empregos e estabilidade financeira através de muita assistência social por parte do governo. Roosevelt e suas políticas de assistência social venderam na população afetada pela grande depressão a ideia, de que pessoas com poder, são pessoas capazes de fazer o bem, e isso era forte tanto como demanda para o que os leitores queriam ler, mas algo que afetou Siegel e Shuster diretamente.
As primeiras histórias do Superman, escritas por Siegel e Shuster eram repletas de desejo por mudanças, em que ele forçava governadores, e empresários a pararem de fazer merda e normalizarem hábitos prejudiciais ao povo. E que os Estados Unidos precisaria funcionar diferente pra funcionar. E Siegel e Shuster escreveriam o próprio Roosevelt como um personagem com luz positiva em histórias sem o Superman. Pois eles tinham outras histórias.
O Jeito Americano era algo que o governo de Roosevelt vendia, e é algo em que Siegel e Shuster acreditavam por influência de Roosevelt. Eles acreditavam nesse sonho e eles vendiam esse sonho em que eles acreditavam, por ter uma fé em mudanças que ocorreram no país durante suas vidas.
Em 19 de Fevereiro de 1942, o presidente Roosevelt assinou e emitiu a ordem executiva 9066, que autorizou que pessoas que fossem consideradas ameaças a segurança nacional fossem removidas de suas casas e colocadas em algo que na época, durante a guerra, a imprensa e o governo usavam sem vergonha o termo “campos de concentração”, mas com o tempo, o desejo dos EUA de se distinguirem dos nazistas fez eles mudarem o termo pra “campos de internação”.
Assim como com os outros campos de concentração, os mais famosos, as pessoas consideradas ameaças a segurança nacional tinham uma etnia específica. Eram descendentes de japoneses. Como uma resposta aos ataques de Pearl Harbor que permitiu muita discriminação e racismo contra qualquer asiático nos EUA. 120,000 cidadãos estadunidenses descendentes de japoneses foram presos em campos de concentração, dos quais, 1,862 morreram nos campos. A maioria por negligência, maus-tratos e problema de saúde, mas no mínimo 7 sendo executados pelos guardas.
Tudo pelas mãos do presidente que inspirou o Superman por suas boas ações.
Nessa mesma época, enquanto encarceramento em massa e morte de descendentes de japoneses ocorriam em solo americano, estreava nos cinemas o curta-metragem Japoteurs, estrelado pelo Superman, o primeiro super-herói a receber uma versão animada no cinema. No curta, Superman impede que os espiões japoneses roubem os aviões estadunidenses. Os espiões japoneses são desenhados de maneira caricaturada como parte do que era a norma da propaganda de Segunda Guerra Mundial. Com ênfase em serem dentuços e em falarem errado trocando as letras.
Como parte explicita da propaganda da Segunda Guerra Mundial, não era incomum ver o Superman ao lado de japoneses retratados como caricaturas racistas. Na maioria delas o japonês em questão seria o Imperador Hirohito, com quem Superman nunca lutou nos quadrinhos. Nos curtas animados ele podia aplicar essa caricatura em inimigos diretos dele.
Nos quadrinhos, o Superman nunca se alistou na Segunda Guerra Mundial, e ficou nos EUA resolvendo os problemas locais. Mas os japoneses frequentemente eram os problemas locais. Regularmente enfrentando japoneses e usando o insulto pejorativo popularizado na época “Jap”… que é um termo racista desde aquela época. E assim, só pra deixar claro. Japoteurs foi uma adaptação, mas os quadrinhos racistas eram Shuster e Siegel comprando e acreditando na propaganda racista que ouviam na mídia.
Um dos descendentes de japonês que foi preso nos campos de concentração foi Roger Shimomura, que era uma criança pequena na época, tendo seis anos quando foi libertado. Nos campos de concentração, sua irmã mais velha morreu de meningite. Roger Shimomura cresceria, se tornaria um artista, especializado em desenhos que misturem estereótipos japoneses fazendo justaposição com elementos da cultura estadunidense.
Seu autorretrato típico costuma retratar um homem japonês com um kimono, abrindo o kimono pra revelar o uniforme do Superman por baixo, como uma maneira de ilustrar o sentimento dele de ter duas culturas e duas identidades. Funcionou pros descendentes de judeus, mas pros descendentes de japonês também, é uma metáfora boa sobre imigração essa segunda roupa por baixo da roupa.
E uma das pinturas de Roger foi feita depois de ele ler um diário de sua avó, expressando gratidão ao governo americano, quando depois de congelar todas as contas bancárias de todos os descendentes de japonês do país em vingança por Pearl Harbor, o governo voltou atrás e permitiu que eles pudessem sacar do banco no máximo 100 dólares por mês. A avó de Roger escreveu no diário que a compaixão do governo com o inimigo emocionava ela. E Roger em 1980 pintou a sua avó, em estilo Ukiyo, sendo observada pelo Superman, de maneira intimidadora, enquanto escrevia seu diário.
Todo ser humano tem o direito à vida, a liberdade e a buscar a própria felicidade, desde que não seja de uma etnia considerada “inimigo da pátria”. Tem esse asterisco na frase do Jeito Americano. E sempre teve. Quando essa frase foi cunhada ela não incluia os escravos e todo mundo sabe disso. Todo mundo sabe que essa frase foi escrita por um dono de escravos. Eles falam “ser humano”, mas pensavam em “homem branco”, e todo mundo sabe que foi assim que eles escreveram e isso que eles queriam dizer com essas palavras.
Resumindo essa parte: o Jeito Americano era o slogan para fazer o povo acreditar nas ações dos EUA na Segunda Guerra Mundial, era uma propaganda governamental feita pra fazer o povo ver ética e moral por trás de como o país lidou com a guerra. E isso inclui a maneira como cidadãos americanos foram tratados como inimigos do próprio país pela sua raça. E inimigos do Jeito Americano.
O Jeito Americano e a propaganda massiva da indústria do entretenimento em pintá-lo como a antítese do nazismo e o adversário final do nazismo, é parcialmente responsável pela maneira como uma parte considerável da população estadunidense associa a derrota de Hitler, a libertação dos campos de concentração e a derrota da Alemanha, à entrada dos Estados Unidos na guerra. Quando foram as forças soviéticas que de fato invadiram Berlim, libertaram os campos de concentração e protagonizaram a derrota das forças nazistas.
A cultura pop alimenta a noção de que Hitler teria dominado o mundo e quase conseguiu, mas os EUA chegaram na hora H. Mas os EUA tiveram durante a segunda Guerra Mundial mais batalhas, ataques e ação no Japão do que tiveram na Alemanha. E essa propaganda mascara os crimes de guerra cometidos contra os japoneses, que incluem incendiar cidades e especialmente, incluem as duas bombas atômicas. Que até hoje muitos cidadãos americanos são educados a achar que foram um mal necessário.
Tudo isso é parte do que significa o uso da palavra “O Jeito Americano” quando usada no contexto da Segunda Guerra Mundial. E o Superman foi parte disso. Ele foi usado como personagem como parte direta dessa propaganda. E o slogan “verdade, justiça e o jeito americano” foi criado pra fazer parte dessa propaganda… Essa frase existe como parte dessa propaganda, e foi mantida depois que a guerra acabou, pois não tinha nenhum envolvido nas histórias dele que achavam que existia algo negativo em nada disso.
E isso inclui Siegel e Shuster. Que acreditavam no Sonho Americano, mesmo que a história de vida deles tenha feito eles apanharem do sonho americano, ter o direito de seu personagem tomado deles, passarem anos lutando por créditos de terem criado um icone nacional e morrerem sem dinheiro. Mas eles acreditaram no sonho. Tanto quanto acreditavam no Presidente da Justiça Social que também era o presidente dos campos de concentração em solo americano. Campos de concentração que eram justificados pelo aumento do racismo nos EUA, que o Superman foi usado pra ajudar a difundir esse racismo.
E assim. Eu resumi algo que rolou nos seis primeiros anos de existência do personagem. O primeiríssimo Superman. A primeira coisa pra qual a sua popularidade foi usada. O pontapé inicial que formaria a base de como ele pode influenciar leitores e usar a mídia.
Quando a gente fala do status de símbolo dos EUA que heróis como Superman ou o Capitão América ou qualquer um desses que se vestem de vermelho e azul e posam na frente da bandeira estadunidense, os fãs dos heróis rapidamente respondem que eles não defendem as ações do governo, eles defendem aquilo que o governo deveria ser. Que eles defendem os Estados Unidos idealizados, o que o país seria se os ideais fossem verdadeiramente postos em prática.
E eu pessoalmente acho que quando o debate faz o fã de um super-herói repetir a expressão “Vida, liberdade e a busca por felicidade” quotando a Declaração da Independência dos Estados Unidos, é que a propaganda está completa. Pois faz o fã mais consciente dos defeitos dos EUA, seguir vomitando que a retórica dos Pais Fundadores é a base dos EUA, e que é daora o Superman e o Steve Rogers seguirem verbalizando que eles lutam por isso.
E essa retórica do patriota que concorda com os ideais do país e não necessariamente com o governo é tipo a retórica mais fácil do mundo de um estadunidense usar. Afinal, esse é um país que tira muito de sua identidade de uma guerra civil. Em que o grupo que está no governo 50% das vezes tem muito orgulho até hoje de ter pegado em armas pra lutar contra o grupo que está no governo os outros 50% das vezes.
E assim como falar “eu amo essa bandeira mesmo se eu não amar o presidente.” continua sendo propaganda estadunidense. Xingar o presidente, ou o governo em um filme não realmente é criticar os Estados Unidos e aquilo que a bandeira representa. Muitas vezes filmes como Captain America: Winter Soldier ou Suicide Squad são vistos como filmes críticos aos Estados Unidos, por apontar que o governo tem podres. Mas esses filmes são filmes de propaganda estadunidense clara.
Enfim, outro ponto importante de se apontar do Superman e sua relação com os EUA, é o fato dele ser um imigrante. E eu não digo como se ele fosse uma metáfora complexa pra imigração. Ele é um literal imigrante. Ele é reconhecido in-universe como um imigrante.
E eu levanto esse ponto, pois existem leitores que acreditam que por ser um imigrante, ele representa algo positivo que vai contra a narrativa do excepcionalismo americano. Afinal O campeão dos Estados Unidos e o Campeão dos Oprimidos não é um estadunidense. Que isso vai na direção oposta do racismo e xenofobia que existem no país e ajuda a combatê-la.
Só que essa leitura ignora um fato importante. Que os Estados Unidos, em sua narrativa da grandeza do país, se vê como uma terra fundada por imigrantes, para outros imigrantes. Que imigrantes são o motivo por trás da grandeza da nação e isso é uma das grandes marcas do nacionalismo estadunidense que existe.
O Hamilton era um imigrante, e enfatizar isso torna sua biografia musical Hamilton algo que teve um peso tão forte em reafirmar o orgulho pela fundação do país em sua audiência. O Fievel é um ratinho imigrante protagonizando um filme animado sobre a fundação da terra da liberdade.
O Tio Patinhas (Scooge McDuck) é um imigrante que se tornou rico nos EUA por acreditar no sonho americano, e provou que ele funciona, basta ser mais durão que os durões e mais esperto que os espertos.
Em 12 Angry Men, o filme é interrompido para um personagem imigrante falar do que é que torna os Estados Unidos um país tão excepcional e justo. A Democracia, a maravilhosa democracia estadunidense que ele presumidamente não tinha em seu país de origem.
Imigrantes são e sempre serão os melhores protagonistas para se defender o espírito estadunidense e se vender o Sonho Americano.
E esse impacto do Superman é usado dentro das histórias. Em Young Justice, Zatara fala sobre como o Superman sendo um imigrante o inspirou a virar um super-herói e defender seu país adotivo da mesma maneira que o Superman faz
De tempos em tempos alguém imagina como seria uma história se a nave do Superman tivesse caído em outro país. A maioria dessas histórias são histórias de Superman do Mal, em que ele vira um símbolo nacionalista da ideologia local, e sendo essa ideologia totalitária, ele vira um ditador terrível e uma ameaça ao planeta.
As que fogem dessa ideia, podem vender um Superman inapto, alguém bem-intencionado, mas incompleto, vivendo uma cultura que não faz ele se sentir confortável usando seus poderes. Mas o importante é que mesmos os Supermans que são pessoas boas mesmo tendo sido criadas fora dos EUA, ainda vestem a bandeira de seu país no uniforme pra nos lembrar que ele sempre é um reflexo da identidade nacional de onde ele foi criado.
Afinal, ter sido criado nos EUA, tornou ele bom. Se ele fosse criado longe dos EUA, ele teria muitos obstáculos pra ser capaz de fazer o bem, longe dos valores de ética e moral que deveriam guiar o planeta.
Os gibis do Superman não exatamente evitam entrar no assunto: “E o Presidente dos Estados Unidos, hein?”, ele encontrou com Franklyn Roosevelt, quando este fundou a Sociedade da Justiça da América, numa época em que o Superman era um membro do time (isso foi retconado depois, pra ele nunca ter sido parte do time). Ele contracenou com o presidente Kennedy, numa história que foi polêmica. Na história ele revela sua identidade secreta pro Kennedy e fala “se eu não posso confiar no presidente, em que eu vou confiar?”
Roosevelt e Kennedy eram presidentes admirados pela equipe que fazia o Superman e eram vistos como progressistas dentro dos Estados Unidos.
Lex Luthor, o arqui-inimigo de Superman foi eleito o presidente dos Estados Unidos no ano 2000, sucedendo Bill Clinton e fazendo ele ser o equivalente do universo DC ao George W. Bush. Naturalmente essa decisão criativa foi feita antes do atentado às Torres Gêmeas e à Guerra ao Terror, mas depois que aconteceu, títulos diversos da DC, não necessariamente só o Superman, usavam a vilania do Lex pra por na conta dele algumas políticas arrombadas do Bush, em particular, o ato patriota.
Em celebração à eleição do Obama, foi criado um Superman alternativo pro multiverso da DC, pra ser o Superman do universo 23. Seu nome é Calvin Ellis, ele é um dos Supermans negros, que são três, se eu não me esqueci de ninguém, e ele é o primeiro presidente negro dos Estados Unidos, e o melhor presidente da história também. Enquanto ele protege a população diretamente enfrentando o mal, ele administra a economia dos EUA de maneira brilhante, e o melhor. Ele vai pessoalmente até a Bialya, o país da DC do Oriente Médio pra lidar com o ditador terrível dessa terra.
Verdade Justiça e o Jeito Americano…. O Jeito Americano não precisa representar o presidente que os roteiristas não gostam, mas as vezes representa os presidentes que eles gostam. A gente faz um esforço pra separar essas coisas, mas eu não acho que elas são separáveis de verdade.
O Superman precisa ser um reflexo do espírito dos Estados Unidos, e quando alguém escrevendo achar que o presidente é também, o que convenhamos, é inevitável acontecer eventualmente, eles se alinharão. Agora o Superman precisa mesmo ser um reflexo desse espírito? Ele definitivamente precisa.
Na Action Comics #900, publicada em 2011, o Superman visita o Irã durante um protexto contra seu governo ditador. Ele não participa do protesto, mas uma vez ali, a presença dele inevitavelmente se torna uma participação do protesto. Quem veio protestar se ajoelhou ao Superman e deu flores pra ele. E pessoas foram a rua pois viam que tinham o apoio do Superman, mesmo o próprio não fazendo nada…
…a situação se torna um incidente internacional, em que a interferência do Superman é interpretada pela comunidade internacional como uma interferência dos Estados Unidos na situação no Irã. Um agente da NSA reclama com o Superman que o que ele faz fora dos Estados Unidos tem impacto diplomático. O Superman fala que o agente tem razão, que ele não pensou na consequência de suas ações, e que ele quer resolver isso abdicando de sua cidadania americana.
Ele fala “Verdade, Justiça e o Jeito Americano já não são mais o suficiente.”
Essa edição foi extremamente polêmica, e acusada de ter feito o Superman atacar diretamente os Estados Unidos da América.
O que não é o que o seu roteirista achou que estava fazendo, ele achou que estava deixando claro que o Superman estava fazendo um sacrifício pra poder ajudar o governo. Mas não. O povo achou que foi o Superman sendo anti-EUA.
Os editores da DC na época, Jim Lee e Dan Didio precisaram ir pro jornal falar que o Superman sempre vai representar o melhor do Jeito Americano. O editor Matt Idelson veio a público falar que essa história não era canônica, não pertencia a continuidade do Superman, e esclareceu que na perspectiva pessoal dele gibi não deveria lidar com política.
Então é. A gente na internet vai encontrar o tempo todo e falar “você não pode ler o Superman falar do Jeito Americano e interpretar que ele representa o país de verdade, é só jeito de falar, ele fala só de uma utopia, ele não é parte das políticas do país.” e a gente precisa parar com isso. Ele não é necessariamente parte das políticas do país, depende do roteirista e depende das políticas. Mas ele é um ícone dos Estados Unidos, e o dia que ele decidir ser “cidadão do mundo” de verdade, os fãs vão botar fogo no prédio da DC. Mas os fãs estão confortáveis com a ideia de que ele pode só ir pra qualquer país e espalhar o jeito estadunidense por lá sem ser pra ser educado em perspectivas e visões de mundo que desmintam seus pais no Kansas. Afinal os estadunidenses já acham que o mundo é deles pra espalharem seus valores sem aprender os valores do resto do mundo.
Exceto é claro…. Naquela implicação de que o mundo é subordinado aos EUA e todo estadunidense é um cidadão do mundo, pois eles podem invadir qualquer país, construir McDonalds onde quiserem, e tudo que é estadunidense tem impacto global por existir na capital do planeta… nessa perspectiva ele já é um cidadão do mundo.
E, sério, eu pessoalmente acho que tem muito de “não coloquem política no meu gibi”, no ato de tentar negar que “Jeito Americano” possa carregar conotações complicadas quando dito pelo Superman. Que essa expressão não tem lado negativos.
E nossa, isso tomou um teco gigantesco do texto. Vocês entraram aqui querendo ler sobre o Superman do Mal, então vamos falar sobre o Superman do Mal.
E o Superman do Mal, hein?
Podemos dividir o Superman do Mal em essencialmente três categorias.
A primeira é a dos clones do Superman. Aqui temos exemplos como o Bizarro, um literal clone defeituoso do Superman famoso por alguns poderes invertidos, um S ao contrário no peito e por sua desinteligência. Temos também o Cyborg Superman, um astronauta que após um acidente foi reconstruído com o DNA do Superman e partes mecânicas, e quer destruir a reputação do Suprman. Ou Superman Zero, o clone do Superman criado pelo governo Chinês, para poder dominar o mundo.
Mas essa primeira categoria também abrange pessoas sem semelhança genética nenhuma com o Superman que tenham em algum momento cogitado substituir o Superman, como, por exemplo, o Lex Luhor. A ideia é que todos são versões alternativas e vilanescas do Superman que coexistem com o próprio Superman em seu universo.
A segunda categoria é a de Supermans do Multiverso. Histórias que se passam em uma realidade alternativa, um elseworld, um what if, e nesse mundo, o Superman não passou pelas mesmas situações que o Superman tradicional passou, e eventos diferentes em sua vida inclinaram ele pro mal. Isso inclui o Ultraman, o líder do Sindicato do Crime, inclui o Superman comunista de Red Son, inclui o Overman, o Superman nazista que cresceu na Alemanha de Hitler, inclui o Superman de Kingdom Come, que não é do mal de verdade, falarei disso daqui a pouco, inclui o Superboy-Prime e inclui o Superman de Injustice: Gods Among Us,
E também inclui por default qualquer Superman do Mal de uma adaptação, pois toda adaptação existe em um universo alternativo por default. Então aqui inclui o Superman da pintura de Roger Shimomura, ameaçando a avó dele.
E inclui o Superman do Zack Snyder, que apesar de não ser o vilão do filme em nenhum dos três filmes, é constantemente lembrado pelo público como um exemplo do Superman do Mal e será tratado nesse texto como tal.
E em terceiro, são quando fazem uma história que seja uma sátira aos super-heróis, ou uma crítica ou uma desconstrução, ou seja lá do que quiserem chamar. E aí os personagens desse universo são muito claramente construídos nos arquétipos dos mais famosos personagens da DC e da Marvel, e um deles, um antagonista em destaque, seria uma homenagem ao Superman. Nessa aqui eu vou falar somente do Omni-man de Invincible e do Homelander de The Boys.
Mas existem o Captain Hero de Drawn Together e o Captain Sunshine deVenture Bros, eles só não vão agregar muito a conversa.
Existiria uma quarta categoria que seriam “histórias em que o Superman sofre lavagem cerebral” ou outras formas de temporariamente corromper o Superman, mas dessas eu não vou falar. Acho que elas não adicionam muito ao debate, pois não levantam a pergunta sobre o que leva o Superman a tomar as decisões que ele toma. É só ele não tendo controle sobre nada, então quem ele é não faz mais a diferença.
Mas o primeiro de todos os Supermans do Mal, foi o Bizarro. Criado em 1958. O que significa que desde 66 anos atrás, já estamos imaginando como seria o Superman se ele fosse do mal. É um dos princípios por trás da criação do Bizarro.
Depois em 1964 foi criado o Ultraman e com ele, o Sindicato do Crime, o equivalente da Liga da Justiça da Terra-03, uma terra onde tudo aconteceu ao contrário, os EUA colonizaram a Inglaterra, o Lincoln matou o John Wilkes Booth e os heróis cresceram do mal. Nos Estados Unidos reversos em que os maiores heróis nacionais são vilões, o Superman é um vilão.
Mas apesar desses dois exemplos o tropo demoraria pra virar uma moda imensa com exemplos chovendo. Na metade dos anos 1980, duas histórias em quadrinhos fizeram um sucesso absurdo que meio que ditaram o ritmo em que a banda tocaria por muitos anos. Uma era Watchmen do Alan Moore, uma cínica sátira dos super-heróis que retrata eles como vigilantes terríveis, cheios de defeitos em um mundo sem heroísmo, com somente peças sendo exploradas pelo bem da guerra fria e do medo da explosão nuclear iminente.
A outra era The Dark Knight Returns do Frank Miller, que essencialmente codificou toda a ideia do Batman edgy, sombrio e fedido que apesar de ser só um humano de armadura, daria um cacete no Superman pois ele é brabo. Nessa história o Superman é retratado como alguém que merecia o desprezo do Batman por ser um cachorro adestrado do Reagan, que controla a mídia pra decidir o que pode ser dito e o que não pode ser dito sobre o Superman.
O que é louco, pois no mesmo ano que saiu The Dark Knight Returns, saiu um gibi de super-heróis protagonizado pelo próprio Reagan que usava com muita força a iconografia do Superman pra vender o então presidente e seu vice como heróis estadunidenses.
Uma crítica comum no meio é que Frank Miller não entende o Superman por ser um imbecil da extrema-direita. Frank Miller é de fato associado ao anarco-capitalismo e acredita que isso não é ser de esquerda nem de direita.
Mas essas histórias lançadas em 1985 e 1986 respectivamente ajudaram a transformar o resto da década e os anos 1990 no festival de cinismo, celebração de anti-heróis e tentativa de fazer as histórias parecerem muito adultas com violência que são os elementos pelo qual a década é lembrada hoje.
Dito isso alguns fãs de quadrinhos gostam de falar dos anos 1990 e desse tom pesado, dark e sem esperança, como se fosse um fenômeno muito local de coisas que rolaram nos quadrinhos por culpa de quadrinistas que fizeram besteira… algo isolado do sentimento nacional.
Sendo que esse sentimento que fez o Venom virar um grande anti-herói em destaque, o Lobo ser enfiado em tudo que a DC conseguia, e a galera começar a retratar o Wolverine em seu lado mais violento como a alternativa maneira e fodona ao Ciclope, era literalmente o reflexo do sentimento nacional.
Vamos abrir um parêntese aqui: O que foram os anos 1990?
Lembra que eu falei lá em cima que o preço do Jeito Americano era depois gerar a Desilusão Americana quando o sonho acabasse? Os Anos 1990 foram isso com força. O fim da Guerra Fria gerou um sentimento ruim no povo de que eles venceram. Eles venceram os nazistas, eles venceram os comunistas, eles passaram o século inteiro matando os inimigos e agora que não tem mais inimigos pra matar, eles estavam todos presos em uma distopia, um país movido a ganância e a corrupção. E não era mais culpa dos japoneses nem culpa dos russos, era culpa do país. Todo mundo estava preso em um emprego merda sem perspectiva de melhorar de vida. E essa vida de merda era o conceito de vitória. Era pra isso que eles lutaram pelo século todo.
Na música explodiu o grunge, um gigantesco burnout em relação a sociedade, preocupado com causas sociais, mas apático quanto a capacidade das coisas melhorarem. E onde não era o grunge era o Marilyn Manson que também explodiu com sua própria imagem de cinismo pelo mundo.
Hollywood estava transbordando de cinismo. Unforgiven, em 1992 pegou a imagem co Cowboy, um símbolo importantíssimo pra identidade estadunidense e jogou na cara do público que eles não foram heróis que fundaram um país baseado em justiça e liberdade e na verdade, eles foram um grupo de assassinos, sem moral nem justiça, que foram considerados heróis por terem atirado melhor que os outros assassinos. The Player no mesmo ano foi sobre como a indústria cinematográfica é um lugar perverso, onde uma pessoa se safa de qualquer crime e onde falta de senso moral é recompensada com sucesso e dinheiro. Chinatown revelava que o detetive durão tornado clássico pelo Humphrey Bogart, só podia existir olhando pro outro lado e deixando os pedófilos assassinos impunes, pois a cidade depende do dinheiro das empresas deles.
Hollywood, Cowboys, Detetives, eles não eram a fonte de novos heróis, eram a fonte do mal.
Em 1992 Mike Tyson, campeão mundial dos pesos-pesados de boxe e ícone do esporte dos anos 1980, foi pra cadeia por acusações de estupro. Ele foi condenado a 6 anos, saiu em 3, recuperou sua carreira no Boxe, onde foi protagonista do momento infame em que ele arrancou a orelha de seu rival a mordidas em 1997, teve a sua licença de Boxe removida e perdeu a carreira pra sempre.
Em 1993 o ícone da juventude, modelo para as pessoas e grande símbolo do que foram os anos 1980 recebeu a sua primeira de várias acusações de pedofilia e abuso sexual. O que desapontou um número grande de pessoas que via nele um símbolo importante. Os casos não foram pro tribunal pois Michael Jackson pagou os pais das crianças.
Também em 1993 o diretor de cinema Woody Allen foi processado por acusações de ter cometido abuso sexual com sua enteada o que também foi um assunto gigantesco. O processo ocorreu na época em que descobrimos que Allen estava tendo sexo com sua outra enteada,, com quem ele se casou em 1997. O julgamento considerou Woody Allen inocente.
Em 1994, um herói americano, exemplo nato do Sonho Americano e do que torna o país grande, OJ Simpson, se revelou um assassino, matando sua esposa e o amigo dela. Seus heróis são assassinos por baixo dos panos, e o pano foi levantado. OJ foi inocentado, pois a defesa convenceu o juri de que a polícia não tinha mais credibilidade pra levantar provas depois de todos os inocentes que ela prendeu, matou e espancou sem motivo. Policiais não eram mais heróis.
Os grandes heróis nacionais eram assassinos e estupradores. Ninguém podia ser confiado, e todos os processos não davam em absolutamente nada, pois a justiça não existe, é o que permite que todas as celebridades sejam criminosos hediondos se fingindo de ícones populares.
Depois de 13 anos de republicanos no governo considerando a AIDS uma punição divina contra os gays, e não contendo a epidemia, um presidente democrata quase sofreu impeachment, não pelas suas diversas decisões de arrombados em políticas racistas ou bombardeios de outros países, mas por um boquete que ele recebeu. O único real crime que um presidente pode cometer é chifrar a esposa, e se não for isso tudo é permitido.
Em 1994, Patrick Boyle publicou o livro A Scout’s Honor sobre a The Boys Scouts of America. A organização dos escoteiros, e uma das instituições mais respeitáveis dos Estados Unidos pela sua moral inabalável e por ser pra onde as crianças vão aprender sobre ética, começou a receber denúncias de abuso sexual, e foi revelada uma relação desconfortável entre a organização e a pedofilia, uma relação que nunca realmente enfraqueceu até o ano de 2020 quando a organização declarou falência.
Em 1996, a revista Life Magazine publicou uma denúncia forte sobre o trabalho infantil e trabalho escravo em países de terceiro mundo que eram a base pra fabricação dos tênis da Nike. O que é algo que tinha sido denunciado já em 1991, mas que a denúncia de 1996 veio com uma foto impactante de uma criança paquistanesa costurando uma bola. Essa denúncia fez a Nike pressionar seus principais nomes a virem a público negar e mentir e afirmar que essas crianças não existe. Incluindo Michael Jordan, um dos grandes heróis da juventude dos anos 1990, que associava sua fama a um par de tênis da Nike, também feitos pela mesma mão de obra escrava infantil.
A parte podre e suja dos EUA estava escancarada na mídia, e ninguém conseguia falar “Mas esse é o sacrifício que estamos fazendo pra salvarmos o mundo do comunismo no futuro”. A vitória já tinha acontecido. Aquele já era o amanhã pelo qual o país lutou, e o pior, a noção de futuro era desastrosa.
Os religiosos tinham certeza de que na virada do milênio viria o apocalipse. E os cientistas em vez de tentar falar que os pânicos causados por religião não tem base científica, que é o trabalho que esperamos deles, arrumaram um motivo pra falar que sim, a ciência comprovava que a virada do milênio teria o apocalipse.
E pra quem não acreditava no Bug do Milênio nem no Apocalipse, já estava devidamente disseminado o medo do aquecimento global, um que jamais foi desmentido e segue sendo uma perspectiva palpável de fim da humanidade pra nós, uma cada ano mais presente nas nossas vidas.
Agora. Eu falei lá em cima que a desilusão era a conta chegando depois de décadas sendo vendida a mentira do Jeito Americano, do Sonho Americano e do Excepcionalismo Americano! E quem alimentou essa mentira? Os heróis! Não os super-heróis exclusivamente. Os cowboys, celebridades, detetives e astros de todo o entretenimento. E isso inclui o Superman, mas inclui essencialmente toda a turma da televisão. Motivo pelo qual muito do cinismo era direcionado para a televisão.
Nos anos 1990 era muita gente que não tinha mais paciência pra um herói e que queria que a mídia parasse de passar uma imagem bonita de como o mundo podia ser, e passasse uma imagem suja e feia de como o mundo realmente era. Sitcons fofas com morais da história bonitas foram substituídas pelos Simpson e por Seinfeld. Shows que não são baseados em uma ideia de que a moralidade triunfa, mas sim de que o mundo é maluco e a vida segue.
Filmes sobre para de viver num mundo de ilusões criado pelo capitalismo, e tentar encontrar um mundo real pra poder viver viraram marcos do cinema.
O American Rage explodiu. E o American Rage foi muito sobre como a desilusão nacional criou uma crise de masculinidade problemática de homens precisando se afirmar homens em um país que emasculava eles com o fracasso do Sonho Americano. E se você se pergunta por que nessa época os quadrinhos tinham homens musculosos demais e mulheres sexualizadas demais, tá aí a resposta.
Então quando as HQs começaram a fazer heróis mais brutos, escalas de cinza, e histórias sem esperança, por volta desse período de tempo, acreditem, não é uma decisão editorial gerada só porque engravatados não entendiam as trends…. Nem uma tentativa barata de alavancar vendas apelando pra algo alien. Embora em todo o mundo do entretenimento em todas as mídias tenham tido pessoas tentando faturar em cima da desilusão alheia.
O Alan Moore, que estava cantando sobre o iceberg desde antes do Titanic se chocar descreveu perfeitamente em Watchmen. O Coruja, que acreditava ainda em algum idealismo se viu do lado do fascista Comediante, que vestia a bandeira estadunidense e atirava no povo que fazia um protesto. Incrédulo ele pergunta: “O que aconteceu com o Sonho Americano?” e o Comediante responde: “Ele virou realidade, você está olhando pra ele.”
A desilusão não era somente uma demanda de mercado que a audiência cansada de ver a mídia mentir sobre o Sonho Americano pediu. Era isso também. Mas era algo que os próprios artistas estavam sentindo. Muita gente que batia cartão tava perdido e sem fé, e existia a demanda de não consumir mais mentiras de que viviam em um país legal onde tudo ia melhorar desde que fossem bons estadunidenses. Aliás, a demanda de “não consumir mais mentiras” estava tão forte que depois de 40 anos da televisão como a mídia dominante, ela foi e inventou o “Reality Show”, como um tipo de programa revolucionário que tentou passar a impressão de não ser uma mentira, mesmo sendo tanto quanto ficção.
E nesse tipo de cenário social? Que tipo de histórias era possível contar com o Superman, com o grande símbolo de que a esperança nunca vai morrer desde que a gente siga o Jeito Americano?
O Superman morreu! Nessa época, em 1992, o Superman foi assassinado pelo Apocalipse. Era esse o tipo de história que fazia sentido com o sentimento popular da época.
Voltando ao Superman do Mal:
Enquanto Superman estava morto, foi introduzido esse vilão, chamado Cyborg Superman, com o objetivo explícito de usar a sua semelhança com o herói pra sujar sua reputação. E em paralelo, em 1995, a DC lançou uma história em universo paralelo chamada Kingdom Come. E Kingdom Come não é uma história em que o Superman é do mal, mas eu coloquei na lista mesmo assim. Igual o Superman do Zack Snyder não é “do mal”, mas ele é uma versão sombria do personagem que pertence a conversa. Especialmente porque Kingdom Come foi quem estreou e fixou alguns dos tropos mais comuns na hora de se fazer o Superman mau.
Como matar a Lois Lane para fazer ele abandonar o super-heroismo, o uso do Batman como alguém que observa o Superman se afastando de morais importantes e corta relação com ele, da liga da justiça indo na onda de qualquer ideia anti-ética que o Superman tiver, pois confiam no Superman, o envolvimento do Superman com autoritarismo e flertando com a dominação global, e uma versão brutal da Mulher Maravilha pra tentar convencer o Superman a mudar suas morais.
É essencialmente o Injustice que puxou o freio de mão antes do Superman ir longe demais.
Porém é sobre essas ideias pressionando e tentando o Superman a vilania, mas ele não sucumbe a elas. Na história, o Superman se aposenta da vida de super-herói e larga tudo por dez anos, após o trauma da morte de Lois Lane. Mas na sua ausência, que por sua influência e impacto social, se tornou a ausência de toda a Liga da Justiça que sumiu dos olhos públicos, esses dez anos foram dominados por heróis sociopatas que faziam mais mal que bem e que tornava impossível distinguir herói de vilão. A Mulher Maravilha convence o Superman a sair da aposentadoria, e ele sai dando um chutão da porta e pondo ordem na casa.
Em uma coletiva na ONU, ele declara que todo herói do planeta agora ou ia seguir diretrizes claras impostas pelo Superman ou ia ser retirado de circulação, palavra que aqui significa “ser colocado em um gulag”. Fica claro que o Superman seria o líder de todos os super-heróis do planeta e coordenar como eles agiam com punho de ferro.
O plano não funciona bem, pois mesmo no gulag, os heróis violentos e cuzões se recusam a dar autoridade ao Superman, fazem caos, e continuam a ameaçar o mundo, gerando pressão de uma resposta. E nesse momento a Mulher Maravilha fala que chegou o ponto em que o Superman só vai conseguir impor sua autoridade fazendo alguém servir de exemplo das consequências máximas da desobediência.
Superman se recusa até o fim a matar esses heróis, insistindo em só usar os gulags, e a pressão da Mulher Maravilha, que agora usa uma armadura com um lenço que é a literal bandeira dos Estados Unidos. Digo, ela sempre vestiu as cores e as estrelas da bandeira, mas agora era pegar a literal bandeira e amarrar no uniforme quando diz que Superman só será um líder eficiente se começar a matar gente e aprender a se impor. Superman insiste em se recusar.
Mas eram um problema que Superman não conseguiu conter e a história termina com as Nações Unidas, usando armas nucleares pra matar todos os presos rebeldes dos Gulags do Superman e ele sendo incapaz de salvá-los. Em resposta Superman declara à ONU que ele nunca mais tentará liderar a humanidade.
Depois de Kingdom Come veio o episódio Brave New Metropolis, na série animada do Superman em 1997, em que Lois Lane viaja pra outra dimensão e descobre que naquela dimensão Superman é um ditador fascista que mantém um controle totalitário em Metrópolis em uma aliança com Lex Luthor, mas sendo secretamente manipulado por Lex. Ela também descobre que naquela dimensão Superman se tornou um ditador motivado pela morte de Lois.
Superman: Dark Side, em 1998, uma reimaginação em que a nave do Superman caiu em Apokolips, e foi criado por Darkseid. Ele cresce como um vilão, mas revê seus ideais, depois de cair na Terra durante suas vilanias, onde ele tem uma mudança de coração ao ver a atitude dos humanos e depõe Darkseid.
Em 2000, foi publicada a história What’s So Funny About Truth, Justice and the American Way. Em que um grupo novo de vigilantes, chamados A Elite, pressionam Superman a abandonar suas morais e matar criminosos. Superman não cede até o final e se mantém firme aos seus ideias, fazendo um comentário forte sobre a crença de que heróis são mais eficientes quando matam e afastando o Superman canônico de toda a moda dos anti-heróis que dominou os quadrinhos.
Os fãs de quadrinhos nessa época estavam muito presos ao debate de que herói que não mata é bobo e tem cara de melão e herói que mata é mais cool e radical. E esse debate existe até hoje, e essa história responde esse debate. E prova que o Superman não precisa ser sombrio, pra suas histórias serem sombrias. Mas esse debate não é a única coisa que direciona debate moral em uma história do Superman.
Em 2002 foi publicada a história What Can One Icon Do?. Nessa história um personagem chamado Muhammad X, um militante negro fervoroso faz duras criticas ao Superman, quando avista esse no Harlem, em Nova York. Ele afirma que no Harlem não tem super-vilão, nem super-cientista, só a parcela da população que ele ignora. A história é sobre o Superman se perguntando se ele é branco demais pra ser um símbolo que possa trazer esperança pra vítimas do racismo, populações marginalizadas e tal, e termina com ele fazendo um discurso pra Muhammad X sobre não poder evitar ser branco, mas fazer sue melhor pra ser humano, e Muhammad responde “foda-se”.
Duas histórias cânon, as duas ficam do lado do Superman, e as duas elevam a moral do Superman, apesar de usar personagens novos pra fazer a ele críticas que ele recebia de determinados leitores. São histórias que reforçam os valores do personagem, reconhecendo que esses valores estão sendo debatidos. E histórias que se perguntam como o Superman vai lidar com a ideia de que o mundo não é mais simples como era na época em que ele foi criado.
E aí veio 2003.
E 2003 é o Grande Ano do Superman do Mal.
Em 2003 é publicado Red Son. Uma história em um universo alternativo em que o Superman caiu na Ucrânia e não nos EUA. Na história o Superman cresce conectado com o regime soviético e Stalin e em seu patriotismo se torna uma figura relevante em lutar pela expansão do regime, ao ponto que na morte de Stalin ele se torna o ditador da União Soviética.
Na história seu arquirrival é Lex Luthor, que nesse universo, pra disputar com Superman, se torna o presidente dos Estados Unidos. E como é uma história sobre o bem vencendo o mal, e esse Superman é um comunista, e portanto do mal, a história conclui com Luthor vencendo Superman. Ele primeiro prova de maneira clara para o Superman que este é do mal e faz ele perceber que os valores que ele cresceu achando bom eram uma mentira, pois ele era comunista. E depois arma uma armadilha que obrigue Superman a se suicidar pra salvar a humanidade, eliminando o rival.
E sem o Superman em seu caminho, Luthor se torna o melhor presidente do mundo, transformando o planeta Terra em uma utopia.
En 2003 também, saiu JSA: The Unholy Tree, uma história, em que o General Zod, reencarna no bebê kriptoniano enviado pro Kansas, fazendo os Kents criarem Zod em vez de Kal-El. Zod no corpo de Superman cresce pra se tornar um agente dos EUA e uma força letal de espionagem que invadia o lado comunista na Guerra Fria e matava os russos. Ele acaba morto pelo Batman desse universo que também era um agente do governo.
E em 2003 saiu a história em quadrinhos Invincible, que mostra um mundo em que super-heróis são lugar comum, com um elenco visivelmente inspirado nos figurões da Marvel e da DC, mas em que o equivalente deles do Superman é um sociopata violento. Um colonizador de seu planeta natal que quer expandir seu império até a Terra.
A história é notória pelo uso de violência e por tentar enfatizar a brutalidade que seria a vida de um super-herói com um pouco mais de realismo, desconstruindo alguns aspectos mais bonitos do gênero. Mas reconstruindo no sentido de que ainda é uma história de super-herói em que as virtudes do protagonista são enfatizadas. Virtudes inclusive parecidas com as virtudes do Superman. Mas com fracassos, com rastros de sangue em seu fracasso e com outro espelho do Superman mostrando um lado negro do seu poder e do mundo dos super-heróis.
E em 2003 saiu A Better World, da série animada da Liga da Justiça. Um episódio duplo, em que em outra dimensão, uma versão alternativa da Liga da Justiça, chamados de Lordes da Justiça, dominam os EUA com um punho de ferro em uma ditadura comandada pelo Superman. Quando eles descobrem que a dimensão que nós acompanhamos na série existe, eles decidem invadi-la e consertá-la, espalhando a noção de justiça deles aonde ela não existe.
Uma cena que me chama a atenção nesse episódio é quando o Lanterna Verde do Mal e a Mulher Gavião do Mal vão oprimir um grupo de estudantes fazendo um protesto. A Mulher Gavião está desconfortável com isso, mas o Lanterna Verde explica que terror de verdade era viver na Guerra Fria, e que agora o mundo era melhor, então está tudo bem. Nos lembrando que essa violência contra os estudantes, eram uma das consequências da vitória do bem contra o mal.
É a cena do Comediante e o Coruja de novo. Opressão ao povo é o Sonho Americano depois que ele se realiza e os inimigos nacionais são derrotados.
Em outra cena, o Flash do Bem e o Batman do Bem, estão capturados no quartel-general dos Lordes da Justiça. O Flash comenta que eles foram longe demais, e o Batman responde: “Não é tão longe assim do que o que a gente já faz”. Certamente virar um ditador é ir longe demais, mas quantos passos de distância foram necessários pra ir de vigilante pra ditador? Não seria algo que só seria possível porque eles já eram vigilantes?
. O episódio conclui com Superman do Bem fazendo uma aliança com o Lex Luthor de seu mundo. Superman convenceu o presidente a dar um perdão completo a todos os crimes de Luthor, se em troca Luthor usasse suas armas anti-Superman pra deter os Lordes da Justiça. Luthor honra seu acordo e ataca somente a Lordes da Justiça e permite que Superman dê sumiço em suas armas, honrando sua palavra.
Mas o Superman do Mal vai embora com um aviso, ele grita que Superman ao decidir perdoar, se torna responsável por todos que ele perdoa. E que agora todo crime que Lex Luthor cometer no futuro seriam de responsabilidade de Superman não ter sido duro com ele e não tê-lo matado. Após isso o Superman do Bem vê a bandeira dos Estados Unidos derrubada no chão a reergue e a encara, pensativo e sério.
E o episódio conclui com Luthor dando uma coletiva que ele não voltará pras más práticas criminosas de seu passado, que em vez disso ele vai entrar na política. Talvez Superman do Bem tenha cometido um erro? Bom ele passa um longo arco tentando consertar esse erro.
Loucura, tudo isso no mesmo ano. Todas imagens de um Superman sendo associado a ditaduras, ao expansionismo, e a uma ideologia de que a grandeza de um povo deve ser trazida aos outros povos á força.
Por incrível coincidência, 2003 é o ano também, em que depois de muitos e muitos meses de antecipação, os Estados Unidos começaram a Guerra ao Iraque e oficializaram que sua ocupação no Oriente Médio não seria somente uma vingança pelo 11 de Setembro e uma caçada ao Bin Laden, mas incluiriam uma caçada ao Eixo do Mal, e uma missão divina de eliminar o mal no Oriente Médio.
A Guerra ao Terror foi notória por uma cobertura televisiva sem precedente em relação às Guerras do Século XX, em que era muito fácil ver a atrocidade da guerra trazida pelo discurso nacionalista, e ver isso trouxe muita visibilidade pros aspectos negativos do fato dos Estados Unidos terem passado as últimas décadas se considerando a Polícia do Mundo.
Mark Millar, o escritor de Red Son afirmou na época de lançamento que seu Superman socialista representava como ele via o presidente George W. Bush e as políticas internacionais anti-éticas dos EUA. E os roteiristas da animação da Liga da Justiça disseram que se inspiraram diretamente na Guerra ao Terror pra fazer seu retrato de um Superman do Mal.
Em 2005 é publicada a história Absolute Power, um universo alternativo em que Superman e Batman foram criados desde a infância para ser super-vilões, e dominam o mundo, governando com totalitarismo.
Em 2005, a ativista dos direitos humanos, Jennifer Harbury, pessoa fundamental em sua luta pra trazer a tona as inúmeras violações de direitos humanos que os EUA praticam em suas guerras, publicou um livro denunciando a prática de tortura usada em operações da CIA desde os anos 1970. Ela chamou o livro de Truth, Torture and the American Way, adaptando o slogan do Superman pra ilustrar o contraste entre a imagem de ética que o país vende, e a imagem que o país pratica. Fica em aberto o motivo dela achar que o slogan do Superman tem alguma relação com ações militares dos EUA. É só uma ativista, ela pode não ter entendido o Superman.
Em 2006 é publicada a HQ The Boys, em que seu antagonista Homelander, é um super-herói explicitamente inspirado em Superman, e é um agente explícito do imperialismo. A HQ é uma crítica aos super-heróis e retrata a existência deles como um problema nacional. Especialmente por sua conexão com cultura de celebridade, capitalismo e interesses de empresas.
Em 2007 e 2008, o cartunista político brasileiro Carlos Latuff desenhou charges de iraquianos matando o Superman quando este tentou invadir seu país, ilustrando o Superman como um símbolo do imperialismo. Possivelmente outro que não entendeu o Superman.
O Coronel Lawrence Wilkerson serviu no Vietnam, e depois passou de 1993 a 2003 como assistente de Colin Powell, político republicano infame pela sua participação nos governos de Reagan e dos dois Bushs. Desde que se aposentou, Wilkerson, se tornou uma voz crítica às guerras estadunidenses e a propaganda que fazem pra vender a guerra como algo nobre. Em especial a guerra do Iraque. Wilkerson constantemente repete que ao contrário do que muitos pensam, a guerra é um lugar onde não existem a verdade, a justiça e o jeito americano.
Apesar de usar o slogan do Superman constantemente pra criticar a diferença entre a percepção da guerra e a realidade da guerra, eu não achei nenhum momento do Wilkerson falando sobre o Superman. Os slogans do herói são tão enraizados na cultura americana, que dá pra se comunicar pelos seus slogans e símbolos sem o assunto ser ele. Com o assunto sendo: como deliberadamente vendemos o imperialismo pelo mundo.
Mas existe uma chance de que ele falar do slogan do Superman como aquilo que a mídia vende que a guerra é e como uma frase que ativamente incentiva o alistamento militar, seja só por não entender o Superman também.
Porém criticar os super-heróis não eram a única maneira de se lidar com os sentimentos complicados do povo ao se verem como participantes da Guerra ao Terror.
Quando ocorreu o 11 de Setembro, os responsáveis pelos Simpsons, icônica série animada de sátira dos EUA, comentaram que não fariam nenhum episódio referenciando o fato por um tempo, pois eles achavam que emoções estavam fortes, a opinião pública iria mudar rápido e qualquer sátira que eles fizessem corria o risco de datar antes de ir ao ar. E que iam esperar terem seus sentimentos claros quanto ao que ocorria pra se manifestar.
E então em 2004, eles enfim ajustaram seus sentimentos escrevendo o episódio Bart-Mangled Banner, em que Bart é considerado anti-patriota e o desrespeito do Bart ao país faz toda a família Simpson ser presa, ser expulsa e se exilar na França.
No episódio, o medo de ser visto como anti-patriota fez a cidade toda entrar em paranoia e louvar os símbolos religiosos. Fazendo o personagem imigrante indiano Apu parar de manifestar sua religião hindu. Apu também rebatizou seus filhos para nomes que reforcem que ele está do lado de todas as ações dos EUA. Seus filhos agora chamam Liberdade, Lincoln, Destino Manifesto, Coca-Cola, Pepsi, Condolezza, Torta de Maçã e Superman…
…mas talvez o Apu também não tenha entendido o Superman pra mencionar ele num episódio satirizando o sentimento da guerra ao Terror.
Mas é. Os atentados as Torren Gêmeas também coincidiram com uma tentativa de retorno do cinema de super-heróis pras telas grandes e serviu como veículo de catarse forte pro povo estadunidense.
Em 2001 ainda, o filme Spider-man, ficou famoso como o primeiro filme grande que precisou remover a presença das Torres Gêmeas digitalmente do filme por causa do trauma coletivo. O filme deu foco muito grande na maneira como Nova York resiste ao terrorismo junto de seus heróis e da necessidade de terem pessoas que detém terroristas.
O filme foi dirigido por Sam Raimi que na época era abertamente um apoiador de George W. Bush e da Guerra ao Terror, tendo inclusive feito doações pra campanha de George W. Bush pela re-eleição de 2004, e seus filmes se destacavam pela presença massiva de bandeiras dos EUA no filme e como parte do super-herói como um elemento que ajudava as pessoas a se vingarem dos terroristas.
Da mesma forma o sucesso de The Incredibles em 2004. O filme tem sido muito debatido pela maneira como ele pode ser lido como um filme conservador pregando que o individualismo é mais importante que o coletivismo, e que o egoísmo é um ímpeto que motiva pessoas a serem heróis. O tema do filme, de como limitações legais impedem heróis de serem verdadeiramente heróis.
Muito da recepção de The Incredibles exaltou seu impacto pra reconstruir a imagem de um Super-Herói no pós 11 de Setembro. E entender o papel de super-heróis nesses novos Estados Unidos.
E o filme é até hoje debatido se ele representa ou não valores conservadores, em particular o objetivismo de Ayn Rand.
Em 2005 o diretor Christopher Nolan adaptou o Batman em uma nova série de filmes, focados em um Batman realista e pé-no-chão. O segundo filme da franquia em particular, The Dark Knight, que saiu em 2008, fez analogias extremamente fortes com o sentimento de medo do terrorismo, e com a necessidade de um herói que tome decisões impopulares pelo bem do povo. A maneira como Batman espiona a população de Gotham hackeando todos os celulares da cidade relembrou muitos de como uma das medidas de segurança contra o terrorismo envolveu o Governo Bush escutando conversas por telefone, prática que não parou depois que Bush deixou a presidência.
A noção de que heróis eram aqueles que sujavam a mão e quebraram acordos, éticas, e leis, pra garantir que os monstros não chegassem ao povo e o povo pudesse ter esperança de um mundo bom, rimava bem com a narrativa que o Bush passava de porque tortura, massacre, morte de civis, prisões sem julgamento, violações de direitos humanos, eram todos necessários pra paz da família estadunidense. E heróis tinham o poder de promover essa ideia.
E em 2008, o filme Iron Man, fez história ao inaugurar o Universo Cinematográfico da Marvel, que domina a cultura pop até o dia de hoje. O filme usou a guerra ao Terror, e ser vítima de um grupo terrorista como o chamado pra fazer Tony Stark acordar aos horrores da guerra, e apresentou cenas em que o Homem de Ferro vai até o Afeganistão destruir terroristas ali.
O filme Iron Man é famoso por ser um dos principais filmes da Marvel a ter sido financiado diretamente pelo Pentágono e ter tido o roteiro revisado pelos militares pra garantir que a mensagem correta fosse passada. Começando uma longa e frutífera relação da Marvel com propaganda militar.
O 11 de Setembro e a Guerra ao Terror mudaram a relação de que tipo de imagem um super-herói apresentava ao público. De qual era o nível de cumplicidade que um super-herói deveria ter na luta contra o terrorismo, e nas ações condenáveis que o Governo Estadunidense empregavam sob a desculpa de combater o terrorismo.
Em 2006 saiu um filme do Superman chamado Superman Returns. No filme o Superman volta pra terra depois de um hiatus de 5 anos em que ele ficou no espaço. E retorna para um mundo em que ele não esteve nos EUA por 5 anos, e tem que lidar com as cicatrizes de sua ausência.
O filme não verbaliza que a conta fecha certinha pro Superman ter perdido o 11 de Setembro e não ter evitado a catástrofe. E agora encontra um povo mais traumatizado e desapontado do que o povo que ele largou Mas o filme marca o Superman impedindo um Avião de colidir com um estádio e salvando todos no avião como a grande marca de que agora que o Superman voltou, as desgraças dos últimos anos não se repetirão.
Que tipo de imagem os super-heróis deveriam ter no século XXI, não é um assunto desrelacionado com o 11 de Setembro, diversos autores tiveram diversas ideias sobre como lidar com o assunto, e foi nessa época que as críticas aos super-heróis como agentes que podem ser parte do problema, começaram a sair. É uma maneira de interpretar.
Enfim, variações malignas do Superman continuaram pipocando aqui e ali. O Cyborg Superman e o Super-boy prime foram usados como vilões recorrentes dos quadrinhos ao longo de toda a década, e em 2012 veio o Superdoom, um Superman do Mal da Terra-45 pra tentar bater no nosso Superman.
Mas tudo mudou quando veio o ano 2013, em que surgiram no mesmo ano, o jogo Injustice – Gods Among Us, e o filme Man of Steel de Zack Snyder.
Até hoje sempre que alguém entra no assunto do Superman do Mal, esses dois exemplos estão no centro do debate.
O jogo Injustice, é um jogo de luta que fez uma dimensão alternativa em que o Superman, traumatizado pela morte de Lois Lane, se torna um ditador tirano. O jogo chamou a atenção por ser um jogo de luta com uma história de verdade, e a história chamou tanto a atenção que foi adaptada em uma série em HQs dividida em seis partes que mostra lentamente como foi a corrupção gradual do Superman que ia crise após crise, sacrificando um pouco mais os seus princípios morais até ser um super-vilão claro.
O filme Man of Steel foi divisivo quando saiu, mas foi popular o suficiente, apesar de inúmeras críticas quanto a violência do personagem ao quebrar o pescoço do General Zod no final. Porém é na sequência, Batman v. Superman: Dawn of Justice, que o Zack Snyder foi promovido a persona non-grata das adaptações de quadrinhos de maneira irreversível, pela maneira como tratou o Superman e o Batman.
Inclusive, Batman v. Superman e sua sequência Zack Snyder’s Justice League, ambos contém indícios de que o Superman no futuro poderá se tornar um vilão, o que o Snyder já afirmou usar Injustice como inspiração direta e seu desejo de fazer uma adaptação de Injustice.
Além de inspirar o Zack Snyder e a própria série em quadrinho dividida em 6 temporadas. Injustice também foi adaptado pra um filme animado em 2021.
Mesmo ano em que Invincible recebeu uma adaptação animada.
Em 2019 saiu a adaptação de The Boys pro Live Action e em 2020 adaptaram Red Son pra um filme animado, e de repente vários Supermans do Mal dos quadrinhos ganharam vida nesse cenário televisivo.
Depois de Injustice universos alternativos com um Superman do Mal continuaram saindo aqui e ali, entre eles um Superman Nazista chamado Overman em 2015. Teve também o clone chinês do Superman em 2016, e é isso, aqui e ali ainda brincam com o conceito, mas nada disso teve o impacto dos outros exemplos.
E é aqui que estamos agora. E mesmo adaptações de um Superman bom moral e puro que seguem a maioria, ao falar do multiverso, inevitavelmente vão mencionar a existência de um Superman do Mal, o assunto não morre. Mesmo o aclamado desenho My Adventures With Superman feito pra restaurar a imagem pura e boa dele, reconhece em um episódio que existe um universo em que ele é o vilão.
Inúmeras versões diferentes dele como o vilão. E em todas não é como qualquer vilão. Em todas ele é um ditador. Um estadista. Um expansionista que acredita que sua ideologia, seja ela qual for, deve ser implantada em todos os países e pessoas, a força se necessário. Em todas seus poderes incríveis são usados em guerras. E em todas com uma noção de que ele era o Grande Irmão policiando o mundo.
O Superman do Mal tem uma cara específica. Não tem um universo em que ele vira assaltante de banco, nem Serial Killer. Ele vira ditador. Ele vira um estadista. Verdade Justiça e o Jeito Americano se tornam diretrizes de como comandar um Estado.
E outra característica que os vários Superman do Mal tem em comum? Do Superman Comunista, ao Superman de Injustice, ao Bizarro, ao Superman Nazista, ao Superman do Snyder? O que une eles, é que todos estão sentando fazer o que eles acreditam ser a coisa certa. E tem dificuldade em entender a diferença entre certo e errado da maneira como o Superman Bom entende.
Então acho que isso é algo que vale a pena ser pensado.
A diferença entre o bem e o mal.
A grande marca do Superman é ser uma boa pessoa. E bem, muita gente no Universo DC é uma boa pessoa. O Batman é uma boa pessoa e a Lois Lane também. O Arqueiro Verde, o Comissário Gordon e o Super Choque são boas pessoas. Mas o Superman é uma ótima pessoa e frequentemente visto dentro de seu universo como uma referência moral clara. E alguém que em sua determinação em fazer o bem e a coisa certa, inspira todos a fazerem o bem também.
E de todas as suas qualidades, a maior é a sua humildade. O Superman tem poderes que fariam ele possivelmente ser confundido como um Deus em qualquer cenário. Mas ele é empático, se vê como um mero humano, e se conecta com as pessoas em pé de igualdade, como um amigo humano. Ele não acha que é melhor do que ninguém, e não age como se fosse melhor que ninguém. Ele é só um cara normal, um fazendeiro trabalhando como repórter na cidade grande.
Um dos criadores Jerry Siegel descreve o Superman exatamente assim, no documentário da BBC de 1981 The Comic Strip Hero:
“É um cara de bom comportamento, que poderia governar o mundo, e é todo-poderoso, mas em vez disso, ele usa os poderes pra ajudar quem está indefeso e quem mereça, em vez de explorá-los.”
O desejo do Superman é o de ajudar, mas nunca ajudar da perspectiva de uma autoridade. Da maneira como um prefeito, um policial podem ajudar a população quando necessário. Mas na perspectiva de um vizinho, um local, alguém que não ficou parado vendo a injustiça ser feita.
Ele olha no olho das pessoas que ele resgata, conversa com elas, se importa com elas.
E por isso as histórias por mais que precisem fazer uma ameaça de alta escala atacar a terra e depender de uma pessoa que seja um semi-Deus pra deter, pois ninguém mais é forte o suficiente pra dar conta, elas sempre tem espaço pra lembrar que o Superman está lá pra fazer as pequenas coisas. Tirar um gato da árvore, impedir um atropelamento.
Se sair perguntando pros fãs qual a melhor coisa que o Superman já fez, muitos, um número significativo vai falar de ter conversado com a menina prestes a se jogar do prédio e convencido ela a não fazer isso. Essa cena representa o bem, e não tem nada a ver com voar, tem a ver com saber se conectar.
Ele pode ter poderes inimagináveis, mas as melhores coisas que ele faz são coisas que eu e você poderíamos fazer também. Nós podemos ser boas pessoas e fazer o que está em nosso alcance se nos inspirarmos no Superman e na maneia como ele age.
E isso é importante. Isso é o que torna ele especial. Não importa quantos poderes ele tenha ele é só um cara normal, ele não é um líder, ele não exerce autoridade, ele não governa os humanos, ele é uma pessoa comum, e talvez os vilões dele não vejam ele assim, mas ele se vê assim.
E pro Superman ser o Superman do Mal ele precisa perder isso. Perder ou vir de um universo em que isso foi algo que ele nunca teve a oportunidade de ser… por não ter crescido com valores estadunidenses.
Agora. O Superman sempre sabe a diferença entre o certo e o errado. Porém isso não significa que ele é sempre escrito por uma pessoa que sabe a diferença entre o certo e o errado. E embora tenham pontos fáceis que são acima de qualquer divergência criativa, como “não deixar ninguém morrer numa tragédia é bom”, ou “não matar vilões é bom”, ou “não mentir é bom”. Existem áreas cinzas, em que os roteiristas as vezes entram. E aí Essa área cinza se torna boa, pois foi feita pelo Superman.
Não só o Superman, qualquer super-herói dos clássicos costuma ter uma regra de evitar matar seus vilões o máximo possível com raras exceções que operam como exceções dentro de seu universo. Um super-herói não mata nenhum criminoso. Um super-herói entrega para as autoridades e deixa as autoridades cuidarem dele.
As autoridades dos EUA são as únicas forças de justiça de todo o ocidente que oficialmente matam seus criminosos, pois todo o resto dessa metade do mundo aboliu a pena de morte. E potencialmente qualquer assassino que não seja um vilão regular que qualquer super-herói mande pra polícia, pode ser executado como resultado direto de sua captura, mas a culpa não é do herói, é do governo. Na primeira história do Superman ele salva uma mulher inocente da pena de morte, entregando o verdadeiro assassino no lugar pra polícia executar o cara certo. Mas o Superman não executou esse cara. Ele só entregou o cara pro executor, mas não é culpa dele.
O Superman não mata ninguém. Matar é errado! E bem…. Eu concordo! Eu sou contra matar pessoas, e acho que matar criminosos ou infratores da lei é moralmente errado! E que qualquer pessoa que se diga boa evita matar sempre. Então estou do lado do Superman nessa.
Porém matar está um pouco no fim do espectro moral. Ou seja, existe coisa que é objetivamente melhor do que matar, mas que ainda é um destino horrível o bastante. E ainda é errado o suficiente. E graças as convenções da fantasia e ficção científica, fãs desse tipo de história com ação e aventura chegam a categorizar alguns destinos mágicos como sendo até mesmo piores que a morte. O termo “Destino Pior que a Morte” existe.
E o destino pior que a morte não é a morte. Então ele tá liberado.
Como por exemplo aprisionar a Rainha das Fábulas em um livro onde ela não terá agência ou companhia pela eternidade e passará o resto da vida solitária em uma dimensão sem nada, sem ser capaz de morrer pra ganhar paz. Que terrível, o que o Superman fez a respeito dessa injustiça?
Ah não, o Superman tava lá quando ela foi presa! Então isso foi justiça. A Rainha das Fábulas é uma vilã, então pau no cu dela, desde que ela não tenha morrido, nada é cruel o suficiente pra alguém do mal.
Mesma lógica do Batman poder torturar seus criminosos, quebrar a perna deles como método de interrogação, mas ele não está virando o Rorschach numa cena assim, pois ele não mata, então ele não fez nada errado. O código moral é simples. Não matar.
A Zona Fantasma é um elemento recorrente de histórias do Superman, que é apresentada exatamente sob esse prisma. Uma dimensão onde os presos vão passar um tempo sem envelhecer e sem serem capazes de interagir com nada, só observando o mundo e alimentando o rancor deles sem serem capazes de fazer nada a respeito. Isso foi introduzido como uma maneira de Kripton punir seus criminosos, uma alternativa humana à pena de morte, e o local onde habita normalmente o inimigo do Superman, General Zod. Então a Zona serve como maneira de explicar onde estavam os kriptonianos que sobreviveram a explosão de Kripton. Estavam na cadeia, sendo torturados por serem fantasmas incapazes de viver pela eternidade, acumulando rancor que descontariam na Terra e no Superman.
Dependendo da história, a Zona Fantasma pode ser a Baía de Guantanamo particular do Superman, pra onde ele pode mandar gente perigosa e dar o assunto como solucionado. E ignorar o fato de ser a pior coisa do mundo. Mas em outras histórias, a Zona Fantasma pode ser algo que o Superman se importa em melhorar, e em reabilitar as pessoas ali entro.
E a diferença vai ser: o que o roteirista acredita que uma pessoa boa faz com os presos. Os EUA tem a maior população carcerária do planeta. E a constituição, desde o dia da abolição até hoje, usa a prisão como uma brecha legal pra permitir que empresas usem presos como trabalho análogo a escravidão. Um modelo de escravidão de tanto sucesso que empresas pressionam outros países (como o Brasil) a copiar, e porque os EUA são um sucesso.
Alguns roteiristas que acham que criminosos não tem direitos nunca escreveriam Superman quebrando o pescoço do Zod, mas vão permitir que a alma de Zod seja condenada a uma tortura de séculos como a alternativa justa. E desde que não mate o Zod, tá de boa. Até porque não vão ser literais séculos, algum outro roteirista vai fazer ele escapar.
Verdade, Justiça e o Jeito Americano. Dessas três palavras “justiça” é a mais relativa. Justo é o que o escritor achar que é justo. E muitas vezes justiça pode ser um sinônimo de punição, e qualquer forma de punição é uma forma de justiça, mesmo que algumas formas não sejam aceitáveis moralmente.
Estuprar pessoas na prisão é visto como uma forma não-oficial de justiça dos EUA, que os guardas sabem que ocorrem, e não fazem nada, pois acreditam que é parte da justiça sendo aplicada.
Se um roteirista acredita que pegar a própria prima é ético e não viola uma noção moral, o Superman também não vai acreditar nisso, mesmo que um leitor potencialmente não acredite.
Se um roteirista achar que apagar as memórias de uma pessoa não viola nenhuma noção ética, então o Superman não estará errado. Ele não vira o Superman do mal por mexer no cérebro da Lois Lane.
Se os responsáveis pelo Superman acharem que a indústria automobilística é boa e ética e não trás problemas pro mundo, então o Superman vai ficar feliz em ser garoto-propaganda de gasolina. Não viola os valores dele. Quanto mais carro no mundo melhor, carros são justiça. Combustíveis fósseis são o Jeito Americano.
E se os responsáveis pelo Superman acharem que banqueiros representam uma classe amiga dos oprimidos, ele ficará feliz de ser garoto propaganda da American Express em plenos anos 1990, do lado do Jerry Seinfeld. Por que não?
Se os responsáveis forem anti-tabagistas, então o Superman vai ser pelo fim do cigarro.
Nem todo modelo de comportamento pode ser dividido entre bom e mal, alguns são opiniões, e algumas são opiniões cujo consenso a respeito mudam Em 1970, ele achou de muito bom gosto que a Lois Lane entrasse numa máquina que a transformasse em negra, pra ela matar sua curiosidade sobre a outra raça. Em uma história que tentou alertar sobre o racismo.
Claro, ele faz seu melhor, e o roteirista também faz seu melhor em sua época. Nada disso diz “ele não é bom.” claro que ele é. Ele é um modelo, o problema é que por isso ele é um modo de observarmos o que quem escreve as histórias acham que um modelo modelo pensa. E essas pessoas são tão vulneráveis a uma visão cagada de mundo, influenciada por propaganda quanto qualquer um.
O Superman não é ingênuo, mas o roteirista pode ser. Um roteirista de história em quadrinhos pode acreditar no seu presidente, na propaganda nacional e na ética por trás de intervenções militares dos EUA no exterior. E aí esse vai ser o parâmetro de bondade do Superman.
O Superman nunca vai sentar e falar que é um absurdo que tenha gente sendo presa por um baseado. O público dele, que é o povo americano, não vai deixar. Não deixaram ele renunciar a cidadania estadunidense. Ele tem que tomar cuidado em como desafiar esses modelos de uma maneira que o público conservador siga achando ele exemplar. Ou vai gerar controvérsias…. e se você pensou em uma edição recente, que provocou os conservadores, eu falo dela daqui a pouco.
Geralmente ele se mantém longe de qualquer tema de fato polêmico, como questionar a constituição estadunidense, ou desafiar algo sistematicamente problemático em sua rotina, pois ele além de uma pessoa boa, é uma pessoa certinha. Ou seja, alguém que confia e a credita na lei e no sistema, e não tem o desejo de mudar a maneira como o mundo já funciona, só de salvar gente.
O que é algo que é reforçado pelo seu apelido de “O Grande Escoteiro Azul”.
Escoteiros, chamados até ano passado de Boy Scouts of America, mas que agora mudaram seu nome pra Scouting America são uma das mais respeitadas instituições dos Estados Unidos. Fundada em 1910, pra permitir que as crianças pudessem crescer aprendendo valores tradicionais de nacionalismo e individualismo.
A organização, restrita só pra homens por muito tempo, é sinônimo de honestidade, de honra, de respeito às instituições, e de uma vida decente. E todo mundo reconhece o valor dessa organização.
Existem várias organizações de escoteiros nos EUA e ao redor do mundo, muitas afiliadas oficialmente aos Boys Scouts of America, muitas não. Algumas permitiam participação feminina, algumas não. Mas o termo em inglês Boy Scout, se refere a membros dessa organização em particular. Que é uma organização privada, que era até recentemente financiada pela igreja. E não era um termo genérico pra se referir a qualquer criança que use canivete no bosque e ganhe medalhas.
Em 1951, o Superboy, ou seja, o Superman em sua juventude, oficialmente entrou na Boys Scouts of America, e se tornou oficialmente um escoteiro de verdade.
Em 1979, a Boys Scouts of America criou distintivos com o símbolo do Superman pra destacar quem fizesse boas performances em um evento interno esportivo deles.
A BSA é também um espaço de socialização que promete formar pessoas que vencem na vida, e que se valida com a maneira como muitas pessoas que estão em posições de poder nos EUA foram parte da organização. Bill Gates, Martin Luther King, Steven Spielberg, Charles F. Dolan (fundador da HBO), Sam Walton (fundador do Walmart), e L Ron Hubbard (fundador da cientologia) todos foram escoteiros. E é vendida a imagem de que é na BSA que eles aprenderam os valores que permitiram a eles vencer na vida.
Dos 12 estadunidenses que já andaram na lua, 11 foram membros da BSA.
A organização também é uma porta de entrada clara para uma carreira militar. Pelo seu foco em disciplina, assumir posições de liderança e aprender a seguir ordens, muitas crianças são preparadas pra se alistarem nas forças armadas aos 18 anos por ali.
Em 2017, 28% dos deputados dos EUA eram ex-membros da Boys Scouts of America, e isso transfere pra presença política dos membros da organização. Os presidentes dos EUA que foram membros da BSA são Joe Biden, Barrack Obama, George W. Bush, Bill Clinton, Gerald Ford e John F. Kennedy. Dependendo da sua idade, é bem capaz de Donald Trump ter sido o único presidente dos EUA de sua geração a não ser um escoteiro, e isso é algo que é reconhecido como parte do que torna ele um forasteiro e uma pessoa indigna do cargo.
Aproximadamente 2% dos meninos dos Estados Unidos são escoteiros, e portanto 98% não são. Mas existe um mito de que os que são estão prontos pro sucesso, e esse mito é reforçado pela socialização interna que eles fazem com gente influente capaz de colocá-los no caminho do sucesso. Contatos e network com gente importante, a organização serve essa função social.
A organização teve, desde sua fundação um problema muito grande com um número muito grande de casos de abuso sexual e de instrutores adultos abusando dos escoteiros. Entre 1965 e 1985 a organização recebeu 1200 denúncias de casos de abuso infantil cometidos na organização. Em fevereiro de 2020, a organização declarou falência justificando com os 92.000 casos de abuso infantil pelos quais a Boy Scouts of America deve indenizações pros sobreviventes e família.
A associação forte dos escoteiros com táticas ineficientes de proteger crianças de pedófilos, ganhou uma camada extra de hipocrisia, com a postura anti-gay da organização. Por serem uma organização privada protegida pela lei da Liberdade de Associação, sempre existiu uma postura de proibir que instrutores da Boy Scouts of America fossem gays. No ano 2000, um instrutor demitido por ser gay processou a organização e perdeu, pois os juízes decidiram que o combate a homossexualidade era um dos valores que a organização promovia e que eles tinham o direito de reforçar seus valores.
South Park fez um episódio na época sobre eles preferirem dar uma criança na mão de um pedófilo a um homossexual. E a hipocrisia de um antro de pedofilia tentar empurrar a culpa na comunidade gay.
Em 2013 os escoteiros pararam de proibir homossexuais. E combater os gays parou de ser um dos valores do que ser um escoteiro defende.
Em 2017 a organização passou a aceitar meninas escoteiras.
Outro dos valores fundamentais que a organização privada tem o direito de reforçar é o de reconhecer Deus como o centro do universo e o nosso governante. O que não precisa ser o Deus cristão, apesar de alguma pressão que seja, mas fazia com que crianças que demonstrassem afiliação com o ateísmo ou agnosticismo fossem removidas da organização. O juramento do escoteiro reforça que o dever do escoteiro é sempre priorizar Deus e a Pátria….
Essa organização é um grande símbolo de usar uma fachada de valores tradicionais, religiosos e patriotas como a base de uma boa moral, enquanto escondem um ambiente que reforça o bullying, facilita a predação sexual de crianças, e combate a homossexualidade, tudo pra moldar uma imagem de criança americana ideal. Uma moldada pro sucesso. Pra vencer na vida como um bom estadunidense.
Essa organização está em crise de popularidade e nunca teve tão poucos afiliados quanto tem agora nos anos 2020, devido a queda de popularidade em relação aos valores que a organização prega e representa.
Essa organização é o apelido do Superman e tem orgulho de ser associada a ele. E não importa o novo podre da organização que surja na mídia, o apelido nunca se desapega do Superman. Assim como ele é o que os EUA representam e não o que os EUA fazem. Ele também é o que a Boy Scouts of America representa, e não o que a organização faz. Só que a BSA também representa merda…. então ele é o que a BSA deveria representar se não fosse um grupo da igreja pra formar jovens conservadores e fazer networking pra eles serem os líderes do país…
Quando o apelido é usado nos quadrinhos, ou em um filme, em um número significativo das vezes, ele será usado de maneira irônica. Ou seja, um personagem como o Batman vai chamá-lo de Big Blue Boy Scout, como uma crítica aos valores do Superman. Mas mesmo essa crítica vem errada, pois vem reconhecendo que a organização é sim o berço da honestidade, e não o símbolo da hipocrisia.
Agora, um fã do Superman sempre vai usar esse apelido com orgulho, como um lembrete de que escoteiros são o que o mundo precisa. Que é bom termos heróis escoteiros. Que escoteiros representam honestidade, justiça, caráter e os valores mais decentes do mundo. Que o Superman precisa sempre ser um grande escoteiro, pois escoteiros representam o melhor da humanidade. No vocabulário do fandom do Superman, “boy scout” é sinônimo de virtude.
Em 2024 um literal escoteiro usou o fato dele governar o país mais poderoso do mundo pra demonstrar apoio a um genocídio. E em preparação das eleições, tá todo mundo olhando ele e pensando que ele vai competir com um cara que é essencialmente o Lex Luthor, mas menos ético, e que talvez tenham que aguentar escoteiros cometendo crimes de guerra por mais 4 anos.
Se o escritor do Superman gosta ou não dos escoteiros, depende muito de quem é o escritor. Quanta honra ele ainda vê nesse termo. Mas a maioria dos estadunidenses é educado a ver honra. E o Superman é um dos educadores.
Já que falamos de um dos apelidos do Superman, o do escoteiro, falemos do outro, falemos do Homem do Amanhã;
O Homem do Amanhã.
O termo “O Homem do Amanhã” foi batizado em homenagem a Feira Mundial de 1939, uma grande exposição em que países do mundo inteiro mostraram um pouco de seu poder e relevância cultural. Na edição de 1939 o tema era “O Mundo do Amanhã”.
A Feira de 1939 foi marcada pela presença massiva dos EUA como o país que ia guiar o progresso mundial de todo o mundo com sua tecnologia. Com exibições marcantes da General Motors, da Kodak com a introdução da televisão ao público, e com vários itens de tecnologia e eletrodomésticos que seriam o default da sociedade americana, presentes em toda a classe média no futuro próximo. E que esses itens seriam o acesso do povo, não só dos EUA mas do mundo para o Jeito Americano de se Viver. O que era algo que os EUA precisavam muito depois do baque que foi a Grande Depressão.
A maneira impressionante como a feira vendia o progresso tecnológico do século XX, e vendia os EUA como os líderes do progresso tecnológico do século XX foi algo marcante de verdade. Ares-condicionados, fotografia colorida, novos modelos de aviões, novos carros, o futuro era acessível, era tecnológico e era comercial. Afinal, por causa da Grande Depressão, a Feira Mundial de 1939, que foi em Nova York, dependeu muito do financiamento de grandes empresas pra pagar por todos os custos, e essas empresas financiaram esse evento de ciência pela oportunidade de fazer dele uma grande apresentação de produtos.
A feira impressionou muito Walt Disney que criou Tomorrowland, um parque temático futurista pensado nas imaginações da cidade do futuro de Walt Disney em pessoa.
O contraste da beleza que era o progresso estadunidense e o futuro da tecnologia foi marcado com o fato de que…. Essa feira coexisitiu com o começo de um evento chamado Segunda Guerra Mundial, eu mencionei ele no começo do texto. Um evento de relevância global, mas que na época os Estados Unidos estavam oficialmente neutros, na perspective de seu governo, e essa neutralidade se demonstrava com países que haviam sido invadidos pelos nazistas dividindo uma feira com países-membros do Eixo.
A Alemanha ter sido o único país a recusar o convite de ir pra feira, deixando um espaço vazio foi algo que todo mundo notou e que deixava o que não tava dito, evidente. O futuro é a ascensão do fascismo e uma guerra de proporções terríveis que já começou e já está afetando a feira. Uma guerra que é maior que a feira, e faz a Itália exibir a glória de seu fascismo ali como se fosse normal. Mas se você realmente não quiser olhar pra isso se frente, temos grandes empresas prometendo carros, geladeiras e meias de nylon pro futuro da classe média.
A feira foi dividida em duas temporadas, a de 1939 e a de 1940, e era notável que exibições de países que foram invadidos pela Alemanha em 1939 não apareceram mais em 1940, como um lembrete de que esses países estavam deixando de existir enquanto os EUA vendiam o futuro.
Durante a feira, no dia 3 de Julho de 1940, foi declarado o “Dia do Superman”, e um evento atlético pra eleger quem era o superboy e a supergirl da feira foi julgado por uma pessoa vestida de Superman. A identidade do Superman que fez parte da feira nunca foi revelada, muitos teorizam quem era o ator, mas isso foi antes do Superman ir para o cinema em filmes seriados, então esse foi oficialmente o primeiro espaço em que alguém representou o Superman usando seu uniforme.
E é desse hype e desse sentimento de progresso embelezando o futuro em 1939, que vem o nome: “O Homem do Amanhã”, do mesmo evento do qual o próprio Superman foi parte da exibição, como parte da maneira como a feira foi uma apresentação focando o comércio.
Essa ideia de sociedade do futuro extremamente avançada com tecnologia que aponta pra gente a esperança de um futuro confortável e feliz pra nossa classe média pode ser visto em diversas retratações de cenários do Superman. A cidade de Metropolis, apelidada de “A Cidade do Amanhã”, por ser um polo tecnológico dentro de seu universo, é a cidade que Superman adotou, e uma reprodução de Nova York, representando só o lado positivo de Nova York, enquanto Gotham City, do Batman, representa o lado negativo. A cidade foi batizada por Siegle e Shuster em homenagem ao filme futurista Metrópolis, do qual os dois eram fãs. Mas apesar do filme ser um alerta quanto aos perigos e distopias por trás desse amor pelo futuro, nas HQs, Metrópolis vem sempre como um local de otimismo pelo futuro que herda muito dessa paixão que a Feira vendeu.
Mas se o tema é futurismo, e a noção de um lugar que represente as esperanças do amanhã pro Superman, aí a questão não é Metrópolis, mas o planeta Krypton. Muito parecido com a Terra, só que muito mais avançado.
Só que Krypton com todos seus avanços foi destruído. Em uma destruição que as vezes é deixada muito ambígua o que aconteceu, as vezes é descrita como uma destruição natural devido a destruição do Sol de Krypton, já vi várias vezes que Krypton tinha um problema do núcleo ser instável e as vezes o núcleo é instável por culpa de invasões, interferência externa ou guerra civil.
Krypton é um avanço da civilização humana, e com civilização humana, eu quero dizer civilização estadunidense, pois é nesse tipo de material que os roteiristas têm pra projetar a sociedade, e mesmo que Krypton tenha elementos diferentes pros leitores, nunca são elementos aliens que fazem a gente achar a sociedade deles estranha. Krypton é o mundo do amanhã que pode ser construído com esperança e progresso.
Red Son inclusive diz que se os Estados Unidos guiarem a utopia da humanidade, a humanidade vai em alguns séculos se tornar literalmente Krypton.
O diretor Richard Donner no filme Superman de 1978, que foi o pioneiro em toda essa associação que alguns fazem de Superman com Jesus, mantendo firme essa analogia, modelou Krypton como se fosse o paraíso no universo. O Reino de Deus agora inacessível, mas que cabe ao Superman passar os valores do Reino de Deus pros humanos. É um lugar maravilhoso.
E Krypton acabou. Destruída sem deixar vestígios, e sua cultura agora existe somente no legado de Kal-El, o Superman, e os demais Kriptonianos sobreviventes, como a Supergirl que podem ou não existir dependendo de qual versão do personagem você está lendo. Mas o planeta tragicamente acabou. Assim como Atlantis, o maior império de progresso e tecnologia da noite pro dia foi destruído.
E então Zack Snyder olhou pra essa situação e teve a seguinte ideia: “E se Krypton tiver sido destruída, por causa da ganância dos Kryptonianos, que seguiram danificando o planeta mais e mais em busca de recursos naturais. Sem ligar pros danos ambientais da ganância.” fazendo uma nada sútil analogia da destruição de Krypton, por culpa dos próprios Kryptonianos e sua cultura de excesso. Um planeta tão focado em progresso científico e perfeição que pratica eugenia e mensura valor pelo tipo sanguíneo.
Zack Snyder não fez uma utopia, fez uma distopia, um planeta condenado, que com toda sua tecnologia e seu progresso se destruiu. E Jor-El ao mandar Kal-El pra terra fez um pedido muito inusitado nessa versão. Ele pediu pra Kal não deixar a Terra virar Krypton. Pra ele impedir a humanidade, e portanto, os Estados Unidos, de seguirem a mesma mentalidade que destruiu seu planeta. Essa ideia de Krypton ser destruída como analogia pra crise climática foi incorporada depois pelo Arrowverse.
Que é o objetivo de Zod no mesmo filme criar outra Krypton, a pior coisa que poderia acontecer no mundo. O Zack Snyder veio e disse: “O mundo do amanhã é distópico, o mundo do futuro pautado em tecnologia e progresso foi algo que a gente hypou em 1939 e fez o Superman fazer propaganda de carros, mas a gente condenou a nós mesmos a morte.”
E aí enquanto ele dizia isso, ele dizia altas merdas também. E eu acho que é aqui que todos os elementos do texto vão se encaixar. Se a gente olhar pra bagunça que o Zack Snyder fez.
Vamos falar do Homem Mau:
Zack Snyder enquanto contador de histórias é uma máquina de contradições. E um bagulho complicado em qualquer interpretação que se tenha da obra dele é que o texto e as imagens parecem querer se contradizer. Ele bate num ponto de “fascismo é coisa de jacu” e reforça esse ponto com uma grande glorificação de estética nazista. E fica uma bagunça.
Em Man of Steel duas das críticas mais comuns a respeito de qual foi o ponto que ele mais errou no filme são as seguintes: Primeiro: Ele fez uma alusão batida e desumanizante de Superman como Jesus Cristo. E Segundo: Ele matou o Zod quebrando o pescoço dele.
Pega qualquer pessoa explicando todos os problemas de Man of Steel e 50% da reclamação são esses dois elementos e a caracterização/morte de Jonathan Kent. Esses três problemas chamam a atenção. E tem mérito neles.
Mas quando a gente põe esses dois elementos que são impopulares por si só juntos no mesmo filme, a gente vê…. Que ele fez um filme em que o equivalente de Jesus comete um assassinato. E porque alguém faria Jesus ser um assassino? Isso parece a visão básica de Jesus Cristo pra vocês? Tipo a conclusão obvia do que significa ser a personificação de Jesus?
E ele faz isso o tempo todo, motivo pelo qual os filmes dele são tão fraco. Ele faz o Clark falar a palavra “esperança” 40 vezes, mas todo o audiovisual é desesperançoso e é o audiovisual que vai deixar a impressão nas pessoas.
É disso que está o poder do cinema. Qualquer mídia escreve um diálogo, mas no cinema ele é reforçado pelo poder da imagem e do som, que no caso dele, ele fica tão bêbado por uma estática grandiosa e divina que torna ele zoado.
Enfim. Zack Snyder ser uma contradição ambulante não torna ele um bom cineasta. Mas torna ele um objeto de estudo interessante. Porque perceber que um dos diretores de filme de super-herói mais vocais quanto a defesa pelo partido Democrata e desprezo pelos republicanos (um grande contraste com um gênero cinematográfico que só decolou com diretores ponto as bolas do Bush na boca) é um dos diretores mais admirados pela extrema direita e com uma estética e linguagem que faz todo mundo pensar em fascismo, é perceber uma cabeça que tá funcionando em confusão. E uma cabeça complicada não te torna um gênio, mas desperta a vontade de ver o que tá acontecendo.
E bem, eu quero falar do Snyder porque é um grande consenso entre todo mundo que o problema dos filmes dele, é que ele não entende o Superman, e ele não é capaz de reproduzir o apelo que faz o personagem ser popular por 86 anos.
E quem fala isso, fala do Superman do Snyder ser um cara frio, violento, que cometeu um assassinato, não protegeu o povo de Metropolis, não se conecta com o povo e não inspira esperança. É um arrombado frio e grosso que só existe pois o Snyder acha que anti-heróis são legais e compaixão é coisa de otário.
E isso é verdade. Isso é objetivamente um jeito de negar o apelo do herói. Isso é uma visão que remove o carisma do personagem. E é por isso que o Superman dele é um Superman do Mal, mesmo sendo ainda o herói dos três filmes em que ele aparece.
Mas tem mais um elemento que faz o Superman destoar de tudo isso que é bem menos comentado e que eu acho que é parte de entender o vespeiro em que o Snyder cutucou.
Exatamente dois minutos depois do Superman quebrar o pescoço do Zod, literalmente uma das cenas mais comentadas da carreira do Snyder, quando todo mundo no cinema ainda estava em choque e furia de ver o personagem fazer algo hediondo, horrível que ele jamais faria, vem uma cena nova. Em que um militar pergunta como eles podem confiar no Superman pra ser um aliado.
E o Superman responde: “General, eu cresci no Kansas, não dá pra ser mais americano do que eu sou.”
O cara que acabou de negligenciar o povo, permitir milhares de mortes e quebrar o pescoço do Zod, declarou que ele é tão estadunidense quanto os militares com quem ele conversa. O filme encerra com o Superman falando “Tudo o que eu fiz esse filme inteiro é coisa de estadunidense.” Fazendo esse um dos únicos Supermans que verbalizou que ele e suas ações estão no filme pra representar o espírito estadunidense.
A maioria só segura a bandeira dos EUA.
E agora a pergunta de ouro gente! A pergunta de ouro.
Se originalmente a empatia, bondade e valores admiráveis do povo do Kansas, em especial seus pais Jonathan e Martha Kent, convenceram Clark a ser a melhor, mais altruísta e mais justa pessoa que ele possa ser.
Aí vem um filme em que os pais de Superman não lhe ensinam essa lição, em que eles ensinam ele a ser individualista e a não salvar os outros pra se proteger. E o Superman se torna um arrombado. E aí o Superman declara que nada é mais estadunidense que crescer o Kansas, como seus pais. O que esse filme diz sobre os valores do Kansas e por extensão dos EUA? Vou dar uma pista.
Lembrem que o diretor da DC em 1981 não acreditava que o Superman conseguiria ser uma pessoa decente se a nave caísse fora dos EUA. O filme vende que os EUA são o berço da decência e que crescer nos EUA é a chave pra nunca matar alguém? E se isso era algo que o filme precisava vender tanto pra funcionar, o que isso diz sobre todos os outros Superman?
Clark não poderia aprender a ser uma pessoa altruísta se ele foi criado pelos valores de um povo que rejeita o altruísmo. Os estadunidenses são criados pra acreditar que nasceram no país mais altruísta do mundo enquanto literalmente usam sua influência pra tornar o mundo menos e menos e menos coletivista, e não só a si próprios, todo o mundo.
Então Krypton é um modelo de como o modo de vida americano traz progresso junto de catástrofes ambientais que vão exterminar toda sua população. E os EUA são um país culturalmente incapaz de ensinar altruísmo. E a coisa mais americana possível é o Superman quebrando o pescoço do Zod.
Podemos falar que esse Superman não é o Superman dos gibis, que ele é uma figura negativa e asquerosa que não trás esperança. E podemos falar, pois é verdade.
Mas podemos falar que ele desobedeceu os princípios da verdade, da justiça e do jeito americano? Ele negou esses princípios? Ou ele só apresentou uma versão feia deles, uma mais próxima do que o país realmente é? Um espelho pro qual muita gente que repete “O país foi fundado seguindo princípios bonitos” não quer olhar?
E ele com sangue nas mãos, reafirmou que é isso. Ele segue o Jeito Americano. O Jeito Americano só não é o que o público quer que ele seja.
Porque sério, olhem pra Batman v. Superman.
Lois Lane declara que os Estados Unidos são neutros em relação a guerra civil na Africa, e o ditador local reforça como as mentiras dos EUA sempre são ditas como se fossem fatos.
E então Perry White ao ser questionado porque ele não segue os princípios que fundaram o jornal em 1938, mesmo ano em que o Superman foi criado, responde: por que as políticas de assistência social do Roosevelt não existem mais… lembram do Roosevelt? O cara cujas políticas inspiraram o Superman.
E novamente Perry White é questionado por Clark sobre princípios morais, ele responde que a moralidade do país foi assassinada com Martin Luther King e os Kennedys.
Quando esse filme diz que ele não acredita que valores tão puros quanto os que o Superman representa nos quadrinhos não são possíveis de florescer nos EUA, se ele entendeu ou não as HQs se torna irrelevante, passa-se a ser se ele concorda ou não com a visão de EUA das HQs. O filme passa a falar do país.
Como esperar que alguém que tem medo do Mundo de Amanhã, e que acredita que o Jeito Americano é um veículo pra crueldade, interprete o Homem do Amanhã aplicando o jeito americano?
A desilusão nacional é algo que derruba os grandes símbolos patriotas.
E muita gente analisa os filmes do Snyder sob a premissa de que eles falam somente sobre um personagem fictício que existe em um vácuo e que ele achou toscão e quis “consertar”. Mas que não falam nada sobre um símbolo de identidade nacional.
E eu acho não só que os do Snyder falam.
Todos os Supermans do mal falam.
O Snyder não fala isso, pois ele é um modelo de pessoa, até porque cá entre nós, ele permitiu o uso de Man of Steel pra fins de propaganda militar. O Snyder tem uma combinação rara de ter um tema recorrente nos filmes dele de colocar críticas a governo Bush e a capitalização do 11 de Setembro pra fazer os poderosos manipularem o luto do povo pra justificar massacres, como se fossem causas pessoais dele. E ao mesmo tempo ele aparenta amar as forças armadas e ter o pau mais duro do mundo pra ver militar dando tiro em coisa. É um homem de muitas contradições.
Mas o ato de torná-lo do mal traz a tona esses assuntos. O lado negro dos valores nacionais que ele representa. Negar ao Superman sua empatia e sua conexão com as pessoas comuns, sem negar a ele a sua estética, sua premissa e suas frases de efeito, trazem a tona todas as contradições entre o que os EUA mentem simbolizam e o que os EUA são. Tudo o que fica escondido de trás do patriotismo de seus próprios roteiristas.
Por isso o Superman do Mal é sempre um ditador que acredita estar do lado do bem e não compreende o próprio totalitarismo como maligno. Pois os EUA usam um discurso de liberdade, verdade, justiça, jeito americano, bons escoteiros e um amanhã melhor como uma maneira de comprar a cumplicidade de seu povo com um policiamento global tenebroso, baseado em abuso de superioridade militar e no imperialismo. E o personagem está posicionado no lugar ideal pra ser capaz de representar isso.
O único super-herói que ao agir feito um escroto, reforça mais as contradições entre discurso e ação dos EUA, seria o Capitão América.
Agora o Superman ser capaz de representar um lado negro por trás de tudo o que ele simboliza ao ser retratado sem ser como a pessoa mais gentil e empática do mundo, não significa que essa é a única maneira “subversiva” de representar o Superman, só a mais usada.
O dia que o Superman brigou com a Ku Klux Klan.
Em 1940 estreou The Adventures of Superman, um programa de rádio, na época, ainda o meio de comunicação mais poderoso e influente do mundo, e essa foi a primeira adaptação do Superman pra fora dos quadrinhos, e foi o local onde muito do que é o Superman atual foi construído. Em seu programa de rádio foi onde cunharam a frase: “Verdade, Justiça e o Jeito Americano”. Foi onde criaram o conceito da Kriptonita como a fraqueza do Superman. Foi onde inventaram os personagens Jimmy Olsen e Perry White. Foi um grande show, e o Superman era o rei do rádio, seu programa estando entre os mais ouvidos de seu tempo.
Em 1946 existia um sujeito chamado Stetson Kennedy. Um ativista dos direitos humanos com uma dedicação de uma vida em combate a Ku Klux Klan, incluindo infiltração e espionagem para coletar informação de como o Klan opera, e divulgação dessas descobertas para grande público de maneira a incentivar pressão popular e ação legal contra a KKK. Stetson aparentemente não tem parentesco com o ex-presidente dos Estados Unidos famoso pelo seu assassinato. Enfim, Stetson era uma pessoa endinheirada e de uma família aristocrata cujo ódio à Ku Klux Klan e esforço ativo em enfraquecer a organização iam além do que muitos costumam esperar de um membro da aristocracia sulista dos EUA na época da segregação. Mas pessoas assim as vezes nascem em ambientes que não incentivam essa ideia e conseguem usar sua posição de poder e influência pro bem.
Um caso desses foi quando Stetson Kennedy contatou os produtores do The Adventures of Superman e comissionou que o rádio contasse uma história em 16 episódios, sobre o Superman protegendo uma família de descendentes de chineses, do Clã da Cruz de Fogo. Esse arco de história captou a atenção de todos por bater de frente com uma organização que ninguém batia de frente. Usou a pesquisa e consultoria direta de Stetson Kennedy sobre métodos de ação da KKK e o tipo de código que eles usavam de maneira que quebrou a mística por trás da organização. E fez a KKK se revoltar com o episódio, chamando um boicote popular contra todos os produtos da Kellog’s o principal patrocinador do programa.
Kellog’s é a principal marca de cereais açucarados dos EUA, e por consequência de toda parte do mundo que venda produtos industrializados de marcas estadunidenses. Eles são notáveis por usar ativismo e associações com pautas progressivas para esconder as próprias canalhices, como financiar pesquisas que desprovem a ideia de que excesso de açúcar faz mal a crianças, e o uso de trabalho escravo em fazendas.
E essa tática estava aí desde sempre, pois eles deram todo o apoio ao episódio, e aceitaram a bronca com a KKK, mesmo com a ameaça de boicote, pois sabiam que estavam do lado certo da história.
A Kellog’s usa a tática de usar personagens infantis famosos como publicidade pra vender produtos excessivamente açucarados pra crianças tem décadas. E o Superman tem sido historicamente um aliado da Kellog’s nessa servindo de propaganda para os seus cereais desde essa época até os tempos atuais, em todas as suas fases, podemos ver o Superman promovendo esse tipo de alimentação.
Os EUA são atualmente o país recordista em consumo de açúcar por crianças. E os seus índices de obesidade infantil são considerados um problema grave de saúde
Mas onde eu estava? Ah sim, o apoio da Kellog’s em não se intimidar, retirar patrocínio e aguentar boicotes foi fundamental em permitir que o arco de 16 episódios fosse até o fim. E o episódio foi histórico em expor, desmistificar e humilhar a KKK. E esses episódios foram diretamente responsáveis por diminuir o número de afiliações a Ku Klux Klan.
Um exemplo primordial do poder do Superman em usar sua popularidade pra direcionar a opinião pública contra grupos problemáticos dentro dos EUA, de desconstruir o patriotismo que motiva vilanias, e de ser um exemplo que causou ação real e concreta contra problemas reais.
É até hoje lembrado como uma das melhores coisas que o Superman já fez.
E ele nunca mais fez de novo.
Digo, ele lutou com a KKK se novo, mas é um quadrinho só, e um remake da mesma história do programa de ráido, escrita em 2019.
O Superman usou seu carisma pra apoiar Muhammad Ali em sua imagem quando ele estava em baixa. Mas esse tipo de evento é raro. Tão raro que o ocorrido em 1946 nunca foi superado.
O Superman segue lutando causas simbólicas e demonstrando apoio a pautas que merecem apoio. Mas nada drástico como servir de escada pra uma exposição da KKK e nada que tenha de fato enfraquecido grupos poderosos. Mas cabe falar que o filho do Superman, John Kent, que também adota o nome de Superman ter se assumido Bissexual gerou uma controvérsia histórica pela quantidade de conservador ofendido. E diferente de quando o Superman abdicou de sua cidadania estadunidense, aqui ninguém voltou atrás. E isso é algo. Não é encarar a KKK, mas é algo. E tem valor.
Eu só acho complicado quando na questão do aquecimento global o Superman se foca em levantar placa e não em jogar uns CEOs em uma região inundada e mandar eles nadarem de volta. Porque eu vou ser sincero, a ideia de que o Superman existisse a única coisa que ele faria pelo clima da Terra é levantar placas me deixa mais deprimido que esperançoso.
Mas é que nenhum bilionário atualmente está investindo realmente no fim do aquecimento global e dentre seus investimentos está comissionar um filme do Superman só dele esvaziando fábricas e aí explodindo elas. E destruindo a indústria petrolífera sem machucar ninguém. Alguém podia, mas ninguém jamais fará.
E 78 anos depois a KKK, enfraquecida nesse ano por esse incidente é hoje uma organização cuja força, influência e números de membros cresce, nos lembrando que esse tipo de impacto, apesar de importante é temporário.
Conclusão:
Gente! Existe um problema nos fãs de Cultura Pop. O de viver uma contradição com as obras que eles admiram. Eles querem que as obras sejam celebradas por seu tamanho, seu impacto cultural, e igualar suas nerdisses ao status equivalente ao da arte do mais alto prestígio, alegando que o impacto das nerdisses faz com que eles não devam nada pra Shakespeare. Mas se alguém questiona, se os grandes poderes da cultura pop, exigem grandes responsabilidades, e questiona que valores essas coisas realmente promovem e como podem promover ideias melhores ainda, esse questionamento é seguido de um recuo. Da alegação de que é só escapismo pra crianças. Não se pode cobrar mais.
Vemos esse fenômeno com o filme Barbie, em que o sucesso do filme faz os fãs exigirem que seja considerado como um sucesso do feminismo. Mas quando o filme é lido pelo prisma de sua promoção do capitalismo, e falsidade em sua mensagem, aí pedem que não exagerem, é só um filme pra crianças.
No meio dos videogames é onde vemos mais essa diferença. Em um grupo de fãs que quer que todos se curvem aos videogames como os grandes gigantes da cultura pop e uma obra de arte tanto quanto qualquer outra mídia. Mas que tremem com a ideia de que por ser uma mídia artística gigante ela pode ser lida politicamente. Pois é pra ser só escapismo divertido, é só entretenimento.
Eu acho que algo semelhante rola com super-heróis. Em que os fãs celebram o impacto e alcance de seus símbolos, o quão reconhecíveis são e o quanto uma pessoa precisa viver numa caverna pra não conhecer o Superman ou o Homem-Aranha. Mas quando a gente se pergunta o que esses personagens são usados como propaganda e construção de identidade nacional, logo vem as respostas de “não, mas a real essência do personagem que a gente vê nesse gibi específico mostra que ele representa outra coisa”. Como se fosse aquele gibi específico que só quem mora numa caverna não leu.
Faz-se uma pré-seleção das fases, hsitórias e roteiristas que tiraram o melhor que um personagem tem a oferecer, e se escreve em pedra: “O que ele é, é isso. Isso aqui é o que deve ir pra frente e o resto não presta.” sendo que o resto costuma ser uma coleção muito grande de gibis, filmes, séries e etc… e aí eles começam o discurso de que são os roteiristas que “não entendem o herói.”
E aparentemente super-heróis são muito confusos, pois é muita gente que não entende os heróis. Que falhou em ler os quadrinhos certos e levou a sério os quadrinhos errados. Gente que não entende o Batman, o Superman, o Capitão América, a Mulher Maravilha, o Hulk, nossa, boneco que não é entendido tem por todo lado. E quanto mais famoso menos entendido.
E eu acho, pessoalmente, que super-heróis são símbolos. E são símbolos tão grandes que tem dominado o entretenimento estadunidense, e portanto do mundo, por décadas e décadas, que eles passaram o ponto de serem entendidos e entraram no ponto em que eles são interpretados.
Criam-se grupos diversos para interpretar o que a mitologia do personagem quer dizer. E criam-se interpretações e reações aos personagens em resposta ao que esses grupos fazem.
E esses personagens em 2024 existem como navios de Teseu, em que todos os envolvidos em suas primeiras histórias estão falecidos, tudo recebeu um rebrand, e eles são um resultado tão grande de escrita colaborativa, em que o rádio, os filmes, os desenhos animados cada um adicionou um detalhe a mitologia e um retcon diferente, que se tornou impossível seguir insistindo em uma essência verdadeira oficial que deve guiar todas as outras.
Mas eles insistem em procurar uma, e em medir todas as interpretações com base em se está entendendo ou não está entendendo a essência do personagem. Colocando isso acima da ideia de o personagem pode estar sendo interpretado pra dialogar com algo além de um bando de gibi.
Algo como, a guerra ao terror, por exemplo.
E assim? Sabem a cruz? Aquele grande símbolo do cristianismo? Sabem? O cristianismo? Aquela religião que tem 45.000 denominações cada uma com a sua própria interpretação da bíblia. Algumas mais interessantes que outras. Algumas mais problemáticas que outras. Algumas no nosso congresso passando leis terríveis que não deviam passar, e gritando “Em nome de Deus” na hora de cometer atrocidades?
Quando um metaleiro usa uma cruz invertida pra se rebelar contra a Igreja a pergunta de “será que ele entende que existem denominações que ele não discordaria delas eticamente?” é uma pergunta irrelevante, que distorce o ponto do uso da imagem invertida.
Assim como, quando South Park retrata Mickey como um empresário abusivo com práticas antiéticas de manipulação de crianças, de política e de comércio internacional, não é importante explicar que os criadores de South Park não entenderam que o personagem girando o timão no barquinho é um cara legal.
Símbolos benignos, escondendo grupos arrombados são corrompidos pela cultura pop por causa dessa afiliação, e essa afiliação não precisa ser a única coisa que esse símbolo esconde, pra que essa corrupção tenha poder.
E isso é importante. Pois “poder” é um dos grandes temas que Super-Heróis trabalham. O Homem-Aranha disse que com Grandes Poderes vem Grandes Responsabilidades (o Tio Ben disse, o Aranha só repetiu), e o ponto do Thor é que ele tem que ser digno de seu poder e de levantar o Mjolnir. O que se faz com seu poder é uma lição importante. Por isso muitas histórias discutem a natureza do que significa ter poder, em particular o poder de destruição, com analogias diretas a armas de destruição em massa.
Em All Star Superman, Grant Morrisson deixa implícito de que qualquer um que tivesse os poderes do Superman ia naturalmente virar um altruísta e usá-los pro bem. Até mesmo um vilão se redimiria no instante em que tivesse os poderes absolutos do Superman. Em Batman v. Superman, Zack Snyder deixa explícito que não acredita que pode existir pureza em possuir poder, e acreditar em gente poderosa é acreditar na mentira dos Estados Unidos. São crenças opostas, não sobre a mitologia de um personagem infantil, mas sobre como a humanidade se relaciona com o poder.
A grande maioria dos grandes heróis que constroem a identidade nacional de um povo, passam por um processo em que entendemos que na vida real eles eram um grupo de assassinos glorificados por estar no lado vencedor. E essa desilusão se transfere pra cultura pop. Podemos observar isso em histórias cínicas de desilusão sobre como cowboys eram escrotos, como samurais eram escrotos, como bandeirantes eram escrotos, como cavaleiros eram escrotos, como as cruzadas foram escrotas ou como o exército estadunidense é escroto…
Mas heróis fictícios estão imunes a essa desilusão, pois por não existirem de verdade eles não tem podres pra serem descobertos.
E por não existirem de verdade eles são uma demanda. “O mundo seria melhor se o Superman existisse” é uma demanda eterna de pessoas que queriam um mundo mais justo. Era uma demanda de Shuster e Siegel. É uma demanda de quem queria que tivessem socorrido um ente querido. De quem quer ver os bullys levarem socos. E de quem acha que pro mundo ser melhor, é só questão de socar todos os bullys.
E a resposta “Se o Superman existisse, ele seria estadunidense, e portanto tornaria tudo pior.” segue uma resposta relevante. Pois os EUA seguem usando seu poderio militar, e uma lógica de que seu poder militar lhe dá direito de policiar o mundo, pra fazer o planeta ser um lugar melhor. E a consequência de sua influência é o inglês ser a língua franca do mundo todo, são as empresas de vários países agirem contra o próprio povo em interesse de negócios com os estadunidenses, e uma consequência discreta e inofensiva é seus gibis da Marvel e da DC serem vendidos em dezenas e dezenas de países, e transformados em um assunto importante para um jovem que cresça em qualquer parte do mundo.
Por isso eu quero voltar lá no começo do texto na pintura de Roger Shimomura. Um sobrevivente de um campo de concentração que aprisionou e matou descendentes de asiáticos em nome de um racismo que o Superman ajudou a promover, pois na época as pessoas achavam que promover esse racismo era necessário pra fazer o bem. Ele viu que apesar do tratamento racista que recebiam do governo, sua avó via o governo estadunidense como um agente benevolente e com esperança, comovida pela compaixão que ela achou que recebia. E representou essa contradição entre a esperança de sua avó e seu tratamento desumano, com ela sendo vigiada por um Superman sinistro.
Será que a escolha dele de usar o Superman na pintura é um caso de ele não entender o Superman? Que se ele lesse histórias melhores, ele mudaria de ideia?
Ou será que o mais importante da escolha dele, foi ver que ele entendeu os Estados Unidos?
Em 2025 vai estrear o filme do James Gunn sobre o Superman. E todo fã de HQs está testando a temperatura da água de se o James Gunn entende ou não entende o Superman nas decisões que ele toma.
Mas cá entre nós, depois de assistir The Suicide Squad dele, eu realmente acho mais importante saber, se o James Gunn entende ou não entende os Estados Unidos, e que Estados Unidos o Superman do seu filme vai representar.