Como funciona a idade na ficção. Parte 2 – Os Contorcionistas de Idade.

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Olá meus leitores maravilhosos. Bem-vindos à parte 2 do texto sobre as relações de idade. Quem ainda não leu o primeiro, deixo aqui o link, pra melhor continuarmos esse papo.

Nesse texto eu quero  conversar com um tropo fictício que apesar de ser muito comum na ficção ele ainda não tem o nome…. E eu quero propor aqui um nome. Quero falar nesse texto sobre o que eu chamo de Age Bending, em homenagem às dobras vistas em Avatar the Last Airbender, e que em português eu poderia chamar de Contorcionismo de Idade.

A ideia é que esses personagens não envelhecem da mesma maneira que um ser humano envelhecem. O poder da magia, da biologia alien ou da super-ciência permite que o corpo desses personagens viva uma fase biológica que nada tem a ver com quantos anos de vida o personagem tem.

Eu fui levemente desonesto quando disse que esse tropos não tem nome. Pois o Tv Tropes cataloga vários tropos sobre pessoas que na real tem 1000 anos, ou que não envelhecem, ou de menores de idade fingindo ser adultos. Temos também o também não catalogado pelo Tv Tropes Born Sexy Yesterday cunhado pelo canal Pop Culture Detective. Mas não tem nenhum termo guarda-chuva unindo esses diversos tropos em um só conceito.

E eu sinto que uma das consequências dessa falta de nome é que a gente debate muito mal esse tropo, e especialmente na internet a gente deixa ele a mercê de um assunto muito desconfortável. O fato de que vários desses personagens podem ser roteirizados para ser colocados em contextos românticos e/ou sexuais que vão ou ser incompatíveis com o corpo do personagem ou com sua idade mental.

Então todo contorcionista de idade ao existir em uma obra de ficção, instantaneamente levanta o debate de quanta pedofilia ou potencial pedofilia a obra de ficção está retratando.

E eu acho que em alguns exemplos é necessário fazer a pergunta, de fato, mas a maneira como o debate é onipresente reduz toda a noção da barreira entre as idades ao mero ato do sexo. Motivo pelo qual eu queria muito escrever o texto anterior antes desse, para lembrarmos de que elementos realmente separam a infância da vida adulta e qual o papel do sexo nessa separação.

Enfim, eu sou Izzombie, sejam bem-vindos ao meu texto. Hoje vamos conversar sobre os contorcionistas de idade. O que eles tem a dizer sobre idade. Quais as implicações por trás deles. Quantos tipos diferentes existem e o que os tipos tem em comum e diferente.

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Pois esse texto é escrito em homenagem a todos os que já me apoiam. E que deram boas ideias pra esse texto, e cujo papel que vocês tem tido na minha escrita desde que surgiram tem sido imenso. Agradeço de coração e espero que gostem do texto.

E esse texto é sobre contorcionistas de idade, ou age benders.

E é sobre como esses personagens são atormentados pela necessidade do fandom de entender, eles devem ser tratados como crianças ou como adultos.

Por isso eu acho que o melhor lugar pra começar é por um grupo em que tanto o corpo quanto a mente são de criança….

As crianças eternas.

As vezes estamos vendo um filme de vampiro, e alguém faz o comentário, “essa personagem tem doze anos, ela tem doze anos já tem muitos anos.” eu sempre ri dessa piada. Achava bem bolada. E ela vai ao cerne do que são esses contorcionistas de idade, que são crianças completamente incapazes de envelhecer.

90% delas são vampiras, fantasmas, zumbis ou outro tipo de morto-vivo que travou a criança na idade de sua morte, mas elas não precisam ser vampiras.

Pois o exemplo mais famoso dessa categoria não é um vampiro é o Peter Pan.

O Peter Pan é uma criança. Ele era uma criança quando o pai da Wendy era criança, e ele é uma criança quando a Wendy era uma criança, e ele ainda será uma criança quando a Wendy tiver uma filha.

Ele é incapaz de envelhecer com a passagem do tempo, mas ele é também incapaz de amadurecer, ele nunca vai parar de agir como uma criança. Ao ponto em que continuar contando anos é irrelevante, não existe diferença mais na idade não importa o quanto o número cresça.

Será que tem alguma idade canônica na qual o Peter Pan está congelado? Deixa eu checar. Olha só, ele tem sete anos. Puxa, eu jurava que ele tinha uns 11 ou 12… por causa de toda a história da Wendy querer beijar ele. Mas não, ele até tem dentes de leite… que não vão cair.

Enfim, eu não sou um especialista no Peter Pan original, termo que eu uso aqui pra me referir à peça de teatro de 1904 ou ao livro de 1911, ambos escritos por J. M. Barrie. O que eu vi foi diversas outras adaptações do personagem, em especial pro cinema, que naturalmente cada uma carregou sua própria semelhança e sua própria diferença do material original.

Mas uma coisa que elas tem em comum, é que Wendy não quer crescer, ela é a irmã mais velha, e está passando por uma série de mudanças de responsabilidade na sua vida, e ela não quer crescer, e o Peter Pan representa a tentação dela, de ir pra Terra do Nunca e de fato ser criança pra sempre, mas lá é onde ela percebe que ela precisa de fato assumir responsabilidades, e que a imaturidade dos seus irmãos influenciados por Peter e pelos Meninos Perdidos precisa ser balanceada. E ela volta pra casa e deixa Peter Pan na Terra do Nunca. E embora ela volte com memórias por Peter, o passar do tempo vai separá-los, pois Wendy agora vai aceitar crescer, e Peter vai ficar pra trás, na infância.

Eu gosto muito da ideia de que o próprio pai da Wendy já foi visitado pelo Peter Pan, mas se esqueceu.

A incapacidade de Peter de crescer é um problema, e um defeito. Pois se a fase infantil e peralta dele não é só uma fase pra formar um adulto capaz de se portar como um adulto, então ele só fica pra trás, incapaz de ir pra próxima etapa de sua vida. E Peter não é só peralta, ele pode ser cruel e pouco empático de maneira que muitas crianças são, mas aprendem a respeitar os outros enquanto crescem, e Peter jamais aprenderá.

Que é o lance do filme Låt den rätte komma in (Deixe Ela Entrar, em português), e no seu remake estadunidense. No filme a vampira Eli, que tem 12 anos já tem algumas gerações, faz amizade com o jovem Oskar, que de fato tem 12 anos. Eles se conectam e Oskar se apaixona, mas o filme deixa claro, que conforme Oskar envelhecer, Eli não vai, e a paixão dele por ela vai se transformar gradativamente em um amor paterno com subtextos muito desconfortáveis. E que o pai adotivo de Eli no filme era somente outro garoto igual a Oskar anos atrás, e que ela não será capaz de acompanhá-los. Pois Eli não vai se conectar com um adulto.

Passar a eternidade na infância é apresentado como um problema. Não ser capaz de envelhecer mentalmente impede os personagens de criarem conexões entre iguais que não sejam ridiculamente temporárias, pois em poucos anos, os amigos desses personagens vão deixá-los pra trás.

Uma noção de que a infância perde o valor sem a perspectiva da vida adulta, pois significa que a criança na verdade não será capaz de se tornar uma pessoa melhor. E ninguém tem a maturidade pra ser a melhor pessoa que pode ser na infância.

Acho que o anime omitiu essa parte, mas a Chibiusa inclusive é uma criança já tem 900 anos.

Com grande ênfase em ser uma perda pro personagem, enquanto pessoa, viver por séculos sem atingir o estado emocional necessário pra realmente viver um romance, que seus amigos iriam querer desenvolver se os anos passassem.

Muita história sobre crianças que não realmente desenvolvem empatia ou outras características emocionais dialogam com isso daqui.

E nesses exemplos temos firme a noção, os anos podem passar, a mente da criança jamais ficará a de um adulto, pois ela é compatível com seu corpo, mesmo se o personagem tiver, 30, 40, 50 anos. Mas eles gostam mesmo é de sempre fazer o personagem ter mais de um século.

Ainda no espectro dessa compatibilidade temos o seguinte caso.

Dupla-Idade e Dupla-personalidade.

Esse aqui é simples. O personagem não está preso na infância. Aliás, o personagem não tá preso em idade nenhuma, ele pode alterar a própria idade, pode ir pra frente ou pra trás. Mas alterar a própria idade física, envolve alterar a própria idade mental. E isso causa o efeito de uma dupla personalidade do personagem.

O melhor exemplo pra explicar isso é a personagem Nezuko Kamado do mangá e anime Kimetsu no Yaiba, conhecido como Demon Slayer no ocidente. A Nezuko tem dois poderes no mangá, ela pode fazer o sangue pegar fogo, mas o fogo só vai machucar demônios, e ela pode alterar a própria idade, se rejuvenescendo ou se envelhecendo o quanto quiser.

O problema é que a Nezuko é uma pessoa que foi transformada em demônio. E ela está em um estágio de híbrido entre humana e demônio controlável em sua forma normal. Porém ao envelhecer, ela se torna mais demoniaca, menos híbrida, e portanto mais hostil. Pois o amadurecimento de Nezuko é também ela ficando menos humana e mais perigosa.

Na veia oposta, ela pode se rejuvenescer pra ficar mais dócil, o que ela faz constantemente, pois ela mora em uma caixa menor que seu tamanho normal, e precisa se rejuvenescer pra caber na caixa.

A Nezuko trás a tona uma questão desse tipo de habilidade que você vai notar na mídia anime e mangá mais do que você achará em qualquer coisa estadunidense. Que é o fato de que quando é uma mulher usando esse tipo de poder, não é na altura da personagem que estará o grande contraste visual pro expectador distinguir facilmente se a personagem está na forma criança ou adulta. É no tamanho dos seios.

Aumento enorme de seios para fazer contraste entre a forma criança e adulta é algo comum aqui, e aqui já vem o debate, desse tipo de poder servir pra sexualizar a personagem infantil. O que eu concordo ser deselegante. É fácil de justificar, mas no fim das contas, é só desculpa pra criar uma forma-peituda pra criança. Da mesma forma, é disparada uma das características físicas de maior destaque na hora de se distinguir um corpo adulto de um infantil. Ao mesmo tempo que, como sabemos, nem todo mundo cresce o peito no mesmo ritmo enquanto cresce e nem todo mundo vira uma peituda com a puberdade.

Nas mulheres: curvas. Nos homens: barba (ou calvície, depende se querem fazer um adulto daora ou tosco). É um guia visual melhor do que só a altura. Algumas mudanças na puberdade se destacam mais aos nossos olhos do que outras, mesmo que a puberdade bata de maneira diferente pra cada um, e tenha gente que não cresce barba.

Mas o lance dos peitos rola também com a Kusuri de Kimi no Koto Ga Dai Dai Dai Dai Dai Sukina 100-nin Kanojo, que é o mangá das 100 namoradas, que rendeu já dois textos nesse blog. Nenhum deles sobre a Kusuri.

Kusuri é a 5ª namorada do Rentarou nesse mangá sobre um jovem no colegial num relacionamento poliamoroso com um número gigantesco de garotas (eventualmente será 100), ela tem 18 anos e está no terceiro ano do colegial, além de ser um gênio da química com capacidade de conseguir grandes bolsas de estudo pra fazer faculdade no exterior. Porém tem um lance… na tentativa de inventar uma fórmula da imortalidade, ela inventou uma fórmula que rejuvenesceu seu corpo para o de nove anos de idade. O que abaixou sua idade mental para nove anos de idade.

Kusuri pode voltar aos seus 18 anos quando quiser, usando uma fórmula que reverte a sua idade original, mas só por alguns minutos. E isso faz ela recuperar sua idade mental.

Aí a pergunta que fazemos é: então Kusuri é criança ou adolescente?

Pois reforço, ela frequenta um ambiente adolescente, faz amizade fácil no terceiro ano, é respeitada como uma veterana por todos, acompanha a matéria. Socialmente ela é lida pelos outros personagens como adolescente apesar de sua imaturidade. Pois ela ainda tem 18 anos.

Mas nós sabemos que ela brinca de boneca, mas que se ela voltar a ter 18 anos ela vai ter vergonha de brincar.

O próprio Rentarou chama ela de namorada 2-em-1 de brincadeira, por como parecem ser duas pessoas diferentes as vezes.

O que é louco porque tipo. Tudo que a versão criança sabe, a versão adulta sabe também. Então a maturidade da Kusuri não é baseada em acúmulo de experiência e em como as vida dela moldou seu senso de responsabilidade e prioridade.

Kusuri é as vezes usada de contraste com Kishika. Que apesar de seus 18 anos, quer ser tratada como um bebê e ter comportamentos extremamente infantis. mas por vergonha ela veste uma máscara de maturidade, faz uma grande performance do adulto responsável, e cobra o mesmo de Kusuri.

É determinado só pelo corpo dela. Corpos pequenos são imaturos.

Porque é como falamos no texto passado. A gente vai crescendo e mudando por uma série de variações que mudam que passam pelas nossas experiências, nossas decepções, nossos traumas.

Não podemos realmente reganhar a inocência perdida virando uma chave que muda nossa altura e remove caracteres sexuais secundários, se mantivermos tudo o que sabemos.

Mas é como a idade funciona. E é como funciona em Adventure Time também.

Em Adventure Time, a Princesa Bubblegum tem 18 anos, mas ela não tem 18 anos, ela tem um corpo de 18 anos, e portanto uma personalidade de 18 anos. Na real ela tem um pouco mais de mil anos. Mas é muito louco, pois a sua idade na real é determinada pela quantidade de chiclete que existe no seu corpo.

Então no episódio em que ela perdeu um montão de chiclete e teve que ser reconstruída com menos massa, ela passou a ter 13 anos.

E assim como Kusuri, ela continuou com memórias dos seus mil anos de experiência de vida. Só estando mais imatura porque perdeu massa….

Sua mudança temporária pros 13 anos de idade foi criada pra permitir um espaço curto de tempo em que fosse possível pra ela ter um romance com o protagonista Finn, também com 13 anos de idade. Esse foi o tempo também em que o Rei de Gelo, o sequestrador assediador que sequestrou Bubblegum inúmeras vezes, desencanou de sequestrar ela, pois ele não curte crianças.

Desses três exemplos, Bubblegum é tratada sempre como a idade que ela tem em sua aparência, ninguém nunca trata ela como se ela tivesse 1000 anos. É sempre ou 13 ou 18. E a narrativa reforça, quando ela passa a ter 12 anos ela passa de fato ter 13 anos. Não é uma adulta disfarçada, ela rebaixou sua mentalidade àquela idade de fato.

Sendo inclusive, proibida de reinar, por não ser adulta o suficiente pra assumir as responsabilidades de seu reino. Essa é a história por trás da sua decisão de voltar a ser adulta.

Kusuri é tratada por Rentarou e por todas as outras como tendo 18 anos, mesmo ela obviamente não se portando como tal.

E Nezuko é tratada sempre como um animal, pois esse mangá sem um rolê estranho em como a Nezuko cumpre o papel de ”animal de estimação” do time muito mais do que o de protagonista feminina.

Tanto o tratamento de Bubblegum quando de Kusuri são o tratamento que deixa o público mais confortável com sua vida amorosa. Se Rentarou tratasse Kusuri como criança de 9 anos, seria tenso. Se Bubblegum fosse reconhecida como adulta mesmo quando criança também. A ideia de que elas vão ser julgadas pelo age gap é o que media como a série vai reconhecer que a sua idade aparente afeta a percepção de sua idade.

Vamos pra próxima categoria.

A transferência de mente.

Ok, vamos lá, esse é quando por algum motivo de um universo fictício, a mente de um personagem vai para um outro corpo. Que tem outro nome, outra aparência, outros parentescos e…. outra idade. Isso cobre troca de corpo diretamente, transformação em uma aparência nova e reencarnações.

A ideia é que independente das condições do corpo novo, a pessoa manteria a memória e a identidade de sua mente. Então por exemplo, se esse personagem médico de 30 anos, por exemplo, reencarnar como um filho de uma Idol, ele não será um bebê recém-nascido, ele será um médico de 30 anos, e deverá se portar como tal.

Esse exemplo que eu acabei de dar vem do mangá e anime Oshi no Ko, e eu quero muito usar esse exemplo, pois a internet adora olhar pra ele pelo espectro do quanto ele é problemático, e de fato, precisamos conversar sobre todas as implicações do Aqua. Que apesar de ser um ator mirim de 17 anos entrando no show-business, é secretamente um médico de quase 50 anos dentro de sua cabeça. Então quando Aqua se envolve em um romance com suas colegas da mesma idade, elas não realmente tem a mesma idade, e o que está rolando é pedofilia, pois ele é um adulto cometendo predação sexual em uma menor.

Mas ele é mesmo? Nossa tendência é enxergar Aqua como um adulto, pois ele tem as memórias de sua vida anterior. E a atitude do Aqua não ajuda, eu acho super-cagado que ele como bebê recém-nascido sexualizasse sua mão de uma maneira que não permitisse a ela criar um laço maternal com o próprio filho pela amamentação ou no ato de dar banho. Ele claramente tinha sua luxúria no corpo de um recém nascido.

….o que é curioso, pois de onde eu vejo pelo menos parte da libido deveria vir de hormônios que seu corpo ainda não é capaz de produzir. Já pensou que loucura se o desejo sexual e reação ao estímulo viesse unicamente do fato de termos conhecimento de que o ato existe? E ninguém perdesse a libido com o envelhecimento ou com o uso de certos medicamentos? Já pensou?

Enfim, os relacionamentos de Aqua tocam em um assunto muito delicado, pois envolve um crime muito hediondo e muito real que é a pedofilia, que talvez você tenha visto alguém na internet falando que essa palavra se refere a um diagnóstico psiquiátrico que não incluiria não sei quantos menores de idade, mas aqui estamos usando o outro significado da palavra que é como sinônimo do crime ”abuso sexual de menor”. Esse crime é o resultado de quando um adulto ou um adolescente mais velho, se envolve em atos sexuais com um menor de idade ou explora esse menor pra própria gratificação sexual.

Ano passado saíram as estatísticas de abuso sexual infantil no Brasil e são números assustadores, e lamento muito dizer que o Brasil não é um ponto fora da curva e que países como os EUA e o Japão, onde são produzidos os maiores exemplos de obras fictícias analisadas nesse blog, também não sejam exceções onde esses casos são contidos não. Especialmente na indústria do entretenimento, onde artistas podem usar a sua popularidade e o sucesso de obras direcionadas para o público jovem como maneira se abusar de menores de idade.

Em teoria, no Japão e nos EUA, maiores de 16 anos já tem a idade mínima para consentir a participar de atos sexuais. O Brasil ainda está preso a 14 anos, o que muitos, eu incluso, consideram cedo demais. Porém o que muitos ignoram ao falar de idade pra consentir, é que isso não significa que podem consentir um ato sexual com um adulto, pois obviamente não podem. O que entra em loopholes legais, pois jogam o número na lei justamente pra falar que pode. 

Pois adultos tem um desbalanceamento de poder ao interagir com uma criança que é a base do que torna seu relacionamento abusivo. Predadores sexuais usam ativamente do poder de serem adultos, de ocuparem status de autoridade perante suas vítimas, de serem figuras de confiança onde elas podem projetar a expectativa de proteção, de terem independência financeira, acesso a carros, a espaços que menores de idade não podem entrar, e o poder de isolar suas vítimas, como uma maneira de abusar desse poder pra coagir a vítima a uma situação em que ela não tem controle nenhum da situação em que ela está. O poder de usar sua autoridade, seu status e a confiança que um jovem tem em você pra pressioná-los a uma situação sexual não é algo que o jovem terá o controle da situação pra consentir ou não. Mesmo se esse mesmo jovem tiver controle e autonomia pra consentir com interações sexuais com parceiros de sua própria idade. 

Jovens nos seus anos finais como menores, já possuem libido, já desenvolveram parte de seus corpos, e possuem curiosidade sexual e atração sexual por outras pessoas. E muitas delas tem pressa em serem logo considerados adultos, e se atraem muito por elementos do mundo adulto que façam eles se sentirem distantes da infância. Algumas pessoas querem muito sentir que são maduras pra própria idade e que os outros adultos não as veem como crianças. Mas isso não quer dizer que são adultas e principalmente. Isso não significa que essas pessoas podem consentir, pois isso não significa que elas tem o controle real da situação, quem tem o controle é o adulto, e por isso, mesmo se um adulto for o crush de uma adolescente e for convidado pela adolescente a algo sexual, cabe a ele dizer não, desarmar a adolescente, e não cometer o ato. Fazer o oposto disso seria uma maneira de explorar as vulnerabilidades do adolescente. 

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Fazendo esse texto fiquei frustrado com o quão difícil foi achar esse discurso de Hard Candy (menina má ponto com) na internet, pois esse discurso eu acho importantíssimo.

Mesmo quando o jovem acha que esses casos são consentidos, o jovem ainda é uma vítima de abuso, e sofre as consequências psicológicas desses encontros, que incluem a depressão e transtorno de estresse pós-traumático. E criar um contexto, através do gaslight, em que ela ache que o ato não foi um abuso, por achar que ela foi quem seduziu o adulto, e portanto que ela tinha o controle da situação é como muitos predadores ficam sem ser denunciados.

O que me trás de volta ao Aqua, o adulto fictício no mangá Oshi no Ko que reencarnou com suas memórias e agora é adolescente e se envolve romanticamente com uma adolescente com quem ele participou de um Reality Show junto.

É notável no caso de Aqua que apesar dele ter as memórias de um adulto, ele não tem realmente o poder de ser um adulto. Ele não tem acesso real a como usar seu poder de adulto. Ele não é emancipado, ele é um estudante, sem carro, sem casa, e sem o poder de acessar espaços adultos sem a ajuda de um responsável. E ele ser mais maduro do que se espera de sua idade não dá a ele o poder de entrar nesse espaço.

Aqua constantemente usa o contato com o diretor de cinema Taishi pra que este navegue nas áreas do mundo adulto que ele não consegue. Taishi ainda mora com a mãe, mas mesmo assim ele tem o poder de um adulto que o Aqua não tem.

Dá a ele o poder de defender essa mesma colega menor de idade ao justamente expor como contratos assinados por adolescentes na indústria do entretenimento servem pra fingir que o adolescente tem um controle da própria situação que não realmente tem, e pros adultos que de fato deviam se responsabilizar lavarem as mãos. Como ele sabe como essas coisas funcionam, ele pode escancarar esse consentimento simulado e deixar dizer o que ficou não-dito.

Na série, Aqua está tentando investigar um assassinato (o próprio) e é visível o quanto ele depende de outros adultos pra fazer parte do trabalho por ele.

O que significaria que a relação dele com a garota não pode realmente gerar um desequilíbrio de poder que tire dela o poder de ter o controle da situação. Nem mesmo o fato dele trabalhar na indústria do entretenimento permite isso, pois ela também trabalha ali. Ele não tem impacto nela com sua fama. E ele não ocupa posições de autoridade com ela.

Dito isso, Aqua é manipulativo, e canalha em seu relacionamento, e manipula e usa a Akane pra conseguir pistas do que ele investiga. Mas isso põe ele mais próximo de casos como os do Light Yagami, de Death Note, que é certamente um dos mais asquerosos super-vilões já pensados num mangá, mas que não é de fato um pedófilo, embora seja um boy-lixo completo. Os problemas do Light com a Misa não dialogam com a questão da pedofilia. E Light pega muito mais pesado que Aqua, Aqua não é um serial killer, mas é manipulativo e babaca, como pessoas podem ser com parceiros da mesma idade.

E a ideia aqui não é passar pano pro Aqua, e sim questionar o quanto ele ter as memórias de um adulto permitem que ele se fato seja um adulto. Ele não está somente preso a um corpo, ele está preso a uma identidade e a uma vivência. Ele não tem nenhum personagem que realmente o conheça de sua vida anterior pra reconhecê-lo, exceto por sua irmã Ruby, que também é uma reencarnação com memórias intactas de uma paciente dele. Mas ele não tem uma âncora em sua vida anterior que faça ele operar em duas chaves. Ele é o Aqua, ele vê Ruby como irmã e sua mãe como sua mãe.

Tanto que tanto eu aqui no blog, quanto o fandom no geral se refere a ele exclusivamente pelo nome Aqua, embora o nome do médico adulto seja Gorou Amamiya, pois esse nome não é realmente usado desde o falecimento do médico.

Enfim, eu acho importante ressaltar a relação desse tipo de situação de abuso sexual na perspectiva da dinâmica de poder, não só porque o abuso sexual e a violência sexual são muito mais sobre poder e sobre ter controle sobre as as vítimas do que são sobre atração sexual e tesão. Mas também porque existem limites do que a ficção pode ser usada pra alertar ou não uma pessoa. Como a situação “o seu colega de sala na escola secretamente tem 40 anos e quer te seduzir por ser pedófilo” é uma situação que literalmente ninguém no mundo passa. Porém dinâmicas de desequilíbrio de poder quando vistas para ilustrar um relacionamento tóxico podem ser usadas pra fazer pessoas terem perspectiva pra entender que elas passam por situação igual e pra reconhecer comportamentos tóxicos num relacionamento.

É um dos motivos pelo qual insistimos que as crianças tenham aulas de educação sexual nas escolas, para dar a elas vocabulário e contexto pra entender se elas sofrem ou não abuso e os meios de denunciar abuso caso sofram. E apesar de estatisticamente comprovado que essas aulas ajudam as crianças a denunciarem pedófilos, e que a maioria dos abusos sexuais contra crianças acontecem na própria casa por um membro de sua família, os conservadores seguem insistindo que a escola não pode ensinar essas coisas, somente os pais podem ensinar essas coisas, e seguem jogando as ovelhas nas garras no lobo. Entender o papel que as dinâmicas de poder tem nessas coisas é essencial, e ignorar isso pra falar que tal série fictícia naturaliza pedofilia porque usou magia pra fazer algo que jamais acontecerá acontecer, é cagado.

Nos anos 2000 circulou na internet essa webcomic chamada Clarissa, sobre uma garota abusada sexualmente pelo próprio pai. Famosa por ser extremamente pesada, e tocar diretamente num assunto que ninguém quer olhar de frente. Enfim, e a série coloca foco em como as crianças sem o devido conhecimento não falam diretamente, mas dão dicas que muitos professores e responsáveis ignoram. E por isso é essencial ajudar as crianças a conseguirem denunciar pros demais adultos.

Até porque é não é incomum encontrar elementos fantásticos e mágicos que explicitamente usam essa disparidade de poder como um fetiche explicitamente colocado pra agradar o leitor em obras que usam reencarnação, especialmente em alguns isekais.

Personagens que reencarnam em mundos de fantasia, onde eles podem usar seus conhecimentos privilegiados pra ser donos de escravas, ou aprisionar mulheres a eles como primeiro passo de um romance, ou flertar com mulheres com metade de sua idade, graças as vantagens que eles vivem nesse mundo. E bem, as vezes reencarnação para um leitor de mangá vem com a ideia de um herói abusando de seu status implícita.

A situação de Aqua contrasta a do protagonista de ReLife, Arata Kaizaki. Arata é um homem desempregado de 27 anos, que recebe a proposta de participar de um experimento social, em que ele tomaria uma medicina que o rejuvenesceria até seus 17 anos e refaria o terceiro ano do colegial usando documentos falsos e estando sob conversação, e após um ano ele receberia um emprego e estabilidade em sua vida adulta.

Em ReLife, o personagem se identifica como adulto durante o processo, pois ele vê seu rejuvenescimento como temporário, e a principio via sua situação como uma simulação de colégio, a não ser levada a sério. Com os eventuais twists de com o tempo ir descobrindo que alguns colegas de sala eram também adultos rejuvenescidos envolvidos no experimento, como observadores ou como participantes.

Aliás, agradeço aos meus apoiadores, que sem eles eu não teria me dado ao trabalho de ler ReLife pra esse texto.

Enfim. Arata é um adulto, e ele pensa em si mesmo como um adulto socializando com adolescentes como parte de um experimento. Enquanto Aqua vê os demais adolescentes como seus colegas, pois eles de fato estão no mesmo barco. Aqua não está simulando uma escola, ele está tentando criar uma base pra ter um futuro profissional. Ele está criando contatos com pessoas que podem não ter 40 anos de memórias e vivência como médico, mas são socialmente, seus iguais.

Então enquanto Arata segue sendo um adulto mesmo quando jovem…. Aqua de fato deixou de ser um adulto, ser um adulto não é uma opção pra ele mais do que é pra qualquer jovem de 17 anos.

E Arata tendo contato com os responsáveis do experimento constantemente, e podendo virar a chave e falar com eles enquanto um adulto, permite que ele tenha uma âncora na vida anterior.

Que é o exato mesmo caso do protagonista do sucesso recente da Shonen Jump, Kill Blue, que foi transformado em criança a força, e foi matriculado em uma escola, e embora ele goste de ser um estudante, e esteja vestindo a máscara de estudante, por sentir prazer em estar na escola, ele tem dificuldade de ver as demais crianças como iguais, segue tendo acesso ao seu poder de adulto, mantendo seus contatos profissionais e sendo auxiliado por suas relações da vida adulta, e virando a chave quando está sozinho com as âncoras de sua vida anterior.

Existem exemplos do inverso. De uma criança que é jogada repentinamente pra uma identidade adulta onde cabe a ela viver uma vida adulta. Mas acho que merece sua própria categoria.

O espichão mágico de repente.

Crianças, que de repente simplesmente acordam num corpo adulto. O corpo não é uma identidade nova necessariamente, eles são eles próprios, eles só envelheceram. E agora eles são adultos. É a inversão do exemplo anterior que é pensado primariamente em adultos em vidas jovens.

Mas segue as mesmas ideias, em 13 going on 30, a protagonista de 13 anos precoce, depois de desejar ser mais velha acorda no futuro, com 30 anos e sem memórias dos 17 anos que ela pulou. E agora ela tem que lidar com o caos de vida que ela vive, julgar sua eu do futuro por más decisões, e aprender a se virar no seu trabalho.

A protagonista, ao acordar com 30 anos, tem seus trancos, mas ela aprende relativamente rapidamente a passar por adulta em seu ambiente profissional. O que a gente nota, pois é fácil pra ela rapidamente rastrear onde seu antigo melhor amigo de infância mora e ir falar com ele. E embora ela seja uma criança, e a gente note isso no seu medo de dormir com o seu namorado-de-13 anos, a gente nota isso especialmente na perspectiva infantil que ela tem do mundo em que ela vive.

Ela tenta de adequar a um ambiente de trabalho, mas ela não consegue realmente se adaptar a uma postura adulta, pois essa é a grande graça do filme, ver ela ser cringe com seu vocabulário, roupas, danças e postura. E nisso espelhar o que falta no mundo adulto. Ela deixa o mundo adulto dos seus colegas melhor, trás boas ideias pra revista que só podem ser pensadas, pois ela não pensa como um adulto, e aprende a valorizar o lado infantil dela que ela estava reprimindo.

Como ela passa por adulta, e consegue de fato navegar o mundo adulto mesmo tendo caído em The Devil Wears Prada de para-quedas, pulando a parte em que ela teve que lamber o pé da Miranda no processo, podemos dizer que ela não tem dificuldades de ser adulta. Só exerce sua vida adulta com uma perspectiva jovem e imatura.

….exceto no sexo. Aqui é uma dificuldade.

Quero comparar essa situação com o filme Big, em que Josh é uma criança que desejou ser um adulto e virou de fato um. E conseguiu um emprego corporativo rapidamente, onde sua perspectiva infantil deu aos empresários ideias fora da caixa que ajudaram a companhia.

Porém a reviravolta do terço final do filme, é que Josh transa com Susan, sua colega de trabalho, e no exato instante em que ele transa, a criança interior dele morre. E ele faz a metarmorfose, de ”uma criança num corpo adulto” pra ”um adulto”.

O que é marcado por mudanças como ele passar a tomar café depois de perder a virgindade, e principalmente a ele perder a paciência com seu amigo de infância com quem ele continuou interagindo mesmo depois do seu corpo se transformar.

Fica a dúvida se a Jenna ia perder a criança interior se dormisse com aquele jogador de Hockey.

Mas é no fim tanto Jenna e Josh voltam a idade normal usando o poder do desejo deles. Jenna pois ela quer uma segunda chance de desfazer as decisões horríveis que moldaram uma vida adulta cruel cercada de gente mesquinha e rever os valores com o qual ela vai crescer. E Josh por um senso de responsabilidade de que apesar de estar apaixonado por Susan, aquele não era o lugar dele, e ele precisa recuperar a sua infância, mesmo que sem ela… embora ele tenha convidado ela a virar criança com ele. Ela recusou. Os mundos se separaram, cada um com a idade que realmente tem.

E temos também o filme Jack, aquele sobre o garoto que envelhece 4 vezes mais rápido, e que aos 10 anos ele tem a aparência física de um homem de 40.

No filme, Jack estudava em casa pra evitar o bullying, mas então é enviado na escola onde ele é obviamente zoado pelos colegas até ele conseguir enfim se enturmar quando as outras crianças percebem que ter um amigo que se passa por adulto é útil.

E ele era útil pra duas coisas. Primeira: ele podia se passar por diretor pra mentir pros pais dos amigos que eles eram bons alunos. Segunda: Ele podia comprar revista de mulher pelada.

Sim, nos nostálgicos tempos em que a pornografia tinha como seu formato principal, revistas que se compravam na banca de jornal cheias de fotos de mulher pelada e um grande poster central. Eram tempos de mais classe, antes dos vídeos pornográficos.

Pois é. E a molecada de 10 anos no filme pirava nessas revistas, que nem a molecada da minha classe quando eu tinha 10 anos. E Jack pira nessas revistas também.

Jack na real pensava muito em mulheres mais velhas. Ele tinha uma crush na professora dele, e acreditava que por sua condição, ele pela falta de expectativa de que ele fosse chegar à vida adulta, que ele teria chances com ela. Mas não tem, e ela quebra seu coração. Jack passa mal, é hospitalizado, e resolve então ir pro bar.

Ali ele bebe pela primeira vez, e acha a bebida estranha. Então ele encontra a mãe do amigo, pra quem fingiu ser diretor, ela paquera ele, ele meio que curte. Mas quando ela beija ele, ele se assusta e tromba num cuzão. O cuzão quer brigar e Jack leva um soco e os dois são presos. A mãe do amigo do Jack paga a fiança dele, leva ele pra casa e eles se beijam de novo, dessa vez sem Jack se assustar, nem beijar de volta. Só triste e baqueado.

Essa cena foca bem na ideia de como apesar de Jack conseguir se passar por um adulto em seus ambientes, que a hostilidade das pessoas, o gosto do álcool e a maneira como a interação com mulheres escala rápido assustam ele. E voltando pra casa ele se tranca no banheiro por dias sem querer sair de casa mais.

E esses filmes gostam de usar como fonte de humor cenas em que o protagonista fala algo extremamente infantil na frente de outros adultos e eles estranham. Mas é nesses momentos, em que algum elemento da vida adulta que todos ao seu redor acham normal, assustam eles, e fazem eles querer sair correndo que são os momentos que o filme evidencia a real idade deles.

O mundo adulto é difícil de resistir. E é um lugar menos que confortável de se estar preso, ele é mais hostil, mais cruel e sexual de uma maneira que as crianças sabem, mas elas demoram pra internalizar.

Exceto em Big em que elas precisam só de uma noite de sexo pra internalizar.

Eu realmente não gosto dessa parte de Big.

Mas enfim, falando em passar por adulto, eu acho que enfim temos que ir pra última categoria do texto…. digo, eu até ia falar das crianças que são incapazes de envelhecer por alguma condição em níveis hiperbólicos que só existem na ficção. Mas elas são simples. Os exemplos são a Baby Doll do Batman, e a Esther de The Orphan, e as duas coringaram pra cacete por chegarem a vida adulta sem realmente conseguirem o corpo de uma adulta. Coringaram e mataram gente.

Não são elaboradas o suficiente e o texto já tá longo, então passemos pro que vem depois.

O disfarce de idade!

Aqui é o seguinte. Esses personagens não estão presos na idade biológica de seus corpos, eles podem alterar elas e ficar indo e voltando sem nenhum impacto na sua idade mental. Eles são a forma mais livre de todos os contorcionismos de idade, pois eles não estão presos de verdade a nada. O que faz a mudança de idade ter uma grande conotação de disfarce.

Em teoria qualquer personagem com um bom poder de transformação, como a Mystique dos X-Men ou o Envy de Fullmetal Alchemist pode potencialmente ser um contorcionista de idade, mas eles muito raramente usam o poder pra isso. Os que usam costumam ter seus poderes usados só pra isso.

Embora a Mystique criança tenha se transformado na mãe de Xavier na primeira cena de X-Men First Class.

Em One Piece temos a personagem Jewelry Bonney, que apesar de ter somente 12 anos, finge ter por volta de seus 24 anos, por motivos que eu presumo que sejam, querer ser levada a sério como capitã pirata. Ela tem o poder de manipular a própria idade o quanto ela quiser, não tendo somente duas formas, mas tendo inúmeras formas.

Então o eu verdadeiro dela é quando ela tem 12 anos, é uma forma vulnerável e frágil, que ela usa quando se sente emocional e está cercada de gente em quem ela confia.

A forma default dela, é quando ela tem 24 anos, embora siga tendo 12 mentalmente, essa forma ela usa o tempo todo, e é como ela se apresenta publicamente.

Mas quando ela vai lutar ela consegue se transformar numa versão adulta alternativa mais musculosa, pois seu poder não é somente envelhecer, mas é envelhecer de qualquer uma das inúmeras maneiras de envelhecer que ela imagina. Pois tendo 12 anos, o potencial da adulta que ela pode ser é infinito, e ela se imagina como uma adulta forte na hora de lutar.

Mas ela também pode virar uma idosa, o que ela usa pra fingir que é a idosa que cuidou dela durante um tempo, e pra se infiltrar em certos espaços.

O poder da Bonney é usado primariamente pra disfarces. Eu mencionei uma forma de batalha pra ela, mas é óbvio que ela não é um personagem pensado pra se destacar na batalha. Uma vez que seu arqui-rival é tão ridiculamente acima do nível dela que o arco dela encaminha pra ela confiar em entes queridos que a protejam. E ao se disfarçar ela esconde suas fragilidades. Na forma adulta Bonney age de maneira grossa, constantemente irritada e sem abrir muitas brechas pra amizades. E quando ela vai chorar e abrir o coração pra alguém ela volta a ser criança.

Com a exceção é claro, da vez que ela chorou na forma adulta em público, mas ela tinha acabado de receber a notícia de que o pai morreu, merece um desconto.

Então a mentira da Bonney é mais um escudo que uma mentira, ela está disfarçada entre adultos, mas ela foi pro mundo adulto por necessidade, pra se proteger dos seus inimigos, e mesmo estando faz dois anos se fingindo de adulta, ela ainda está aprendendo a amadurecer e a lidar com suas emoções de maneira menos impulsiva, pois justamente ser adulta não é só um grande ”enganar até alcançar” (tentativa minha de traduzir o termo fake it ultil you make it em inglês). E a real é que a chuva de traumas que os últimos anos dela tem sido, não fizeram ela amadurecer rápido, só obrigaram ela a precisar passar mais vezes por quem ela não é.

Também temos o caso do grande Didi, do filme Didi Quer Ser Criança, que eu certamente não teria visto se não fosse a insistência dos meus apoiadores, mas que bom que eu vi…. Pois esse filme é um desastre.

No filme os santos Cosme e Damião dão ao Didi um saco de balas que ao serem chupadas permitem que ele se transforme de criança para adulto e vice-versa. E Didi divide esse saco de balas com seu amigo Felipe. Didi é um adulto infantil e brincalhão que sente mais confortável perto de crianças do que de adultos e Felipe é uma criança precoce que quer crescer rápido e que especialmente, quer pegar a namorada do Didi. E é isso, Didi usa a bala pra se passar por criança e brincar com elas, e Felipe usa a bala pra por uns chifres no Didi.

Mas uma hora Didi percebe que ele tem que usar seus poderes pro bem, então ele descobre que pra isso, ele tinha que usar seu poder pra comer as balas da fábrica-de-doces onde ele trabalha na frente de outras crianças pra convencer elas a comer doces. E o filme enquadra os doces do Didi como doces saudáveis e não-industriais que fazem contraste contra os malignos doces cheios de corante do empresário maligno, que está literalmente pondo urânio nos doces.

Enfim, eu sou todo a favor de promover doces artesanais em vez de baldes de tinta insalubres. Mas quando o filme fala que o jeito ético de usar o poder é fazendo marketing de guerrilha direcionado a crianças. É manipulativo. Assim como é manipulativo do Felipe criar uma identidade falsa pra seduzir uma mulher.

Mas no final Didi decide voltar a ser adulto e aceitar as responsabilidades da vida, e ele pega a última bala pra que Felipe seja adulto pra sempre e realize seu sonho de comer sua namorada. E como Didi fez uma boa ação, os Santos Cosme e Damião envelhecem uma menininha que ficou amiga do Didi pra ela virar adulta e o Didi poder namorar ela e dar a namorada dele pro Felipe.

É um filme em que Cosme e Damião destroem uma infância pra que mulheres possam ser literais troféus pra recompensar boa ação, sendo a boa ação, usar marketing de guerrilha pra promover fábrica de doces.

Esse filme é um desastre.

Um exemplo interessante, porém é o mangá Sanda, em que o protagonista Santa é uma criança que tem o poder de se transformar e destransformar em Papai Noel.

Sanda é na real interessante, pela sua construção de mundo. Que gira completamente em torno da dicotomia entre adultos e crianças. Em que crianças são cada vez mais raras, e cada vez mais manipuladas pelos adultos. E o protagonista estuda em uma escola com um diretor excessivamente obcecado com a pureza da juventude. E que faz um controle absurdo da escola com o objetivo de impedir a corrupção dos jovens, mesmo que isso impeça junto o crescimento da juventude.

E Sanda aparenta ser uma criança normal, mas ao virar Papai Noel ele se torna um adulto, e é capaz de fazer coisas de adulto. Mas ele não é um adulto normal, ele é Papai Noel, o único adulto que é incondicionalmente um aliado de toda criança.

Timmy Turner tinha razão.

Pra Sanda sua forma adulta funciona como uma identidade secreta, nenhum dos adultos sabem quem é o Papai Noel. E a série explora a fundo a maneira como Sanda por viver duas vidas explora duas perspectivas muito diferentes de existir. Mesmo quando ele é Papai Noel, ele ainda pensa como criança muitas vezes, mas as vezes mesmo na forma infantil ele tem dificuldade de tratar as demais crianças como iguais.

Sério, Sanda não é nada além de uma exploração surreal e bizarra sobre todas as diferenças entre adultos e crianças, vista na perspectiva de um personagem que pela natureza de seu poder é os dois. E o vilão é igualmente um contorcionista de idade. Sendo esse diretor tão obcecado com a pureza que ele é um idoso que tem nojo da própria velhice, pois sente ela um sinal de corrupção, e faz inúmeras plásticas para aparentar ainda ter 20 anos e esconder os horrores da velhice. Ele educa as crianças a terem pavor de seu envelhecimento e de sua eventual corrupção e impureza, e o Papai Noel está lá para ensinar as crianças a não terem medo nem de serem crianças normais, nem de crescer.

E saindo do paranormal e dos super-poderes, fecho o texto com o único exemplo que não usa poderes, fantasia ou nada disso pra se justificar. Só a hipérbole cômica de uma situação absurda que é o caso do Vincent Adultman, de Bojack Horseman.

Uma das piadas mais memoráveis da série é quando Princess Carolyn começa a namorar o que ela acredita ser um grande homem adulto, que na verdade é obviamente três crianças em um sobretudo disfarçando muito mal o quando eles não sabem o que estão fazendo. Apesar de constantemente falarem que são três crianças, a que fica em cima das outras e de fato fala como Vincent se chama na verdade Kevin.

E todo o humor vem da maneira como quando eles estão juntos, Princess Carolyn quer fazer reflexões profundas sobre o que significa ser adulta, o que significa envelhecer, e sua insegurança com a juventude que se vai. E Kevin responde com jargões e símbolos do que ele, como criança, entende que é a vida adulta.

Kevin acha que os benefícios de ser adulto é beber álcool, ver filmes adultos, ter uma namorada e ir nos brinquedos com limitação de altura nos parques de diversão. Mas ele trás a tona como cada outro adulto ao redor dele vê o que é ser adulto. Como qualquer pessoa que inventa uma persona e interpreta ela por meses, Kevin trabalha questões de identidade que fazer os demais refletir sobre a própria. E a identidade da persona de Vincent se pergunta: “o que é ser um adulto?”. E Princess Carolyn pensa muito na resposta.

E esse é o segredo do disfarce de idade. Como eles estão livres pra terem outra idade sem pagar preço algum, eles tem que realmente pensar em quem eles querem ser. Pois quando se está preso em um lado, não tem nada que se possa fazer. Eli não pode virar adulta. Aqua não pode voltar pro seu corpo. Jack não pode realmente parecer uma criança, e sabe que vai morrer antes de ser adulto. E Bubblegum pode mudar de idade ao custo de alterações na sua mente e maturidade. Pra Baby Doll ser uma adulta de verdade sempre vai ser um sonho inacessível pra ela. Então eles não tem escolha, eles tem que lidar com as limitações de sua aparência e idade mental e tocar a vida.

Mas o Didi tem escolha. E ele tem que escolher se ele quer ficar paquerando menininhas de 11 anos, passar o dia sem trabalhar e depois fazer marketing de guerrilha pra ficar bem com os santos. Ou se ele quer ser um adulto, ter emprego, ter responsabilidades e agir como tal. E o filme é sobre escolhendo.

Tem fã de One Piece na expectativa de que o arco da Bonney termine com ela escolhendo aposentar sua forma adulta e passar a ficar como criança por default, quando o arco de Egghead acabar.

Na real tem muito fã torcendo pra isso, pois embora ela seja um dos poucos exemplos desse texto que não flertou ou teve romance com ninguém durante seu contorcionismo de idade, o fato de os outros exemplos e vários outros que não citei terem faz muito fã associar contorcionismo de idade como desculpa pra age gap desconfortável. E associam seu corpo adulto a um corpo sexual. Como se o grande motivo pra uma criança querer ser adulta é poder ser objeto sexual.

Tá todo mundo pagando pela misoginia do filme do Didi.

O que na real é um golpe de outro tropo muito desconfortável que rola aí. Em escala maior e em histórias mais realistas.

Crianças e Histórias de Romance:

Sabe, quando a gente vê um discurso conservador anti-LGBT, sempre tem um imbecil falando que pautas LGBTQIA+ são tentativas de sexualizar crianças e ensinar merda pra elas, especialmente na hora de se inserir representatividade pra esses grupos em histórias infantis. Isso além de uma mentira, é uma projeção tremenda, um caso típico de acusar o inimigo do que você faz. Pois a heteronormatividade usa e abusa do poder da mídia de naturalizar conceitos, pra naturalizar a ideia de que crianças se apaixonam, namoram e expressam atração da mesma maneira que adultos.

Isso porque romance dos Rugrats, ao Zack e Cody, às crianças da Kids Next Door, aos moleques de South Park, é um bagulho onipresente. Qualquer grupo de personagens na ficção, se dado tempo o suficiente vai começar a trabalhar romance e atração heterossexual entre eles. Não importa o quão jovens eles sejam in-universe. Não importa o quanto eles sejam desconectados de precocidade ou da vida adulta.

E deixando claro aqui. Não falo de um menino e uma menina se dando bem, e os adultos ao redor projetando que eles serão um casal. E aí quando eles crescem eles de fato se tornam um.

Eu falo da capacidade de se sentir atraído pelo sexo oposto, ver uma menina bonita e a beleza dela acertar esse garoto como a flecha do cupido e ele entender de repente um mundo de desejos por beijos e mãos dadas, e coisas que tem pouco a ver com a personalidade das pessoas, mas com a mais pura atração, de um homem por elementos da feminilidade e de uma mulher por elementos da masculinidade.

É a noção de que meninos provam que são meninos, pois tem atração por meninas. Mesmo quando acham que elas tem piolhos. E isso tá em todo lugar. Todo personagem tem vida amorosa, não importa o quão jovem seja, e namoradas é sempre visto como símbolo de status entre crianças da mesma idade, pois todas elas sempre tem a mentalidade pra entender o quão foda é pegar mulher.

Pois pegar mulher não é coisa de adulto. É coisa de qualquer ser do sexo masculino. Quando você nasceu homem, você nasceu atraído pelo feminino. E a mídia é parte de como a gente empurra esse ideal pras crianças desde cedo, mas não é a única parte, pais, tios, professores e adultos no geral incentivam essa mentalidade com vários comentários chamando a amiguinha de qualquer rapaz de “é a namoradinha”.

O que pressiona uma expectativa de performance heterossexual neles desde cedo, que é uma das maneiras como se desnaturaliza a falta de atração por mulheres, seja ela por ser atraído por homens, por não ser atraído no geral, ou por precisar de uma conexão emocional maior antes de ser atraído. Aspectos que a pessoa vai descobrir sozinha conforme cresce e explora sua curiosidade sexual nos seus termos e ritmos conforme ela começa a surgir naturalmente.

Mas tudo isso floresce depois que a norma já foi imposta.

E a mídia em massa, em todos os gêneros, em todos os estilos, em todas as mídias naturaliza isso completamente. Pois homens pensando com a cabeça de baixo são um dos grandes pilares no centro de todo o conceito de contar histórias.

Então os contorcionistas de idade fazem isso também.

Mas não fazem isso por serem contorcionistas de idade. Mas já que eles são, a noção de idade acaba por trazer um desconforto a tona quando o público enxerga rimas com a pedofilia nos atos, isso pode trazer outros tropos problemáticos a tona, e eu acho que a gente devia ser mais treinados para saber identificar esses tropos até porque eles aparecem fora de histórias com age gap.

Por exemplo. Em vez de focar na idade mental da mulher que o Didi pega no fim do filme, de fato foquem na ideia de que dois santos transformaram ela na recompensa de um herói que fez o bem e agora merece pegar mulher. Pois foi uma criança, mas poderia ser um cachorro, poderia ser uma mulher de 50 anos, teria um machismo inerente aí. Além da ideia de que a menina em si, mesmo sendo criança já tinha um namorado, que trocou ela por uma mulher adulta ao virar adulto então…. A história ativamente promove crianças interessadas em pegação no geral, mesmo as que não são o Didi disfarçado.

Da mesma forma, que eu chamo a atenção pro quão estranho é pra mim, o Aqua seguir atraído sexualmente pela Ai, mesmo quando ele ainda é um bebê. Não é pra ele ter uma gota de libido ali. Ele pode ter a informação do que é o sexo. Mas o desejo não vem do conhecimento, vem dos nossos hormônios, e ele não produz esses hormônios. Tipo, na moral, a ideia de que ele não é capaz de naturalizar ver peitos sendo bebê, por ter tesão demais e não conseguir mudar a chave, só me faz suspeitar que tipo de médico ele era. Ele reagia assim quando via a nudez de uma paciente?

Mas a ideia de que qualquer visão de peitos é sempre estimulante, de que homens não são capazes de naturalizar essa visão e de que eles sempre serão tentados, é um tropo que existe aos montes da TV, que é naturalizado, que é usado em personagens infantis. E o contorcionismo de idade do Aqua é um bom motivo pra apontarmos o quanto esse trope é mais cagado do que a ideia fantasiosa do bebê ter memórias.

Quase toda vez que um contorcionista de idade é problemático. A problemática maior estar em alguma visão distorcida de qual a dinâmica entre um homem e uma mulher, que é problemática independente da idade, mas acaba ficando na sombra quando a gente tenta usar esses casos pra definir o que é pedofilia e o que não é. Pois a maioria dessas histórias não mostra os personagens agindo como predadores sexuais e fetichizando uma dinâmica de poder que é a base de como a gente tem que conversar sobre esse assunto.

Porque tem essa galera da internet que de uns tempos pra cá desenvolveu essa obsessão com o termo “menor de idade”, e em ditar regras de como artistas devem desenhar, e que tipo de aventuras pode viver um personagem menor de idade. E é sempre focado na perspectiva da pureza. E sempre abrange até personagens de 17 anos, e problematizando retratos de curiosidade sexual vindo como parte do processo de crescer. E fazendo contas e mais contas sobre diferenças de idade de amantes fictícios pra determinar se determinada ação de personagem de 17 anos é problemática ou não.

Enfim, de 2005 a 2014, uma das série mais populares dos EUA era uma sitcom romântica chamada How I Met Your Mother, e o personagem mais popular da série era um chamado Barney Stinson, e o personagem era um predador sexual. Ele exibia comportamento predatório e manipulativo, tratava mulheres como troféus e conquistas, e apesar da série fazer um comentário ou outro sobre ele ser o cara “maligno” da turma, seu ato de predação era tratado como inofensivo. Na série, ele aderia ao Bro Code, um código de masculinidade e de amizade masculina, de como homens devem se portar perante outros homens, para serem homens aceitáveis socialmente. E esse código foi publicado e vendido com a foto dele na capa. Nesse código existe uma equação matemática de qual o Age Gap aceitável entre um casal pra ele não ser bizarro.

E eu acho que um guia de masculinidade sendo promovido com a imagem de um predador sexual vindo com uma fórmula matemática pra saber qual a idade mínima de mulher com quem alguém pode flertar um sinal do quão cagado é uma comunidade achando que por diferenças de idade na calculadora é a chave pra descobrir o que é problemático ou não. A conta já veio de um lugar cagado, gente.

Acho positivo que eles possam ser pontos de partida pra gente fazer mais debates sobre como sexualidade e atração são trabalhados da mídia. Pois a mídia tem um papel fundamental em como nós decidimos o que é natural e o que não é natural nas relações humanas. E em moldar a maneira como algumas pessoas estão inclinadas a acharem pessoas LGBTQIA+, pessoas em relacionamentos não-monogâmicos, pessoas com fetiches não-vanilla, ou em outras épocas, pessoas divorciadas, como pessoas estranhas, não-enquadradas na normalidade. A ficção retrata pra todos os públicos-alvo, noções do que é normal e não-normal num relacionamento, que moldam visão de mundo sim.

Mas uma criança se transformando em adulto por mágica? Isso nunca vai ser normal. Isso é sempre a antítese de natural. Mágica é sempre o oposto de natural, por definição. Uma mágica não naturaliza nada.

A ficção naturaliza um comportamento, quando cria um tipo de dinâmica entre personagens, enquadra como aceitável, e aí outros 100 filmes repetem a dinâmica enquadrando como aceitável, fazendo o expectador achar que aquilo ali não deve ser algo inventado pois tem outros 100 filmes fazendo igual.

Leiam meu texto sobre o poder da ficção.

Enfim, a ideia não é falar que nesse tipo de história nada problemático vai vir. Pois porra, vai vir. Eu não falei de Mushoku Tensei aqui, porque o texto não aguentaria a quantidade de coisa cagada que rolam quando Isekais pautados em fantasia de poder brincam com o contorcionismo de idade.

Mas eu acho que o motivo pelo qual o ser humano fantasia e imagina alterações mágicas na idade não são esse, como um trope que gira em torno de uma dinâmica de relacionamento.

Conclusão: Por que imaginamos contorcionismo de idade?

Janeiro não é somente o mês de aniversário do Dentro da Chaminé. É também o mês do meu aniversário. O que significa que dentre eu começar a ver e revisitar uma tonelada de histórias sobre idade e esse texto ser publicado, eu fiz aniversário. E olha, eu não costumo ser a pessoa que fica deprê no aniversário, mas, apesar disso, o pensamento intrusivo de “um ano já foi, não sei quantos eu tenho sobrando” passa na nossa cabeça.

Envelhecer não é legal. Mas é inevitável, é nosso destino. E nós, a espécie humana, somos excelentes em disfarçar, aceitar e achar o lado bom no horror lovecraftiano que é o conceito da passagem do tempo. Em conseguir ver paz em um conceito horrível que é o de saber que nossa vida é um grande relógio de areia e uma hora a última areia vai cair, não tem jeito.

Mas mesmo que no geral a humanidade consiga ser funcional apesar dessa informação. Cada pessoa reage a essa informação de uma maneira diferente. Cada um é cada um. Tem gente que não pensa nisso cinco minutos. Tem gente que não pensa em outra coisa. E o filme It Follows que muita gente acha que é sobre a personificação da gonorréia, é, na verdade, sobre esse tipo de pensamento.

Mas demora pra gente perceber que envelhecer é assustador. Pois quando somos crianças estamos distraídos pensando em como envelhecer é demais. A gente fica alto, a gente ganha barba, começa a expor pra pessoas inocentes nossos patéticos primeiros bigodes como se fossem um troféu. Presumo que deva ter um fenômeno equivalente pra quem cresce os peitos, não saberia dizer se existe também esse imenso orgulho pelo mais insignificante crescimento assim que eles começam a crescer. Enfim, a gente antecipa poder começar a dirigir, a beber, a transar, largar o inferno que é a escola. A gente usa terno pela primeira vez e se sente extremamente poderoso.

Aquela expressão de imbecil que fazemos quando acabamos de fazer 18 anos, queremos logo ir comemorar em qualquer atividade +18, só pro cara na portaria pedir nosso documento e mostrarmos.

Crianças querem crescer. Mas depois de crescidos, queremos ser jovens de novo. Quem tá na escola pensa que bom mesmo deve ser ter emprego. Quem tem emprego usa a nostalgia de que bom mesmo era estar na escola. Mas a grande moral que o Benjamin Button nos ensinou, é que mesmo pra quem faz tudo ao contrário, e começa idoso e só vai rejuvenescendo até a infância, passa pelo mesmo processo que todos os normais e esse processo termina no mesmo lugar.

As gerações brigam, competem, pais e filhos tem conflitos grandes, e exige um esforço real conseguir ver a perspectiva de quem tá outro lado nessa disputa entre idades. E é irônico, pois diferente de conflitos de gênero, de classe ou de raça, todo mundo que faz parte do conflito de gerações, em algum momento da vida luta de um lado, e em determinado momento, passa a lutar do outro lado. Todo mundo vivencia os dois lados, e mesmo assim temos tanta dificuldade de enxergar a outra perspectiva.

E eu acho que tem valor em usar as convenções da fantasia e da ficção científica pra fazer personagens que frequentem os dois mundos, que pela natureza de si mesmo, escancarem as diferenças e complicações entre crianças e adultos.

Cada personagem tem seus próprios termos pra definir se são adultos ou crianças. A idade de Eli é determinada pelo seu corpo, a de Jack pelo seu tempo de vida, a de Peter Pan por nenhum dos dois, dado que ele já foi tantas vezes interpretado por um homem adulto… primeira criança a interpretar o Peter Pan no cinema foi naquele filme de 2002.

E isso levanta perguntas interessantes. Da onde vem nossa maturidade? Das nossas experiências de vida? Do desenvolvimento do cérebro? Uma vez adquirida a maturidade pode ser removida por um processo de rejuvenescimento? Teríamos tomado decisões melhores se soubéssemos o que sabemos aos 10 anos de idade? Seria melhor pro mundo se alguns adultos tivessem uma relação melhor com a criança do passado deles? A gente pode realmente amadurecer sem envelhecer e sem as noções de nossa mortalidade? Um ser imortal, se tornaria gradativamente mais imaturo ou mais sábio?

Usar magia e aquilo que nossos pais chamam de “mentirada” na hora de ver Sessão da Tarde pra nos ajudar a olhar pra dentro e fazer essas brisas é parte do papel da arte. E eu acho que a gente se distrai demais com a ideia de que esses personagens têm o potencial de beijar gente na boca que não saiba sua idade real. Como se esse fosse o ponto.

Pois sério, qualquer reflexão de a partir de qual idade é ético a Daisy e o Benjamin Button começarem a se beijar e a partir de qual idade deixa de ser ético, é uma reflexão sem real aplicabilidade. É um filme de romance, e analisar que tipo de dinâmicas o filme de falo aplica no relacionamenot é bem mais útil.

Refletir sobre idade traz pontos muito mais interessantes.

Mas isso é o que eu acho. Esse texto não é uma aula, é uma conversa, e a conversa se completa com o que vocês acham, que vocês podem deixar nos comentários aqui ou nas redes sociais, mantendo o assunto vivo. Eu sei que estreou agora o filme Poor Things, indicado ao Oscar de melhor filme, que eu ainda não tive a oportunidade de ver, mas já sei que envolve uma contorcionista de idade, pois já vi gente nas redes sociais problematizando a potencial pedofilia por trás do filme. E eu nem tava ligado nisso quando comecei a escrever, mas me passa um sinal de que esse assunto nunca morre.

E ainda esse ano vai sair anime novo de Dragon Ball em que todos eles são transformados em crianças por magia. O que já vai ser a segunda vez que o Goku passa por isso. Tem sempre uma hova história fazendo contorcionismo, e sempre alguém vendo tudo do prisma da diferença de idade dos relacionamentos.

Então eu fico por aqui hoje, nos vemos de novo no meu próximo texto. Até lá!

Sobre o autor

Izzombie

Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

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Izzombie

Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

Alertas

  • – Todos os posts desse blog contém SPOILERS de seus respectivos assuntos, sem exceção. Leia com medo de perder toda a experiência.
  • – Todos os textos desse blog contém palavras de baixo calão, independente da obra analisada ser ou não ao público infantil. Mesmo ao analisar uma obra pra crianças a analise ainda é destinada para adultos e pode tocar e temas como sexo e violência.

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