Olá, meus queridos leitores. Estamos escrevendo aqui em épocas de pandemia, e eu não sei vocês, mas eu estou incrivelmente quarentenado, saindo de casa uma vez a cada duas semanas pra fazer compras e só. E eu espero que vocês todos estejam fazendo o mesmo na medida do possível do que suas obrigações permitirem.
Enfim, estamos vivendo um ano complicado e difícil, porque estamos muito afastados das pessoas de quem gostamos. O isolamento está trazendo muita solidão. Muitas pessoas não puderam abraçar a mãe no dia das mães, ver os amigos no aniversário, e o pior de tudo, muita gente não está podendo dar funeral pros entes queridos que se vão, mesmo o que não se foram por causa do Covid-19.
Mesmo eu, que sou incrivelmente anti-social e gosto de otimizar meu tempo sozinho, olho e penso em como ter pessoas em sua vida é importante, e o quanto essa crise de saúde está afetando nosso contato humano.
Muita gente está buscando soluções no Zoom ou outros programas de videoconferência. Mas também muita gente está buscando soluções em binge-watching, em pegar um dia e não sair do Netflix, assistir uma série inteira, vinte filmes, sei lá. Em momentos de solidão, as vezes ver as vidas fictícias de outras pessoas pode ajudar.
Por isso acho que o timing nunca foi tão bom pra revisitarmos o filme Cloud Atlas, um dos meus filmes favoritos de todos os tempos, dirigido pelas Irmãs Wachowski e por Tom Tykwer. Um filme que ter umas maquiagens estranhas, e lidar com a etnia de seus atores de uma maneira problemática, é um filme que eu simplesmente amo. Que me afetou profundamente quando eu vi, e que eu revejo constantemente.
Inclusive, ele é adaptado de um livro de mesmo nome, de David Mitchell, que eu comprei por causa do filme, li, e se tornou um dos meus livros favoritos. E mesmo reconhecendo que muitas mudanças foram feitas na adaptação, eu acho que as duas obras são igualmente boas, cada uma do seu jeito.
Enfim. Cloud Atlas.
O filme conta seis histórias em paralelo. Cada uma vivida por um personagem diferente, em uma época diferente, e narrativamente falando, cada história tem um gênero diferente. Elas não se parecem nem um pouco. O livro ainda vai além, pois faz cada história ser escrita em um formato bem diferente. Seis vidas completamente separadas sendo vistas uma do lado da outra, gerando uma única pergunta: Mas o que está conectando essas seis histórias?
E pra isso tem duas respostas. A primeira é que os seis protagonistas supostamente são todos reencarnações da mesma alma. Isso fica implícito no livro, mas no filme isso fica estranho, pois o filme tenta usar o tema da reencarnação por outro caminho. Como no filme todas as histórias usam o mesmo elenco, a nossa tendência é achar que todos os personagens do Tom Hanks são reencarnações entre si. E o mesmo vale pra todos os personagens da Hale Berry, e por aí vai. Enquanto eu acredito que a ideia é que não, que todos os personagens com a marca do cometa é que reencarnaram entre is. Reforço, o filme deixou confuso, por isso eu agradeço que não seja esse meu foco.
A segunda resposta, é que cada um dos protagonistas, leu a história daquele que veio cronologicamente antes. E se inspirou a nível pessoal, por uma história real, mas que eles acharam ser fictícia. Nenhum deles se conheceu enquanto pessoa real, mas um conheceu o personagem do outro, e isso gerou uma conexão de séculos.
Então vamos lá: A primeira história The Pacific Journal of Adam Ewing, passada nas ilhas polinésias do pacífico em 1849. Conta a história de Adam Ewing, onde um advogado está em uma viagem de navio esperando voltar aos Estados Unidos para entregar documentos importante ao seu sogro, um conservador que prega que a diferença entre raças na sociedade humana reflete uma ordem natural das coisas que deve ser mantida. Porém ao longo da viagem, seu convívio com o ex-escravo que entrou no navio como clandestino: Autua, e com o amoral médico Dr. Henry Goose, o fazem questionar completamente sua visão de mundo.
A viagem de Adam Ewing foi registrada em diário. Esse diário foi publicado como livro e eventualmente lido por….
…Robert Frobisher, protagonista de Letters from Zedelghem. Passada em Endimburgo em 1936. Ali, o jovem compositor Robert Frobisher, se torna assistente do compositor lendário Vyvyan Ayrs, em uma tentativa de ganhar prestígio o suficiente para ser um reconhecido músico. Ali ele se tornará amante da esposa de Ayrs, e se envolverá com toda uma série de abusos por conta da personalidade problemática de Ayrs. Ele relatará tudo em forma de carta para o amante que deixou pra trás, Rufus Sixmith.
Sixmith guardará as cartas de seu amante por toda a vida, até o dia em que ele será assassinado e essas cartas serão encontradas e lidas por….
….Luísa Rey, protagonista de Half-Lives: The First Luisa Rey Mystery. Passada na Califórnia em 1973. Luísa é uma repórter investigativa investigando o assassinato de Sixmith, um brilhante cientista trabalhando para uma usina nuclear que intimida as petrolíferas que temem a ideia de outras fontes de energia além do petróleo.
O vizinho de Luísa, apaixonado por romances policiais vai ficcionalizar a história dela em um livro que será editado por…
Timothy Cavendish, protagonista de The Ghastly Ordeal of Timothy Cavendish. Passada em Londres, 2012. Onde Cavendish é um editor de livros, que após editar a biografia de um gangster e se meter em problemas com o autor, precisa se esconder, e acaba sendo colocado em um asilo. O asilo vai se revelando cada vez mais abusivo e maligno, e Cavendish precisa juntar os idosos locais pra escaparem juntos.
Cavedish escreverá suas memórias e usará seus contatos pra suas memórias virarem um filme, que será assistido por…
Somni-451, protagonista de An Orison of Somni-451. Passada em uma Coréia futurista, na cidade de Neo Seoul, no ano de 2144. Um futuro distópico onde as empresas são as autoridades, e clones são feitos em massa pra executarem trabalhos de servidão. Somni-451 é uma clone que escapa do fast-food que ela foi feita pra trabalhar, e após receber educação e consciência do que acontece com os clones e as pessoas em seu país, ela se torna uma líder revolucionária.
O impacto do discurso final de Somni foi tão grande, e tanto se falou dela, que ela acabou se tornando uma figura messiânica após sua morte, e um dos devotos é…
…Zachry. Protagonista de Sloosha’s Crossin’ and Ev’rythin’ After. Passada no Havaí, 106 anos depois da Queda da Civilização. Zachry vive uma vida supersticiosa e pré-histórica, e se sente intimidado com Meronym, uma mulher cujo povo ainda possui todo o domínio tecnológico dos antigos, quando esta visita sua aldeia. Zachry tem medo de que seu acesso ao conhecimento e tecnologia faça ela ignorar as superstições, quebrar costumes e provocar o diabo, aqui chamado de Old Georgie. Apesar do quão intimidado Zachry fica com Meronym, a verdade é que o povo dela está morrendo, e ela está tentando fazer contato com uma colônia pós-mundo pra resgatar o que restou da humanidade no pós-apocalipse.
Eventualmente, em outro planeta, Zachry, já idoso, conta essa história para uma roda cheia de crianças. E provavelmente uma delas vai ser impactada por essa história e a vida vai seguir.
Começou com um homem próximo ao Havaí escrevendo um diário, nesse diário algo foi criado, como em um efeito-borboleta, uma força abstrata capaz de dar companhia, ideias, apoio moral, e desencadear toda a forma de pensamentos e reações, foi passada de mão em mão, e viajou pelos séculos, foi pro outro lado do mundo, a Coréia, até retornar ao Havaí, e de lá deixar o planeta, mas acompanhar a humanidade.
Como uma tocha que passa de mãos em mãos e nunca apaga. E essa força abstrata é simplesmente o poder das histórias, o poder da narrativa, enquanto arte, de afetar o ser humano e fazer com que Adam, Robert, Luísa, Timothy, Somni e Zachry, seis seres humanos que nunca se viram, a maioria deles que nunca coexistiu sequer, tenham gerado uma conexão entre eles.
A arte conecta um autor com qualquer pessoa em qualquer época em qualquer lugar do mundo, tudo o que ela precisa é ter acesso. A conexão entre pessoas que podem ser tão distantes quanto entre uma criança que more em Moçambique hoje, e William Shakespeare é real. Porém você não precisa ser um artista pra ser o autor da arte e parte dessa conexão, pois a arte tem várias formas.
Das seis histórias em Cloud Atlas, Somente duas foram publicadas como ficção, na tentativa de serem interpretadas como arte. O livro polícia inspirado em Luísa Rey, e as memórias de Timothy Cavendish. O Diário de Adam Ewing, e as cartas de Robert Frobisher, contavam suas histórias, mas eram de cunho pessoal e privado e não foram escritas para serem lidas por um estranho.
A história de Somni é contada em uma entrevista final que ela dá antes de ser executada. Também um formato que não será visto como arte. Mas será transformado em arte. Pois será transformado em religião, e a religião usa muito da arte.
A ideia de um personagem sentir-se conectado a outro com os vestígios de escrita que provaram a vida de uma pessoa que ele sequer conheceu, não é uma ideia nova. Cloud Atlas somente elevou ela ao seu máximo, e tirou dela o maior dos otimismos, o de que é nessa conexão, que está a força pra resistir o desespero que é viver no mundo… independente da época, é um desespero.
As seis histórias de Cloud Atlas são muito diversificadas, e devem ser observadas pelo que elas tem de parecido, e pelo que elas tem de diferente. Pois tal como Ying e Yang, as semelhanças fortalecem as diferenças entre as histórias e vice-versa.
As diferenças:
Os gêneros narrativos são completamente diferentes. Adam Ewing é uma aventura. Robert Frobisher é um drama histórico. Luísa Rey é um thriller de investigação. Timothy Cavendish é uma comédia. Somni-451 é uma ficção científica. E Zachry é um pós-apocaliptico. E por conta disso os conflitos são bem diferentes.
Adam Ewing fala muito sobre escravidão. A noção de que os brancos vêm o mundo dividido entre brancos e negros, crendo ser superiores. Eles clamam que a hierarquia que coloca o branco em autoridade e o negro em servidão é divina. Perspectiva validada pelos intelectuais de seu tempo.
Porém o que Adam testemunha é o oposto. Os brancos em posição de autoridade não são capazes de empatia. Traem e descumprem suas promessas. O capitão do barco faz isso quando tenta matar Autua de surpresa, mas o principal caso é o falso amigo de Adam, Dr. Henry Goose.
Goose é um extremo interesseiro que afirma defender a escravidão por acreditar na ordem natural das coisas, mas a verdade é que pra ele, todos os seres humanos não são nada além de mercadoria pra ele, seja os escravos que ele comercializa, os pacientes que ele casualmente mata pra roubar, ou mesmo os homens que séculos atrás foram vítimas de canibais, mas que hoje ele vende os dentes.
Enquanto Autua provou valores de empatia e amizade, que convenceram Adam a se tornar um abolicionista, e contrariar seu sogro.
Robert Frobisher, fala sobre outro tipo de conflito. Aqui raça tem pouco a ver com a história, e sexualidade e prestígio tem muito mais. Robert é bissexual, e tem um relacionamento com Rufus Sixmith. Isso fez com que seu pai o deserdasse e a universidade o expulsasse. Sua única chance de sucesso no mundo da música, era pegar carona no nome de Vyvyan Ayrs, trabalhando pra ele. Porém Vyvyan explora Robert, e quer roubar as músicas de Robert pra si.
Quando Robert contesta e defende sua música, Vyvyan explica pra Robert que sabe de seu relacionamento com homens, e que isso o coloca em posição de poder, pois permite a ele destruir completamente a reputação de Robert. E uma vez que ele seja visto como fora da norma social, ele poderia compor a maior sinfonia da história, que ninguém ia querer se associar a ele, e dar uma chance. Robert queria viver em um mundo em que você depende de seu nome, e por sua sexualidade, ele jamais teria um.
Luísa Rey é sobre o monopólio da energia no mundo. Uma petrolífera fundou paralelamente uma usina nuclear com o único propósito de causar um acidente na usina deixando inúmeros mortos e queimando a imagem de fontes de energia alternativas ao petróleo. O petróleo era a principal fonte de energia do mundo, e qualquer progresso que o tirasse dessa posição de poder precisaria ser detido. Pois manter-se no topo era importante.
Timothy Cavendish é sobre o etarismo. O abandono e a negligência dos idosos. Um loophole na sociedade em que as pessoas pagam dinheiro pra que seus parentes sofram todo o tipo de abuso, mas deixem de ser inconvenientes. Em um tom mais cômico e descontraído, porém tornando difícil não se lembrar de One Flew Over the Cucko’s Nest. Sobre pessoas vulneráveis com contratos que permitem que elas sobram abuso pesado sob o pretexto de estarem sendo auxiliadas.
Somni-451 é sobre um futuro em que a desumanização dos trabalhadores em serviço é tão gigantesca, que eles são todos clones, literalmente criados pra servir os puro-sangue, literal mercadoria, os clones só trabalham, comem e dormem, e fazem isso por 12 anos, depois eles são assassinados, e usados como matéria-prima para fazer comida pros clones mais jovens entrando no serviço, É o auge da lógica de ter uma matéria-prima humana gerida com eficiência pra priorizar os lucros. Somni-451 também é sobre revolução e a única história em que o combate a injustiça envolve revolta armada e ataque ao governo.
Zachry é sobre redenção. Zachry se sente culpado pela morte de seu cunhado. Ele priorizou sua segurança a ajudar quem precisava dele e essa culpa o persegue. Quando a oportunidade de encarar seu maior medo, e amaldiçoar a si mesmo surge, mas que lhe permitiria salvar a vida de sua sobrinha, ele aceita essa oportunidade, e serve de guia pra Meronym subir a montanha proibida. A relação entre Zachry e Meronym é cheia de atritos pois Zachry se vê incapaz de confiar em uma forasteira cheia de tecnologia em sua vila. Ele tem medo que ela queira matar seu povo, desmistificar suas crenças, escravizar e tomar sua terra, e projeta esses medos com uma dureza que só para quando Zachry entende que ela é menos poderosa do que aparenta, e que os dois estavam no mesmo barco.
Cada personagem tem um conflito diferente, que envolve lidar com questões diferentes e com problemas sociais diferentes. Mas ao mesmo tempo, todos colocam o personagem diante do mesmo dilema. Se submeter, ou lutar de volta.
As semelhanças:
Cloud Atlas, nos força a por comparação vermos o quanto os diferentes conflitos sociais espalhados em diferentes épocas, lugares e contextos, se assemelham em sua base. Na mais negativa delas. As seis histórias são sobre o ser humano predando o outro ser humano. E sobre a violência das relações de poder nas relações humanas. E como a história se repete mudando de forma.
Tudo seguindo o lema que é dito duas vezes ao longo do filme: “O fraco é carne pro forte comer.”
A primeira história fala de escravidão? Porém Robert Frobisher foi essencialmente escravizado por Vyvyan Ayrs, quando se torna obrigado a escrever de graça pra Vyvyan em cárcere privado. Luisa Rey é salva por uma mexicana em uma sweatshop, a forma mais famosa da escravidão moderna. Somni-451 foi completamente desumanizada pra poder ser literalmente um produto. Somente Timothy Cavendish e Zachry não enfrentam o tema diretamente.
Mas mesmo na história de Timothy, no seu climax, o momento definitivo em que fica claro que os escoceses iriam ajudar Timothy e lutar com o pessoal do asilo por eles, foi quando, eles escutam a Enfermeira Noakes dizer “Essas pessoas me pertencem.”, uma frase incrivelmente violenta, de sugerir que um ser humano pode ser dono de outro.
As histórias também se passam na pequena janela de tempo da história da humanidade, e mostram as várias facetas do mundo capitalista. Do literal tráfico negreiro em Adam Ewing. Para a maneira como o prestígio de um artista é proporcional ao que a elite econômica fala sobre ele.
Para empresas que financiam massacres, que possam garantir seu monopólio. Pra serviços de abuso, que se justificam sob a lógica de oferta e demanda de que pessoas que querem esse serviço pra se livrar desse abuso.
Para uma sociedade distópica em que pessoas são obrigadas a consumir um valor mínimo das empresas, para a economia girar e a sociedade não colapsar, mantendo muitas na pobreza, por não sobrar o necessário pra manutenção da vida. Leis que sacrificam vidas pelo bem de corporações.
No tempo de Zachry, o capitalismo implodiu, e não existe mais. Mas tanto o povo do vale, quanto os Prescientes, pagam o preço, vivendo em uma terra contaminada que os está matando.
As injustiças representadas em cada história se baseiam em personagens de grupos sociais diferentes. Diferentes raças na primeira história. Sexualidade na segunda história. Classe social na terceira história. Idade na quarta história. Modo de nascimento na quinta e religião na sexta. Todos casos específicos de injustiça, específicos que se manifestam de maneira específica.
Mas a maioria dessas injustiças se unem na cumplicidade que elas tem com a lei.
Pra além dos seis exemplos de maneiras de separar a população para permitir que um grupo oprima o outro, vários outros casos de divisões sociais gerando opressão, desigualdade e ressentimento são descritos sutilmente ao longo do filme. O tema desse filme se vê pelas histórias dessas seis pessoas, mas eles são a história de muitas, muitas outras.
Como o nazismo, questões de gênero, xenofobia. E mesmo o rancor que Demott Hoggins, um criminoso das zonas pobres do Reino Unido, tem com o status de elite de seu crítico literário Felix Finch.
O mundo é um mundo hostil, onde o homem devora o homem, metaforicamente e as vezes literalmente, em busca de poder, vantagens ou do mero senso de ter mais. E isso acontece no Havaí, na Inglaterra e na Coréia. E isso aconteceu no século retrasado, no presente e no futuro. E toda mudança de status quo, vem acompanhada do conhecimento de que os sistemas de opressão não vão se extinguir, somente vão achar uma nova forma.
E saber que um homem como Haskell Moore não tem mais espaço nos dias atuais, e que a ordem natural das coisas que ele afirmou imutável mudou, é contrastado com o fato de que a escravidão somente se remodelou e achou novas maneiras de se esconder e se justificar na sociedade.
Mas se o mundo é essa bosta imensa, em que as forças que vão destruir o planeta superaram cada pequena derrota, desde o século XIX, então, pra que qualquer coisa vale a pena? Se a realidade do filme é pessimista, porque deveríamos ter fé nesses heróis, se tudo o que eles fazem não é uma pequena vitória? Irrelevante… Uma mera gota no oceano…
E a resposta, é a surpreendentemente otimista resposta, de que o bem que eles fazem não se contém no resultado direto de suas ações somente. O bem pequeno que Adam Ewing fez, protegendo Autua, e presumidamente libertando vários escravos ao lado de Tilda contam, claro. Mas também conta, e é daí que tiramos nossa esperança, o fato de que ele conseguiu se conectar com diversas pessoas pra criar uma corrente de positividade que dá força aos demais.
Robert Frobisher projetava muito de sua vida na vida de Adam Ewing, porém só foi capaz de ler a primeira metade do seu diário. Ele se sentia aflito de ver que Adam era incapaz de ver que seu suposto amigo, na verdade o envenenava, e da mesma forma, Robert percebia, e se levantou contra aquele que se posou de amigo, mas o envenenou. Escondido da policia, por ter atirado em Vyvyan ele adota o nome falso de Adam Ewing pra se esconder.
Agora se as conexões de Adam permitiram sua vida, literalmente, pensar na maneira como Autua matou Henry Goose e curou Adam como mero pagamento por Adam ter protegido Autua do capitão do navio seria falho. Adam e Autua se conectaram quando seus olhares cruzaram durante a sessão de chibatadas, e Autua sentiu a empatia de Adam, e a certeza de que poderiam ser amigos. A empatia que Adam sentiu em terra, criou um laço, e esse laço colocou Autua no navio, tendo as condições de salvar Adam.
Robert por outro lado, não gerou laços verdadeiros. Sua relação com Jocasta foi carnal e não-emotiva. Sua relação com Vyvyan foi de predação. E sua relação com o camareiro que o protegeu foi de chantagem. Sua relação com seu pai foi de abandono. E a única força positiva em sua vida, foi o real amor de sua vida, Rufus Sixmith. Mas ele não permitiu a Rufus salvá-lo, preferindo poupar Rufus de vê-lo em sua decadência e se suicidando sozinho. Ele deixou dois legados pra trás. Suas cartas pra Sixmith e sua obra-prima, o Sexteto Cloud Atlas.
A conexão entre Robert e Rufus comoveu Luísa. E fez ela ir atrás de sua composição. Luísa, não estava somente procurando um furo, ela estava entendendo melhor a vida de Rufus e Robert por suas cartas. E projetando suas próprias questões. Rufus guardava a memória de Robert consigo, da maneira que Luísa guardava a memória de seu pai, Lester Rey. E Robert deu forçar pra ela resolver seu caso.
Essas histórias não deram ideias ou pensamentos pra Luísa ou pra Robert, mas deram força, fizeram eles verem que não estavam sozinhos no mundo. E que os problemas dos outros ajudam elas a pensarem nos próprios.
Pois no fundo é isso que todo mundo precisa, se sentir conectado. Sentir que seus problemas parecem o problema de alguém e que se essa pessoa aguentou você aguenta.
Quando Yoona-939 viu no filme Timothy Cavendish gritar “não sofrerei abuso criminoso”, isso ampliou seus horizontes, ela passou a questionar o abuso que sofria diariamente no trabalho, e revidou. Inspirada em Timothy ela deu o primeiro passo, e isso criou uma conexão entre Timothy e Somni que viu tudo. Ver o filme de Timothy foi um ato de liberdade para ela.
Essa habilidade de se conectar com a história dos outros projetando seus problemas no problema de personagens aparece em mais momentos do filme. O livro que Timothy Cavendish publicou, Knucle Sandwich, estourou em popularidade depois que Dermott, o autor, jogou o crítico Felix Finch de um prédio. O crime recebeu logo uma narrativa de “vingança dos oprimidos”, enfatizando o quão desgostável Finch era, e o livro foi vendido aos montes por pessoas que se identificaram com o ódio de Dermott por Finch. Da mesma maneira o livro de Haskall Moore cementou a admiração do Reverendo Horrox do outro lado do oceano, que permitia suas negociações. A arte conecta pessoas ao redor do mundo, mesmo quando essa conexão é negativa.
Eu dúvido do fato de inúmeras pessoas terem se conectado com Knucle Sandwich pelo autor ter assassinado seu crítico tenha influenciado o bem, mas uma história é só que precisamos pra inspirar o mundo.
Da mesma forma, nunca vimos o trajeto que o Sexteto Cloud Atlas viajou, pra passar de sinfonia obscura com pouquíssimas cópias circulando nos anos 70, pra ser uma melodia que as Somnis, Yoonas e outras replicantes cantavam de maneira quase religiosa.
A entrevista final de Somni-451 foi convertida em uma religião ao longo dos séculos, e os seguidores dessa religião, eram incrivelmente não individualistas. Eles acreditavam em proteger a comunidade sempre. O que não quer dizer que eles protegiam sempre, mas que esses eram os valores. Quando Zachry abandonou seu cunhado pra se salvar essa se tornou sua maior vergonha. Mesmo que esse ato fosse corroborado pelas palavras que quatro séculos atrás foram proferidas pelo Dr. Henry Goose.
O fraco é carne pro forte comer.
Zachry praticou isso em um ato de fraqueza, e sua vergonha foi instantânea, mas o que ele genuinamente acredita é nas palavras de Somni-451.
Nossas vidas não são nossas. Do nascimento até a morte, estamos conectados aos outros, no passado e no presente. E com cada crime e cada gentileza, nós criamos nosso futuro.
Zachry acredita piamente nisso. E ele, sem recitar a deusa Somni, passa eles valores pra Meronym. Ele a faz entender que o ato de ter uma cura para sua sobrinha, e não curá-la é o mesmo que matá-la.
O que é a mesma lógica que Autua aplicou à Adam Ewing. Se recusar a ajudar uma pessoa cuja vida depende de sua ajuda, é o mesmo que matá-la. A gentileza deve ser exercitada.
Meronym quebrou uma regra importante, ao usar sua tecnologia em outro povo, e curar a sobrinha de Zachry. Zachry em resposta quebra uma regra importante e leva Meronym pra montanha que ela quer. Uma gentileza é paga com uma gentileza, e pensar no outro sempre é o que motiva Zachry.
E isso vem dos ideais de Somni-451.
E o povo de Zachry não é o único que foi impactado pelas palavras de Somni-451… O arquivista que registrou a entrevista mudou, enquanto ouvia ela falar. E foi ele mesmo que resolveu quebrar uma regra, e tornar uma entrevista confidencial pública, pra que mais pessoas a ouvissem.
Enquanto as pessoas contarem suas histórias pros demais, elas podem se inspirar, mesmo épocas depois, mesmo do outro lado do mundo. Histórias tem o poder de criar conexões. E para as pessoas poderem criar essas conexões e terem sua história conhecida, elas precisam quebrar a invisibilidade. Pois a história que te move, a pessoa que abre seus olhos pode ser qualquer um. Pode ser o presidente, pode ser a garçonete.
E pessoas tem o poder de se conectar, de transformar alguém de outro mundo em alguém do próprio..
E se as pessoas têm o poder de se projetar em pessoas diferentes delas.
E o poder de se ajudar.
Todas as histórias se basearam em pessoas que decidiram pedir ajuda a um completo estranho e receberam, independente das diferenças entre eles. E a habilidade do ser humano de lutar pelo outro, é algo que volta.
Apesar do mundo em Cloud Atlas não ficar melhor, o filme é incrivelmente otimista. O ser humano tem uma capacidade pro bem, a nível individual, que resiste, como uma tocha passada adiante, mesmo que a sociedade seja sempre inclinada ao mal. E ao mesmo tempo que os vícios de grupos sociais que usam da opressão não vão realmente embora.
Eles também não se livram da gente. Pois seguimos aqui, e continuamos aqui através dos registros de nossa existência. E nossa existência pode inspirar qualquer um, a qualquer momento. E estranhos se conectam. Através desse filme eu me mantenho conectado às Wachowski, e sei que as duas terem existido em Chicago, me ajudaram a ser quem eu sou hoje. E não só elas, como diversos outros autores mencionados em diversos outros textos, cada um deles, que só se tornou a pessoa que me inspirou, graças a outra pessoa que entrou na vida deles. E vale pra tudo.
E em tempos atuais, que estão tão difíceis, tão solitários, tão perversos, tão desesperadores. Acho que esse filme vale ser revisitado, pelos seus valores, pelo seu otimismo, e pelo que ele nos lembra. A época está certa para repensarmos em um filme que não recebeu a atenção que merecia na época.