Quero começar explicando a possível ambiguidade gerada pelo título. Esse não é um texto sobre que lições o renomado mangá Hagane no Renkinjutsushi, cujo título foi ocidentalizado pra Fullmetal Alchemist, tem a nos ensinar sobre como lidar com o fascismo, pois eu creio que o mangá não ensine.
O texto é sobre como nós enquanto público podemos lidar ou não quando olhamos de perto a maneira como o fascismo é retratado no mangá. Que é um fator que nos normalmente ignoramos completamente ao falar da série. Ignoramos com muito mais força do que ignoramos na hora de falar de Shingeki no Kyojin, cujo uso de simbologia fascista tem sido motivo de críticas pro mangá desde seu princípio. E isso fazemos por um motivo: Fullmetal Alchemist não é um mangá sobre fascismo. Mas ele está lá, durante o mangá inteiro e de uma maneira estranha, e fica mais estranho em 2020 do que estava em 2010. Essa palavra ganhou conotações assustadoras nos últimos anos, e lida com uma realidade que eu não associava ao momento presente quando eu li o mangá pela primeira vez.
Fullmetal Alchemist é um dos meus mangás favoritos de todos os tempos e vai continuar sendo por muito tempo. Eu adoro a história, adoro os personagens, os temas, as lutas. Acho maravilhoso. Mas tem esse um probleminha no mundo que me passou batido, mas hoje, ele não passa batido, de maneira alguma, que é o fato de Amestris ser um país fascista.
E não me refiro a uma maneira de falar mal de um país cujas políticas de direita me incomodam, não. Eu digo, é literalmente fascista. É um regime totalitário ultra-nacionalista que fortalece a união do povo com base em uma união racial, e é comandado por um ditador que também é o comandante máximo das forças armadas, em um Estado militarizado. Amestris é visivelmente inspirado nos regimes fascistas da Europa dos anos 40, com a maior inspiração sendo a Alemanha. Tanto que convencionou-se traduzir o título de King Bradley, daisoto para führer, na maioria das traduções, mesmo que “marechal” fosse algo mais literal. Pois os paralelos eram impossíveis de não notar.
Mas diferente da maioria das histórias sobre protagonistas que vivem em regimes fascistas, Fullmetal Alchemist não é sobre o combate ao fascismo, embora em uma leitura distraída você possa achar que é.
Os mangás enquanto mídia têm uma relação problemática com a estética nazista e com o uso de iconografia militar alemã do começo do século como espetáculo e entretenimento desprovido de questionamento, que fazem ser impossível não lembrar que na segunda guerra mundial o Japão fez parte do Eixo. E se eu fosse mais estudado no assunto eu faria o texto ser só sobre isso, mas está além do que estou qualificado a elaborar mais.
Mas o ponto sobre a construção-de-mundo de Fullmetal Alchemist ter pegado da era fascista europeia uma inspiração clara de funcionamento de mundo é: Ela é maquiagem, ela é um elemento interessante do mundo para que o achemos natural, para que a trama flua pelo mundo de maneira mais verossímil, e uma maneira de enriquecer o mundo. Além de gerar contexto pra que muitos dos acontecimentos ocorram de maneira orgânica e lógica.
Mas o mangá não é, ao menos não primariamente sobre o fascismo, os personagens não estão questionando nada disso, pelo contrário, é tudo incrivelmente naturalizado por ali. O Ed em um exato momento aponta o quanto a alquimia é militarizada em Amestris, mas ele sendo pessoalmente um alquimista federal, que deveria fazer pesquisas de alquimia e entregar essas pesquisas ao führer, ele não é distante desse problema.
Os vilões de Fullmetal Alchemist são os homúnculos, e os homúnculos são as figuras que comandam a política de Amestris pelas sombras desde a fundação do país séculos atrás. E o atual führer, King Bradley é um dos homúnculos e rege o país feito uma marionete de acordo com os exatos desejos de seu pai pro país ser exatamente o que ele precisa ser pros planos darem certo.
E o país fascista que é Amestris é derrubado e reerguido pelos heróis, seu führer é morto, e os heróis tomam o país pra eles, para uma nova era sem a interferência dos homúnculos, qual o problema? E é aqui que vem o grande problema, nossos heróis são fascistas também. E também usando fascista no sentido mais literal da palavra possível. No sentido de “pessoas que voluntariamente aceitaram fazer parte de um governo fascista tendo como motivação pra isso suas ideologias e utopias.”
Nossos heróis são militares nacionalistas favoráveis a um governo totalitário sem eleições, comandado pelo exército que reforce as hierarquias sociais. Eles acreditam piamente que o fortalecimento do estado e da autoridade é o que protege o povo. Curiosamente, mesma exata lógica que One Piece, um mangá anti-autoritário do qual eu falei recentemente colocou na boca de seus vilões.
Talvez não todos os heróis Ed, Al e Winry, e certamente não o Scar. Mas Roy Mustang é um. Olivia Milla Armstrong, é uma fascista. Alex Louis Armstrong é fascista, e o General Grunman é fascista também, assim como Maes Hughes, Liza Hawkeye, Maria Ross….. a porra toda.
Todo personagem afiliado ao exército Amestrino é um personagem que se alistou nas forças armadas de um país em uma época que esse país já era fascista. Nenhum deles foi obrigado a vestir a farda, nenhum deles se alistou numa época em que o Estado era tranquilo, e os personagens comentam o quanto o caminho militar foi o caminho que eles escolheram o tempo todo.
E eles não deram as costas ao governo porque o governo era fascista, totalitário, opressor, ultra-nacionalista e nem por causa de um genocídio do qual muitos deles foram forças ativas, eles deram as costas ao governo, porque o governo era manipulado pelos homúnculos. E fundaram o próprio governo, sem homúnculos.
E o novo governo estabelecido no fim de Fullmetal Alchemist, é totalitário, é militarizado, mantém as estruturas de poder de seu antecessor e é presidido por um ditador que também é uma alta patente do exército e segue usando o título führer.
Aliás, não só isso, o golpe de estado que deram, precisou publicamente ser divulgado, com a cumplicidade de uma mídia manipulada, que o Bradley não foi morto pelos heróis e sim pelos vilões, pra legitimar o novo governo em cima da popularidade e status de líder cultuado do ditador. Essa percepção de que o governo novo tira legitimidade por ter lutado pra defender King Bradley durante o golpe de Estado é legitimado pela esposa de Bradley que publicamente corrobora essa história, e que se tornou uma amiga próxima do novo führer.
Inclusive, passagens de como o povo se sentia seguro com a mão-de-ferro do Bradley aparecem, mostrando que ele de fato tinha a cumplicidade de seu povo.
Tudo isso provando que Amestris não sofreu uma quebra de modelo político real, eles só deixaram de ser marionetes de homúnculos. O que se considerarmos que a criação de um inimigo externo e foco em identidade racial, são características fortes do fascismo, a noção de que esses heróis reergueram o país eliminando o grupo de não-humanos que atacaram o país só vai fortalecer o regime.
E mais que isso, a noção de que todas as guerras que o país travou e ganhou foram meramente para formar um círculo de transmutação que fortalecesse o pai dos homúnculos é visto como uma descoberta desumana. Porém a ideologia que racionalizou cada um desses massacres previamente não é verdadeiramente questionada pelos personagens, só a maneira como eles foram manipulados. Mas eles só foram manipulados, pois eles acreditaram na ideologia fascista.
O que é provado no ataque da Drachma a Briggs. Olivia sabe que aquilo é um plano de Kimblee pra causar um derramamento de sangue no ponto norte e completar o círculo de transmutação. Mas sua ideologia torna impossível pra ela ignorar e não revidar o ataque. Os homúnculos manipularam o contexto, mas quem derramou aquele sangue foi a visão de mundo de Olivia e ela não volta atrás nisso. E isso ocorre com cada ponto do círculo de transmutação em que rolou uma guerra.
Incluindo Ishval. Que os personagens se sentem incrivelmente culpados por terem feito parte, mas fizeram mesmo assim.
Amestris estava em diversas guerras territoriais no começo da série e elas se estenderam a história inteira, mas em seu final nada foi dito se elas iam ou não acabar. E se Amestris ia buscar fazer paz com seus vizinhos. Nada indicou que iria ou não iria, pois a situação de política externa de Amestris não era um assunto no final do mangá, o assunto era se os homúnculos continuariam no poder ou não.
Assim como nada foi dito se o novo führer ia continuar empregando ou não os alquimistas federais como armas humanas. Nesse assunto ninguém tocou, e eu sinto que esse assunto era importante.
Olivia Milla Armstrong demonstra uma mentalidade de darwinismo social que embora não esteja acima de ser criticada pelos fãs, é incrivelmente romantizada pelos personagens da série e nunca é verdadeiramente questionada no texto da obra. Ela acha que os fracos morrem e os fortes sobrevivem e essa é a lei natural e o forte não tem compromisso em se atrasar por conta do fraco. E ela é enquadrada como uma heroína até o final. Além de ser apontada como uma pessoa qualificada a ser a nova führer.
Roy Mustang é um criminoso de guerra, cheio de culpa pelos horrores que ele causou pela pátria, e com a promessa de que caso um dia ele se torne führer, ele vai transformar o país em uma democracia, em um processo que vai envolver ele próprio ser colocado em julgamento por crimes de guerra. E isso justifica e heroifica sua jornada de constante escalada pelo poder e tentativa de se tornar o führer no futuro, e enquadram tudo isso em uma jornada de redenção.
Lado a lado com isso ele faz todo um discurso sobre o quanto uma nação protege o povo com um senso claro de hierarquia militarizada em que cada homem protege seus subordinados e assim todo mundo é protegido pelo führer. E essa era a utopia dele. Uma nação vertical de líderes e subordinados em que a força do líder máximo protege a nação inteira.
Scar, sobrevivente de um genocídio e uma limpeza étnica perpetuado por Amestris, aprende a seguir a diante sem buscar vingança, pois não cabia a ele fazer a revolução. E quem ensina isso a ele é um membro da mesma etnia que Scar, porém que se alistou no exército como um subordinado de Olivia, e vive as normas do darwinismo social, em que o forte vive e o fraco morre e é deixado pra trás.
Outros personagens inicialmente anti-fascistas se juntam a revolução como força-de-combate mas não se juntam a ela como uma proposta do que deveria suceder o golpe de estado. Ou seja, aceitaram lutar batalha de Roy e Olivia pelo bem maior (os planos do Pai dos Homúnculos apresentavam um risco maior e mais imediato que um regime fascista), mas com isso serviram de cúmplices pro fortalecimento da ideologia, que agora que retiraram um falso-fascista que era mero fantoche de um megalomaníaco sem real visão política, e colocaram em seu lugar um fascista de verdade, cansado de ser manipulado, o ideal só vai crescer.
E eu já falei aqui sobre como criar um vilão pior é a maneira ideal de transformar em herói uma pessoa que na verdade é uma filha da puta.
Entre esses cúmplices se encontram o já mencionado Scar que achou redenção em simplesmente parar de se vingar do exército pelo massacre, e em Izumi Curtis, que lutou lado a lado do exército, mesmo que suas primeiras aparições mostrassem que ela é incrivelmente contrária ao exército.
E em contraste ao fascismo visto em muitos heróis. E a rebeldia que fez as pazes com esse fascismo pelo bem maior. Existe a apolítica dos vilões, que apesar de governarem Amestris pelos princípios fascistas, não são realmente políticos.
Amestris tem o governo que tem pois precisava ter. Literalmente o plano do Pai dos Homúnculos era ter um país em formato de círculo com derramamento de sangue forte em pontos-chave, para isso, ele precisava de um país em constantes guerras territoriais que ele ganharia e perderia de propósito para ter as fronteiras no formato certo e o derramamento de sangue nos pontos-chave. Uma dúzia de revoltas civis contidas pelo exército que massacraria o próprio povo, para manter também esse derramamento de sangue e voilá, é assim que se desenha um círculo de transmutação a nível nacional.
Mas em questão de ideais, o Pai dos Homúnculos não tem uma visão política, pois ele não tem uma visão humana, e fazer política é parte do que nos torna humanos. Para o Pai dos Homúnculos, ideologias, ideais e políticas, eram armas que ele podia alimentar pra fazer os humanos fazerem o que ele queria que eles fizessem, mas seu único objetivo é extremamente pessoal, o Pai vive num mundo em que existe somente ele nesse mundo, e uma pessoa não pode fazer política se existe sozinha.
Os seus filhos, extensões de sua personalidade e parte de seu corpo, são iguais, incrivelmente desinteressados em ideais ou política. É parte do distanciamento deles com a humanidade. Eles querem satisfazer seus impulsos mais básicos e nada mais, Gula, Inveja, Luxúria, esses impulsos não são resolvidos com relações sociais e organização humana. Mesmo King Bradley, que era o Wrath, entendia a si mesmo como uma mera marionete, e no seu momento de liberdade, e livre-arbítrio foi viver pela violência sem racionalizá-la com ideais, raça e origens.
O único homúnculo cujos impulsos dialogavam com política era Greed, que queria ter tudo, e portanto queria ter autoridade, queria ter terras, queria ter subordinados, e isso implicava ser parte da organização humana. Greed inclusive pega temporariamente o objetivo de se tornar Imperador de Xing, e literalmente ocupar um cargo, só pela ganância do poder. Não por coincidência os desejos de Greed tornam ele o mais humano dos homúnculos e o menos capaz de se dar bem com seus irmãos. Ele é um vilão que atua independentemente dos demais homúnculos e forma laços com humanos excluídos da sociedade. E é eventualmente convertido em herói, com a descoberta de que amizade era algo que ele podia ter e portanto alimentar sua ganância, fazendo ele ser vítima do poder redentor da amizade.
E por último Solf J. Kimblee. O humano aliado diretamente aos vilões, e um caso fascinante. Kimblee tem uma visão de mundo muito peculiar, de que no mundo as pessoas cumprem ordens e desempenham funções sem colocar pensamento neles. Um soldado mata e um médico salva ambos sem olhar a quem. Ele consegue ver naturalidade em qualquer ambiente em que absurdos desumanos ocorram, pois é como as coisas são.
Por não ver muita gente de fato determinada e movida a ideais fortes, Kimblee adora essas pessoas. E seu maior prazer é ver embates de pessoas determinadas. Trabalhar para os homúnculos foi uma maneira para ele de, da cadeira de camarote, assistir o embate entre a maneira como os homúnculos veem o mundo e a maneira como os humanos veem o mundo.
Kimblee é sádico e psicopata, e não tem também o menor senso de grupo ou se vê como um membro da humanidade. Ele tem uma não-literal máscara de humano em que ele disfarça sua psicopatia com educação e protocolos e se portando como se espera que ele porte, mas seu único interesse é poder agir em prol do próprio prazer.
E ele não pertence a grupo nenhum, e não tomava o lado realmente dos homúnculos, se voltando contra Pride quando ele vê que Pride não era fiel aos valores que ele afirmava defender, e portanto indigno.
Então pros heróis fascismo ou, pelo menos, tréguas com o fascismo, e pros vilões apolítica que usava do fascismo uma arma para aplicar interesses incrivelmente individualistas, e geral desinteresse em tomar lados.
E a pergunta que eu realmente quero chegar aqui, é… se Fullmetal Alchemist não é uma apologia fascista, o que eu acredito que não seja, então ele é o quê? E quando eu descobrir a resposta: qual vai ser o tamanho do pano que eu estou passando para esse mangá quando eu continuar mencionando ele quando for mencionar os melhores mangás de todos os tempos? Porque eu vou.
E outra pergunta que eu também quero chegar é: como o texto de uma obra corrobora a organização da qual seus personagens fazem parte quando é uma organização de existência condenável? Ou seja: o quão inevitável é que Brooklyn 99 seja uma propaganda da polícia de Nova York, e que Hamilton seja uma glorificação dos founding fathers dos Estados Unidos, e o quando essa ambientação não-crítica pode se tornar uma cumplicidade com grupos problemáticos que entre em conflito direto com a importância social de ambas as obras no quesito da inclusão de pessoas de cor.
Complicado né? Eu acho.
Começando com o fato de que se a gente olha pra Fullmetal Alchemist com atenção, é possível identificar vários, elementos antifascistas no texto. O suficiente para me fazer crer que a autora Hiromu Arakawa não corrobora os valores fascistas. O mais notório é precisamente a critica constante e apresentada logo no começo de que a alquimia é uma força que só tem valor quando ela serve ao povo, e não ao Estado, criticando fortemente a existência de alquimistas federais.
Olivia, duramente critica a mentalidade de gado dos soldados da central que só seguiam ordens e não pensavam por si só, além de abertamente incentivar o descumprimento de ordens em prol de fazer o que ela achava certo. Ela também advoga pela individualidade dentro de sua tropa, acreditando que ter o máximo de perspectivas dentro do exército aumenta as chances de vitória.
Mas a série tem uma relação curiosa com uma completa desconsideração com os direitos humanos que o país permite. Ao mesmo tempo em que há uma clara crítica aos experimentos usando seres humanos de cobaia feitos pelos homúnculos e alquimistas associados, que são todos análogos às atrocidades de Josef Mengele.
Os protagonistas do exército também tiram vantagem dessa desconsideração do governo pra seus interesses. Roy Mustang consegue escoltar Maria Ross em segurança simulando uma execução extra-judicial em que ele carboniza um corpo falso de Maria Ross até deixá-lo impossível de identificar, fraudando sua morte. E ele ter assassinado uma inimiga da pátria, num beco, a sangue frio, por motivos de claramente vingança, não o colocaram em nada parecido com um julgamento ou uma investigação, pois Maria Ross era uma inimiga da pátria e Mustang um genocida herói de guerra.
Quando questionada em relação a ações que podem colocá-la em julgamento por violação de conduta, Olivia responde “Eu faço essas coisas o tempo todo.” Depois disso: a maneira como Olivia matou e ocultou o cadáver do General Raven, quando descoberto é usado para King Bradley ter interesse em colocá-la em seu círculo interno, muito embora ela não tenha feito isso pra agradar Bradley, era somente como ela lida com situações.
Então é tudo muito complicado.
Roy Mustang e Olivia Armstrong, são membros do fascismo. E após o fim do mangá eles junto de Grunman lideram uma nova era pro país, um país que segue totalitário, militarizado, e mantém vivos os ideais de Bradley. Porém é um país levemente menos racista, que vai devolver Ishval pros Ishvalianos. O exército provavelmente não vai manter uma rede de vigilância pesada na população, pois eles usavam o Pride pra isso, e acordos com Xing foram firmados, mostrando que vai ter uma troca cultural com uma nação muito distinta. E isso tudo são quebras de elementos fascistas claros como união racial e ultra-nacionalismo.
Em Fullmetal Alchemist o fascismo é um meio para um fim, que os vilões usaram para fins terríveis, e os heróis o usam para fins humanitários. Mas os dois lados usam. Tanto quanto os dois lados usam a pedra filosofal feita da alma de pessoas usadas em experimentos humanos como cobaias. Ed e Al usam de maneira mais respeitosa que Kimblee, mas os dois usam. É uma ferramenta.
E o que os leitores de um planeta que caiu nas graças do pensamento neofascista depois que o mangá terminou faz com essa informação?
Eu devo ficar confortável lendo um mangá em que as esperanças para que os absurdos do Governo Bradley só possam ser desmantelado pela traição de soldados internos que não necessariamente se opõe ao que ele alegava ser, só ao que ele literalmente era?
Eu devo acreditar de fato que a promessa do Roy de ao assumir o poder iniciar um processo democrático que rapidamente o tirará do poder e o colocará a julgamento? E mesmo acreditando nisso, uma vez que no final o poder foi pra Grunman que não fez essa promessa, e aí? É tudo um jogo de paciência em que o povo deve esperar pacientemente um ditador que abdique do poder pro fascismo poder se encerrar da maneira correta?
E que garantia eu tenho de que na próxima revolta interna que tivermos em Amestris, o exército não vai responder com extermínio? Como é que um personagem como Grunman pode ganhar o título de mocinho e de führer ao mesmo tempo?
Talvez eu esteja só mais sensível com o assunto hoje do que eu estava em 2010, mas talvez outras várias pessoas estejam mais sensíveis hoje com o assunto hoje do que em 2010. E essa mudança da minha sensibilidade por conta de eventos que ocorreram depois que a obra terminou alteram o texto da obra?
No fim pode uma obra sobre conflitos políticos e golpe de estado em uma nação fascista terminar sem uma solução pro fascismo implantada e passar a vibe de que o bem venceu o mal? E até quando os fascistas vão achar sua redenção por enfrentar um crime pior que o fascismo? Esse tipo de história está envelhecendo cada vez pior.
Talvez uma comparação possível de se fazer seja com A Song of Ice and Fire, ou Game of Thrones, que é o nome só da série de TV, mas é um nome mais reconhecível.
A Song of Ice and Fire descreve o continente de Westeros em um mundo que é análogo ao que foi o feudalismo europeu na idade média. Com lordes brigando para manter suas posições políticas dentro do reino. Apesar de ser um mundo moralmente ambíguo e repleto de áreas cinzas na moralidade, e de ser habitado por personagens muito complexos cada um com uma visão de certo e errado muito diferente entre si em uma narrativa que nos permite entender exatamente qual é a perspectiva deles, apesar de tudo isso. É possível encontrar heróis e vilões ali.
Ned Stark e Tyrion Lannister são boas pessoas. Joffrey Baratheon e Ramnsay Bolton são más pessoas. A maioria dos personagens entra em uma área cinza, e mesmo esses dois não dividem muitos valores que nós dividiríamos, e reforçam muitas visões de mundo que não concordamos. Mas apesar da ambiguidade moral da série, Ned e Tyrion são sem sombra de dúvidas heróis. Quando eles triunfam o leitor sente-se bem por eles. O autor George R. R. Martim é bom em indicar apesar de qualquer área cinza moral, com quem deve estar a simpatia do público.
Quando Oberyn Martell enfrenta a Gregor Clegane, é claro de que lado é para o leitor estar, e qual vitória será considerada um resultado positivo e qual seria uma tragédia.
Mas no fim das contas, Ned, Tyrion, Oberyn, são um bando de lorde, que sustentam uma vida de confortos e privilégios construídas nas costas de uma população camponesa que tá na merda, e a série mostra muito claramente o absurdo que é a existência de uma aristocracia e um sistema feudal. A série não esconde o quão escroto é o sistema feudal. Aliás, hoje em dia é difícil esconder pra qualquer um que entra no assunto.
A perspectiva de ver feudalistas se combatendo entre si e determinar que mesmo que a moralidade seja ambígua, alguns ali estão mais com a razão que outros, e não importa a solução dos conflitos, o problema maior – que é o reino ser um reino nos moldes da idade média – não será verdadeiramente solucionado. Mas isso não nos afeta, não só porque isso faz rima com um mundo que deixou de existir faz mais de meio milênio, como que não vemos o menor risco de seu retorno. Não mexe com feridas nem do passado recente nem do presente.
Muito diferente da polícia de Nova York que é um problema do presente, um problema sério, e mesmo assim eu…. Gosto de muita coisa em Brooklyn 99. Eu adoro a Rosa, eu adoro o Holt, eu até coloquei ele e o Kevin nos casais que eu mais gosto de ver na ficção. E quanto a Brooklyn 99, eu vejo muita gente falar “tem que pensar que a série se passa em um universo alternativo em que esse tipo de policia existe.” pra racionalizar gostar de Brooklyn 99 em uma época de Black Lives Matter, mas isso não funciona pra mim. Pois acho que não basta eles serem bons policiais, eles acreditam no sistema. E acho que policial assim até existe, mas o problema é que eles não tem espaço dentro da polícia pra crescer e terminam precisando ou entrarem nos moldes da polícia escrota para terem espaço interno ou sendo demitidos.
Holt afirma que ele consegue se manter na polícia mesmo sendo membro de minorias, perseguido por seus colegas, e enfrentando abuso de autoridade, pois ele faz seu trabalho e faz direito. E isso reforça a crença de que o profissionalismo, a paciência e a crença na maneira certa de fazer as coisas são recompensados. E isso não é uma mensagem em que eu consigo acreditar perante as atrocidades que a polícia comete, e a de Nova York é uma das piores. E essencialmente, em uma perspectiva realista, o trabalho de Holt é garantir que um monte de jovem negro vai ser assassinado sob sua tutela isso que significa fazer o trabalho direito, pois quem balança essa parte específica do barco é demitido.
Mas o mundo é sensível com Brooklyn 99, e se criticamos a série como copaganda, logo vem defender citando o um episódio em que Terry enfrenta o policial racista, que é um episódio que quando olhamos de perto é uma imensa defesa do sistema, mas o ponto é, Brooklyn 99 é uma série importante no quesito de gerar um humor não-caricato e inclusivo, que desconstrói masculinidade tóxica e trás representatividade em uma televisão progressista. Mas ela é tudo isso, em um ambiente completamente retrógrado e problemático de uma instituição que é o oposto do que a série defende. A polícia é um campo de pouca inclusão, muito racismo e que reforça masculinidade tóxica, e a gente não devia ter armas para associar a instituição à antítese disso. Mas por ela ser importante pra seus fãs pelo primeiro motivo, apontar o segundo motivo pode deixar muita gente irritada. É um tema sensível.
E eu acho que é exatamente nesse ponto em que a série se torna mais copaganda do que nunca. Quando ela usa progressismo e politicamente correto, para fazer as pessoas defenderem esse modelo de polícia como um cenário válido de entretenimento. Como a valorização dos personagens faz a pessoa acreditar que eles podem coexistir com um sistema que não permite que eles sejam esses personagens. Como algo não problemático. Pessoas que nunca defenderiam um Law&Order com a mesma força. Nessa hora a copaganda te pegou, te vendeu uma “polícia descolada”.
O que me faz voltar a Fullmetal Alchemist e a minha conclusão.
Eu escrevi esse texto, mas ninguém está de fato problematizando o fascismo de Fullmetal Alchemist, esse texto é uma resposta a ninguém e esse assunto é um assunto em que não se entra muito nas discussões. Por isso eu acho importante entrar.
Eu acho que parte de ser fã de Fullmetal Alchemist, e um fã que não foge do pensamento político de suas obras (pois o Otaku que não quer política em seus animes pode ir se foder), é encarar o assunto de frente e falar sobre ele. Falar que esse mangá é sobre fascistas tomando o controle do Estado roubado dos homúnculos. E que nós podemos defender o mangá o quanto quisermos, mas não podemos ignorar isso ou depender nosso desfrutamento da obra de achar que a situação política do mangá não é um problema.
Esse mangá é bom apesar da retratação heroica e romantizada de um totalitarismo militar ultra-nacionalista, e parte de achar ele bom, e de defender não só sua qualidade de plot e construção de personagem e o sistema perfeito de poder que é a alquimia, mas também de defender os temas complexos que o mangá aponta como a dicotomia de ciência versos fé, o que faz do ser humano um ser humano, e a filosofia da ética no uso da ciência, todos esses elogios eu acho que precisam passar pelo filtro “apesar do fascismo.”
Assim como os elogios a Brooklyn 99 precisam passar pelo filtro “apesar da polícia novaiorquina ser uma instituição racista a nível que não pode ser consertada com a contratação de bons policiais progressistas.”
E isso não é sobre cancelar as obras, é sobre como o elogio só tem valor se a gente destaca o quanto esse cenário é um problema. Porque a gente vive em um mundo em que a ficção tem o poder real de moldar ideais e naturalizar certas organizações, e tanto instituições policiais quanto militares usufruem da ficção para ganhar uma simpatia que eles simplesmente não merecem. E obviamente ambos os grupos podem protagonizar histórias excelentes, e digo o mais, por investirem muito em histórias sobre si mesmo, é normal e esperado que eles protagonizem histórias excelentes, e é por isso mesmo que o “apesar”, precisa ser incluído na crítica positiva. Pois se você não destaca isso, o romantismo entra junto na critica positiva naturalmente, ele só vai ser separado, se o locutor separar.
E vale pra tudo, vamos elogiar o feminismo em Capitain Marvel, deveríamos, mas não podemos omitir a propaganda militar visível que esse filme é, e isso é importante para que no futuro não associemos feminismo e glorificação do exército americano. E é por sermos fãs e estarmos dispostos a defender essa obra de uma chuva de haters que temos o dever de falar sobre esses pontos, para não incluí-los como parte do processo de ser fã.
Pois é quem gosta da obra que engole essa merda. É dentro do círculo de fãs que gostaram e divulgam, que a gente tem que filtrar que elementos deixam um gosto estranho na boca.
Porque se a gente fica puto de associar um homem como Jake Peralta com a instituição que assassinou George Floyd, e sente vontade de separar ele do problema, se isso aconteceu, então era copaganda mesmo. Então foi com sucesso que eles te venderam a falácia do “bom policial” e da “maçã podre”, e quem tem que filtrar isso é o fã. Não o hater. O hater não precisa de mais motivos para desprezar o Jake Peralta.
Pois nenhum de nós é uma esponja, a gente escolhe o que a gente está tirando das obras que consumimos, pois é essa escolha que nos mantém no controle. A gente não está absorvendo uma mensagem, a gente está dialogando ela com a nossa visão de mundo em uma troca. E se a gente não faz isso, ou melhor, se recusa voluntariamente a fazer isso, aí tudo que acusam de ser propaganda a gente vê e é mesmo.
Isso quer dizer que o Roy Mustang ou a Olivia Armstrong não podem ser o personagem favorito de vocês? Gente, o meu favorito é o King Bradley e depois é o Kimblee e eu leria mais mil mangás com esses dois lixos humanos fazendo o que quiserem. Sentir entretenimento por patife agindo é nosso direito inalienável enquanto consumidores.
O que a gente precisa fazer é saber projetar rejeições que temos na vida real em personagens fictícios carismáticos, e depois podemos perdoar ele, da mesma maneira que eu perdoo o Hannibal Lecter.
Isso é só questão de entender que quando o Envy encurralou Maes Hughes na cabine telefônica… Aquela arma matava fascistas.