De uns tempos pra cá, surgiu um novo jargão na cultura brasileira, a de reagir a novidades tecnológicas ou a prenúncios de uma futura distopia no mundo com a frase “isso é muito Black Mirror”. Essa frase faz referência a uma série de televisão britânica que a partir de sua terceira temporada passou a ser uma produção da Netflix. A série é uma antologia, nos moldes de Twilight Zone. Com a diferença de que Twilight Zone usava elementos de terror sobrenatural e de ficção-científica pra gerar comentários sobre ética, sociedade, relações e a natureza humana, com cada episódio sendo uma história diferente com um novo protagonista e tal. Black Mirror faz a mesma coisa, porém a base é o avanço tecnológico atual. Com episódios girando em torno da relação de seus personagens com tecnologia, as vezes são tecnologias que usamos no dia a dia, e as vezes são tecnologias avançadas que imaginaríamos existindo no futuro próximo.
Mas mesmo assim, eu fico pensando. Se a frase “Isso é tão Black Mirror” deve ser aplicada somente quando descobrimos que a China usa um sistema de ranqueamento da população pra decidir quem merece acesso a determinados serviços, ou quando anunciam uma lente de contato que vai permitir gravar tudo o que o olho vê e passar um replay. Digo, obviamente essas coisas rimam com os episódios da série. Mas eu acho que tem tanta coisa a mais que é muito Black Mirror. O mundo inteiro é muito Black Mirror. Porque apesar da premissa, eu acho que a grande força da maioria dos episódios de Black Mirror está na interação humana, mais do que na interação com a máquina.
A máquina, serve pra alterar a maneira como humanos interagem em Black Mirror, e essa alteração permite aos humanos se desumanizarem entre si. Essa desumanização causa uma tragédia, e assim fazemos um episódio. Mais do que um retrato de como máquinas nos afetam, existe também uma noção de como criamos máquinas que nos desumanizem aos olhos dos outros, pois há uma demanda para que outras pessoas sejam mais desumanizadas para nós, para que nossa vida seja mais conveniente, e as máquinas seguem essa demanda.
Existe uma lenda na Inglaterra de que em 1779, um homem chamado Ned Ludd, deu de louco, ficou puto e quebrou duas máquinas em uma fábrica. Por causa disso cantaram músicas sobre ele, e falaram sobre ele, e em homenagem a esse homem, existiu durante a revolução industrial um movimento chamado Ludismo, em que trabalhadores da Inglaterra se opunham a chegada das máquinas, pois isso tiraria o emprego das pessoas. Como se o fato de que ninguém estava disposto a dar os meios de sobrevivência as pessoas a menos que elas se submetessem as insanas normas trabalhistas do século XIX fosse culpa das máquinas, e como se fosse de fato bom pra elas fazer trabalho braçal em fábricas. Até hoje essa bandeira da máquina substituindo os humanos, e criando uma leva de desempregados e portanto destruindo a sociedade tem sido uma bandeira forte levantada em relação a diversos avanços tecnológicos. E frequentemente histórias sobre tecnologias novas têm ao menos um personagem que afirma preferir o “jeito tradicional” de fazer as coisas, e esse personagem quase sempre é heroificado.
Pois bem, Black Mirror em nenhum episódio levanta essa bandeira, nunca mostrando ninguém mal-ajustado a sociedade, nem desemprego gerado por máquinas, nem nada. Apesar de ser um trope comum pra caralho no gênero, Black Mirror sequer tenta seguir por esse caminho. E nunca aponta como um dos danos do avanço o consequente desemprego. Ou seja, os medos que Black Mirror instiga em nós saem da curva dos medos que nos ensinam a ter do avanço tecnológico nos últimos dois séculos.
Outra coisa curiosa. Que muitas histórias sobre não confiarmos cegamente na ciência/tecnologia e que servem como alertas para desacelerarmos em relação ao nosso desejo de inovar sem pensar nas consequências, seja um filme como Jurassic Park, seja 2001: A Space Odity, seja Frankenstein, seja I Robot, seja Westworld, seja Click, com Adam Sandler (esse último compararam com Black Mirror outro dia nas minhas redes sociais). Todos eles giram em torno, de que uma hora a tecnologia em quem você confia, não fará o que você achou que ela ia fazer. Seja por defeito, ou porque você não entendeu lhufas de como funcionava em primeiro lugar, e quando isso acontecer: tragédia.
Black Mirror na contramão, quase sempre faz a tecnologia funcionar exatamente do jeito que é esperado que funcione. A invenção é sempre um sucesso, e aquilo que ela prometeu fazer ela quase sempre faz (temos exatamente três exceções, que são: Playtest, onde de fato rola um defeito, mas esse episódio é um lixo absoluto, pois 80% do episódio é filler e na real nada aconteceu, pois o brother morreu no instante em que a máquina ligou. O segundo é Hated in the Nation, em que as abelhas não estavam fazendo o que elas deviam fazer, porém isso rola por causa de um hacking muito eficiente, e não por conta de um defeito, e a terceira e última exceção é o primeiro segmento do episódio Black Museum, com a máquina do Dr. Dawson, que eu pessoalmente não acho que deu defeito, mas o episódio deu a entender que sim, e não vou desviar do assunto com essa parte, pois não é muito importante).
Então se a tecnologia nova surge, não decide exterminar todos os humanos que nem o Terminator, não vai deixar todo mundo desempregado, e faz exatamente o que ela promete fazer, então temos que analisar qual foi a parte que não previmos pra evitar a tragédia. E também pensar se de fato não previmos, e se de fato tínhamos a intenção de evitar a tragédia.
Na minha opinião o episódio que melhor define como a série vê a moralidade humana, e que por consequência, melhor ilustra como Black Mirror vê a função da tecnologia na sociedade é Men Against Fire, da terceira temporada. Longe de ser meu episódio favorito e aparentemente não é tão popular assim, mas é o que vai direto no ponto que a série quer pegar. No episódio, soldados implantam em sua cabeça um chip que faz com que eles vejam alguns civis como mutantes deformados incapazes de falar, e eles fazem isso voluntariamente, para facilitar o genocídio dessa população, apagando a própria memória depois do procedimento, pois eles precisam esquecer que essas pessoas são humanos antes de matá-las.
Quando o protagonista, Stripes, tem seu aparelho desligado pelas “baratas” (como foi nomeado o grupo de pessoas que eles estão matando), ele surta de descobrir que tem matado gente esse tempo todo. E então é encaminhado ao seu superior, que lhe explica que apesar de falarmos o tempo todo que humanos são uma cambada de cuzão, na real somos uma espécie muito empática e com muita dificuldade em genuinamente fazer mal a alguém sem hesitar. E como era absolutamente necessário para esse superior cuzão que ninguém hesitasse em relação ao genocídio, eles criaram esse sistema de realidade aumentada que desfigura o inimigo, pro soldado não ter dano psicológico nenhum após matar a sangue frio.
Ao final do episódio, seu superior, um eugenista nojento que quer as “baratas” mortas, pois acredita que seus genes são ruins e que portanto essas pessoas não devem se reproduzir e levar seus genes ruins pra nova geração, enfim, esse escroto dá ao protagonista duas escolhas. Ele pode voluntariamente apagar sua memória, esquecer do que ele descobriu, e voltar a matar as “baratas” diariamente e fazer sua parte pra manter o genocídio. Ou ele pode ir pra prisão, em uma cela, onde ele vai constantemente reassistir as “baratas” que ele matou sendo mortas, porém sem filtro, podendo vê-las como os seres humanos que elas eram. Ele escolheu ter a memória apagada, voltar a genocidar aquele povo e ser feliz.
O protagonista tinha duas escolhas. A de fazer a coisa certa, sob a pena de ser torturado por isso, e de nunca mais ter paz em sua vida, tendo que lembrar de suas próprias ações. Ou a de seguir como um assassino, e ser um instrumento para um genocídio, porém tendo paz. E ele escolheu paz interna.
E esse é o ponto de Black Mirror. A tecnologia serve pra nos trazer paz e conforto. E essa paz e conforto, muitas vezes surgem às custas de grandes atrocidades. A tecnologia deve ser um filtro entre nós e as outras pessoas, que permita que essas atrocidades não nos incomode, que a dor do outro seja filtrada o suficiente pra não atrapalhar nossa paz, que permita que nós possamos desligar nossa empatia, tão inconveniente para o nosso conforto, e assim vivamos vidas melhores.
O primeiro episódio National Anthem, logo de cara já evidencia isso. Na trama, a princesa da Inglaterra é sequestrada, e o sequestrador disse que só a retornaria se o primeiro-ministro fizesse sexo com um porco em rede nacional. O ministro fica aflito em relação a qual era a coisa certa a se fazer, e ao longo do episódio, ele vê que a opinião pública concorda que ele tinha que fazer o ato, pela vida da princesa. Uma hora antes do prazo dado ao primeiro-ministro, o sequestrador devolve a princesa em plena luz do dia na ponte da cidade, e ninguém nota. Ninguém avisa o primeiro-ministro que ele não precisava seguir com aquilo, pois a princesa estava a salvo. Ninguém notou que ela estava a salvo. Todos estavam concentrados na televisão, com uma curiosidade mórbida de ver o primeiro-ministro cometer um ato de zoofilia.
O mais interessante de se notar nesse episódio é: o povo da Inglaterra não se importa com o primeiro-ministro ou com a princesa enquanto pessoas. Só enquanto símbolo e enquanto fato jornalístico. Ninguém quer que a princesa morra, por ela ser a princesa, mas eles não se importam o suficiente com ela, pra notar ela inconsciente jogada no centro da cidade a luz do dia, caso estejam entretidos o suficiente. O primeiro-ministro foi admirado por ter se humilhado para salvar a vida da princesa, mas o povo não respeitou seu ato, se recusando a assisti-lo, se recusando assim a arcar com as demandas do sequestrador, eles tiraram prazer da humilhação do primeiro-ministro. Existe uma distância entre o povo inglês e tanto a sua monarquia quanto seu parlamento, que impede o povo de realmente sentir empatia tanto pelo homem na televisão sendo obrigado a estuprar um porco sob demandas de uma jovem morrer, ou da exata mesma jovem estar em público jogada no chão. Ambos foram descartados de empatia, enquanto o povo se deliciava com a informação “o primeiro-ministro está estuprando um porco pra salvar a princesa.”
O que culmina em The Waldo Moment, é tanto nosso distanciamento com os políticos, e tão comumente que vemos eles somente como espetáculo midiático, que pro povo não faz diferença eleger um humano ou um personagem de desenho-animado. A noção de que o personagem é mais autêntico do que todos os políticos, nos alerta pro fato de que não são pessoas que conseguimos ver como pessoas mais, só vemos meros fantoches desprovidos de autenticidade, são só clichês que rejeitamos tanto, que preferimos um urso numa tela de computador.
Mas os políticos e as figuras públicas não são as únicas pessoas pra quem desligamos nossa empatia, e não conseguimos enxergar pessoas quando eles aparecem na televisão de maneira alguma. Outra classe pra quem a sociedade se recusa a reconhecer uma humanidade é a dos criminosos. O que aliás é o que Black Mirror mais ama colocar como protagonista. White Bear, White Christmas, Shut Up and Dance, Crocodile, todos contados na perspectiva de pessoas com crimes terríveis nas costas.
Por coincidência, são esses mesmos episódios, com a exceção de Crocodile, e com a adição de Hated in the Nation (contado na perspectiva dos policiais) e Black Museum (que tem a filha de um presidiário como protagonista) que trazem a tona um tema que Black Mirror adora abordar: quem decide o quão severo deve ser o castigo de uma pessoa por um crime. E a importância disso.
Em White Bear, uma mulher que filmou sadisticamente o assassinato de uma criança, teve sua punição para o crime transformada em parque temático. A mente dela é apagada, e então uma série de atores fingem que vão matar ela, e a perseguem por todos os lados, enquanto que clientes podem pagar pra filmar o medo dela do celular e se recusar a ajudar. A ironia dela ser obrigada a passar todos os dias pelo que ela fez a menininha passar, que muitos outros filmes transformariam no momento de catarse máxima do roteiro, em Black Mirror fica em segundo plano pro fato de que ela não sabe porque isso acontece com ela, justamente por ter tido a memória apagada.
O White Bear Justice Park não existe pra que ela realmente reflita seus atos e repense o que ela fez pra merecer sua tortura diária, pois eles apagam a memória dela sobre seus atos com o propósito de aumentar seu sofrimento. Tampouco é pra isolar ela das pessoas, por ser uma ameaça a sociedade, uma vez que as pessoas são encorajadas a se aproximar dela, esse é meio que o propósito do parque (só a três metros da vítima que eles consideram perto demais). Ela não está sendo reformada para poder ser reintroduzida a sociedade. Ela não está cumprindo nenhuma função lógica que uma pessoa possa dizer pra racionalizar e justificar a existência das prisões. O White Bear Justice Park existe pra dar a todo mundo que não é a Victoria, prazer e conforto. Conforto em saber que a tortura acontece diariamente em prazer em poder ser parte dela. Ela está sendo torturada por entretenimento. E novamente, o elemento mais crucial pro White Bear Justice Park funcionar é garantir que os clientes nunca a enxerguem como um ser humano, que eles sejam incapazes de sentir empatia por ela, e para isso batem na tecla de que ela é um monstro. Eles dependem que o público veja ela como um monstro, é a única coisa que permite que eles continuem participando da experiência.
Mas o expectador não recebeu o treinamento da visita guiada nos preparando para a não-empatia, ele nos apresentou primeiro o sofrimento e depois a racionalização dele, mas quando ele veio já era tarde, havíamos empatizado com ela, pois vimos que ela não passa de uma mulher assustada sendo torturada todos os dias. A noção de que a sociedade transformou um senso de vingança social, no sentido de que em um comércio foi gerado em torno de permitir que pessoas se sadisticamente transformem a tortura de uma pessoa em lazer, sob o pretexto de justiça.
O mesmo caso, de desumanizar uma pessoa pra podermos comercializar sua tortura ocorre em Black Museum que fecha a quarta temporada. Onde um homem chamado Rolo Haynes manipulou um presidiário a espera de provas que o inocentem, a caso ele seja executado, ceder direito da captura e uso de sua consciência. O homem aceita, e com isso é feito um holograma da consciência desse homem, um literal fantasma do presidiário. Haynes disse que ia usar esse “fantasma” para arrecadar dinheiro pra ajudar a família do cara caso ele morresse, mas o que ele faz é o contrário, ele cobra pra que as pessoas movidas pela desumanização que o cara sofreu da mídia, pudesse experimentar a experiência de executar o cara de novo. Milhares de pessoas pagando pra eletrocutar o cara por dez segundos na cadeira elétrica.
A noção de que precisamos dos meios de desumanizar a pessoa para sermos capaz de fazer isso é reforçado nesse episódio, quando após uma forte campanha administrada pela família do presidiário ganha força, o índice de visitas do museu diminui drasticamente para uma meia dúzia de sádicos e supremacistas brancos. O que mostra que a série de fato acredita que se juntar todas as pessoas genuinamente cruéis e incapazes de empatia dos EUA, que torturariam um homem mesmo sem vê-lo como um monstro, não daria gente o suficiente para fazer um museu ser rentável. O que é necessário é desempatizar as pessoas. Fazê-las esquecer da humanidade no próximo. E no caso novamente, a mídia, e a noção de que aquilo é justo foi o que tirou a empatia de todos os visitantes. Além da noção de que aquilo é um mero fantasma e não uma pessoa.
Black Mirror nos introduz ao conceito de “cópias de consciência.” o que seria uma literal cópia da sua mente, sem seu corpo físico, ocupando um espaço completamente digital. A pessoa não ocupa espaço, mas seu cérebro é tão ciente e racional quanto o de uma pessoa normal. Nesse caso, ela deve ser tratada como um ser humano? A série constantemente nos diz que sim, nos colocando na pele dessas pessoas digitalizadas sempre que elas estão em cena, mas são mínimas as pessoas no mundo de Black Mirror que as trata com mínima dignidade, e no geral eles são vistos como escravos ou objetos.
O único lugar onde pessoas digitalizadas não são o alvo de abuso hediondo, é o notório-por-ser-otimista episódio San Junipero, que mostra a história de amor entre duas mulheres que estando a beira da morte, transferiram suas consciências para uma nuvem chamada San Junipero que na prática funciona como o literal paraíso onde consciências podem viver felizes após a morte. San Junipero é o único lugar onde essas pessoas digitalizadas não interagem em momento humano com humanos normais, incapazes de empatizar com elas, por isso podem ser otimistas. Em San Junipero todos estão no mesmo barco, e a desumanização que é central em todos os demais episódios de Black Mirror não existe.
Além de San Junipero e seu final feliz, temos White Christmas, USS Callister e Black Museum explorando o quanto independente do seu sofrimento e seus sentimentos serem indistinguíveis do de um humano comum, pessoas digitalizadas são usadas e descartadas como lixo facilmente. Mesmo uma esposa digitalizada é abandonada pelo próprio marido no meio do chão. É evidente que ele só é capaz de fazer isso, pois ao ser digitalizada ele deixou de pensar nela como uma pessoa e só como uma inconveniência, e que ele nunca teria coragem de fazer isso com ela se a visse como pessoa.
Agora falemos sobre como Black Mirror controla nossa percepção em relação aos personagens e ao mundo através da perspectiva. Em White Bear tendemos a acreditar que Victoria é uma pessoa boa, pois vemos a história de seu ponto de vista. Idem para Shut Up and Dance. Porém não é a única maneira de se fazer isso. Em Fifteen Million Merits, vemos aquela construção cheia de bicicletas onde as pessoas pedalam para gerar energia em troca de um dinheiro virtual (méritos) que eles podem gastar com comida ou itens virtuais. Pois bem, nesse episódio passa a impressão de que a sociedade se tornou uma enorme distopia, onde essas bicicletas resumem toda a luta de classes. Com ricos comandando shows de talentos e pobres pedalando, e aquilo é tudo o que existe.
Porém com os demais episódios passando, vemos um grande número de conexões com Fifteen Million Merits que reforçam a ideia de que muitos episódios passam em um mesmo universo. Se isso for verdade, ou seja, se a música Anyone Who Knows What Love Is sendo tocada é indicação de que esses episódios existem na mesma realidade que Fifteen Million Merits, isso significaria que a eletricidade que alimenta toda essa maquinaria nova e essa sociedade avançada da maioria dos episódios é obtida através da escravidão do povo das bicicletas.
Se os caras pararem de pedalar, e se libertarem contra esse sistema medonho, as velhinhas em San Junipero morrem e o amor acaba. Pense nisso. A vida das pessoas em diversos episódios, depende diretamente da escravidão, e a solução pra isso é: nunca pensar no assunto. Isso é desumanização, em que a dor das pessoas responsáveis pelo seu conforto é algo que você evita pensar ou estar consciente, para poder melhor apreciar o seu conforto.
Da mesma maneira, o povo da bicicleta tem a promessa de se libertar se tornando produtores de conteúdo na televisão através de um show de talentos, eles podem virar celebridades, cantores, artistas. Mas na prática, essas pessoas também são desumanizadas. Abi tenta se libertar, mas o que ela consegue é se tornar uma atriz pornô, e ser estuprada na frente da televisão para o conforto de homens excitados atrás de uma punheta, ou de assassinas querendo ter um álibi sobre o que estavam fazendo em seu quarto de hotel. Bing tentou se libertar com um discurso que criticava o sistema da bicicleta e a falta de humanidade e a mentira que é a vida de todos aqueles condenados a bicicleta. Pois bem, a indústria do entretenimento transforma o discurso de Bing em uma mercadoria, roteirizada e desprovida de valor. Pra ser consumida passivamente e em vez de incentivar a revolta, incentivar a passividade de seus fãs na bicicleta.
E isso que rolou com Bing é literalmente a melhor coisa que pode acontecer com essa classe invisível de pessoas em bicicletas, que pedalam dia e noite pra Greta poder criar uma cópia de sua consciência em um ovo pra escravizar essa cópia só pro seu café sair do jeito que ela gosta. Quanta dor em pessoas é causada pra Greta tomar seu café no ponto ideal? Agora, isso torna Greta maligna? Não! Definitivamente não. O ser humano é bom e empático com outros seres humanos. Então pra ser capaz de desfrutar do conforto de seu cookie e sua casa moderna, Greta simplesmente se distancia e ignora ao máximo os humanos envolvidos pra poder não empatizar com eles.
Igual os soldados que voluntariamente escolhem ver seus alvos como monstros pra serem capazes de matá-los.
Igual os clientes do Black Museum ou do White Bear Justice Park, escolhem acreditar em uma narrativa que desumaniza os criminosos, pra poderem desfrutar e se divertir com a tortura que eles podem aplicar a eles.
Igual os clientes de Wraith Babes escolhem ignorar que Abi é uma mulher sendo estuprada na frente de câmeras por uma carreira que ela foi drogada para aceitar entrar, em prol do conforto da pornografia.
Igual o povo esquece de sua preocupação com o primeiro-ministro ou a princesa, para poder desfrutar e se entreter com a visão do primeiro-ministro estuprando um porco.
Igual algumas pessoas escolhem ver os próprios pais como fera fonte de renda, entrando na justiça por “não serem pais perfeitos” em busca de indenização.
Em ArkAngel, Sara, assim como os soldados de Men Against Fire, altera sua visão pra não conseguir ver o rosto de sua mãe, permitindo a si mesma espancá-la violentamente com um tablet sem ser emocionalmente afetada. Em Be Right Back, Martha substitui seu namorado morto, por um robô supostamente indistinguível dele. O relacionamento entre o Robô-Ash e Martha falha a medida em que a incapacidade de substituir Ash em todos os sentidos, serve como um constante lembrete de que Robô-Ash não é o Ash original. Ela sabe que não passa de um robô o tempo inteiro, mas ela precisa enganar a si mesma, de que ele é o Ash de verdade, pra conseguir ficar com o robô. Para Martha, ficar com Ash ou com Robô-Ash só é diferente quando ela pensa no assunto, e a solução pra esse problema é não pensar no assunto e esquecer que ela está substituindo um namorado por um robô, em prol de melhorar seu luto. Quando ela vê que o feitiço está quebrado, e ela nunca vai conseguir ver Robô-Ash como o original, pois ele não é, e nem como um robô, pois ele soa como o original, ela escolhe tirá-lo de sua visão, e colocá-lo no sótão.
E em Black Museum fica claro que a linda história de amor de San Junipero existiu graças a uma tecnologia que pra se tornar realidade, precisou evoluir aos poucos, passando por inúmeros protótipos que literalmente destruíram vidas de inúmeras pessoas.
É isso que fazemos. Não pensamos no assunto. Pois se pensamos, se realmente pararmos pra pensar em quanto sacrifício humano, nosso dia a dia consome sem termos que lidar com ele diretamente. Se um dia formos colocados em contato direto com essas pessoas diretamente, a gente enlouquece. Que nem o Stripes em Men Against Fire. A gente não aguenta lidar com isso, a gente surta. Afinal não somos psicopatas.
Afinal quantos equipamentos eletrônicos que eu mesmo uso, o computador no qual estou escrevendo esse texto agora, não talvez tenha sido feito por uma pessoa em condições miseráveis de trabalho forçado? A chance é altíssima. E ignorar isso em prol de ser capaz de desfrutar do computador é a condição humana, é o que fazemos todo dia pra não surtar, em inúmeros momentos do nosso dia. Todos nós fazemos isso todo dia em algum nível.
E é o que Black Mirror nos mostra. Mais especificamente, a cumplicidade das novas tecnologias nisso. Das tecnologias e da mídia, que são sempre mídias tecnológicas. Uma sociedade regida por telas, seja a da televisão ou a do Smartphone é o que sustenta esse tipo doentio de relações interpessoais. A televisão pode ser uma tecnologia velha, mas ela tem o mesmo espelho preto que seu smartphone, que inspira o nome da série, e ela não deve ser vista como algo diferente das tecnologias futuristas de Black Mirror.
Aliás, reparem que as tecnologias de Black Mirror costumam sempre caminhar pelos mesmos caminhos. São redes sociais novas, chips que alteram como você enxerga e interage com o mundo através do olhar principalmente, transferência de consciência e digitalização de pessoas, máquinas que leem mentes, ou máquinas que interagem com o que você faz nas redes sociais. São tecnologias pensadas em como alterar as interações humanas. Vários campos de ficção científica e futuros hipotéticos como carros voadores, nanobôs, ciborgues ou engenharia genética avançada, sequer são abordados em Black Mirror, principalmente por serem tecnologias de viés menos interativo. Se bem que nunca se sabe se não pinta nada disso na quinta temporada.
O ponto é que: sejam cópias conscientes de nós mesmos, chips em nossas cabeças que controlam o que vemos, programas de televisão, ou apps de avaliação. As tecnologias vêm com a promessa de tornar nossa vida mais fácil, confortável, conveniente e simples, e ela cumpre com sua parte da promessa. Por isso que as máquinas em Black Mirror raramente quebram ou funcionam mal. Mas a consequência é que elas diminuem nossa empatia com as pessoas a nossa volta. O sistema de notas em Nosedive, torna mais fácil excluir uma pessoa da sociedade. A ferramente de block de White Christmas torna fácil nunca mais interagir com uma pessoa. Foi difícil pro Jack aceitar colocar a mente da esposa em si mesmo, pra ela viver, enquanto olhava pro corpo dela em coma. Mas foi fácil pra ele, largar o macaco com a mente dela jogado ignorado no meio da sala enquanto ficava com sua nova namorada. É fácil. E esse é o ponto da série: o ser humano não é ruim e cruel por conta de uma natureza maligna que temos. Nós somos ruins e cruéis quando facilitam isso pra nós, permitindo que esqueçamos completamente da humanidade daqueles a nossa volta. E em Black Mirror, a tecnologia, tanto a nova e futurista, quanto a velha, representada pela televisão, permite que façamos isso diariamente.
O que torna a série menos um alerta sobre o futuro e mais sobre o presente. Não é o que a tecnologia vai fazer com a gente. É o que já faz. E o quanto pode ficar mais fácil. Quantas pessoas não se suicidam por conta de cyberbulling? É fácil odiar uma pessoa que na tela do computador não passa de um avatar e um nickname, não soa como uma pessoa de verdade, então o fazemos. Quantos circos de linchamento a gente deixa a mídia pintar pra gente, pra mover ódio contra pessoas? Quantos crimes hediondos a existência da internet não facilita, e o quanto da nossa liberdade e privacidade uma medida eficaz de impedi-los nos tiraria? Se o avanço tecnológico trás coisas boas e ruins pra nós, o preço é justo? A sociedade do futuro será justa? E se não for, ainda sim preferimos caminhar em direção a ela?
E é por isso que literalmente tudo o que a gente olha no Brasil a gente acha muito Black Mirror. O futuro é uma metáfora, a série e essencialmente sobre o presente, sobre como estão sendo nossas relações interpessoais atualmente. E isso não é no caminho de “agora as pessoas olham o celular e não se falam mais no ônibus”, que muita gente aponta. E mais no “as pessoas olham no celular, mas estão cada vez menos sensibilizadas com as pessoas do outro lado do celular.”
Agora a série, embora seja um aviso pra isso, reconhece sua incapacidade de mudar qualquer coisa na sociedade. Afinal, a série é parte justamente daquilo que ela critica. Assim como Bing que discursa contra um sistema, para poder manter uma casa confortável e ser parte do mesmo sistema, comercializando o seu próprio discurso, Black Mirror faz o mesmo. Afinal, não importa em que mídia você esteja vendo a série, seja a HBO, seja o Netflix, seja a televisão, o computador, seu videogame ou seu celular, se desligar o aparelho após o episódio você vai encarar exatamente o mesmo “espelho preto” que a série critica. Ela depende da mídia que ela critica pra existir, e a fortalece comercializando um discurso contra ela. E o mais louco, a série sabe que faz isso. Pois a série critica isso também com o Fifteen Million Merits.
Em Black Museum, a personagem Nish, serve como uma representação da audiência de Black Mirror. Afinal, a personagem é exposta a ouvir várias histórias sobre tecnologia, dor e relações humanas. O Black Museum é uma versão analógica do que seria a série se ela fosse uma atração de beira de estrada, por isso a semelhança do nome, e a Nish é o público da série, que empatiza com os protagonistas das histórias e sente a dor deles. Ao fim do episódio, apesar de tudo, Nish condena Rolo Haynes a se tornar uma pessoa digitalizada sofrendo uma eternidade de tortura pela satisfação do próprio desejo de vingança e justiça. Ou seja, mesmo servindo como representante da audiência da série e aprendendo as lições que aquelas pessoas aprendem, ela não aplica a lição de “não torture a consciência de uma pessoa pela eternidade, independente do quão hediondo foi seu crime”, pois isso iria contra o ódio dela e seu desejo de vingança, e ela obviamente não abriria mão disso.
A série não tem confiança de que seu público executará suas lições, nem de estar conscientizando o mundo. E dentre todos seus finais infelizes e pesados, esse é seu ponto mais cínico, o de reconhecer que apesar de mostrar um raio-x de tudo o que a sociedade tem de errado, não se sentir capaz de alterar a sociedade com isso. Esse é o nível do pessimismo da série. É pessimista pra cacete.
Agora, só fechando o texto, tem essa piada na internet de que Click é só um episódio de Black Mirror que não levamos a sério por ser do Adam Sandler e isso mostra nosso elitismo. Eu gosto dessa piada, pois tem um fundo de verdade nela. Mas apesar disso, eu acho que o verdadeiro comediante que pegou a onda de Black Mirror e fez antes não foi Adam Sandler, mas sim Jim Carrey. Tanto Truman Show quando Eternal Sunshine of a Spotless Mind, casam perfeitamente com absolutamente tudo o que eu disse aqui. Truman usando a mídia tradicional, e Eternal Sunshine usando uma futurista, e ambas retratando a troca em desumanização por conveniência. E é por isso que eu acho que seria fenomenal se o Jim Carrey protagonizasse um episódio da quinta temporada. Porque você pensa, “mas ele é comediante, ele se sai melhor na comédia”, sim, mas também sabemos que ele faz papéis sérios fenomenais se ele estiver fazendo Black Mirror.