De tempos em tempos aparece um tipo de filme no mundo.
O filme conta a história de um homem que se revolta contra o sistema e a sociedade, de maneira violenta e agressiva. Esse personagem direciona contra o sistema um comportamento tóxico e condenável que foi crescendo nele pelas vezes em que ele foi esmagado pela vida até o dia que ele quebrou e resolveu dar o troco. E a opinião do público rapidamente se divide em alguns grupos.
O primeiro grupo é o das pessoas que acham que o filme é uma crítica válida dos valores tóxicos que o sistema causa nas pessoas e uma crítica social válida das trevas que podem emergir de dentro de um ser humano caso ele seja pressionado demais.
O segundo grupo é o das pessoas que acham que o filme é uma romantização da violência, que racionaliza um número de toxicidades e que o protagonista do filme ser identificável é um perigo.
E o terceiro grupo é o de pessoas que de fato se identificam com o protagonista, e com seu ódio com o sistema e usam o filme como válvula para projetar sua toxicidade com tudo o que o oprime, o que dependendo da área da internet que essas pessoas frequentam rapidamente se transforma em ataques contra minorias e em tentar transformar esses filmes em símbolos da frustração dessas pessoas com mulheres, e uma suposta resistência a novos valores.
O segundo grupo acha que o terceiro grupo é a prova de que eles estão certos e o filme é um filme conservador e de natureza maléfica, enquanto o primeiro grupo tenta explicar que o terceiro grupo simplesmente não entendeu o filme, e insiste no valor crítico do que está sendo dito, e o filme se torna infame na internet por essa briga. A insistência do primeiro grupo pode fazer o filme ganhar uma reputação de ser pretensioso, mas o uso de cenas do filme para ilustrar a realidade social do presente pode fazer ele ser uma fonte constante na internet de Imagens-Resposta, memes e análises que fazem ele soar eternamente relevante. Todos começam a fuçar o lixo do diretor pra descobrir se ele é secretamente um nazista, E esse debate precede o filme a um ponto que alguém que o assista muitos anos depois da briga pode potencialmente achar um filme meia-boca e não entender o hype.
E de tempos em tempos isso acontece. O caso mais recente foi em 2019 com o Joker, mas o caso mais famoso certamente foi 20 anos antes com Fight Club 1999. Esse texto não vai ser sobre esse debate entre fandoms, mas vai ser sobre os elementos que esses dois filmes mencionados têm em comum que permite que ambos estejam no centro desse debate.
E o que eles têm em comum, é que os dois são partes de um grupo de filmes que eu pessoalmente gosto de apelidar de American Rage, ou Ira Americana. Um… subgênero eu diria que sempre anda na corta bamba de simultaneamente criticar e dar carisma ao seu protagonista, e essa corda bamba do problemático com a válvula de escape acaba posicionando ele como ícone da cultura pop. Esse texto é sobre esses filmes, sobre esse protagonista e sobre a sua raiva. É sobre ver de onde esses filmes vêm, e de onde vem a relevância deles.
Então fica aqui o aviso de que spoilers dos seguintes filmes (e série) podem vir a seguir. E comecemos.
American Rage, uma Ira Americana:
Então explicando o sub-gênero.
Filmes de American Rage são filmes sobre um protagonista, que motivado por um sentimento muito profundo de impotência e desespero começa a trilhar um caminho que o fará evoluir de um completo zé-ninguém a uma notória ameaça a sociedade.
Em resumo é isso. Seja a frustração do protagonista de Fight Club com seu emprego, seja o câncer de Walther White, o desemprego de William Foster, protagonista de Falling Down, ou o sentimento de abandono de Arthur Fleck, protagonista de Joker, esses personagens de maneiras diferentes guiaram suas energias para converter esse sentimento negativo em uma ira contra o mundo em que eles vivem, em que o troco foi dado. Eles deixaram de ser pessoas insignificantes em um mundo onde eles não importavam e se tornaram pessoas perigosas, pessoas com quem as autoridades deveriam ficar atentas, pessoas importantes.
Os personagens podem ir pro mais explícito caminho do crime, como Walter White, que se tornou um traficante. Podem ir para um caminho mais discreto do crime, como Lou Bloom, protagonista de Nightcrawler que comete infrações éticas para obter o material que ele vende, mas isso é um segredo dele em um negócio que em outros termos seria legal. Ou eles podem somente flertar com realmente cruzar a linha do crime, como Lester Burnham, protagonista de American Beauty, que apesar de fantasiar com fazer sexo com uma menor de idade como parte de sua rebeldia, não realmente chegou a cometer o ato, voltando atrás quando teve a chance. O importante não é o que o protagonista fez, é o que o protagonista sente.
O filme de American Rage consiste em uma escalada, em que o protagonista começa no ponto mais baixo de sua vida, em que ele é uma pessoa completamente irrelevante, não é respeitado e não tem nada de que se orgulhe. O protagonista desse ponto, por consequência das próprias ações, entra em uma jornada em que ele ganha mais autoestima, mais poder, mais satisfação consigo mesmo e mais paz interna conforme ele se desapega cada vez mais de travas morais, de um senso de ordem, e da sociedade. Quanto mais o protagonista taca o foda-se, mais paz ele adquire pra si mesmo. E esse é o centro desses filmes.
Quando eu planejei o texto, o que mais me tomou tempo foi justamente o nome que eu queria dar para esse subgênero. Eu pensei em Broken Bads, como uma ideia, mas eu cheguei em American Rage, pois esses filmes todos saem de uma combinação muito clara e muito visível de um sentimento que sai de um espaço. Cada sentimento explode de maneira diferente e cada filme tem o próprio espaço. Mas no fundo o que todos esses filmes têm em comum é que seus protagonistas tinham muito mais raiva dentro deles do que eles notavam, e o que os espaços têm em comum, é que não importa qual parte do país eles representem, todos são ícones dos Estados Unidos. Os desertos do Novo México, os subúrbios de casinhas brancas, o caos de Nova York, ou calor de Los Angeles. Esses filmes interagem e integram seus cenários na narrativa e o cenário não é genérico, é estadunidense até o talo.
Mas não se enganem. Gente que se revoltou violentamente com o mundo existe em todo lugar do mundo. E inclusive podem empoderar um fandom problemático e fazer pessoas debaterem em qualquer país. O Japão tem o Light Yagami e o Eren Yaeger. O Brasil tem o capitão Nascimento, e a Inglaterra tem o Alex DeLarge. E todos eles dialogam com um misto de crítica social e de usar o protagonista como um exemplo de uma toxicidade em sua revolta, que gera muito debate até hoje. Mas esses personagens não emergem de um sentimento tão estadunidense. Que é o sentimento da humilhação por trás do fracasso. Eles emergem de seus próprios sentimentos específicos ao seu contexto e seu país.
O protagonista de um filme American Rage, é sempre homem, é sempre branco, e ele sempre se sente humilhado. Ele se sente diminuído, e acha que na vida ele não recebeu o que lhe foi prometido. O Sonho Americano não os incluiu, e eles se viram vivendo uma vida de humilhação em sua situação profissional.
…se bem que Thelma & Louise se encaixam o suficiente com o padrão pensando agora. Não cumprem toda a checklist, mas acho que dialogam o bastante. Só que em vez de reconstruir a própria masculinidade em uma jornada destrutiva que mistura crime, liberdade, independência e autodestruição, elas reconstroem sua feminilidade. Em especial na escalada de transgressões, em que Thelma e Louise se sentiam mais livres com o passar do filme, conforme sua relação com as autoridades piorava e por isso a jornada conclui em um não retorno. As duas nunca voltariam daquela viagem para ser as pessoas que elas eram, o processo que elas começaram ia crescer até o fim, nunca iria diminuir. Culminando no clímax num dos mais famosos pontos turísticos dos EUA, associando a jornada delas com o fato de que os EUA são o destaque do cenário. A Ira delas é uma Ira Americana, apesar do filme delas não ser um filme sobre a vingança pela emasculação.
Mas como eu quero focar no aspecto da masculinidade eu não vou falar de Thelma & Louise. Mas estou reconhecendo essa exceção. Se você conhecer mais exceções, também é bem-vindo a trazê-las nos comentários, para abrirmos mais essa conversa. Eu quero abrir esse assunto, não fechar, e tenho certeza de que tem muito filme que eu não conheço ou não lembrei que faz parte desse diálogo.
Voltando ao ponto, mais vezes do que não, essa humilhação virá acompanhada de uma emasculação. Esses protagonistas sentem que eles estão sendo menos homens porque a vida profissional deles é um fracasso. Por isso depois que eles estouram, o estouro inclui eles se afirmarem sexualmente com uma mulher, como um símbolo da confiança deles na própria masculinidade crescendo.
A cultura dos Estados Unidos é muito focada no conceito dos Vencedores e dos Perdedores, e graças à influência excessiva que eles têm no planeta, a maioria do mundo ocidental também é obcecada com esses conceitos, mas nos EUA é ainda mais forte isso. Cobra-se do homem que ele seja um homem, e com ser um homem, significa que cobra-se que ele seja poderoso, não abaixe a cabeça pros outros, se imponha aos demais, seja viril, seja um provedor, e seja capaz de proteger seus entes queridos. Um homem que cumpra a maior parte desses requisitos é um vencedor, ele cumpriu a parte dele, e se tiver ficado faltando em um ou dois pontos, será relevado pelo sucesso dos outros. Ele é um sucesso, e ele merece colher as glórias disso.
Mas se o homem é uma pessoa com um emprego submisso como um emprego em um cubículo, com quem seus superiores podem gritar e que não é respeitado; se sua esposa é infiel e/ou não é presente sexualmente, e não é o principal provedor da casa, ou não é reconhecido e valorizado por ser o principal provedor da casa: aí essa pessoa falhou em ser homem.
E essa situação não é uma situação masculina. Muita mulher tem um emprego degradante, volta pra casa pra uma situação familiar degradante e não recebe um pingo de gratidão por ser quem põe o almoço na mesa daquela família. E não é como se isso não as frustrasse.
Mas a humilhação, de se ver nessa situação e sentir que algo foi tomado de você, que promessas não foram cumpridas, que ele cresceu condicionado a achar que a vida seria mais do que isso. Essa humilhação que parte de uma série de normas de gênero que a pessoa precisa ter internalizadas e é, portanto, uma humilhação masculina. Pois a luta desse homem não é contra uma cultura que o ensinou a achar que é normal essa situação por ele ser homem e ele está desnaturalizando esse pressuposto. A luta dele é contra uma cultura que o ensinou que ele não deve nunca se ver nessa situação por ser homem e o colocou ali mesmo assim.
É sobre uma promessa social que não foi cumprida. Ensinaram que ele era especial, e quando ele percebe que não era, aí a sociedade prometeu e não cumpriu. Essa diferença é essencial, pois esses personagens não lutam por igualdade entre todos, eles lutam para ter poder e hierarquia no mundo, algo que ele sente que é direito dele, por ser homem.
E essa emasculação é sempre exemplificada com um fracasso sexual. Personagens destruídos pela sociedade raramente conseguem transar, pois por que conseguiriam? A correlação entre não ser o topo da cadeia alimentar e não ter nada pra fazer com o próprio pau é traçada diretamente.
Ah sim, e não preciso nem dizer que a noção de masculinidade nesses filmes é definitivamente uma masculinidade cis e heterossexual. Com espaço mínimo para personagens lgbt nesses filmes. Em American Beauty tinham alguns, incluindo o antagonista principal do filme. E em Being John Malkovich temos mulheres explorando bissexualidade e um flerte discreto e nada aprofundado com a ideia de ser transgênero. Mas pros personagens masculinos no filme nada. E nas demais obras analisadas aqui, também não. Não só os protagonistas são todos cis e são héteros, mas os filmes enquadram que ser cis e ser hétero é parte fundamental e insubstituível do que torna eles homens.
Enfim. Um dia eles passam pro ouro lado. Com Arthur Fleck foi quando ele matou os três caras de Wall Street. Walter White foi quando viu que tinha câncer e escolheu produzir metanfetamina. O protagonista de Fight Club foi quando ele abriu um clube da luta onde homens pudessem socar suas frustrações e recuperarem sua masculinidade com lutas entre si. Lou Bloom foi quando ele descobriu que ele podia vender gravações de cena de crimes pros noticiários. Para Lester Burnham foi quando ele escolheu que não iria ignorar o tesão que ele sentiu por Ângela quando a viu dançar.
Nesse momento esses protagonistas tiveram seu primeiro contato com algo que fazia bem pra eles, internamente falando, e esse bem foi mais do que uma válvula de escape pro mal que o resto do mundo fazia. Foi um motivador para eles desistirem de fingir que se sentem conectados ou sendo parte do mundo em que eles viviam. Eles mudam sua postura contra todos os sapos que eles engoliam diariamente, pois eles não precisam mais, eles tiveram contato com algo que fazia bem pra eles.
E mais importante, eles não foram empurrados por alguém. Eles se colocaram na situação e se conectaram com algo que saiu de suas ações e suas escolhas. O mundo externo, sua família, seus amigos, seus chefes, sua vizinhança, as autoridades e as expectativas externas o colocaram e o motivaram a estar na posição de humilhado. Mas o protagonista sozinho se colocou em um lugar onde ele gostava mais de estar.
Um lugar onde ele tinha poder, onde ele tinha nome, onde ele tinha virilidade, onde ele tinha liberdade, e onde a cabeça dele não abaixava.
E o custo dessa liberdade dependendo da intensidade do protagonista, eram as vidas de outras pessoas.
Essa liberdade sempre vinha com um senso forte de identidade. Entre o cara de Fight Club criando uma persona completamente nova no Tyler Durden, ao Walter White inventando o nome de Heinsemberg, o William Foster ganhou o apelido de D-Fens, e o Arthur Fleck se rebatizou de Joker. Eles reinventam sua imagem e como é tudo uma questão de expressão e de ganharem visibilidade, então tudo vem de como eles reconstroem a si mesmo Lester Burnham começa a malhar, William Foster insiste em usar as roupas do trabalho de onde foi demitido, Joker passou a usar permanentemente uma maquiagem de palhaço e Lou Bloom exigia que a empresa que ele inventou fosse devidamente creditada nas reportagens.
E no geral esses filmes têm dois tipos de final. Ou o protagonista morre, ou o protagonista atinge o auge de seu poder. Ambos os finais reforçam o mesmo ponto, esses personagens estão em uma ascensão que só será detida com a sua morte. O fogo vai queimar cada vez mais forte a menos que apaguem. Nenhum desses personagens nunca vai voltar pro lugar de onde eles vieram, vão se intensificar até morrer.
Mas de onde vieram esses filmes? Quando eles começarem?
A história do American Rage:
O filme mais antigo nesse estilo que eu consigo pensar é um filme que é constantemente comparado com alguns outros da lista. O clássico de 1976, Taxi Driver. Mas sempre lembrando que meus textos são limitados pelo meu repertório que não abrange todos os filmes do mundo, e que se o leitor conseguir puxar exemplos de antes de Taxi Driver, é muito bem-vindo para continuar e expandir essa conversa nos comentários do texto.
Enfim, Taxi Driver narra a história de um taxista chamado Travis Bickle, que por conta de sua insônia trabalha dirigindo um táxi por Nova York durante a noite. Ele tem um desprezo e rancor das pessoas, e se considera superior a elas. E tem pensamentos racistas e misóginos que ele como o narrador da história divide com a gente. Ele tem traumas e PTSD da guerra do Vietnã e é completamente alienado da vida em sociedade, tendo dificuldade em entender o que é apropriado e o que não é.
Quando o estilo de vida dele enoja uma garota com quem ele marcou um encontro, ele planeja matar o Senador em cuja campanha a garota trabalhava. Ele se dedica e planeja para cometer esse ataque, mas quando sua tentativa de assassinato fracassa, ele resolve libertar uma prostituta de 12 anos que ele conhecia, invade o prostíbulo armado, mata seu cafetão e o cliente levando vários tiros no processo. E quando a polícia o encontra com os corpos ele está sangrando e usando uma arma-de-dedo para simular suicídio no que se tornou a imagem mais icônica do filme.
O filme acaba com Travis acordando de seu coma, recebendo uma carta do pai da prostituta agradecendo-o por ter libertado sua filha, e com a garota que o rejeitou agora o admirando como um herói. O personagem que buscou nada além de um pretexto para atirar em alguém e descarregar o ódio que ele sente do mundo, foi aceito, pois atirou na pessoa correta e é validado por todos.
Taxi Driver preparou o terreno dos demais filmes da lista e todos os demais protagonistas já foram devidamente comparados com Travis Bickle, o que é fácil ver de onde vem a comparação. Travis misturou um sentimento de não reconhecer mais o país pelo qual ele lutou, um isolamento de sentir que as outras pessoas não conseguem entendê-lo por estarem encaixadas demais com a sociedade com uma frustração sexual de alguém que foi rejeitado e converteu todos esses sentimentos em um ataque de violência que lhe trouxe alguma paz e satisfação. E que sabemos que é só questão de tempo para ele fazer de novo.
A instabilidade de Travis pode ser identificada no personagem de Rorschach, de Watchmen, que não coloco oficialmente na lista, pois ele não é o centro da própria obra, mas o perfil de personagem é idêntico ao de um protagonista de American Rage. E os paralelos são tão gritantes que ele até mesmo encontra com Travis no spin-off Before Watchmen.
Rorschach era igualmente misógino e racista, igualmente desconectado de qualquer pessoa a sua volta, e igualmente idealizava um país que ele não via nas ruas, e seu contato com a criminalidade e a prostituição alimentava nele um ódio de tudo e todos que ele convertia em violência para eliminar o mal.
Só que a desconexão de Travis e Rorschach vem de um sentimento de estranhamento que eles causam nos outros por falta de tato social. Em um círculo vicioso, eles são humanos que Nova York jogou no lixo, e do lixo eles não conseguem se portar de maneira que os faça ser admirados. O desprezo que eles sentem dos demais afeta eles, e alimenta sua ira, e esse desprezo vem de uma falta de noção de como agir e falar com os outros.
Chegam os anos 1990, e o perfil desse protagonista muda. Com filmes como Falling Down (1993), Fight Club (1999) e American Beauty (1999) que colocam seus protagonistas não nas ruas de Nova York para ter que lidar com drogas e cafetões, mas em um cubículo. O Muro de Berlim caiu e o estadunidense médio parou de lutar para vencerem os russos e começou a olhar para si e pro que ele virou agora que eles não têm que se mostrar melhores que os comunistas. Eles viraram engrenagens, peças sem individualidade em uma empresa que são hipnotizados a aceitar a humilhação de seus trabalhos para poder comprar uma casa maior e um carro melhor.
A frustração desse tipo de emprego não surgiu nos anos 1990, mas desde muitas décadas antes, a partir dos anos 1960, onde a pressão por se acomodar em um trabalho de escritório que não oferecia individualismo gerava uma crise de masculinidade. E essa crise motivava o homem médio a buscar escapismo em filmes de espionagem como os do James Bond, em que um homem assertivo e sedutor, quebra condutas, quebra protocolos, seduz mulheres, mata pessoas e demonstra ser alguém em controle de sua vida. Ele representava o que todos queriam ser.
Passamos pros anos 1990, a guerra fria acabou e com ela o contexto de filmes de espionagem. O consumismo está em uma crescente desde os anos 1980 e Wall Street atinge o auge de sua influência e admiração na população, de modo em que o comprar e vender de ações imateriais atinge seu auge. O trabalho parecia mais insignificante, o capitalismo mais irracional e não tinha uma guerra ideológica para te unir ao seu país. Nesse contexto a raiva contra o escritório chegou com tudo na cultura pop.
Foi nessa época que as tirinhas do Dilbert explodiram. E foi em 1992 que uma peça de teatro dos anos 1980, chamada Glengarry Glen Ross foi adaptada para o cinema. Esse filme também é um filme de American Rage, mas com a parte da Ira bem dosada e diluída. Ninguém tem uma explosão catártica ou cheia de impacto como a dos demais exemplos.
No filme, quatro vendedores após passarem por um seminário em que um grande vendedor os emascula com um discurso agressivo sobre a falta de resultado dele, eles são impostos os termos de que somente os dois maiores vendedores da firma vão manter seus empregos.
O que os motiva a diminuírem ainda mais os seus valores éticos na hora de realizar vendas, conspirando entre si, e eventualmente invadindo e roubando a própria empresa para poder conseguir clientes melhores. Ao final do filme três dos quatro vendedores jogaram a carreira no lixo pela maneira ilegal como conduziram suas vendas, dois sendo presos e um sendo exposto como um golpista na frente do seu cliente.
O filme é famoso pelo discurso inicial em que a maneira como os funcionários são humilhados e emasculados é tão famosa que é usada como vídeo de treinamento em empresas sobre como motivar vendedores, ignorando o fato óbvio de que os personagens não se tornaram vendedores melhores, só se tornaram pessoas piores. O filme é notável também pela sua completa ausência de personagens femininos onscreen, com nem sequer uma secretária. A ausência absoluta de mulheres em cena já não era comum mais nos anos 1990, e reforça um ambiente inteiramente masculino debatendo um sentimento masculino. O da humilhação no trabalho.
No fim do filme um dos personagens lamenta a maneira como o trabalho os impede de poderem ser homens, nos explicando de maneira muito clara e explícita o que os personagens dos demais filmes sentiam.
Em Falling Down, o protagonista William Foster perdeu o sentido de sua vida, quando seu trabalho no departamento de segurança dos EUA acaba pois como fim da Guerra Fria eles fizeram uma redução de funcionários. Reforçando a perda de propósito que veio nos anos 1990. William se veste para um emprego que ele não tem e segura uma pasta vazia, que tem um sanduiche dentro, pois o desemprego o envergonha. E ele no caminho de ir até a casa de sua ex e sua filha, para matá-las, presumimos, ataca com violência todos os sinais de que os EUA deram errado que cruzam a sua frente. O patriotismo exacerbado fica claro logo no primeiro ataque quando ele usa um taco de baseball para atacar um imigrante, pois ele não concordava com o preço da coca-cola.
Em Fight Club e American Beauty, o vazio da pergunta “pelo que você tolera o escritório?” se manifesta quando os protagonistas percebem o quanto eles não se importam mais com o consumismo ou com o status se possuir certos produtos de certas marcas. Eles odeiam o que o país virou, uma competição consumista pra ver quem tem os melhores produtos.
A artificialidade da vida deles os revolta e eles voluntariamente largam seu emprego. Lester se muda para um trabalho de salário-mínimo onde ele não vai ter que se preocupar com nada, e o protagonista de Fight Club vai morar em um barraco caindo aos pedaços. Ambos abandonam a classe média e vão buscar sua satisfação não nas expectativas do capitalismo, mas suprindo seus desejos mais básicos para se sentirem homens. No caso de Fight Club, em demonstrações de violência, e no caso de Lester em sexo.
Em Being John Malkovich, também de 1999, temos um exemplo estranho na lista, por ser uma comédia surreal. Aqui temos Craig Schwartz. Um titereiro fracassado que por não ter sucesso em sua arte, aceita um emprego de burocrata em um escritório que literalmente o esmaga. Craig descobre uma válvula de escape em uma porta que permite que ele temporariamente possa ocupar o corpo do ator Hollywoodiano John Malkovich, que vive uma vida muito mais interessante do que a que ele tem acesso.
Ele tenta capitalizar essa porta enriquecendo com ela, mas o uso principal dela é usar ela para fazer sexo com a mulher que o rejeitou, mas que depois de rejeitá-lo seduziu Malkovich. E sua obsessão em roubar o corpo de Malkovich pra si cresce ao ponto em que ele prende sua esposa em uma gaiola, se tornando um marido abusivo, e tenta matar a amante depois de roubar o corpo de Malkovich pra si.
É difícil comparar a crescente de loucura que é usar uma porta para roubar a autonomia de um ator e poder seduzir uma mulher que você não seduziria, com os outros exemplos, mas só mostra o quão versátil é o sentimento.
Mas aí o gênero sumiu. Em 1999, o tiroteio de Columbine foi um marco cultural pesado em que a imagem de pessoas humilhadas que pegam uma arma e surtam virou uma cicatriz nas pessoas… O que é curioso, pois os anos 1980 e 1990 foram cheios de incidentes de carteiros que se revoltaram e cometeram tiroteios no correio matando chefes, colegas e clientes. Foram muitos casos, mas a cultura pop dos anos 1990 tirava sarro do fenômeno.
Ninguém tirou sarro de Columbne, ou dos tiroteios em escolas que viraram um acontecimento corriqueiro o suficiente para deixar de chamar a atenção, o que é horrível pra cacete que tenha rolado.
O último filme culturalmente relevante dessa época que relacionou a humilhação constante da inserção no capitalismo com um desejo do protagonista de se afastar das normas sociais para encontrar satisfação e reconstruir sua masculinidade em uma liberdade destrutiva e violenta foi American Psycho do ano 2000, que eu não classifico como um American Rage, pois Patrick Bateman não se revolta contra a sociedade e sim, só descarrega seu stress para poder seguir inserido na sociedade, que ele realmente valoriza. A situação de Bateman é mais sobre equilíbrio do que sobre libertação. Mesmo assim o filme dialoga com o zetgeist de uma fúria crescente prestes a explodir quando se é uma pessoa diminuída e frustrada com a falta de independência que ser parte da máquina capitalista te trás.
Mas se o American Rage murchou com Columbine, o sentimento da frustração sem ter com quem direcionar, esse zetgeist durou do fim da guerra fria até o 11 de Setembro de 2001.
Nos anos 1990, o tema comum da década era o de entender que a vida suburbana que você constrói em seu trabalho é uma vida falsa e de se libertar dela por uma vida autêntica. Os fimes de American Rage que eu estou apontando são parte desse zetgeist, mas não são a única expressão dele. Isso estava em Goodfellas, The Truman Show, em The Matrix, em Donnie Darko (tecnicamente de 2001, mas estreou antes do atentado às Torres Gêmeas), em Magnolia e em vários outros filmes. Uma jornada de violência e reconstrução de masculinidade não são a única maneira de se lidar com isso e eu quero inclusive voltar pra isso no fim do texto.
Nos anos 2000, o 11 de Setembro mudou o zetgeist. O gênero fantasia virou a principal fonte de escapismo do cinema. E foi a década em que os filmes de herói surgiram com tudo como maneira de dar catarse as frustrações do americano médio, e essa catarse já era contra o inimigo externo. Nessa década, era muito importante que existisse gente que protege a cidade. A trilogia Spider-Man, a trilogia Dark Knight e Iron Man, foram três eventos importantes dos anos 2000 para consolidar super-herói como um gênero cinematográfico e preparar o terreno para na década de 2010 eles dominarem o entretenimento como o maior mastodonte do mundo. E os três filmes tiram muito de sua catarse do sentimento pós-11 de setembro. O uso excessivo de colocar o aranhão de frente com a bandeira americana e de reforçar que Nova York se une contra seus agressores. A passada de pano absurda que o Nolan faz para o ato patriota do Bush. E o Tony Stark ter renascido como herói depois de ser capturado por terroristas no Afeganistão.
Mesmo em The Incredibles, o Sr. Incredible se liberta da sua humilhante vida de escritório e recupera seu senso de importância e de autonomia ao virar um super-herói que protege a cidade dos ataques. Deter terroristas se tornou o novo pegar uma arma e apontar pra quem incomoda. Super-heróis não respondem a autoridades, resolvem a situação do seu jeito e protegem os EUA da maneira que o país precisa. Esse conforto trouxe significado pra nação.
O American Rage ressurgiu em 2008 com Breaking Bad. Que veio com a ascensão das séries de TV substituindo o cinema como um entretenimento audiovisual de prestígio, e da Era dos Anti-Heróis, em que o protagonista da televisão era um retrato humanizado de uma pessoa horrível, como Don Draper, Tony Soprano, Dr. House ou Dexter. Breaking Bad atingiu o auge da visibilidade e atenção do público pra esses dois fenômenos e se tonou um sucesso gigantesco, embora, tenha demorado algumas temporadas para o sucesso virar algo realmente gigantesco. Como estou falando da cronologia, é importante enfatizar que Breaking Bad só virou um fenômeno nos anos 2010 quando foi descoberto por um número grande de fãs e amplamente maratonado.
Breaking Bad focou em todos os pontos que eu já mencionei no nível máximo. Walter White não trabalhava em escritório, mas era humilhado em dois empregos simultaneamente, baixava a cabeça para a esposa, se sentia humilhado pela maneira como seu cunhado era o centro das atenções por viver uma vida de riscos, e no seu aniversário foi obrigado a comer bacon vegano e seu presente foi uma punheta que sua esposa fez sem nem olhar na cara dele. E ele se reinventa em uma área que permite a ele ser um homem, o tráfico de drogas, onde seus talentos podem ser usados ao máximo, onde ele vive uma vida de riscos em que suas decisões importam, em que ele empunha uma arma de fogo, em que ele pratica violência e em que ele pode prover pra sua família.
E ele comemora esse novo sentimento sendo sexualmente assertivo com a sua esposa como sinal de que ele mudou e se libertou.
A transição de Breaking Bad de série-de-prestígio-que-mais-gente-devia-ver para maior-fenômeno-da-televisão-em-seu-tempo criou um espaço para a Ira Americana voltar a existir, e existe, basta ver o sucesso que foi Joker.
E o sucesso de Joker trouxe à tona a pergunta que rondava nos anos 1990. Esse tipo de filme é uma influência perigosa para o homem branco que vê o filme? É um alerta sobre algo que já está acontecendo? É uma crítica ao sistema?
Qual é a crítica?
Bom, explicando o óbvio só pra ficar claro. American Rage é um nome que eu inventei. Essas obras dialogam uma com a outra em um leque que inclusive é bem maior do que o que eu delimitei aqui (só ver que eu mencionei filmes que quase são exemplos, mas não chegam lá). Então isso não foi um movimento homogêneo em que vários cineastas se uniram para passar uma mensagem, cada um passou uma mensagem específica como uma resposta a um sentimento que existia em sua época.
Então obviamente o fato de duas décadas depois um blogueiro ter visto um padrão e resolvido analisar esse padrão pelo que eles têm em comum, não significa que todos esses filmes têm a mesma mensagem ou passam a mesma visão.
Mas ao mesmo tempo a arte é também sobre o que se tira dela, independente do que foi colocado nela. E esses filmes podem ser lidos como um alerta. Um alerta de quem são as pessoas que o sistema está criando. O capitalismo desenfreado e angustiante gera uma raiva no coração de todo mundo, desse todo mundo, algumas pessoas explodem, e quando explodem eles viram monstros. E um sistema que gera milhões de homens frustrados e rebaixados, vai criar milhares de monstros. Esses filmes são um alerta de causa e efeito claro.
O problema é o problema de qualquer filme em que dois maus se enfrentam. Pra quem a câmera está torcendo? A gente quer ver o Homem Irado dar o troco nas forças que o acuaram? Ou queremos que o sistema vença?
O contraste entre dividirmos um ódio comum com o protagonista do filme que nos permita sentir catarse em sua revolta é contrastado com o medo de que o protagonista empodere os espectadores que sintam a mesma frustração e os motive a sair.
Talvez a real mensagem desses filmes, que não é intencional em nenhum filme individualmente, mas é poderosa no coletivo. É a de que quando homens brancos, por serem o grupo dominante da sociedade, se sentem desempoderados, na busca para retomar seu poder, se tornam uma força perigosa. E esse perigo é visível nos dias atuais.
Algumas dessas obras tem um elemento em comum. Lester é beijado por um militar apaixonado por medalhas nazistas, que o mata depois de ser rejeitado. William Foster é chamado de igual por um neo-nazista que ele mata. Depois de matá-lo, William veste o uniforme do nazista que ele matou pelo resto do filme. Walter White faz uma aliança com os nazistas que se torna o seu único real arrependimento na vida de crimes. E mata os nazistas como uma tentativa de redenção antes de morrer. Tyler Durden forma um exército de jovens que se despem de qualquer individualidade de maneira análoga ao fascismo. Ironicamente pregando pela perda do individualismo que ele queria recuperar para si.
Esses personagens não vão pessoalmente se considerar fascistas em nenhum momento. Mas as pessoas que se consideram, vão ser atraídas a esses personagens e ao que eles representam em sua rebeldia.
Joker de maneira semelhante faz isso com os protestos de Eat the Rich que desde 2011 cada vez mais se tornam uma força nos EUA. O personagem a nível pessoal não se sente realmente conectado a essa ideologia, mas se sente conectado ao caos que ela traz e a admiração que ele recebe, então ele segue tocando para seu público. Ele não é um deles, mas eles o amam.
A um nível meta esse é exatamente o medo que esses filmes causem. Que entender que o personagem não é um nazista seja irrelevante, se o personagem agradar os nazistas o suficiente pra se tornar um ícone. Não é questão de entender o personagem e sim dele mesmo assim ser capaz de simbolizar algo que seu filme não necessariamente é.
O mundo atualmente enfrenta uma crise real, em que um grupo de homens, que se sentem diretamente ameaçados por pensamentos feministas, anti-racistas, ou igualitários, resistem a uma mudança de pensamento cultural que removam as hierarquias do mundo. Hierarquias que eles, a nível pessoal, muitas vezes não realmente usufruem. Esse grupo de homens revoltado é um que cresceu nos últimos anos de maneira que a voz deles não é politicamente irrelevante, e puxaram o surgimento de lideranças políticas que 20 anos atrás ninguém sério sequer cogitaria que poderiam ocupar cargos importantes.
Eleições como a de Donald Trump ou do Bolsonaro foram marcadas por um ressentimento muito vocal de seus eleitores que se viam como defensores de um modo de vida que eles temiam estar em extinção. E esse modo de vida é um modo em que os papéis tradicionais de gênero passem a ser questionado. Em que a submissão da mulher, a heterossexualidade do homem, a noção de que um dos membros do casal é o provedor e o outro não, a noção do homem protetor… para eles nada disso pode ser questionado. Então eles se veem em uma guerra contra isso. Que se manifesta as vezes na política, e as vezes na reação a filmes sendo feitos hoje em dia que potencialmente não seriam feitos 20 anos atrás. E a uma revolta particular de como novas histórias escrevem a performance de gênero dos personagens.
E essa parcela da população adota em alguns personagens, símbolos dos valores que eles querem preservar, que não querem perder, de uma cultura pela qual se valeria a pena lutar. E personagens como Travis Bickle, Rorshcach, Tyler Durden e o Joker, entre outros foram adotados por esses grupos.
Isso significa que esses filmes criaram essas pessoas, só porque foram acolhidos por elas? Poderiam esses filmes serem que nem o experimento do Die Welle (A Onda), em que um professor ao tentar exemplificar os apelos do fascismo pra seus alunos, acaba acidentalmente convertendo sua sala ao fascismo?
Ou não? Ou poderia o filme estar explicando justamente algo essencial? Que é entender como uma pessoa supostamente normal, que seria só mais um no escritório, explode. Entender o que aproxima eles do fascismo, e a maneira como o sistema choca o ovo da serpente diante de nossos olhos. Talvez seja importante entender a maneira como o capitalismo gera uma humilhação masculina que conforme cresce, cria a necessidade desses homens de recuperar sua masculinidade de maneira agressiva e perigosa.
Se essa raiva é tão identificável no cenário político atual, poderia ser importante olhar pra ela mais de perto e ver de onde ela vem? Ou isso seria tentar apagar fogo com álcool? Eu não tenho a resposta pra isso. Eu pessoalmente acho que o menor dos problemas é Joker, pois essa turma já existia e já se organizava antes de Joker sair.
Mas, por falar em se organizar. Tem outra coisa que eu acho…
A alternativa – A revolta em grupo:
Um detalhe fundamental de todos esses filmes, é que o personagem explode sozinho. A jornada dele de retribuição, poder e/ou satisfação é uma jornada pessoal, que a gente acompanha na perspectiva do personagem. Travis Bickle, Lester Burnham e o protagonista de Fight Club inclusive narram o próprio filme em primeira pessoa. É parte do motivo pelo qual tem gente que se assusta com o poder dessa narrativa. É imersivo demais no personagem que deveria ser um contra-exemplo. O ponto é: é algo individual e próprio. É a revolta deles.
O único que chegou a algo próximo de formar uma comunidade foi Tyler Durden, com o exército que ele organiza. E a comunidade de Tyler era explicitamente masculina e primariamente branca.
O Joker fez seguidores, também a maioria deles homens, embora seja impraticável pausar todas as cenas e conferir cada figurante e eu presumo que devem ter algumas mulheres… mas, com certeza, não nas cenas que os seguidores têm destaque.
Mas nos dois casos são admiradores, e não colegas reais. Não pessoas com quem eles dividem frustrações em pé de igualdade e sim, uma pessoa guiando as outras para causar o caos. Lester Burnham, Travis Bickle, Walter White e William Foster não tinham nenhum amigo com quem dividir suas frustrações, e a solidão deles era parte do que os fez explodir, esse isolamento e alienação. Não ter um confidente nem mesmo na própria casa.
Mas, como eu apontei lá em cima, esses filmes não são os únicos que explodiram contra o sistema. E como eu apontei lá em cima, os anos 1990 foram muito sobre se revoltar contra o sistema. Porém alguns filmes tomavam outra perspectiva.
Em 1990 o filme Pump Up the Volume, conta a vida de um jovem chamado Mark Hunter. Um rapaz tímido e sem presença que só consegue se soltar de verdade durante um show diário em sua rádio pirata, onde ele desabafa para os outros jovens sobre suas frustrações. Com os problemas típicos da juventude, com comentários sexuais, com não saber lidar com a época estranha em que ele vive, e especialmente contra as injustiças contra o estudante que frequentemente ocorriam na sala de aula. Seu programa de rádio incentiva vários alunos a cometerem atos de vandalismo e se rebelarem contra a escola o que eventualmente termina com ele sendo preso e a diretora demitida. E ao final do filme ele é louvado pelos alunos enquanto vai algemado.
Não foi um filme de muito sucesso, eu inclusive nem sabia que ele existia, descobri, pesquisando filmes para esse texto, pensei que esse filme poderia ser parte do gênero, mas não é. Por vários motivos, o principal dele, a raiva individual de Mark é uma raiva comum de todos de sua classe. Ele não é um aluno esmagado pela escola que explodiu. Ele é o que explodiu primeiro e ajudou todos a explodir. E o segundo motivo é esse: Conexão. Mark explodiu sozinho por ter problemas sociais, mas no instante que a aluna Nora descobre que é ele quem coordenava a rádio pirata, ela o ajuda a entender a importância que é para os alunos ter alguém que grite por eles e que dê voz a todos eles. E ele começa a se conectar melhor com as pessoas que ele influência.
Mark lê cartas ao vivo na rádio, não passando somente a própria dor, como a dos outros. E ele fala com outros. Em uma determinada cena, ele liga para um aluno gay que comentou o abuso que ele sofre na escola por carta e deixa claro que a voz dele é ouvida também, e que é um absurdo esse tipo de comportamento ocorrer na escola. Uma cena que se saísse hoje seria super pau molona, mas pra 30 anos atrás não era algo que apareceria em qualquer filme adolescente, mas especialmente. Deixando claro que pessoas de grupos aos quais Mark não pertencem são aliados e estão representados no que Mark fala.
Para alguém que falava tanto de sua sexualidade e simulava masturbação no ar tantas vezes para passar essa imagem de um personagem viril, é notável ele não ter problema nenhum de aceitar e expressar pros seus ouvintes que sexualidades diferentes são normais e bem-vindas na revolta.
A crise de Mark não era masculina nem hétero, ela era juvenil, e ela unia todos os jovens da escola. Os gays, as meninas, os de família rica, os de família disfuncional, todos. E com isso ele não empoderou somente a si, empoderou um grupo, e permitiu que as dores deles conectassem eles.
E no exato mesmo ano em que saíram Fight Club e American Beauty, também saíram Office Space e The Matrix. Que fizeram a mesma coisa… 1999 foi um ano muito bom.
Office Space é um filme de revolta contra o escritório fenomenal justamente pois a revolta é coletiva. São três trabalhadores juntos que destroem a impressora. E o filme deixa claro que a Joana que não trabalhava na empresa, mas sim de garçonete, era uma aliada deles na revolta, pois o emprego dela também era uma merda. Não era problema de um homem, nem problema de homens, era uma cultura trabalhista que unia todo mundo ali em uma raiva coletiva.
Eu particularmente gosto da cena em que o protagonista volta pra casa e pergunta pro seu vizinho se ele já ouviu alguém zoar ele por estar de mau humor na segunda, e o amigo ficou indignado de saber que alguém fala isso pra alguém, e adianta que se fosse com ele quem falou apanhava. Esse tipo de empatia pela dor, de personagens que tem com quem dividir a dor e dividem em grupo.
E não vou fazer um big deal disso, porque Hollywood nos anos 1990 nem levava esse adjetivo a sério, mas nos limites de que tinha que avançar muito pra chegar onde estamos hoje, era um grupo diverso. Nem todo mundo era homem, nem todo mundo era branco, mas estavam todos putos.
E é claro, The Matrix, onde o trabalho infernal de escritório que o protagonista fazia era parte de uma sociedade que não existia de verdade e que ele não tinha que aceitar. Ele é recrutado por um grupo de pessoas que lutam lado a lado com ele como colegas, e novamente, um grupo diverso. Homens e mulheres, não só de brancos. Pois o problema de Neo era o problema de todo mundo.
Quanto mais gente diferente compartilha sua raiva, mais sua raiva denuncia um problema que está acontecendo com as pessoas, e uma revolta que é uma revolta humana.
Mas a Ira Americana é americana, e o que a torna americana é que ela é individualista. Ela não é sobre acabar com a injustiça, ela é sobre corrigir uma injustiça pessoal. É sobre o sentimento de “uma pessoa com o meu valor não deveria estar na minha situação.” E nunca sobre “um ser humano não deveria estar na minha situação.”
A Ira Americana é sobre a mentalidade de winners e losers, é sobre ser um winner, e estar acima dos losers. E é esse aspecto cultural que se não for questionado, transforma a revolta contra o sistema em um homem branco explodindo.
Conclusão:
Eu gosto de todos os filmes de American Rage que eu citei aqui. Gosto de verdade. Só não gostei muito de Glengarry Glen Ross, mas acontece. O ponto é que eu acho que esses filmes todos tem algo pra dizer. E algo importante. E os tempos atuais podem te constranger a não ficar confortável de falar que achou Joker ou Fight Club bons filmes, sob o risco de achar que isso deixou implícito que você é um misógino pretencioso.
O mundo atual é uma merda e a maioria das pessoas tem uma raiva dentro de si muito forte só esperando para ser colocada pra fora. Por isso esses filmes muitas vezes são lidos pelas pessoas como exemplos de como colocar pra fora. Mas eu sinto que eles tem uma faceta forte de denúncia, de como essa raiva funciona em certo grupo social.
O grande lance desses filmes é como eles deixam a masculinidade do protagonista andar lado a lado com um problema social. Pois o problema social é um problema de todos, mas a crise de masculinidade dos personagens é um problema deles. E quando os dois se misturam, a busca por descarregar uma raiva que em teoria todos sentem se transforma também em uma busca customizada por ego e por poder.
E esse tipo de mistura é um fenômeno observável na realidade atual, em nível o suficiente para não poder ser ignorado, e nem pra nos iludirmos que isso não estaria acontecendo se ninguém tivesse filmado o Joker.
E talvez o grande problema seja justamente que o American Rage produz obras de alcance imenso, enquanto outros filmes de gente com raiva muitas vezes não podem ser feitos nos mesmos termos, nem dando a mesma humanização e empatia aos seus personagens.
Mas eu quero saber o que vocês acham. Vocês acham que o American Rage está empurrando o jovem pro lado negro? Ou acham que é necessário expor mais a correlação entre emasculação, revolta e associação com caminhos escrotos? Acham que precisamos de mais filmes em que a revolta contra o sistema é diversa e coletiva que nem Matrix? Ou essa turma ter adotado a gíria redpill é a prova de que eles corrompem tudo, não importa como foi feito? Acham que o cinema tem algum poder pra conter o crescimento dos incel e que é realmente possível educar uma maneira mais saudável de masculinidade pela mídia?
Eu quero continuar essa conversa, eu cheguei no ponto máximo da minha capacidade de observação, mas acho que é importante pensarmos nisso.