Pra mim um dos aspectos mais fascinantes da figura do diabo na ficção são os pactos que fazemos com eles, e a maneira como eles nos tentam. Nos prometem prazeres, sucessos e tudo com o que sonhamos, porém isso tem um preço e uma hora eles cobram. Tragédia inevitavelmente ocorre, pois o ser humano não tem o poder de derrotar o Diabo e no final a culpa é toda da pessoa que fez o acordo, que cedeu a tentação.
De Fausto que vendeu a alma por conhecimento, As lendas (com fundo racista) de que Robert Johnson teria vendido sua alma pelo talento musical. Do maravilhoso filme noir Angel’s Heart em que um detetive tem que rastrear um homem fugindo de sua dívida com o diabo a Death Note, onde personagens podiam trocar seu tempo de vida pelo uso eficiente do caderno. Temos The Imaginarium of Doctor Parnassus, em que o diabo e um viciado em apostas são dois velhos amigos que vivem fazendo tratos atrás de tratos, pra estender a dívida original pelo mero prazer de prolongarem a disputa. O maravilhoso Puella Magi Madoka Magica em que as garotas venderam a alma para virarem garotas mágicas, esse já ganhou texto. Acordos com o diabo em que você vende sua vida ou sua alma em troca de um acordo em que você realiza tarde demais que não valia o preço, essas histórias são fascinantes.
Geralmente essas histórias têm caminhos fixos que se seguem. Na maioria das vezes são sobre uma pessoa querendo não pagar o preço quando o diabo vem cobrar, então ela pode fugir do diabo.
Ou ela pode tentar conquistar sua alma de volta desafiando o diabo.
Mas a crença do homem em querer ser mais esperto que o Diabo costuma guiar esse tipo de história, e a batalha de um mero humano tentando passar um golpe na entidade divina que passa golpe nos seres humanos desde que eles eram só dois.
Independente do caminho que se tome, a moral e a mensagem dialogam com os conceitos de inevitabilidade, e de que o homem não consegue vencer o Diabo. E geralmente alguma condenação moral sobre a busca por prazeres, sobre a ganância, sobre prepotência do ser humano em relação ao divino e sobre tomar o caminho fácil. E principalmente de que a vida fácil tem um custo.
Chega Chainsawman, mangá violento e sombrio da Shonen Jump sobre diabos, que traz o assunto a tona, mas sem tomar nenhum desses caminhos. Em vez disso o mangá usa isso como base pra falar da exploração humana, e usa os pactos com o Diabo para fazê-los rimar com as relações humanas em sociedade, em uma pegada interessante.
Quando eu comecei a ler Chainsawman eu torci o nariz, e só insisti, porque eu sou uma pessoa fraca que tenta ter boa vontade quando leio mangás da Shonen Jump, mas por pouco eu não falei foda-se e abandonei. Que bom que não fiz isso, pois o mangá é fenomenal. Mas o motivo pelo qual eu tive essa descrença inicial é o mesmo motivo pelo qual muita gente não leva Joker a sério.
O mangá é um mangá de crítica social foda, que junto de conteúdo sexual e violência explícita, constantemente aponta as injustiças e absurdos da sociedade, e o quanto o homem é o lobo do homem. E depois e ler mangás edgy o suficiente que usam isso pra fingir que são profundos quando são vazios, a gente perde a fé, de que isso vá vir de algo inteligente, e começa a acreditar que é tudo prepotência. Mas eventualmente o mangá mostrou que tinha algo a dizer.
O mangá é sobre Denji. Denji é um jovem pobre, atolado em dívida até o pescoço, com a yakuza na cola dele. Quando conhecemos Denji no primeiro capítulo ele está completamente isolado da sociedade. Ele trabalha o dia inteiro em serviço braçal cortando árvores, e todo o dinheiro dele vai pra máfia. Ele vendeu seus órgãos para comprar almoço, incluindo um de seus olhos e um de seus testículos. Mas sua maior fonte de renda é o fato de que ele mata demônios pra yakuza.
Como muita gente em situação miserável, e cuja exclusão social é pesada, Denji é uma pessoa muito carente por conexões, e sem contato humano, ele é muito apegado ao seu cachorro. Pochita, o cachorro de Denji é, na verdade, um diabo. O Diabo da Motosserra pra ser específico.
Ah sim, porque tem isso, os diabos são todos personificação dos medos das pessoas, e no caso o Diabo da Motoserra, que é o Pochita, é a manifestação física do medo de motosserras.
Pois bem, Denji encontrou Pochita sangrando e morrendo um dia, e deu a ele seu próprio sangue, pois diabos se curam consumindo sangue, e Pochita passou a morar com ele, e deixar Denji usar seus poderes de motosserra para matar demônios e derrubar árvores. E Denji desabafava pra Pochita como é a vida em que ele sonha.
Um dia a Yakuza traí Denji, e cria uma cilada para ele ser morto pelo Diabo dos Zumbis, que daria a Yakuza seu poder em troca de poder matar um caçador de diabos. O Diabo dos Zumbis mata Denji, mas Pochita que gostava tanto de ouvir as histórias de Denji e queria que ele vivesse pra realizar seus sonhos, revive seu amigo, se transformando no coração de Denji e entrando em seu peito. Com isso Denji se tornou um híbrido entre um humano e o Diabo da Motosserra, com o poder de transformar seu corpo em motosserras, Denji mata então o Diabo dos Zumbis e a Yakuza.
Após essa luta ele é encontrado por Makima. Uma autoridade do governo do Serviço Público de Caçadores de Diabos. Makima está montando um time não-convencional de caçadores de diabos, que inclui colocar os próprios diabos para se caçarem e ela quer Denji no time, e lhe faz o convite para entrar no time. Ela deixa claro pra Denji que caso ele se recuse, ele será morto como um diabo qualquer, mas Denji aceita primariamente motivado pela ideia de que ele vai ser alimentado com comida que ele nunca comeu.
O primeiro capítulo, que marca o setting do mangá é essencialmente isso. E meu deus, todo mundo fez um acordo.
–O Denji fez um acordo com a Yakuza pagar suas dívidas com trabalho.
-Denji fez um acordo com Pochita que salvaria sua vida se ele o ajudasse a ganhar a vida depois.
-Denji voluntariamente vendeu seu olho, testículo e órgãos no mercado negro em um acordo comercial por dinheiro.
-O Diabo dos Zumbis fez um acordo com a Yakuza de dar a eles seu poder em troca da vida de um caçador de diabos.
–O Pochita fez um acordo com Denji. Ele daria o próprio coração para Denji e em troca Denji viveria os próprios sonhos para que Pochita pudesse vê-los se realizar de dentro de Denji.
–E por último o Denji fez um acordo com a Makima de se tornar o animalzinho dela, em troca de comida e de matar quem ela mandar matar.
6 acordos em 54 páginas. É um acordo a cada 9 páginas. E com o seguimento do mangá a situação só continua. Aki, Himeno, Kobeni e a maioria dos demais colegas de trabalho de Denji ofereceram tempo de vida ou partes do corpo a um diabo em troca de poderem pedir a ajuda de seus poderes durante as lutas. Quando a Power aparece, descobrimos que ela havia feito um acordo com o Diabo dos Morcegos de entregar um humano pra ele matar e em troca ele não mataria o gatinho dela. E Denji faz um acordo com Power de proteger o gatinho se pudesse pegar nos peitos de Power…
Sim, pois o Denji é super desesperado por aproveitar que não é mais um miserável para poder enfim explorar sua sexualidade, eu entro nesse ponto em breve, mas ele também faz um acordo com Himeno de ir em uma missão suicida se ela o beijasse caso ele sobreviva. E o mais importante dos acordos sexuais de Denji: Makima fez um acordo com Denji que se ele matasse o Diabo da Pistola ela atenderia qualquer desejo dele, tendo plena noção de que ele pedirá por sexo, e essa foi a maior motivação pro Denji seguir na missão conta o Diabo da Pistola ao longo do mangá.
Um acordo em que uma parte só faz algo porque a outra promete fazer algo de volta, é a base da maioria das relações de Chainsawman, e também do mundo real, em uma de suas mais assustadoras facetas. Nada é de graça, e é comum duvidarmos de quem não aparenta ganhar nada com alguma ação que realiza. Se o mundo incentiva o individualismo e nada é de graça, então o mundo é feito de acordos.
Mas o que é um acordo?
Um acordo é o fruto de uma negociação. Depois que dois lados deixaram seus desejos claros, eles chegam em uma etapa em que eles concordam em cada lado deverá cumprir a sua parte, e se os dois lados fazem o que foi combinado, então o acordo foi cumprido, se só uma faz e a outra não, o acordo foi quebrado.
A palavra vem da palavra em latim accordare que por sua vez é uma variação da palavra concordare que significa “Concordar, O cor na palavra vem de coração, e deixa entendido que uma pessoa coloca seu coração em um acordo. Para chegar em algo que os dois lados concordem.
Isso significa que os dois lados do acordo entendem o que cabe a eles fazer para manter o acordo. O que isso não significa é que acordos são justos, como aqueles que são realizados com diabos raramente são.
Para dar uma olhada de como são os tipos de acordo que o mangá retrata, e ele retrata vários. Vamos observá-los da perspectiva de com quem se está negociando.
Acordos Unilaterais, Parte 1:
Acordos com Diabos
Diabos e Humanos aparentemente são inimigos naturais. Eles representam os medos da humanidade e eles odeiam a humanidade. Para diabos matar humanos é um fim e não um meio, e para humanos aparentemente também. Esse ódio mútuo é enquadrado como algo natural em uma guerra que exista e tanto tempo quanto as duas espécies existem.
Com todo o seu discurso de realizar auto-defesa e proteger a humanidade de diabos, Makima e o Serviço Público de Caçadores de Diabos não parecem ter muita empatia por vidas humanas. Em nenhum momento é descrito um incidente que justificou organizar um grupo de caça aos diabos e logo no primeiro capítulo já se revela que você pode vender o corpo dos diabos no mercado negro, e que pra muitos humanos a morte de um diabo é um desejo que pode ser mais comercial que de segurança.
Ambos os lados têm suas exceções, ambos os lados têm pessoas que simpatizam com o outro lado, ambos os lados têm gente envolvida em vingança pessoal, e ambos os lados têm gente que acha que o outro lado só tem que morrer por ódio a espécie. É uma inimizade profunda que dura a história da humanidade inteira. E o mangá não dá o menor indício de que solucionar esse conflito e achar paz entre os povos está nos planos.
Agora, os diabos que desejam matar humanos, usam muito da mão de obra humana para isso. Com acordos, eles fazem acordos com humanos em troca de suas vidas, ou em troca deles atraírem novas vítimas. Diabos conseguem fazer humanos trabalharem para eles.
E humanos conseguem fazer diabos trabalharem para eles. E o esquadrão experimental de Makima é composto em sua maior parte por não humanos, sendo híbridos como Denji, demônios (cadáveres humanos possuídos por diabos), e diabos. E tem humanos também, o esquadrão tem membros das duas espécies e duas espécies de meio-termo entre elas.
O ponto é: por serem inimigos, Humanos e Diabos tem uma facilidade enorme em trabalhar juntos. Afinal, um dos grandes propósitos da existência de acordos no mundo é nos dar meios de lidar com nossos inimigos. É por temos inimigos que precisamos de armas para solução pacífica de conflitos.
Acordos são jogos de poder e isso fica claro nos pactos com diabos mais do que em qualquer lugar. A maioria dos humanos depende do poder de um diabo para poder enfrentar outros, e para isso fazem contratos com diabos para poder ter esse poder.
O Aki por exemplo tem um contrato com o Diabo da Raposa, ele pode invocar o Diabo da Raposa para devorar o diabo que ele enfrenta, e em troca ele deixa o Diabo da Raposa comer um pedaço do seu corpo. Um sacrifício eterno que ele precisa fazer toda vez que for matar um diabo. O Aki também tem um contrato com o Diabo das Maldições, pra quem sacrificou um número não revelado de anos de sua expectativa de vida,
Himeno tem um contrato com o Diabo do Fantasma em que ela pode usar o poder dele, e em troca ela deu o seu olho. Pelo menos ela pagou só uma vez para poder usar o poder sempre que precisar, Outros diabos podem pedir a perda da sensação de toque, Ou o sacrifício de um terceiro não envolvido no contrato.
São preços caros. E mais que caros, a maioria deles, perdas muito permanentes de coisas que o ser humano não vai realmente poder repor, para que o diabo ajude por alguns minutos e vá embora. A desproporcionalidade do preço exigido reforça a diferença de poder. Os humanos dependem dos diabos para poderem enfrentar os outros diabos. Mas os diabos não tem porque se envolver a menos que tenham seus desejos atendidos.
Um aspecto particularmente fascinante é que é o diabo quem decide o preço, ele pode fazer o mesmo contrato com dois humanos, e cobrar preços diferentes baseados no quanto eles simpatizam com o humano em questão.
O que confirma, é uma situação em que o diabo detém todo o poder. Eles não tem nada a perder com o acordo não sendo feito, diferente dos humanos, que potencialmente se tornam incapazes de lutar e morrem em serviço. Então eles abusam do preço e o ser humano não pode fazer nada.
Acordos Unilaterais, Parte 2:
Acordos de trabalho.
Junto do peso dos acordos com os diabos que os caçadores de diabos precisam fazer para serem capazes de trabalhar, tem o acordo que os caçadores de diabos fazem com seus contratantes, para terem trabalho em primeiro lugar.
Denji teve dois chefes em sua carreira de caçador de diabos: A Yakuza e a Makima. E ambos esses acordos são exemplos muito claros de exploração, palavra que aqui significa: o que Denji é recompensado muito mal por um trabalho onde ele literalmente dá o sangue e arrisca a vida, e essa desproporcionalidade é intencional, tirando vantagem de Denji não estar em condições de recusar o acordo.
Na época em que trabalhava pra Yakuza, Denji era famoso por fazer qualquer coisa por qualquer quantia de dinheiro, com um exemplo claro sendo ter comido um cigarro por uma moeda de 100 ienes. Ele era desesperado, e a Yakuza abusava de seu desespero para fazer ele realizar seu trabalho sujo.
Quando ele entra no contrato com a Makima, ele trabalha essencialmente em troca de comida e moradia, e o mangá aponta explicitamente, na boca de Reze, uma menina que se apaixonou por Denji e pergunta porque o governo está fazendo um jovem de 16 arriscar a vida sem poder retomar a educação que ele não teve a vida inteira.
Ela propõe pra Denji que fugissem juntos, mas Denji está seduzido demais pela vida que leva, em que ele tem casa e comida pra sair. Ele descreve que se num dia ele quase morreu, mas no outro ele comeu uma comida gostosa, então o bem equilibrou o mal. Evidenciando o quanto sua experiência de 16 anos na miséria afetou seus valores.
Ele também descreve a gradual melhoria na rotina de trabalho como um motivo para não fugir e refazer a vida e se manter com a Makima.
E Denji não é o único que é explorado ali. Mais de metade das pessoas na folha de pagamento da Makima tem a condição de que se eles se demitirem eles vão ser mortos por ela. Os que sobraram, se forçaram ao trabalho ou por precisar muito de estabilidade financeira.
Ou no caso do Aki, pois ele realmente se envolveu a nível pessoal com a ideia de se vingar do Diabo da Pistola. E não pode voltar atrás, sendo Aki justamente o mais auto-destrutivo, todo arco diminuindo gradativamente sua expectativa de vida até….
….bem quem está nos atuais viu onde terminou. Se eu escrever aqui eu vou reviver esse momento todo de novo, e eu gosto demais do Aki para homenagear a tragédia nesse blog.
O importante é que esse tratamento de caçadores de diabo em precariedade é algo que é enquadrado como típico da Makima, quando os caçadores de diabos de outros países marcam Denji como seu próximo alvo, notamos que todos eles são prometidos recompensas grandiosas, por serem recompensas proporcionais ao risco de morte da missão. Três irmãos americanos são oferecidos dois milhões de dólares pela missão.
E Quan Xi, uma caçadora em um relacionamento poliamoroso com quatro demônias, consegue uma promessa do governo chinês de que o sucesso da missão acarretaria em suas namoradas recebendo direitos humanos e acesso à educação. Nada sequer parecido com o que Makima ofereceu aos seus subordinados pela morte do Diabo da Pistola.
Claro que tudo isso se encaixa quando vemos que Makima na verdade é o Diabo do Controle, e não um ser humano. E seus acordos são tão unilaterais e exploratórios quanto os de um diabo. Porém mesmo sendo um diabo, os acordos que ela faz, são na condição de acordos humanos e não de contratos com o diabo, isso é explícito justamente quando Aki faz um contrato com ela, mesmo já sendo seu subordinado, o que alterou a relação dos dois, obviamente.
Mesmo o acordo com Denji, em que ela supostamente realizaria qualquer desejo do Denji e havia ficado claro no teor da conversa pra ela que o desejo seria sexo, perde a unilateralidade do acordo pro lado dela, quando no último capítulo ela traz a promessa de volta pra Denji e ele muda seu pedido, para um que o colocasse sob o poder da Makima.
E já que estamos nesse ponto.
Promessas Sexuais para Denji:
Quando você ainda numa fase jovem migra do entretenimento infanto-juvenil ocidental, como desenhos e séries de aventura, para os mangás pra mesma faixa etária, você nota que nos mangás têm muito personagem que tem seus desejos sexuais muito explícitos. E para a desgraça das personagens femininas, muitas vezes os personagens manifestam isso de maneira invasiva, física e canalha, para usar eufemismos.
E isso e um problema em muito mangá legal, dentre eles cito One Piece por exemplo. E infelizmente é algo que se eu quiser continuar consumindo mangás como eu consumo eu vou ter que ler muito disso no futuro, pois é muito disseminado e não aparenta estar indo embora.
Em Chainsawman a taradice de Denji, que é muito mais forte no começo do mangá que atualmente, é racionalizada como que sua sexualidade, assim como boa comida, é parte das coisas que sua vida como miserável lhe privou. E isso é literal, o desempoderamento sexual que viver na miséria lhe deu não poderia ser retratado melhor do que em um cara que vendeu os testículos para comprar almoço.
Portanto ele agora que passou a se ver como uma pessoa normal, com uma casa, um emprego e comendo três vezes por dia, ele sente que ele quer o contato sexual do qual ele se sentiu privado a vida inteira. Por isso ele marca logo em sua primeira missão, que seu próximo objetivo seria poder pegar em peitos.
O que culmina no acordo que ele fez com Power, em que ela deixaria ele pegar em seus peitos se ele a ajudasse a resgatar o gatinho de estimação dela.
Power inicialmente não tinha a intenção de cumprir a própria parte do trato, mas depois de ver que Denji quase morreu no processo ela mudou de ideia e foi até ele dizer que ele tinha três apertadas e nada mais.
Depois disso, quando Denji conhece Himeno, ela fala que daria um beijo nele caso ele matasse o Diabo da Eternidade. E Denji empolgado pela perspectiva do primeiro beijo se anima, porém logo a situação pesa, e o Diabo da Eternidade propõe um pacto com todos os caçadores presentes, incluindo Himeno, de que ele deixaria eles todos viverem, se eles largassem Denji pra ser morto. E Himeno entra no time que apoia que eles todos sacrificassem Denji.
Denji salta pra morte sabendo que se ele voltasse inteiro ele ia ganhar um beijo. E voltando da morte, Himeno faz uma adição no acordo, o beijo também é em troca dele perdoar todo mundo que tentou matar ele pela missão, o que ele aceitou.
Se juntarmos isso com o emprego de Denji, que para ele é um meio de comer boa comida e ficar perto de Makima, por quem ele se sente atraído, dá para ver que sexo é uma parte constante dos acordos que Denji faz no mundo. Ele vive uma vida em que ele quase morre toda semana, e passa por diversos traumas, mas a expectativa de conseguir sexo (e boa comida) faz ele aguentar a barra.
O que dialoga com todo o conceito inicial, de que por tradição, Diabos te oferecem tentação e prazeres em troca de sua alma, e a busca por prazeres geralmente é condenada nessas obras em que a moralidade é que os desejos que te levaram a fazer o pacto com o diabo eram impuros.
Com a diferença que Denji não fez esses pactos com diabos, mas com pessoas. Foram pessoas que fizeram Denji quase morrer pela promessa de satisfação sexual. Digo, Power é um demônio, mas ela não tem o poder de fazer contratos com humanos como um diabo, e ela interage com Denji como pessoa normal. E Makima está se passando por humana, e quando ela faz um acordo com alguém na condição de diabo é diferente.
E Himeno não tem migué não. É 100% humana.
Um contraste interessante é Reze. A outra menina por quem Denji genuinamente se apaixonou. E a única que não lhe prometeu nada minimamente sexual. O que ela lhe prometeu foi paz, tranquilidade, uma vida em segurança, e o amor dela. E por mais que Denji amasse ela, ele escolhe na hora uma vida com a Makima arriscando a vida por migalhas de dignidade.
Todo o arco da Reze é essencialmente sobre o contraste entre uma vida com segurança e uma com prazeres. Reze representava o apelo da vida de segurança, mas Denji queria uma com prazeres. No fim do arco ele volta atrás e decide abandonar tudo por uma vida de segurança e conforto, mas a segunda chance é negada pra ele, pois matam Reze antes que ele pudesse fugir com ela.
Interessante, que quando ele recebe a parte dele da promessa, a apalpada em Power e o beijo de Himeno, em nenhum dos dois exemplos ele recebe prazer, sua recompensa é vazia e ele se sente mal pelo não-prazer que tirou do ato, que ele racionaliza como sendo por ter sido com uma garota que ele não amava.
O que aliás, permita-me fazer um parêntese já que estou no assunto que eu quero realmente apontar e elogiar o capítulo que consistiu inteiramente do Denji cuidando da Power, traumatizada após o encontro com o Diabo da Escuridão, e quebrada psicologicamente para fazer qualquer coisa sozinha, e mostrando que o Denji, estabelecido como um personagem motivado por desejos sexuais fortes, em seu ato de dar banho e dormir com Power, não conseguia sentir nenhum tipo de tesão. Justamente pela fraqueza dela, e pelo quanto a vulnerabilidade não é sexy. E isso é algo que eu acho que mais mangás (e filmes, e séries e tudo) deviam falar. Meninas traumatizadas e vulneráveis, não são sexy, e nada é sexy na dependência que elas podem ter de alguém que tome conta delas. Mangá é uma mídia que apela muito pra sexo, e putaria para se vender, mesmo quando tem um público-alvo menor de idade, consumindo essas merdas principalmente para sanar curiosidades, e isso é algo que precisa ser mais dito. E menina traumatizada precisa ser menos sexualizado. Quero aproveitar esse espaço para fazer esse elogio, e fiz, de volta ao texto.
Culminando no último capítulo que saiu. Que saiu quando esse texto já tava quase terminado, tive que mudar várias coisas, e que mostra Makima enfim dando a Denji a chance de cobrar a dívida que ela tem com ele. E Denji troca o pedido inicial implícito pelo novo pedido de ser o cachorro de Makima.
…aparentemente literalmente? Uma vez que ele fez isso olhando para os vários cachorros que tem na casa dela. Esses cachorros são ex-pessoas? Eu não sei de nada. Vamos descobrir se é literal ou não semana que vem. Mas o importante é que em vez de pedir algo sexual, ele pediu a vida de um animal de estimação. Uma mudança significativa na natureza do tipo de acordo em que ele se envolve. E uma deixa pro ponto final dessa análise:
Cachorros:
O cão pode ser o melhor amigo do homem, ou o Cão pode ser um eufemismo para o diabo. Tal como nessa coincidência que não tem nada a ver com nada, o cachorro é uma simbologia constante da relação entre humanos e diabos em Chainsawman.
Pochita era um diabo, o Diabo da Motosserra, mas sua aparência nesse mundo era igual à de um cachorro e sua atitude também. Incluindo o fato de que ele não falava apesar de ter essa habilidade. Ele não precisava agir feito um cachorro, mas agia mesmo assim.
Tudo no Pochita é muito estranho na verdade no primeiro capítulo, parecia super normal a ideia de um diabo que amasse um humano do jeito que Pochita amou Denji, mas logo no segundo essa ideia é brutalmente subvertida e depois nunca mais vimos nada parecido com um diabo sendo tratado como animalzinho de estimação.
E no estado de construção de mundo que o mangá apresenta agora, uma dinâmica como a que Denji e Pochita tiveram soa estranha, e eu imagino que seja proposital, tendo em vista quanto hype colocam pro Diabo da Motosserra, ele obviamente é um caso especial.
Mas vimos algo parecido com um ser humano, uma criatura racional (que nem os diabos são) sendo tratado feito animalzinho, que foi… Denji e Makima.
Quando Denji e Makima se conhecem eles cumprem um acordo, Makima não mata Denji e em troca ele se tornará o cachorrinho dela, fazendo o que ela mandar em troca e casa e comida. E Denji aceita na hora.
Mas não se trata somente na maneira como Makima trata ele – que no caso é como uma pessoa que vai fazer tudo o que a Makima mandar em troca de comida e casa – Denji pode ser associado como um cachorro em diversos momentos do mangá.
Por exemplo no eterno conflito de personalidade entre ele e Power, sendo que Power em contraste é dona de um gatinho, e reproduz arquétipos felinos (arisca, desapegada, territorial e faz o que quer). Então pode-se dizer que Denji e Power se desentendem feito cães e gatos.
E também pois a marca maior de Denji é o maior arquétipo canino. Ele é leal à pessoa que o alimenta. Ele foi leal à Yakuza até ser marcado pra morrer, e ele é leal à Makima até agora, mas esse status só se mantém enquanto Makima cuidar dele. Quando ele foi diretamente questionado em relação a quais eram suas lealdades ele respondeu que ele estava do lado de quem cuidasse dele, não importa se humano ou diabo.
E curiosamente, as interações de Makima com Denji são onde a humanidade dela mais transparece. Se falando com seus rivais ou aliados ela sempre mostra seu poder e mistério. Quando ela está com Denji ela geralmente parece atenciosa aos dilemas dele e passa a Denji a impressão de preocupação.
Claro que conhecendo o verdadeiro caráter de Makima toda a gentileza que ela aparenta demonstrar pra Denji obviamente são lidos por nós como fachada para o objetivo final dela, que ainda não está claro. Mas o fato dela precisar incluir a manutenção emocional de Denji em sua lista de trabalho, coisa que ela certamente não faz pelo Aki, mostra que a maneira de manter Denji dentro do poder dela é diferente. Você não trata seu cachorro como trata seu empregado.
E não por coincidência, no último capítulo, vimos que Makima é uma literal criadora de cachorros em seu tempo livre, e que esse tipo de interação de conquistar lealdade em troca de comida e carinho é algo que faz parte completa do cotidiano do Diabo do Controle.
A série passa certa legitimidade nessa troca de amor por comida. O amor de Pochita por Denji era verdadeiro, mesmo ele sendo um Diabo, e sua lealdade por Denji também, nunca deixou o lado dele e o reviveu. O amor de Denji por Makima também é verdadeiro muito embora seja visível que ela esteja só usando o amor dele pros seus interesses. Da mesma maneira, embora seja um gato e não um cachorro, o gatinho que Power adotou foi o primeiro afeto que ela fez na terra, uma criatura por quem ela sentiu amor genuíno e uma peça-chave no processo dela, um demônio sanguinário, gradativamente se tornar uma pessoa melhor.
Mas ao mesmo tempo não deixa de ser um acordo em uma relação de poder. O ato de Denji adotar Pochita foi chamado de contrato pelo próprio Denji. Foi lido como um contrato com o diabo, que Pochita não tinha condições de recusar por estar morrendo. E bem, já ficou claro que Makima usa a lealdade de Denji para exercer poder sobre ele.
E muitas vezes agir fora de seu interesse, como quando matou Reze antes que ela levasse Denji embora para uma vida melhor do que a que Makima oferecia.
E por último temos Kishibe o mais forte caçador de diabos da série, que na época em que era um parceiro de Quanxi usava o apelido de “Cão Louco”, mas agora que ele trabalha pra Makima ele é acusado de ter virado um cão de verdade, com uma coleira simbólica, que é a sua gravata.
Na ficção cachorros muitas vezes são retratados como figuras humilhadas, e servis, em uma posição vergonhosa de se ocupar.
Mas existem poucos casos que descrevem o cachorro por esses motivos como uma figura gloriosa e digna, por sua humildade e lealdade. Sandor Clegane de A Song of Ice and Fire ressignifica o cachorro como uma figura muito mais honrada que o cavaleiro, e prefere o título de cachorro que o de cavaleiro.
Mas o que tudo isso significa? Que se os diabos podem tirar vantagem de humanos fazendo acordos com eles, acordos que acentuem suas posições de poder, humanos também podem. E humanos podem fazer isso de maneira tão eficiente que um diabo poderia se passar por um humano desapercebido, sendo lido somente como um chefe abusivo.
E que seja diabo ou humano essa é a base das relações. A amizade de Denji com Himeno foi firmada num acordo, o de que ela ajudaria ele a ficar com Makima se ele ajudasse ela a ficar com Aki.
Além é claro dos próprios diabos fazerem contratos com os próprios diabos, mesmo sendo um diabo, Makima está cheia de acordos com outros diabos, pois eles negociam entre si por poder tanto quanto os humanos.
O que culmina na clássica noção de que no fundo o diabo não é tão diferente do ser humano, tanto não é, que acompanhamos vários ao longo da série, de diabos completos a distintos graus de hibridismo e todos soam como pessoas normais, algumas com aparências estranhas, alguns com poderes, alguns com um ódio imenso da humanidade, mas no geral, todos são pessoas. E as diferenças biológicas entre as espécies é relativizadas.
Um take que apesar de não ser tão original quando olhamos em aspectos gerais, ainda acho interessante para como lidamos com o conceito em particular de diabo, o de que eles são nossos inimigos mortais, e queremos limpar a sociedade de sua influência, mas a sociedade parece tão feita em seus moldes e tão apropriada a eles. E talvez interagir nos moldes dos animais, como cães e gatos faça mais sentido.
Pessoalmente acho a maior surpresa a surgir na Shonen Jump em um bom tempo e um dos mangás semanais mais interessantes de ser lidos. E fica aqui minha celebração dessa obra que eu espero poder voltar e falar mais coisa sobre quando ela acabar.