A população mundial está se aproximando cada vez mais de seus oito bilhões de pessoas, distribuídas em 195 países que estão conectados entre si pela globalização, e pela internet. Cada um desses países com particularidades em sua cultura, em sua situação política, e em sua história, que fazem com que um grupo muito grande de pessoas sempre inclua muitas pessoas muito diferentes entre si.
Por isso, como fazer uma obra agradar a todo mundo, quando todo mundo envolve pessoas com visões de mundo tão distintas?
Temos duas opções. A primeira é fazendo histórias rasas que se esforçam para dizer o mínimo possível. Afinal quanto menos você diz menos você gera discórdia. Muito embora mesmo nesses casos, mesmo em uma história rasa, algo sempre está sendo dito, pois essa é simplesmente a natureza de uma história.
E a segunda é confiando na capacidade de uma grande parte do público de desapropriar de uma obra o seu tema central, pois reconhecê-lo na obra é um inconveniente.
De uns anos pra cá, as pessoas têm tido reações alérgicas de descobrirem que suas obras de ficção favoritas, podem conter mensagens políticas, e elas precisam muito provar pra si que não. Que entretenimento e política não andam lado a lado. E é importante pra esse pessoal acreditar que corromper o entretenimento dele com política é um mal do fã, quando as vezes é a natureza da obra desde o começo.
Enfim, esse texto meu vem do que tem sido um extenso período de um ano e seis meses acompanhando o fandom de One Piece nas redes sociais, nervosíssimos cada vez que semelhanças entre o discurso do hediondo personagem Akainu (que pode ou não ser o vilão final da série), é comparado com o discurso do atual presidente do Brasil. E com um efeito muito semelhante ao que acontece em Star Wars, em que muitos fãs da série aparentemente não entendem que quando situações semelhantes ocorrem na vida real, eles torcem pros vilões.
Eu tenho amigos que são blogueiros/youtubers que falam muito sobre One Piece e tenho que ver em comentários de seus conteúdos duras críticas de gente que acha que espaço pra se falar de One Piece não é um espaço pra se falar de política, pois é só um mangá de pirata esticando.
Mas eu já disse aqui e reforço, TODA OBRA DO MUNDO É ESPAÇO PRA SE FALAR DE POLÍTICA, e quando menos parece ser o espaço, maior o sinal de que ali é o espaço sim.
E One Piece, sendo um mangá que está em publicação já tem 23 anos, e está faz 23 anos falando sobre os mesmos temas e conflitos, obviamente trás nesses temas e conflitos uma visão pessoal do autor. Inclusive uma não, mais de uma. Eu falei no passado sobre a questão de família e parentesco que o mangá segue trabalhando bem até hoje. E quero falar hoje do Autoritarismo! E das visões de One Piece sobre a relação entre governo, povo, liberdade e revolução.
Pra começar falando sobre o maior elefante na sala do país.
Um dos maiores fenômenos da esquizofrenia política que assolou o Brasil nos últimos sete anos. E um dos que mais broxam qualquer noção de que o choque entre tese e antítese é capaz de produzir uma síntese em debates políticos, é que conseguiram plantar na mente de uma quantidade imensa de Brasileiros, de que a dicotomia entre um governo autoritário e um povo livre é a exata mesma dicotomia entre um governo de esquerda e um de direita. Essa é uma desinformação que de repente você encontrava em qualquer lugar com qualquer governo em que o Estado opere do autoridade se torna um espantalho para a esquerda e uma propaganda pra direita.
Então vamos começar explicando que ser de esquerda não é uma distinção que tem a ver diretamente com a sua relação com autoridade. Sua postura em relação ao capitalismo, às pautas econômicas e a dicotomia do coletivismo contra o individualismo são muito mais importantes pra se definir esquerda e direita do que a questão do Estado poderoso. O tamanho do Estado e o quão controlador ele é, é um meio, um meio para um fim, e esse fim pode ser diversos modelos políticos diferentes, que incluem os regimes socialistas e os regimes fascistas que não foram regimes que operaram no mesmo espectro político.
E isso devia ser óbvio! Mas deixou de ser! E precisa ser reexplicado novamente toda vez.
Pelo amor de Deus, o template mais banal de identificação em espectro político que existe, claramente aponta que a vertente autoritária é completamente separada da vertente da esquerda e direita.
Isso sendo dito, o anarquismo, enquanto um movimento político atual que tem existido por muitas décadas, é um movimento tradicionalmente anti-capitalista como um de seus princípios básicos. E a tentativa de se associar os ideais anarquistas com os ideais capitalistas, o tal do anarco-capitalismo é muito raramente levado a sério como um pensamento anarquista pelo contraste claro de ideais.
Enfim, isso significa que uma vez que eu estou taxando One Piece como um mangá que tem um pé em ideias anarquistas, eu estou taxando como um mangá de esquerda? Wow, não necessariamente. Por vários motivos, primeiro, porque como eu disse, eu acho que sua postura em relação ao capitalismo é muito mais decisiva em relação a sua posição no espectro do que sua posição em relação ao Estado. E qualquer associação do anarquismo com a esquerda tem que ser levado em conta com o fato de que eu não faço ideia se Eichiro Oda é ou não um simpatizante do anarquismo enquanto um movimento atual. E não temos como ver. Muitos ideais de One Piece dialogam pesadamente com anarquismo, mas eu não chego ao ponto de rotular o mangá como anarquista.
Eu acho que One Piece dá uma base pequena para analisarmos que opiniões esse mangá realmente passa sobre propriedade privada, lucro e relações trabalhistas. Eu não sei as opiniões do Oda em relação a situação política no Japão, não sei em quem ele vota.
Mas apesar disso, o mangá dá uma visão clara de mundo, de como o Oda projeta em um mundo imaginário que ele criou uma visão de liberdade que dialoga fortemente com a ascensão global do autoritarismo e do fascismo nos últimos dez anos. E apesar de eu achar um enorme exagero clamar o Oda em nome da esquerda, ele, sem dúvida, está desenhando um mangá que é diretamente combativo com a forma que a direita assumiu nos tempos atuais. Vamos começar com alguns pontos.
AMAB – Todos Marinheiro São Bastardos!!
ou
Como One Piece retrata as forças de aplicação da lei em seu mangá:
Comecemos falando da instituição Marinha.
Ou seja comecemos falando dos arcos de One Piece.
Existem muitas escolas de pensamento a respeito de como separar One Piece em arcos… Afinal separamos Water Seven de Ennies Lobby? East Blue é uma coisa só? Como fazer com os arcos que se conectam? Eu pessoalmente separo One Piece por Antagonistas primários. Ou seja, em fases em que o Luffy antagonizou diretamente um personagem central e não passaria para outro até esse conflito ser resolvido. Geralmente simbolizado por ele precisar vencer essa luta antes de sair da ilha onde ele está e ir pra outra ilha
Sendo esses em ordem: Alvida, Morgan, Buggy, Kuro, Don Krieg, Arlong, Smoker, Mr.5, Mr. 3, Wapol, Crocodile, Bellamy, Enel, Foxy, CP9 (personificada em Rob Lucci), Gecko Moria, Duval, Kizaru, Boa Hancock, Magellan, Akainu, Sentoumaru, Hody Jones, Caesar Clown, Donquixote Doflamingo, Jack, Big Mom, e Kaidou. Sendo o Kaidou o antagonista central atual. Totalizando 28 antagonistas centrais Desses 28, 5 representavam a Marinha diretamente, com outros dois representando o Governo Mundial, instituição com a qual a Marinha é subordinada. Somando 7 vezes que o adversário do Luffy era essencialmente as forças de aplicação das leis do governo mundial. Essencialmente um quarto mangá foi dedicado a esse conflito. E ganha de qualquer outra organização antagonista do mangá, como a Baroque Works que tem três arcos, os Shichibukais que tem 4 arcos ou os Yonkous que contando conexões indiretas somam 5 arcos.
Isso sem contar os arcos Arlong, Crocodile, Foxy e Doflamingo, a presença de marinheiros na ilha se tornou um obstáculo extra pro Luffy. Então…. É, eles são os maiores antagonistas da série.
As forças de aplicação da lei são o adversário mais recorrente do Luffy. E são também o segundo adversário que Luffy enfrentou, logo no começo, no exato mesmo arco em que ele oficialmente se tornou um pirata.
Sendo um pirata, Luffy é um inimigo da marinha por definição. E todos os marinheiros com quem Luffy tem uma relação positiva no mangá estão incrivelmente cientes dos limites de sua relação dentro da inimizade declarada com Luffy com a Marinha.
A inimizade do Luffy com a Marinha é simples. O Luffy é um criminoso, e a Marinha caça, e prende os criminosos. Mas uma pergunta que nos fazemos pouco é: qual foi o crime de Luffy?
Além de uns bons socos que ele deu em gente que supostamente não era pra socar, o principal crime do Luffy é a insubordinação. Ele levantou a própria bandeira em seu próprio barco e isso significa que ele vive sob as próprias regras, e não se subordina ao governo mundial.
Os piratas da vida real, assim como o das mais icônicas obras de ficção como Treasure Island ou Pirates of the Caribbean, eram notórios pelos crimes diretos que eles cometiam durante suas viagens, o principal deles: o roubo. O ato de mirar em navios alheios ou em cidades mal protegidas, e roubar, ouro, prata e qualquer coisa que pudesse ser revendida, roubar comida, bebida para sustentá-los pela próxima viagem, e as vezes roubar equipamentos do navio pra fazer a manutenção do próprio. Além é claro de muitas vezes matar quem resistir. E também não excluindo a possibilidade dos ataques envolverem estupro. E as vezes também tacar fogo nas casas, afinal “por que não?”.
Os piratas afinal precisavam fazer o maior barulho possível em alguns de seus ataques, especialmente com seus alvos vulneráveis, pois a reputação de monstros cruéis psicóticos era boa pros negócios. Aumentava o número de navios que se rendiam sem resistir, pra escapar do pior, e com isso eles conseguiam mais saques arriscando menos tripulantes. Eles escolhiam bem os momentos de abusar da crueldade, pois precisavam de uma péssima reputação, afinal não é produtivo ir pra luta todo ataque, você perde mais homens do que é capaz de recrutar.
Luffy não cometeu NENHUM desses crimes.
Seus crimes incluem. Libertar Zoro de ser executado. Socar Herumeppo e Morgan. Socar Nezumi, resistir a prisão em Logue Town, recrutar Nico Robin, resgatá-la em seu julgamento, queimar a bandeira do governo, resistir prisão de novo. Liderar uma fuga de presos. Libertar Ace, e resistir a prisão… de novo. Acho que oficialmente não dá pra sair uma papelada acusando ele de mais nada. E todos esses crimes têm em comum que foram um processo do Luffy impedindo os abusos da justiça de ocorrerem. Todos uma reação a um ataque direto da marinha ou governo e esse ataque sim tinha proteção legal.
E isso é importante, pois a Marinha é uma instituição corrupta, e a preservação da própria imagem é muito mais importante do que a prevenção de crimes. A recompensa pela cabeça de Luffy escala astronomicamente a cada arco, muito por sua força, pois isso é um mangá de batalhas e essas recompensas indicam a força dos personagens sim, apesar de racionalizarmos que nem sempre. Mas principalmente, pois os ataques de Luffy difamam a imagem da Marinha, colocando os maiores defeitos da instituição na percepção pública.
Isso vale a desde destruir a estátua de si mesmo que Morgan queria levantar, até a maneira como ele evidenciou que a Marinha negligenciou diversas ilhas e as abandonou a mercê de criminosos horríveis, por falta de investigação, motivos políticos ou corrupção escancarada. As quedas de Arlong, Crocodile e Doflamingo as três foram acompanhadas de uma recusa da Marinha enquanto instituição de reconhecer a própria responsabilidade na tirania pra qual fez vista grossa, e de uma tentativa de reparar os danos que essa ilha libertada causa para a imagem da marinha.
O que coloca os marinheiros honestos e mais preocupados com justiça do que com imagem, em conflito direto com seus superiores.
A Marinha em One Piece tem uma alta percepção de poder simbólico, e os focos para ameaçar os inimigos que causem maior dano ao seu poder simbólico é muito maior do que o de ameaçar os inimigos que coloquem mais vidas em risco. E o salvamento de vidas raramente é uma prioridade pras ações da Marinha, tanto que quando o Almirante Fujitora mostra que essa é uma prioridade pessoal dele, nós ficamos surpresos com a perspectiva nova.
Luffy, Sabo, Ace, Nico Robin, Fisher Tiger, essas foram pessoas que simbolizam uma ameaça direta aos símbolos do Governo Mundial e ao poder simbólico que ele exerce no mundo. E isso torna eles figuras muito mais perigosas e prioritárias do que a chacina que Kaidou comete.
Então o que podem os indivíduos que creem em justiça e não na automanutenção da imagem fazer dentro dessa instituição? A resposta está afundada em ambiguidade, pois é um elemento recente do mangá que ainda não terminou de ser apresentado.
Mas aparentemente existe uma organização chamada SWORD composta por membros presentes da marinha, assim como por membros que abandonaram a organização, que estão operando em segredo precisamente nas áreas que a marinha deliberadamente negligencia, como por exemplo o país de Wano, onde X-Drake está infiltrado.
Tem muita coisa que não sabemos sobre a SWORD, a principal delas, é se são uma organização que opera sem o conhecimento do Almirante de Frota da Marinha, Sakazuki, ou se eles respondem ao Sakazuki, e é difícil opinar muito sobre a organização sem saber isso.
Mas o que só de fato podemos especular bem, é que o nome SWORD, aparentemente faz antítese à CP-Aegis-0, organização de inteligência do governo mundial que protege os Dragões Celestiais. Aegis significa escudo, e o nome SWORD passa a impressão de que a espada está ali pra atacar o escudo, ou seja, não proteger os interesses simbólicos do governo mundial. Infelizmente isso ainda está muito no território da especulação.
Mas independente disso, Drake precisou resignar oficialmente da Marinha para poder agir em prol da proteção de pessoas. E outro marinheiro notável por aplicar a própria justiça em vez de seguir ordens: Ao Kiji, também saiu da organização. Fujitora está na organização, mas banido de entrar em qualquer base como punição por reconhecer os defeitos da organização. E muitos fãs teorizam uma eventual saída de Smoker da organização. Então, praticamente exceto pelo Coby, a tendência dos fãs e ver os Bons Marinheiros eventualmente serem desconectados da organização.
O que torna o ponto central: O mangá One Piece é contra o policiamento dos mares. E os impactos positivos do pequeno grupo de bons marinheiros fazendo seu trabalho é sempre colocado na sombra do impacto negativo, das atrocidades para as quais a Marinha faz vista grossa, para manter seus interesses políticos. E na média, não compensa, e os bons marinheiros deviam buscar investir seus esforços em outros grupos com outras diretrizes como a SWORD ou a própria pirataria.
Mas não é só a Marinha que serve como agentes aplicadores da lei no mundo de One Piece.
Temos o corrupto sistema judiciário de Ennies Lobby que nunca em sua história declarou um preso inocente, e que selecionou os jurados como presos rancorosos que querem arrastar todo mundo pro mesmo inferno que vivem, impedindo que o julgamento justo exista jamais.
E depois de julgados culpados os criminosos vão para a prisão, que pode ser uma prisão normal, dessas não vimos muito, ou pode ser Impel Down, a prisão submarina, onde os presos são torturados em seis níveis diferentes dependendo do grau de perigo ao governo que você é. O que sempre lembrando é simbólico. Então um assassino seria de nível 4 mas pessoas que manchem a imagem do Governo Mundial são nível 6. E Impel Down era administrada por Magellan, um homem que abertamente ameaçava qualquer preso que não seguia suas ordens com uma execução extra-oficial imediata.
Então a Marinha apesar de tudo ainda é a divisão da aplicação da lei onde o conceito de Justiça ainda se vê minimamente presente e não foi completamente corrompido pra eliminação sistemática de qualquer um que o governo não simpatize.
Mas nem toda força de aplicação da lei, é da lei do Governo Mundial, até porque se fosse seria difícil falar do mangá como uma critica à autoridade, e somente a autoridade específica do Governo Mundial, o que poderia facilmente cair na conta somente dos ideais específicos que o Governo Mundial defende.
Reis, Reinos e Guardas Reais:
O Governo Mundial consiste da união de 170 países, que embora sejam jurisdição do Governo Mundial, e da Marinha, e sigam suas principais diretrizes, são a nível individual cada um o seu próprio governo.
E no geral o Luffy não tem muita dificuldade de se dar bem com um rei. Eu brinco com meus amigos que One Piece é um mangá monarquista, pois qualquer ilha que o Luffy desembarca ele ajuda a firmar a legitimidade de uma monarquia, e isso é uma meia verdade.
Então vamos falar sobre o que é um bom rei e um mau rei.
E falar isso é falar sobre um dos arcos mais populares de One Piece: Alabasta que eu chamei acima de Crocodile quando estava me referindo aos arcos pelos seus antagonistas.
Alabasta é um reino que quando Luffy chega lá, estava em uma tremenda guerra civil, e Luffy foi lá justamente por ter feito amizade com a princesa do reino e prometido pra ela deter a guerra. Que estava sendo manipulada por Crocodile que queria usar o incidente pra roubar o reino pra si e ganhar acesso à uma arma destrutiva.
Então Crocodile convincentemente espalhou a fake news, que o motivo pelo qual todas as cidades estavam secando exceto a capital, era o uso do rei de um pó chamado Dance Powder que roubava a chuva das cidades vizinhas para fazer a capital prosperar as custas do resto do reino. E o exército rebelde, liderado por Kohza, tinha certeza que esse era o caso e resolveu pegar em armas e depor o rei.
Agora, e isso é importantíssimo, a raiva de Kohza com o rei em momento nenhum do arco é deslegitimada. O maior argumento para deter a rebelião provém do fato de que ele foi convencido com informação falsa, o segundo maior era de que eles estavam fadados a morrer lutando, pois eram o lado mais fraco da guerra, e portanto o ataque era suicida. Mas em nenhum momento alguém vira pra ele e fala que mesmo se fosse verdadeira, seria imoral tentar atacar o palácio com um exército do jeito que ele fez.
Porém um lado definitivamente foi deslegitimado. A ideia de que a guarda real tinha o direito de contra-atacar os rebeldes. O Rei de Alabasta, Nefertari Cobra, explicitamente proibiu qualquer retaliação aos rebeldes, não importa os danos do ataque. Afinal, os rebeldes eram o povo, e na perspectiva de Cobra é impensável o Rei atacar o povo. Afinal o reino é feito do povo, e se ele atacasse o povo ele atacaria o próprio reino.
Por outro lado, o palácio era feito de tijolo, e podia ser reconstruído, e se os rebeldes quisessem depredar o palácio e destruí-lo, Cobra ordenou que a guarda real deixasse. Em outras palavras, Cobra via o uso da força por parte do povo como legítimo, mas a resposta não, a resposta seria um ataque autoritário contra o povo. E não tem ataque ao patrimônio público que justificasse uma retaliação.
O Rei Cobra foi enquadrado ao longo da história como um Rei sábio, justo e moral, e como um exemplo de boa política. E isso ele demonstra desde sua primeira aparição. Quando é contrastado com o péssimo rei: Wapol, um bufão que desfrutava de seu status e luxo as custas do povo.
O enquadramento de Cobra como o bom rei vinha de várias características de como ele reinava e educava sua filha, a Princesa Vivi: Sem hierarquias! Cobra entende que o reino é formado pelo povo, e ele entende a si mesmo como parte do povo, como um pai criando uma filha, e seus títulos e hierarquias, são meros adornos que ele veste junto da roupa. Em privado, ele se curva pra Luffy e agradece-o por salvar o país. Cobra e Luffy estavam na sala de banho do palácio, então não existiu ali uma quebra de protocolo pelo rei se curvar a um criminoso, pois o rei não é o rei quando está no banho, nu, ali em seu ambiente privado ele é o que ele sempre foi, um morador do reino.
Cobra criou Vivi para se ver em pé de igualdade com o povo. Ela fez amigos entre as crianças do povo, saia do palácio pra brincar na rua, e as hierarquias que regiam a infância dela eram as que as crianças determinavam (ela era a vice-líder do clubinho de crianças, o que significa que existia uma criança que comandava a princesa dentro do clubinho). E com isso Cobra a ensinou a não fazer um abuso de seu título e autoridade.
Os ensinamentos de Cobra a Vivi pagaram. Ela foi elogiada em um encontro de Reis por saber priorizar as vidas de seu povo como algo mais valioso do que o próprio orgulho.
E principalmente quando ela quis desembarcar em Drum junto de Luffy, e os moradores do país barraram a entrada. Luffy queria entrar a força, mas Vivi obrigou Luffy a baixar a cabeça e implorar a entrada sem revidar. Vivi entendia isso, que não se atacam civis, mesmo que em resposta a um ataque. Mesmo que ela própria tivesse sido baleada. Afinal de contas, eles estão entrando no Reino pra pedir ajuda das pessoas do reino, e como poderiam fazer isso se atacassem as pessoas na entrada?
A família real de Alabasta vive pelo seu povo, e por fazer isso, ela tem o direito de ver a si mesma como parte do povo. E isso vem da história do reino. 800 anos atrás, os ancestrais de Vivi e Cobra rejeitaram a proposta de se tornarem nobres e abandonarem o país pra viverem na Cidade Sagrada do Governo Mundial. A família Nefertari rejeitou hierarquizar-se e alienar-se de seu povo.
Que outro Rei fez isso? O Rei Dalton, que substituiu Wapol em Drum. Dalton se recusa a viver em um castelo, vivendo na mesma casa que vivia quando ele não era um rei. E o mais importante, ele que era o capitão da Guarda Real no reinado de Wapol, não implantou uma guarda real nova quando assumiu. Drum não tem uma guarda real, quem protege Drum é o próprio povo. O que significa, é claro, que se o povo se voltar contra Dalton, ele não vai ser como atacar de volta.
Wapol por outro lado governava só pelo prazer da hierarquia. Sua política de expulsar os médicos do reino exceto seus médicos de uso pessoal, para obrigar o povo a baixar a cabeça pra ele sempre que precisasse de tratamento pra uma doença, era a marca da desumanidade e era racionalizada como um mal necessário pra manter o Rei forte e a força do Rei manter o povo seguro.
O contraste entre Wapol e Cobra é colocado lado a lado de maneira explicita pra nos indicar Cobra como um lado a se espelhar, e Wapol a se condenar.
E esse é um assunto que a série não cansa de revisitar. A vaidade de um rei é inimiga do povo, e um rei que coloca o povo em primeiro lugar, não hesita em jogar qualquer orgulho fora. Pois eles não estão ali pela própria imagem. E isso os diferencia do Governo Mundial e dos cachorros que zelam seus interesses.
Luffy visitou muitas ilhas com reis depois, com muitos reis. E nota-se um padrão. Quando o líder da ilha é um ser vil e cruel, a guarda-real aparece no arco como parte dos antagonistas a serem derrotados.
Mas quando o rei é um rei sábio e justo. A guarda-real não ataca os vilões compatriotas. A guarda-real da Ilha dos Homens-Peixe não levantou-se contra Hody Jones, mas fez tudo o que era possível pra deter o avanço de Noah, um objeto inanimado contra o povo.
A mensagem é clara. Nenhuma organização estatal devia servir para atacar o povo. Independente do que o povo fez. Um policiamento não existe pra proteger os líderes do povo, existe pra proteger o povo de ameaças externas. E isso trás consigo uma questão simbólica. Jinbei, um ex-membro da guarda real da Ilha dos Homens-Peixe entendia de simbolismo, e que o reino ver Luffy salvando-os de Jones teria um impacto positivo pras relações raciais no futuro. Mais do que ver um homem-peixe atacar outro homem-peixe.
O que nos trás a questão: quem deve proteger a nação?
One Piece e a Defesa Civil:
One Piece desde seu início sempre advogou pelo povo protegendo sua cidade ou seu pais, sob a percepção de que é a capacidade do povo de lutar pelo que é seu, que garante a força de seu território. Isso ocorre com os habitantes de Orange indo juntos expulsar os piratas de sua cidade. Luffy não revida contra eles, ele ficou feliz, de ver o povo de juntar contra ele. E fugiu.
Em Kokoyashi, o povo cansa de esperar pela marinha e pega em armas ele mesmo pra ir atacar os homens-peixe, sendo detidos sob a premissa de que seria um ataque suicida.
E é por isso que a rebelião de Kohza é legitimada, pois Kohza estava fazendo a mesma coisa, lutando pelo que era dele.
Water Seven, a cidade dos carpinteiros, não tinha nenhuma organização de segurança interna. Pois era liderada pelo prefeito Iceburg, que havia se aliado ao Governo Mundial por necessidade, mas era ideologicamente contra tudo que o governo representava. Quem protegia a cidade de seus invasores? Os próprios carpinteiros, mas não só eles. Os bandidos locais protegiam a cidade também. O notório criminoso da cidade Franky, treinava todo batedor de carteira local a se tornar um caçador-de-recompensas para que eles alvejassem piratas invasores acima de civis na cidade.
Mas independente desse tipo de função ser informalmente exercido pelos carpinteiros e pela Franky Family. Quando Iceberg sofreu um atentado por Nico Robin, foi o povo que se levantou pra deter o bando do Chapéu de Palha. Water Seven é uma cidade sem qualquer tipo de policiamento.
O povo é a força legítima. E é o povo apoiando Luffy que influenciou Fujitora a deixá-lo escapar e aceitar a briga com seus superiores pela negligência. Luffy é um aliado do povo, e portanto, Fujitora zelou por Luffy mais que pelo dever.
E o que One Piece faz com seus bandidos então?
One Piece tem uma maneira bem singular de lidar com seus antagonistas. A de que depois da luta a maioria deles resolvem se portar como as pessoas normais que eles sempre foram (isso é, tão normal quanto dá pra ser num mundo em que todo mundo é caricato e cartunesco pra cacete). Jango levantou da batalha na vila Syrup e foi entrar em um concurso de dança agora que a luta acabou. Hatchan foi abrir um stand de takoyaki. Miss Valentine virou confeiteira. Mr. 9 e Miss Monday tiveram um filho. Afinal as lutas vieram de um contexto. Se o contexto acabou, não tem motivo pra lutar mais, e os personagens voltam a fazer o que fazem normalmente. E todo mundo faz algo normalmente.
E isso é importante, em One Piece, as lutas derivam de contextos. Isso significa que quando o contexto se vai o motivo pra luta se vai junto, e por mais que Luffy e seus inimigos sejam humanos e guardem rancores como todo mundo guarda, eles todos entendem que o inimigo de hoje é o aliado de amanhã. Motivo pelo qual Luffy ativamente liberta Crocodile, o mesmo que ia destruir o país de sua amiga Vivi da cadeia, junto de outras centenas de prisioneiros que ele nunca ouviu falar.
E você não vai ver outro mangá da Jump em que o protagonista deliberadamente solta centenas de pessoas da cadeia, a maioria delas completamente culpadas pelos crimes que foram acusadas. Porque a série já começa relativizando completamente o conceito. Mas o que é crime afinal?
Como falamos acima, o maior crime real de Luffy é a insubordinação. Da mesma forma, o Dr. Hiruluk é um criminoso, ladrão e enquadrado como uma das pessoas mais puras do mangá, capaz de inspirar pro bem, não só o Chopper que ele criou pra ser um excelente médico, como a Dra Kureha, que quebrou parte de seu cinismo e dedicou muitos de seus anos para honrar o legado e memória de Hiruluk, um criminoso.
Quando Tom foi julgado e condenado a morte pelos seus crimes, ele não era inocente de nenhuma das acusações. Mas mesmo assim vemos que é um absurdo que um homem que estava salvando a economia de uma cidade inteira ser morto pelo crime de ter feito um navio.
Muitas histórias que querem fazer críticas ao sistema prisional e a maneira como as prisões são instituições cruéis que se afastaram da noção de justiça, fazem um grande foco em mostrar como a prisão trata os inocentes. Mas acho que a discussão se eleva ainda mais e ganha um peso grande no debate quando nos perguntamos como ela trata os culpados.
Em One Piece um passo além foi dado. Porque permite que façamos as perguntas: “Se criminosos são aqueles que cometem crimes, então porque que essas ações são aquilo que se definiu como crime?”, para um número que não é pequeno de personagens em One Piece existir é um crime. E a prisão ganha essa função social, a de eliminar uma existência.
É isso que o nível 6 de Impel Down significa. Significa que depois da execução, essa pessoa será removida da história, esquecida, seu legado será eliminado. Pois precisamente, a ação que essa pessoa fez que precisa ser consertada foi “Manter-se vivo”, esse foi o crime o Ace, esse foi o crime da Robin.
Mas fora da cadeia, a chance do criminoso de One Piece se tornar uma boa pessoa é altíssima. Não é pequeno o número de aliados do Luffy que já serviram ou foram seus inimigos. Gin, Robin, Mr.2, Hatchan, Perona, até Hancock foi inimiga de Luffy. Mas a habilidade de poder declarar águas passadas é importante nesse mangá. E o fato de que Impel Down não faria nenhum favor pro mundo prendendo nenhum desses personagens, só reforça como o dano que a Marinha e o Governo Mundial causam é maior do que o bem que ele criam.
Também notório no mangá é a otimista visão de mundo de que a gentileza gera gentileza. Dentre os vários exemplos que vilões que viram a casaca, o método mais comum para isso acontecer, é o misto de choque e gratidão ao receberem um grande ato de carinho…. Aliás, eu fraseei mal, não costuma ser um grande ato de carinho, pelo contrário, costuma ser algo pequeno, banal, algo que o personagem bondoso fez com uma naturalidade e banalidade de quem faz o mínimo, que faz o personagem mau repensar vários valores.
Para Gin foi receber um prato de comida de Sanji quando estava morrendo de fome. Para Pudding foi ouvir que seu terceiro olho, motivo de vergonha e violência tanto física quanto emocional, era lindo. Para Hancock foi ver Luffy proteger o segredo de suas irmãs, meso ela tentando matá-lo. Para Mjosgard foi ter a vida salva por Otohime. No caso, os heróis trataram os vilões de uma maneira espontânea como eles tratariam qualquer um, e essa maneira de praticar o bem sem distinção abriu os olhos dos personagens para outra maneira de se relacionar.
Mas pros que não viram a casaca, o mangá propõe outra maneira de se permitir a um vilão seguir solto sem ser uma ameaça.
O poder simbólico do soco na cara:
Um dos motivos pelo qual eu acho que um mangá como One Piece consistentemente se mantenha como o mangá mais popular do mundo faz mais de dez anos, não é só suas cenas de ação épicas, comédia e uma construção de mundo incrivelmente elaborados…. Embora tudo isso obviamente seja um fator. Mas eu acho que o fator determinante pra o amor de One Piece no coração de todo mundo é sua habilidade de gerar catarse.
One Piece é um mangá surreal de tão longo. 23 anos, e ainda vem mais. E parte do motivo pra isso é que a série tem muitos arcos longos. O quão longos? Oras, Wano já está rolando faz dois anos e só agora começaram a sair as primeiras faíscas do que vão ser as lutas do arco. E é isso, um mangá de batalhas que ficou dois anos sem batalhas, só gerando o contexto do arco.
One Piece gasta muito tempo, muito tempo mesmo contextualizando cada elemento da trama de seu arco e onde cada pecinha está posicionada para poder culminar em uma luta que não vai se resumir a ser animal, daora ou cheia de poderzinho, mas que vá ser emocionante, que vá ser a conclusão emocionante e catártica de todos os conflitos daquela nação afundada em problemas. E isso é tão bem-feito que muitas vezes essa cena catártica não se manifesta em algo que seja o auge do épico visual. No poder mais elaborado do mundo. Muitas vezes se manifesta na simplicidade de um soco na cara!
Um soco na fuça é tudo que One Piece precisa pra fazer seus fãs gritarem lendo, e isso se deve porque o Oda deixou bem claro o que esse soco significa. Porque Oda tem um hábito muito constante de fazer personagens intocáveis.
Intocável é uma palavra que possui dois significados.
Uma pessoa intocável pode ser uma pessoa em que de fato, ser tocada por outro ser humano é uma impossibilidade física, em mangás como One Piece isso se deve geralmente ao super-poder de ser intangível.
Ou uma pessoa intocável pode ser uma pessoa que tem uma barreira simbólica a separando das outras. Qualquer um pode tocar nela, obviamente, mas ninguém se atreverá jamais, por causa da diferença de hierarquia entre elas.
E One Piece tira muito de seu apelo fazendo o fã delirar vendo o Luffy tocar em ambos os exemplos.
O fato de um personagem não poder ser tocado gera uma arrogância ao personagem. E um senso se superioridade que Luffy não permite. E Luffy quebra todas essas hierarquias. Com a carga simbólica de dar um soco em uma pessoa que ninguém jamais daria um soco, Luffy destrói o pedestal dessas pessoas. E remove a barreira que as separa dele. E ele as iguala. No primeiro capítulo do anime, e segundo capítulo do mangá, Luffy ofendeu Alvida em sua cara, uma ofensa que ninguém se atreveria a dirigir a ela por medo, e quebrou o poder dela em sua frente. Seja aliado ou sejam inimigos, o Luffy não trata ninguém com polidez, e não muda sua forma de agir ou falar em função da presença de ninguém. E isso é uma maneira dele não deixar ninguém possuir poder sobre ele, vale pra Alvida, vale pro Newgate. A diferença, é que com alguns personagens isso é um jeito dele desmascarar a fragilidade desse escudo de tratamento que os vilões usam.
A filosofia de Luffy é simples. Se ele pode socar, ele pode brigar. E se ele pode brigar, as coisas podem se resolver. Um único soco foi o que precisou pro asqueroso personagem Bellamy se redimir, não em um herói, mas em uma pessoa humilde e com respeito pelos outros. Pois de fato a briga com Luffy foi um enorme divisor de águas na visão de mundo de Bellamy.
A habilidade de tocar Enel, tirou de Enel sua divindade, ele não era mais um Deus incapaz de ser tocado, ele era um cara numa luta.
E o icônico soco no Dragão Celestial Saint Charloss, uma das cenas mais famosas do mangá é o momento crucial em que Luffy mostrou pro mundo que ele não abaixava a cabeça pros nobres.
E remover essa hierarquia que separam os personagens intocáveis das pessoas que eles controlam, é importante, por um motivo: LUFFY NÃO MATA SEUS ADVERSÁRIOS. One Piece é um mangá infame pela falta de mortes em contextos que os fãs não esperavam sobreviventes. E apesar de isso muitas vezes ser sim um problema na perspectiva narrativa, não dá pra negar que isso tem uma importância simbólica. Nenhuma luta de One Piece é uma luta até a morte, mas seus efeitos são duradouros, pois ao fim da luta o vencedor removeu do perdedor o seu poder. Não seu literal super-poder, mas seu poder simbólico, ele removeu do perdedor o que permitia que ele fizesse o que fazia. E reforço, com isso Luffy abaixa todo mundo ao seu nível.
Isso pode ser a chuva sendo devolvida a Alabasta no instante em que Crocodile cai no chão. Isso pode ser a armadura indestrutível de Krieg sendo destruida. Isso pode ser o quarto onde Arlong prendia Nami sendo destruída, ou Katakuri caindo de costas. Luffy em suas lutas remove as armas simbólicas de seu adversário, e por isso matá-lo se torna irrelevante, desnecessário e cruel, ele já não vai levantar com a capacidade de recomeçar de onde foi interrompido. Luffy vê pessoas controlando pessoas e remove os meios pra que elas sigam fazendo isso. E nenhuma noção de hierarquia tem a capacidade de detê-lo.
E a necessidade de quebrar a hierarquia, especialmente dos dragões celestiais é uma demanda imensa da série. Os Nefertari entenderam que eles eram só pessoas e não deveriam ser tratados como Deuses. Donquixote Holming teve essa epifania muitos anos atrás, e foi punido por ela, pelo linchamento do povo que usou sua vulnerabilidade como bode expiatório contra todos os rancores dos dragões celestiais. E por último Mjosgard não só entendeu que ele não é um intocável e sim uma pessoa, ele é grato por essa revelação. E é grato pela rainha Otohime por ter feito dele um ser humano.
E mesmo na sagrada terra de Mary Geois, a ideia da ausência de hierarquias é vendida como um ideal mentiroso. A conferência dos reis é realizada em frente a um trono cercado de espadas chamado de O Trono Vazio, e todos os reis que entram lá devem se curvar ao trono vazio. A ideia por trás do trono é justamente, de que ali se sentaria o rei que comanda todos naquela terra, porém ninguém tem permissão de sentar-se ali, e enquanto o Trono Vazio se mantiver vazio, todos os reis são iguais.
Isso é tudo conversa pra boi dormir, o trono é ocupado por um personagem chamado Im, que aparentemente é a figura central do Governo Mundial. Muito embora publicamente a figura central sejam os cinco velhos do Gorousei, que são reconhecidos como essas cinco figuras dividindo a autoridade máxima, a verdade é que os cinco se curvam aos desejos de um único homem, o rei dos reis, a autoridade máxima do mundo.
Na perspectiva de Luffy e sua jornada pessoal, os maiores antagonistas da série são certamente Akainu e Teach, dois homens com quem ele tem uma bronca a nível pessoal. Mas na perspectiva do mundo, do worldbuilding, e da história dos últimos 800 anos que o Luffy acompanha pouco, mas o fã acompanha muito. Não existem dúvidas de que Im, os Dragões Celestiais e a Nobreza de Mary Geois são o maior problema do mundo. E existem expectativas quanto a Luffy destruir esse sistema completamente nas melhores teorias de One Piece.
Mas se confiar isso em Luffy é só uma projeção do que queremos que aconteça no fim do mangá, tem personagens que são uma aposta muito mais segura, para destruir completamente o poder dos Dragões Celestiais.
Viva La Revolución:
Existe esse grupo de personagens chamados Os Revolucionários. Um grupo de pessoas das mais diversas origens que tem como objetivo destruir o Governo Mundial e depor reis que mantenham a sua tirania.
Liderados por Monkey D. Dragon, o pai de Luffy, os revolucionários só são mencionados no fim de Ennies Lobby, mas desde então, eles tem feito pontuais aparições.
Primeiro Dragon em pessoa salva a vida de Luffy em Logue Town.
O motivo pelo qual Kuma resolveu proteger Luffy e ganhou a simpatia de Rayleigh em Sabaody, é porque ele era do exército revolucionário.
Depois dois membros do exército revolucionário estiveram entre os principais aliados de Luffy quando ele liderou a massiva fuga de presos de Impel Down.
Depois os revolucionários libertam Nico Robin da escravidão e cuidam dela nos dois anos que ela teve que esperar antes de voltar pra Sabaody.
E aí em Dressrosa, três membros do exército revolucionário fizeram sua aparição para ajudar a depor Doflamingo, sendo o mais notório deles, Sabo, irmão mais velho de Luffy.
Uma coisa curiosa sobre o exército revolucionário, é como mais do que um exército que resolve os problemas locais, da mesma maneira que o Luffy resolve os problemas das ilhas que eles abordam. Eles tem uma política mais focada em ajudar e empoderar o povo a resolver seus problemas. E isso se manifesta no poder de seus membros. Bello Betty possui o poder de Akuma no Mi de encorajar as pessoas, fortalecer seus corpos e seus espíritos. E ela usou seu poder pra fazer o povo expulsar os Piratas de Barbarosa de sua ilha. Da mesma forma Ivankov descreve que apesar do apelido de milagreiro, o seu poder de cura é proporcional ao espírito e força de vontade da pessoa, então o mais importante é manter a chama das pessoas acesa.
Indo de ilha em ilha para empoderar a população, libertar escravo e detronar tiranos, os revolucionários claramente englobam tudo o que há de positivo na palavra revolução, e apesar de serem uma guerrilha armada, a série em nenhum momento deslegitimou as lutas que eles travam, assim como não deslegitimou a do Kohza.
Mas Kohza e Dragon não são os dois únicos revolucionários que tem sua guerrilha enquadrada como positiva em One Piece.
O notório vilão arrombado e asqueroso Caribou, em sua mini-aventura, Acaba indo parar em uma ilha que serve como uma das fábricas de armas de Kaidou, onde os habitantes da ilha eram forçados a trabalhar na fábrica, e lá, Caribou, por uma daquelas coincidências de desenho animados, é confundido com Gaburu, o líder revolucionário que luta pra libertar os trabalhadores.
Pois bem, a avó de Gaburu é uma das que faz a confusão, e serve tortas gostosas pra Caribou, e como todo bom clichê aponta, o vilão, pode ser do mal, mas ele é grato pelas tortinhas que recebeu, e decide que ele vai vestir a carapuça, e agir como Gaburu agiria e libertar a cidade, pelo bem da vovózinha. Ele enfrenta os soldados que oprimem a ilha, liberta todos os trabalhadores e destrói a fábrica.
No final Caribou é preso pelo bando de Kaidou, e é revelado que a velhinha nunca realmente fez a confusão. O Gaburu de verdade estava morto já tinha um tempo.
One Piece é um mangá que heroifica a revolução, ao ponto que é o ato de redenção de um vilão canalha. E tudo bem que eu no passado apontei que mesmo em One Piece quando a revolução é sobre solucionar conflitos raciais, uma área de cinza surpresa surge e o Direito a Revolução de certos personagens é colocado em cheque, mas mesmo com esse porém a obra ainda abraça o conceito com força. A revolução une as pessoas comuns, e permite que elas derrubem as forças que as oprimem. E One Piece definitivamente heroifica esse caminho de ação. Heroificava esse espírito de luta lá em seus primeiros arcos.
E heroifica no arco atual.
Conclusão:
Quando eu chamo One Piece de um mangá de Anti-Autoritarismo, o que isso engloba? Que aspectos do autoritarismo o mangá explicitamente discorda. O mangá discorda da noção de que um líder tem uma imagem a zelar. O mangá nega que as figuras no poder tem que passar uma imagem de pessoas poderosas e fortes, e ele discorda fortemente que a imagem e poder de um líder reflita no povo.
O mangá discorda de qualquer força de policiamento que não priorize a população acima de tudo. E coloca como o valor que diferencia os bons dos maus policiais, sendo a insubordinação, e a capacidade de valorizar o contexto, e a proteção de vidas acima do cumprimento de ordens.
O mangá visivelmente não acredita no punitivismo como uma maneira eficaz de se combater o crime. A cadeia não torna seus prisioneiros pessoas melhores ou próximas da redenção, mas se torna um pretexto fácil para abuso de autoridade, tortura, e trabalhos forçados. Além é claro de trazer o debate “mas o que é um crime?” Um número grande de personagens bons, foram presos e sofreram na cadeia por crimes dos quais eram culpados. Enquanto um número maior ainda de personagens maus, acharam outra rota na vida por outros caminhos e se tornaram pessoas melhores.
E o mangá tem um enorme desdém pelos seus personagens que se acreditam invulneráveis, usando a máxima: “todo mundo consegue levar um soco.” para derrubar figuras que se creem hierarquicamente superiores de seu pedestal.
E acima de tudo o mangá prega a liberdade. O direito de viver sob sua própria bandeira. Luffy quer ser o rei dos piratas, mas apesar do nome rei, ele não quer governar ninguém, é quer viver sob os próprios termos e que todos façam o mesmo.
Cada um vive sob a própria bandeira, e isso vale pros piratas é claro. Mas vale também pros não-piratas. Vale pras pessoas normais.
E isso definitivamente é uma visão de mundo de cunho político. Que dita as relações do homem com seu governo, com suas instituições, com sua polícia, e com as hierarquias sociais de seu cotidiano. E honestamente, uma obra dessa proporção, desse alcance e da ambição de One Piece é desperdiçada em um público que acredita que mangá de lutinha não pode envolver política.