Vocês tem notado que de uns tempos pra cá histórias de detetive tem explodido de uma maneira notável? Me soa como se estivéssemos entrando na grande era de histórias de detetive. Tá, não tem nada com o Sherlock Holmes (de protagonista) saindo, até onde eu sei, mas o Kenneth Brannagh engatou uma franquia de filmes do Poirot. A Enola Holmes ganhou a própria franquia cinematográfica. Ressuscitaram a Nancy Drew. A Natasha Lyonne está estrelando Poker Face, uma série sobre uma mulher em fuga que resolve um assassinato em cada local que ela para pra se esconder. A Wednesday Addams virou detetive. Eu sinto que o arquétipo está numa fase boa. E eu gosto disso, pois eu amo detetives. Eles sempre foram a coisa mais legal do mundo pra mim.
Isso me motivou a querer fazer um Top detetives. O que inclusive prometi pros meus apoiadores que eu faria eventualmente, mas acho que a promessa está quebrada. Pois eu quero fazer mais do que uma lista. Eu acho que quero fazer uma série de textos…
…não sei se quero fazer uma série mesmo. Eu quero fazer dois textos, com toda a certeza! Não sei se depois do segundo vai ter um terceiro, mas tem dois detetives pra quem eu não quero dar só um resumo do quão legais são, eu quero dar um texto completo analisando como seus métodos e mentalidades dialogam com o arquétipo e com o gênero de mistério. E quem faz dois, pode fazer hipoteticamente qualquer número, é uma porta que eu planejo manter aberta. E essa série será Detetives Divertidos.
Pois bem, o outro Detetive Descolado, que não será o próximo texto, pois eu não gosto de manter textos de temáticas iguais saindo um seguido do outro, mas enfim, a identidade dele é segredo, vou fazer charminho, até pra poder ter coisa que eu conto só pros meus apoiadores. Mas o detetive desse texto aqui é particularmente o meu favorito: Benoit Blanc, o detetive dos filmes Knives Out e Glass Onion, com um terceiro filme dele previsto pra estrear em 2024.
Então eu sou o Izzombie, sejam bem-vindos ao Dentro da Chaminé, e a esse texto para entendermos o personagem Benoit Blanc, seus trejeitos, a sua maneira de solucionar os mistérios, no que ele é bom, no que ele é ruim, o que é único dele e o que faz seu personagem funcionar. Quero olhar de perto pra ele.
Antes de começar o texto, quero falar sobre o apoio coletivo no Apoia.se do Dentro na Chaminé. Esse é um blog financiado por seus leitores, e que se você quiser ajudar o blog a se manter e melhorar, pode se tornar um dos nossos apoiadores, ter seu nome citado nos textos, receber prévias dos textos com antecedência, e ajudar a decidir textos futuros. O apoio ajuda bastante, e pra todos os apuros dos quais já sai graças a ele, tenho toda a gratidão do mundo por quem apoia o blog. Se você quiser ajudar, mas não quiser se comprometer com uma ajuda mensal, pode fazer um pix de qualquer valor pra chave franciscoizzo@gmail.com que será igualmente apreciado e homenageado.
Esse texto é dedicado a todos que já me apoiam. Galera firmeza e os verdadeiros heróis do blog. Espero de coração que gostem do texto.
E o texto dessa vez é sobre Benoit Blanc.
Quem é Benoit Blanc?
Quando temos um filme com um crime misterioso e um detetive que vai achar o culpado, esse detetive pode vir em três formatos. O primeiro é o detetive da polícia. Ele trabalha com um parceiro, tem acesso a um legista, a vários especialistas, e sua lealdade é a lei. Quando ele descobre o que aconteceu ele deve cumprir seu dever, prender o criminoso. Essa categoria me interessa muito pouco pra ser honesto.
O segundo tipo é o detetive particular, ou private eye em inglês. Ele é contratado por um cliente pra investigar um caso, ele não tem afiliação com o Estado, porém, mais veze do que não, terá contatos na polícia. Ele não tem acesso a profissionais especializados, mas ele tem bom olho, boa intuição e seus truques aqui e ali. E sua lealdade é com o cliente. Ele foi contratado por um cliente no começo da história, então no final dela ele deve entregar ao cliente a satisfação de saber que chamou a pessoa correta. Embora, um twist comum seja o detetive descobrir que foi contratado pelo culpado e estava sendo manipulado, e aí ele ensina na prática ao seu cliente que envolvê-lo nos casos é garantir que a verdade virá a tona.
O terceiro tipo é o investigador amador. Ser detetive não é o trabalho real dele, e ele não tem um cliente. Ele está se envolvendo de xereta mesmo. Ele não tem contato nenhum, é só um grande intrometido, e sua lealdade é consigo mesmo. Quando ele descobrir o que aconteceu, ele decide como reagir e a quem contar, pois não é o trabalho dele.
Blanc é um membro do segundo tipo, em todo filme ele foi contratado por um cliente depois que um assassinato já aconteceu. Ninguém deu o azar de matar alguém no mesmo trem que um detetive. E ele é reconhecido como um detetive profissional pelos demais personagens, sendo uma pessoa relativamente famosa.
Apesar disso Blanc se comporta de maneira a permitir que os outros o subestimem. Ele constantemente soa como um elemento perdido no local, alguém deslocado, que os demais personagens podem esquecer a presença. Blanc é uma grande homenagem ao icônico detetive, e provavelmente segundo detetive mais famoso da ficção, Hercule Poirot, com seu sobrenome em francês e seu sotaque forte sendo o que mais chamam a atenção em sua apresentação de si. Ironicamente, seu sotaque é um sotaque sulista muito forte que não combina com o sobrenome europeu e trazem humor ao fato de que um ator tão inglês quanto James Bond teve que falar dois filmes inteiros nesse sotaque não-característico do sul dos EUA. E além disso ele fala de uma maneira em que parece sempre que ele escolhe o vocabulário mais incomum para passar a informação que ele procura.
Porém apesar disso, diferente de Poirot ele não chama a atenção.
Apesar de Blanc praticamente não sair da casa onde ele investiga o crime o primeiro filme todo, ele é pouco interativo com os suspeitos, e em vez de passar o filme interrogando eles incessantemente, ele prefere fazer as perguntas básicas no começo e depois falar essencialmente com seus associados.
Blanc parece humano e falível em sua postura. No primeiro filme vemos ele se distrair ouvindo música enquanto coisas importantes acontecem pelas suas costas. Ele não leu os livros que usa de referência. E pela narrativa do filme, passamos uma boa parte do filme acreditando que ele está no caminho errado. No segundo filme ele parece estar constantemente travado e confuso, fora de seu ambiente sem saber o que fazia ali. Mas em ambos os filmes isso é teatro dele, é a persona que permite que ninguém tenha real medo de que ele desmascare o crime.
Em essência ele é isso. Pois ele tem a vida pessoal com o mínimo de destaque no filme, mas diferente de Sherlock Holmes, ele não tem um endereço famoso. Ele é casado com um homem chamado Phillip, que não aparece mais que vinte segundos no filme. Ele é amigo de algumas celebridades, provavelmente porque ele é uma também. E ele se entendia rápido sem um caso, e é ruim com desafios bobos de passar o tempo, tendo uma necessidade de complexidade pra poder funcionar bem. Mas ele não leva nada de sua bagagem, vida pessoal, ou de seu passado pros casos, então eles não importam.
O que significa que ele nos filmes não é muito mais do que o seu método profissional. Ele não tem um arqui-inimigo pra reencontrar, um amor por um cliente do passado, um caso que dialoga com sua vida, ou nada disso. Ele só resolve os casos. Então falar dele é falar de como ele resolve os casos.
Detetive Benoit Blanc, o Último dos Investigadores Cavalheiros:
Benoit Blanc aparenta ser um dos detetives fictícios que menos depende de depoimentos e de passar todas as versões da história de todos os suspeitos para achar as contradições. Essa etapa ele faz, mas faz o mínimo possível. Benoit Blanc pelo contrário, chega no local com a pesquisa feita. Antes de entrar no local da investigação ele já sabe quem são os suspeitos e qual é a deles, pois ele está com a lição de casa em dia.
E em vez de passar a investigação pedindo de novo e de novo para repassarem a história, ele prefere se misturar no ambiente e estudar os suspeitos em seu ambiente natural, não interagindo mais que o necessário. Deixando os suspeitos conversarem na companhia dos outros suspeitos para entender a real natureza do relacionamento deles e quais são as coisas que não ficam ditas.
Porque a força de Blanc, é que ele é um excelente juiz de caráter. Ele tem noções bem claras de quem são as pessoas decentes e os canalhas em seu redor. E embora isso não prove quem cometeu o crime, isso ajuda a guiá-lo em que motivações e traições esperar. Ele tem opiniões pessoais fortes quanto ao caráter de cada pessoa que ele encontra, e isso tem papel em como ele conduz a investigação.
Ele por exemplo, na primeira vez que encontrou Marta, instantaneamente entendeu que ela estava ali quando Harlan morreu. E em vez de interrogá-la até Marta confessar seu envolvimento, ele, entendendo que Marta era uma boa pessoa, e que qualquer envolvimento dela provavelmente era bem justificado, preferiu ficar ao lado dela estudando-a e confiando que ela eventualmente traria a verdade a tona.
E Blanc é em si uma boa pessoa. Ele é empático, respeitoso e atencioso ao que as pessoas precisam. Em Knives Out me marca a cena em que ele oferece seus pêsames à mãe de Harlan, e suspeita, com razão, que ele tenha sido o único a consolar a mãe do morto. Sua maneira gentil e empática de abordar a senhora permitiu que ela falasse com ele tudo o que sabia. O que nega a ideia, comum entre detetives, de que uma grande inteligência venha junto com uma arrogância e desprezo por quem não acompanha seu raciocínio. Blanc nunca é arrogante ou grosso por ser sempre a pessoa mais inteligente no local
Agora, falhar em julgar bem uma pessoa pode ser seu calcanhar de aquiles, Blanc demorou muito pra montar o quebra-cabeça em Glass Onion pois ele fez um mal juízo de uma pessoa e deu pouca bola pra evidências mostrando o contrário, até enfim perceber o obvio: que Miles Bron era burro. E portanto que o crime não era o plano elaborado de um gênio incompreendido, era só um monte de improviso descarado de um assassino burro.
Quando não está distraído pelo senso comum falso que ele absorveu por osmose, Blanc lê as pessoas como um livro, e confia nelas pra fazer exatamente o que elas fariam. E nisso a história se desenrola diante dos seus olhos e ele observa ela.
Blanc é um observador, exceto por falar os fatos, ele tem poucos momentos em que ele interfere no desenrolar da situação. E quando ele interfere é com o objetivo claro, de dar a heroína os recursos para vencer os vilões.
Porque isso é fundamental, Benoit Blanc não é o herói de seus filmes. Ele é só o personagem principal na nossa perspectiva. Mas ele não está vivendo a própria história, ele está testemunhando a história de outra pessoa. Ele está lá para dar apoio para que os heróis que ele observa possam enfrentar seus vilões. Blanc só explicou como o assassino matou a vítima, mas ele não resolveu o filme, pois ele não é o herói e o filme não é resolvido quando explicam um crime.
As heroínas do filme:
Em ambos os filmes, Blanc recruta uma mulher pra ser a sua ajudante no filme. E em ambos os filmes, o filme é sobre essa ajudante, pois o crime é sobre essa ajudante. A ajudante é a única amiga que a vítima tinha em um ninho de cobras traiçoeiras. E Blanc força elas, ambas contra a própria expectativa, a ter um papel ativo na investigação do crime.
E a história do filme é dessa mulher. A história de Knives Out não é a história de um detetive que desmascarou um plano de um herdeiro de sabotar a enfermeira latina do avô, por racismo. A história é a da enfermeira latina, que depois de anos de amizade e companheirismo com Harlan Thrombey, tem todo o racismo não-dito da família nojenta que ela teve que aturar dito, quando ela se torna a única herdeira da fortuna de seu paciente e amigo. Ela enfrenta a família, não abre mão do que lhe foi dado, não cede a canalhice deles, e no fim é o plano dela que faz com que Ramson confesse pra polícia acidentalmente.
E o filme termina com Blanc explicando pra Marta que ela venceu, pois lidou com a situação nos próprios termos. A história pra ser contada é a história de Marta, e a vitória a ser celebrada é a história de Marta. Blanc não venceu, Marta venceu.
Blanc não tem nada pessoal em jogo. Ele não ganha ou perde nada com a vitória de Marta, ele mata o tédio, por estar trabalhando, é pago de qualquer jeito, pois foi pago com antecipação, e ele simpatiza com a Marta e quer que as pessoas de quem ele gosta triunfem sobre aquelas que ele despreza. Mas ele não tem nada em jogo. Não é dele a jornada. Ele só parabeniza a Marta por vencer e vai embora.
Com Helen ele dá um passo além, ele não parabeniza ela, ele celebra ela. Ri ascendendo um charuto vendo Helen destruir tudo o que Miles Bron possuía, de suas posses à sua reputação ao seu futuro. E depois de celebrar isso ele reencontra com Helen onde ele pergunta se ela conseguiu sua vingança e está pronta para voltar.
Helen teve a irmã assassinada por Miles, e o poder econômico que reputação de gênio dele impediam que qualquer pessoa o desmentisse, fazendo com que um homem burro e incapaz ficasse livre pra destruir vidas de maneira transparente estando acima de tudo. Blanc só disse como Miles fez o que fez, Helen foi quem vingou sua irmã e tirou Miles de seu palanque.
O que é muito diferente de como nos filmes recentes do Poirot, o Poirot cai de paraquedas em um crime premeditado que o assassino não contava com a presença dele. Mas o Poirot faz o caso ser sobre ele, sobre como ver esse crime e desvendar essa trama afeta o Poirot de alguma maneira, ele é o herói dos filmes, e os crimes têm a relevância de fazer Poirot revisitar a si mesmo. O que é relativamente normal, as histórias de detetive querem que os detetives saiam do caso mais complexos e tridimensionais do que entraram.
Mas tem um significado bom em fazer Blanc não roubar o protagonismo de Marta e Helen. Que é o fato de que as histórias que elas protagonizaram são histórias sobre luta de classes e colocando as heroínas de uma classe baixa enfrentando as elites.
Em Knives Out Marta é a filha de uma imigrante ilegal, e apesar de ser a enfermeira de Harlan, por seu status de imigrante ela era tratada como uma empregada na casa. E em Glass Onion Helen é uma professora do Alabama, que costumava fazer chacota de pessoas ricas com sua irmã, Andi, até o dia em que Andi enriqueceu e passou a interpretar esse personagem permanentemente. As duas são desinteressadas em jogar os jogos dos demais personagens (literalmente, Marta não tenta ganhar no Go, e Helen não resolve os enigmas da caixa de Miles), só querem resolver sua vida e cuidar dos entres queridos e não tem tantos recursos.
Os demais personagens são um grupo de ricos acomodados. Eles vivem a boa vida, e embora eles todos trabalhem e sejam empreendedores, o dinheiro que financia seus excessos não vem disso, vem do fato deles terem uma fonte de renda no contato que eles tem com o que vamos chamar aqui de O Bom Ricaço. Que financia, auxilia e ajuda todos os empreendimentos deles, e em cujo nome eles surfam pra serem ricos. Todos eles são os suspeitos do crime, mas eles não importam de verdade, nenhum deles fez, eles só tem a motivação pra matar, pois eles precisam de poder econômico real, o poder de ter as rédeas do próprio poder econômico, com a morte do Bom Ricaço.
O Bom Ricaço nos dois filmes é a vítima. E é marcado como um personagem que se distingue dos suspeitos, porque ele era pobre e ficou rico com a própria inteligência, seja o talento nato pra escrita de quebra-cabeças de Harlan, ou pelas noções de organização e tecnologia de Helen. Eles fundaram do absoluto zero, a grandes custos pessoais o negócio do qual os demais personagens parasitam, e pra eles o dinheiro que eles possuem tem valor, pois não foi herdado.
Mas se você perguntar pra qualquer outro personagem, eles acham que sua fortuna é tão fruto de seu esforço quanto a do Bom Ricaço, o que não é.
A protagonista é a única amizade genuína que o Bom Ricaço tem em vida, e é a única amizade genuína, pois é a única que não se sustenta no dinheiro do Bom Ricaço. Respeitar seu legado, seus desejos e permitir que os feitos do Bom Ricaço não caiam nas mãos de um imbecil, é a luta delas. Elas não são amigas do Bom Ricaço porque ele é rico, mas elas não serem ricas, deixa elas sem os meios de honrar seu laço.
Entra Benoit Blanc.
Benoit Blanc é um homem branco rico. E provavelmente é alguém que teve um pai tão rico quanto ele. Benoit Blanc é uma figura de privilégios, que tem o poder de se fazer presente em cenas onde ele não foi convidado, e onde a protagonista não seria normalmente bem-vinda.
Benoit Blanc usa seu privilégio, para estar em lugares, e falar com pessoas, e colocando a protagonista como sua assistente, ele permite que elas circulem no ambiente onde elas não teriam sido aceitas. Mas esse é o limite dele. Ele não rouba a luta delas pra ele, ele é uma pessoa rica e privilegiada, e embora ele possa exaltar o quanto ele despreza os demais ricos do filme, não cabe a ele inverter a hierarquia.
Que é o que acontece no fim das duas histórias. Uma inversão das hierarquias sociais, que Blanc observa com gosto.
Aliás, vai sem dizer que as duas protagonistas são mulheres não-brancas, e isso é parte dessa inversão. Blanc é um homem branco, ele só abriu o espaço que coube a ele abrir e deixou a heroína passar.
E é importante pois essas histórias não são sobre justiça, vingança ou satisfação. São sobre romper com as estruturas. E sejam finais como Marta herdando toda a fortuna de Harlan por ser uma boa amiga pra ele e olhando os ex-ricos de cima, em uma escala privada, ou Helen destruindo a Mona Lisa, para tornar impossível esconder o absurdo que é a existência de Miles Bron na escala mundial, são filmes que terminam com rupturas, com aquilo que não acontece acontecendo.
E não cabe ao homem branco rico liderar essas rupturas. Essas não são histórias que combinam com a classe de Blanc. Mas ele adora ajudar mesmo assim.
Casos complexos, mundo simples.
Histórias de detetives costumam se passar em quebra-cabeças dentro de quebra-cabeças dentro de quebra-cabeças. Em que onde eles puderem acrescentar alguma complexidade, eles acrescentarão para o detetive poder explorar o seu talento.
Ok, na maioria não tem tantas camadas de mistério não, mas as soluções simples e banais tendem ser evitadas, pois o mundo é cheio de complexidade, reviravoltas, mentiras, maquinações e planejamentos.
O esforço surreal que alguém fez só pra conseguir matar alguém usando o alibi perfeito, só pra ter seu esquema perfeito desmontado por um gênio que viu aquilo que não era visível pra mais ninguém.
Em contraste os casos da franquia Knives Out são mais simples. E somos somente distraídos a olhar pra outro lugar. O motivo pelo qual a gente não matou de cara que Ramson era o assassino é porque passamos dois terços do filme tendo certeza de que Marta havia matado Harlan por acidente. Aí nem saímos procurando verdadeiros culpados.
Em Glass Onion igualmente, passamos boa parte do filme esperando que Miles Bron se tornasse a vítima, para suspeitar que ele fosse o assassino. Mesmo quando Duke morreu, a situação é feita pra dar a entender que o assassino tentou matar Miles.
No fim, quem tentou matar a vítima foi a pessoa que mais odiava ela. As motivações, e métodos do crime não são realmente complexas. O método do Ramson de trocar os frascos foi algo que o próprio Harlan imaginou em um instante.
Não são mistérios que dependem de passagens secretas, pessoas com identidade falsa, ou uma mente mecânica explorando os limites das leis da física pra chegarem nas suas conclusões. Eles ainda exigem uma mente com uma grande percepção para desatar o nó. Eles ainda precisam de um detetive.
Mas a impressão que Blanc me passa ao investigar seus casos, é a de que o mundo é simples, mas existe complexidade em sua simplicidade. Quase como se o mundo fosse um quebra-cabeça, que quando montados, nos mostra mais ou menos aquilo que achávamos que íamos ver, mas com detalhes o suficiente pra apreciarmos a história que a verdade traz a tona.
Não é mais complicado do que o cara que é transparentemente o mais filho da puta do local ser o assassino, e ter matado pelo motivo mais obvio. Mas isso não é uma história, isso é um tropo, se Blanc chacoalhar e ver quanta complexidade pode existir dentro desse tropo, aí ele acha a história.
Porque nos dois o único personagem que não é quem parecia ser, era Helen se passando por Andi na primeira metade de Glass Onion. Mas ela fez isso por sugestão do Blanc, e não pra enganá-lo. Exceto por ela, os personagens tendem a ser exatamente quem eles parecem que são. Os Thrombey são pessoas horríveis, os Disruptores são uns merdinhas. Mas apesar deles não estarem mascarando uma verdadeira natureza, eles são tão humanos.
O fato dos Thrombey serem asquerosos, não faz com que o luto deles pela morte de Harlan não seja real. Linda não está feliz pela herança que virá, ela está devastada pela morte do pai, seu coração foi quebrado quando ela descobriu que Walt traiu ela, ela se preocupa com que tipo de mãe ela foi pra Ramson. Ela não é uma pessoa simples, mesmo se a humanidade dela não tirar ela da posição de escrota do filme.
Ou mesmo Whiskey e Duke. No começo do filme vemos que Duke é um streamer da extrema direita que usa sua namorada Whiskey como uma voz feminina que possa validar todo o machismo que ele vomita pro seu publico, enquanto abertamente flerta com Miles Bron. No meio do filme vemos que os dois estão mutualmente se usando pra promover suas carreiras. Whiskey fala qualquer merda que Duke queira que ela diga, e seduz Miles sob pedidos de Duke, pra conseguir favores pra ele. Mas ela quer se tornar uma política, e está usando a publicidade de Duke pra promover sua imagem. Quando Duke morre, Whiskey fica arrasada e de coração partido e claramente era a única ali que sofria uma perda pessoal com a morte dele.
Whiskey é uma pessoa mais complexa do que uma loira superficial promovendo a misoginia do namorado. Mas eles eram namorados de verdade, e se ela promove a campanha política dela pra um público da extrema direita, provavelmente ela não almeja defender pautas muito legais. Ela é uma mulher com inteligência, agência na posição que ocupa naquele grupo e com sentimentos genuínos pelo homem que ela aparenta estar usando. Mas esses fatores não desmentem a impressão inicial dela. Ela ainda faz o que faz com sinceridade.
Ninguém ali é muito diferente do que a primeira impressão de Blanc sugeriu que eles seriam (exceto Miles, que Blanc não esperava que fosse burro), mas todo mundo ali é mais complexo que sua imagem inicial. E a complexidade não existe pra desmentir essa impressão, só pra nos lembrar de que esses suspeitos são todos pessoas, não meros arquétipos andando por aí só pra serem peças num tabuleiro de Clue. O mundo pode ser simples, mas seguir interessante. Pois apesar de Blanc usar muito de intuição e de juízo de valor para meio que saber qual é o naipe das pessoas com quem ele fala, e no que Blanc descobre da complexidade deles que existe uma história.
E essa história é meio que o importante nisso tudo.
Conclusão:
A primeira coisa que Benoit Blanc diz no filme Knives Out, e por consequência, a primeira coisa que ele diz na franquia e na história de sua existência como um personagem que protagoniza diversos filmes, é o seguinte:
“Fique tranquila que minha presença aqui é decorativa. Você vai ver que eu sou um respeitoso, quieto e passivo observador… da verdade.”
E espero que tenham notado que é dessa citação que eu peguei o título do texto, pois nessa cena, Blanc aparenta estar sendo irônico, em enfatizar seu ato passivo, quando ele está direcionando os rumos das entrevistas, e seu papel no caso é ativo. Mas eu acho que ele está sendo sincero, e realmente descrevendo qual é o seu papel nos casos.
Quando ele descreve seu método, ele usa a metáfora do livro Gravity’s Rainbow, o Arco-Íris da Gravidade, um livro que ele não leu, mas que ele gosta da metáfora do título. Ele considera essa metáfora descreve o que ele faz nos casos.
“Eu observo os fatos, sem enviesamentos na cabeça ou coração. Eu observo a trajetória do arco, caminho desapressadamente até seu ponto terminal e voilá. A verdade cai aos meus pés.”
Ou seja, se ele só observar a situação bem o suficiente, ele sabe calcular em que hora e local ele tem que estar pros elementos que trarão a verdade a tona desabrocharem na frente dele. Mas esses elementos desabrocham eventualmente, como se puxados pela gravidade. É assim que ele vê os casos.
Ele se vê como uma testemunha do caso. Observando de maneira imersiva e levemente interativa, mas, ainda assim, observando uma história, e querendo chegar até o fim dela. Ele sabe que seu papel é somente entender o que aconteceu. Ele não é um policial, nem um juiz, ele não manda ninguém pra cadeia, ele não dá ordens nos suspeitos, ele não faz nada com a verdade, mas seu dom de testemunhá-la no instante que a gravidade do arco-íris a traz ao chão, permite que ele a revele, e então pessoas farão algo com essa verdade.
Mas ele não faz nada. E não é pela sua falta de vontade, é pelo seu distanciamento do quanto ele se envolve. Ele prefere que as pessoas que são de fato parte da história tomem as decisões necessárias.
Blanc gosta de metáforas, de temas e de morais da história. Blanc é o detetive, mas, no fundo, ele é o expectador de uma história de detetive. E ele não está no centro da história, ele está se posicionando discretamente nela, para pode observá-la melhor. Mas existe uma história ali no quebra-cabeças. Ele afirma querer achar a verdade, e isso não significa só achar o assassino, mas entender a história do que aconteceu.
Por isso ele vê a mancha no tênis de Marta, conclui que ela estava lá quando Harlan morreu, guarda essa informação pra si, decide que quer que Marta seja parte da investigação, calcula a trajetória do Arco-Íris pra se posicionar no momento que Marta traria a tona, o que ela de fato viu, e o que de fato rolou com Harlan. E pouco depois de tomar a decisão de não imediatamente acusar Marta de ser a assassina só por ver uma prova explícita de seu envolvimento, ele diz a frase.
“As provas podem dizer uma história clara, de uma maneira desonesta”
Ou seja, ele busca a verdade e a história honesta, e pra isso ele precisou não julgar Marta, e confiar em seu instinto, de que ela é uma boa pessoa.
Blanc é muito ruim em coisas idiotas. Ele é horrível em jogos simples sem complexidade. Mas ele é particularmente bom em ver o coração das pessoas, pois pessoas são complexas, e observar a complexidade humana por trás de suas ações é o que o satisfaz.
Rian Johnson explicitamente se baseou em Poirot pra cria Benoit Blanc, mas ele também se inspirou em outro detetive, Columbo, o protagonista de uma série de mesmo nome dos anos 1960 e 1970. Columbo também se destacava de outros detetives brilhantes, por sua discrição, por sua postura e roupas que fazem os criminosos não o levarem muito a sério enquanto ele investiga.
Rian Johnson é tão fã de Columbo, que ele fez essa série de detetive agora, chamada Poker Face que é 100% inspirada em Columbo, e eu recomendo.
Enfim, e Blanc faz bem essa mistura. Pois apesar dele ser espalhafatoso, com seu sotaque carregado, charuto, e maneirismos, ele sabe se posicionar no tabuleiro de maneira que ele não soa como um real participante dos eventos. E com isso, ao deixar os suspeitos em seu habitat natural, ele observa a verdade. Se posicionando fora do radar e chamando pouca atenção.
E eu acho isso fascinante, e nos limites do possível, de que não vai ser inventado nenhum personagem no arquétipo do detetive que não dialogue com um personagem clássico do passado, mesmo assim, um personagem incrivelmente original. Que dá a própria cara pros seus mistérios e faz eles de fato soarem como mistérios que só poderiam ser solucionados do jeito que foram por Benoit Blanc.
Espero ansioso pelo terceiro filme do personagem, e pelo quarto, e até pelo eventual reboot, e com sorte que o personagem cresça tanto que duplas que não sejam o Daniel Craig com o Rian Johnson queiram brincar com o personagem (afinal, tem que acabar o cânon), pois eu acho ele um deleite. E em um mundo dominado por reboots e imitações, ele é um dos grandes personagens criados por Hollywood nos últimos 5 anos, talvez o maior deles.
Histórias de detetives estão voltando com tudo, e é bom já terem um bom filme do Sherlock Holmes encaminhado, pois se não tiver, Blanc vai ser facilmente o rei desse gênero. Com isso concluo o texto, volto em pouco tempo com um texto de outro assunto e em médio tempo pra falar de outro detetive. Nos vemos lá, meus leitores.