O Dentro da Chaminé comemora dois anos de existência!! Vivas, muitos vivas. E quero agradecer a todos que acessam o blog, comentam nos textos elogiando o blog, comentam nos textos discordando de mim e dando outra visão sobre os fatos, indicam pros amigos, e tudo o mais. Sério, todos vocês me motivam constantemente a não parar de escrever. Só não agradeço ao cara que ameaçou quebrar minhas costelas, foda-se esse otário, mas todos os outros leitores, vocês são demais, sério mesmo.
Enfim, Janeiro é mês de aniversário do Dentro da Chaminé, e aqui será feito um mês comemorativo que eu batizei de “A Visão do Vilão.” onde eu farei quatro textos, sobre um assunto ambicioso que eu queria escrever no passado, mas tinha exemplos demais e ia ficar um texto gigante, que eu decidi dividir em partes e fazer em um mês comemorativo.
E o assunto é um tabu grande que temos em escrever ficção. Um tabu muito maior do que colocar personagens gays, ou do que matar o protagonista. Que se falarmos sobre o assunto parece algo que “ah, mas hoje em dia tem um monte de gente que faz isso”, mas a verdade é que tem poucos fazendo, e o tabu é: fazer o vilão ser o protagonista de uma história. Sabe, contar uma história, onde a perspectiva está no vilão.
Pois é, você agora mesmo deve ter pensado: “Mas que nada a ver, tá cheio de história em que o principal é um grande filho da puta. Olha aí o Godfather, ou The Sopranos, ou Dexter. Esse maniqueísmo de herói perfeitinho super bonzinho sem defeitos ficou no passado, e agora, em 2016, mais do que nunca, anti-heróis são perfeitamente aceitos pelo público.” E você vai estar coberto de razão. Mas vamos lá, anti-herói é uma coisa, e vilão é outra.
Então deixa eu definir bem a palavra. Pros fins dessa análise (nem me venham com definição de um dicionário me desmentir aqui, essa terminologia não precisa valer pra fora dessa análise) o vilão da série é onde a maldade da história se concentra. Por exemplo: a maior parte das histórias tem um conflito entre dois personagens. Podem ser dois guerreiros que vão lutar. Ou pode ser um advogado e um promotor. Ou pode ser uma competição. Ou pode ser pra saber quem vai ficar com a Resse Witherspoon no final de uma comédia romântica. É uma das bases de uma boa narrativa, um conflito direto entre dois personagens. E independente do quão não maniqueísta seja a história e do quanto os dois lados possuam qualidades e defeitos, independente de tudo isso… o protagonista da história e a nossa perspectiva sempre será do lado mais ético.
Nunca uma comédia romântica vai ser sobre um empresário corrupto tentando ficar com a garota que já é noiva de um cara pobre e idealista. Nunca vamos ver um filme com uma batalha final em que o cara que a gente acompanhou o filme inteiro seja o cuzão e mate um puta cara legal. Nunca vamos acompanhar um advogado corrupto que destrói esse promotor idealista. Não. A perspectiva do filme, e portanto o protagonismo sempre está no elo mais ético e decente por mais que isso seja relativo.
E é sobre isso que será esse mês. Analisando até onde somos capazes de genuinamente ver um vilão ser a perspectiva de uma narrativa. E quantas vezes uma história nos soa como se estivéssemos acompanhando a jornada de um grande criminoso, mas na real esse criminoso só enfrenta criminosos piores e policiais corruptos e nunca é antagonizado por uma força realmente do bem. Pois isso quebraria as regras.
E olha. Atualmente, tem um monte de filme que se vende e se divulga como um filme que vai nos dar a perspectiva de um vilão. Mas quando eu vou ver o filme, eu descubro que o filme é sobre uma pessoa não-compreendida, de bom coração, que foi considerada vilão, mas ao longo do filme ela derrota o vilão e mostra seu valor.
Sério, esses filmes saem o tempo todo. Em especial na mídia infantil, mas eles também dão esse migué em filmes não-pra-criança e os vacilão morde a isca igual.
Mas pra ser justo. Existem sim obras que são contadas com o cara mais escroto da trama sendo o protagonista e essencialmente sendo um filho da puta completo. E existe já tem séculos, então o tabu já foi quebrado tem séculos, só é raro. Shakespeare era o rei em fazer essas coisas.
Pois enfim, quero começar a falar no assunto dando o exemplo do Walter White. Um dos casos mais recentes de anti-heróis fodões na cultura pop, e um dos personagens mais interessantes da histórias das séries americanas. Breaking Bad é facilmente uma das melhores séries de todos os tempos, e o personagem Walter White é o maior responsável pela qualidade que a série tomou, embora não seja o único. E ele foi escolhido pra ser o primeiro exemplo que darei, justamente porque a decadência moral que ele sofre ao longo da série ser uma das coisas mais interessantes que a série tem a oferecer.
Walter White é um pai de família suburbana típica dos Estados Unidos. Ele é inperpretado por Bryan Cranston, o pai do Malcom em Malcom in the Middle, e esse é um exemplo de casting que dialoga diretamente com a percepção anterior que temos do ator, pois ele é pra ser a principio o exemplo clássico de um pai de sitcom.
Walter White é um professor colegial, ganha mal, tem dois empregos pra sustentar sua família nuclear que consiste de uma esposa, um menino e uma menina (ainda na barriga na mãe no começo da série), mora em uma cara típica nos subúrbios, bem nos moldes do que Edward Bloom sonhou em conseguir. E no dia de seu aniversário de 50 anos, ele descobre que possui câncer de pulmão. Devastado com a possibilidade de falir sua família inteira com o caro tratamento para o câncer, ele aproveita seus conhecimentos de química para produzir metanfetamina, traficar a droga e usar o dinheiro pra salvar sua família, se tornando gradualmente um dos maiores traficantes do Novo México, e nisso o objetivo de dar um futuro pra família logo começa a se revelar como um grande pretexto pra Walter compensar o fracasso de sua vida, em uma nova vida cheia de orgulho e poder.
O tema da série Breaking Bad é essencialmente transformação. Eles ressaltam essa palavra diversas vezes no piloto, em particular na cena em que Walter ressalta que a química é a ciência que estuda as transformações. E no caso a transformação de Walter foi de um cara completamente inofensivo e passivo em um dos mais poderosos traficantes do país.
Enfim, Walter tinha esse cunhado, chamado Hank, que era um policial da divisão anti-drogas especializado no combate à metanfetamina, e isso foi anunciado logo no primeiro episódio. Então era uma tragédia anunciada, tudo o que Walter fez foi por sua família, Walter seguia um lema extremo de lealdade familiar, mas sabíamos que era só questão de tempo até ele e Hank, um membro de sua família se enfrentarem diretamente, sabíamos disso desde o primeiro episódio. Do destino irônico que unia esses dois personagens.
E eles demoram pra se enfrentar. Demoram bastante. O Hank só percebe que Walter é seu inimigo no episódio 54 (de 62) e aí o que seguem são seis episódios de confronto direto Hank e Walt como todo fã queria ver faz tempo.
Com isso Hank se torna o 6º antagonista principal de Walter, sucedendo Tuco, os Primos de Tuco, Hector, Gus Fring, Mike e antecedendo Jack Welker. E bem, a maneira como Walter lidou com Hank é drasticamente diferente de como ele lidou com os outros cinco. O que faz sentido já que ele é o único desses que não é um criminoso.
Esses antagonistas de Walt foram escalando em importância no mundo do crime em maneira similar a como Walter ia subindo em poder no mesmo mundo. Então quando ele começou, ele era um cara com um produto muito foda e infraestrutura bem baixa pra vendê-lo, então ele fez uma aliança com o traficante peixe-médio Tuco pra vender por ele. Porém ele se desentende com Tuco, entram em conflito que termina com Walter abandonando Tuco ferido pra ser encontrado e morto por Hank.
Com Tuco morto, o poder de Walter aumentou bastante, porém embora Tuco não fosse grandes bostas, os contatos dele eram, e ele começa a ser perseguido pelos primos de Tuco. Dois homens sanguinários e implacáveis que caçaram Walter ferozmente até serem mortos, um por Hank e outro por ordens de Gus, o que ajudou a firmar Walter e Gus como aliados.
Agora Gus Fring, esse sim era o poder. Dono da maior rede de tráfico de metanfetamina do Novo México, ele era uma figura intimidadora pra cacete. Ele matava quem estava em seu caminho, e fazia isso de uma maneira assustadoramente profissional, e ele constantemente colocava Walter em seu lugar, lembrando-o do quanto faltava pra ele crescer. Pois bem, os primos de Tuco e o próprio Tuco todos eram parte de um cartel de drogas organizados por Hector Salamanca, um rival de longa data de Gus, que atualmente só não é tão poderoso quanto ele por estar preso em uma cadeira de rodas com poderes de comunicação limitados.
Pois bem, depois de se rebaixar como subordinado de Gus por muito tempo, Walter enfim arma um plano chavoso que mata os dois chefões ao mesmo tempo, deixando um espaço completamente livre pra chefão do tráfico, e ele felizmente assume esse espaço. Como chefão ele não tem muitos conflitos, o maior é o com Mike, seu associado, cujo profissionalismo e senso de honra entram no caminho de Walter, e quando Mike decide proteger 10 presos que poderiam testemunhar contra os dois na polícia, sabendo que ia ser necessário suborno pra manter o silêncio deles, ele mata Mike e os 10. E é agora que ele não tem pra onde crescer que chegou a hora de enfrentar Hank.
Pois bem, com Hank, Walter teve uma abordagem diferente. Ele evitou o conflito ao máximo, desde usando argumentos como “O câncer vai me matar antes de eu ser preso.” até fazendo um vídeo incriminando Hank por seus crimes, pra garantir que não seria denunciado. Walter não tinha a menor intenção de matar Hank, muito embora ele tenha matado todos seus inimigos até o momento. Com Hank somente neutralizar a ameaça dele dava conta.
Afinal Hank é um bom homem, e apesar de ser racista, e ter um senso de humor estranho, ele tem mais senso ético e moral do que qualquer um que Walter tenha matado. Por isso ele é especial. Walter pode vir friamente matar um outro traficante, mas não pode calmamente matar um policial esforçado e dedicado tentando livrar o Novo México das Drogas.
E é por isso que ele não é o vilão da história. Ele é mau. Ele é cruel. Ele é perverso e ele se corrompeu ao extremo ao longo da série. Mas sempre tem alguém pior, e tem linhas que ele nunca cruzará, mas que outros personagens da série cruzarão. Agora, vamos ser justo, Walt já matou inocentes, a maioria deles indiretamente, mas já matou. As duas vítimas mais inocentes de Walter White ao longo da série são Jane, a garota que ele viu morrer e não fez nada pra ajudar, pois ela era um obstaculo pros negócios, e Brock, que Walt talvez tenha envenenado pra manipular Jesse, mas que ele nunca chegou a matar. Em ambos os casos, demonstrou a crueldade e a maldade de Walter, mas não fez ele cruzar a linha.
Mas então, quem vai ser o vilão, se Walter não vai se transformar oficialmente no vilão? Ele já matou o Gus Fring, não sobrou ninguém foda no ramo do tráfico pra ser pior que o Walt. Pois é nessa hora que os roteiristas de Breaking Bad usaram o grande coringa da vilania, e inseriram o elemento que quando inserido em um roteiro atrai toda a noção de maldade pra si mesmo. Foi aí que aparecem os neonazistas, que como já foi comentado aqui no blog, nada nunca é pior que um nazista na ficção.
Inseridos na trama discretamente como aliados menores do império de Heisemberg, o grupo de supremacistas brancos liderados por Jack Welker foram uma grande reviravolta nos momentos finais da trama. Quando Hank estava prestes a prender Walter, tendo sido auxiliado pelo ex-parceiro de Walter, Jesse Pinkman e tendo apreendido todo o dinheiro sujo de Walter, bem Walter se viu acuado e foi auxiliado pelos seus parceiros pra não ter seu império derrubado.
Pois bem, então Jack tomou as rédeas e rendeu Hank, prestes a matá-lo. Porém isso não era o que Walter queria, então ele tenta negociar a vida de Hank, e é nessa hora que Jack rouba o império pra si, ele mostra o quanto Walter não estava no controle matando Hank na frente dele, e sequestrando Jesse pra escravizá-lo a produzir metanfetamina pros supremacistas brancos.
Desse ponto pra frente, vemos Walter caminhar em direção a uma pseudo-redenção (pseudo, pois ele não realmente vai desfazer todos os danos que ele causou a todos ligados a ele, ele passou longe demais da linha pra se redimir, mas ele tenta fazer algum bem na reta final), ele garante que o corpo de Hank vai ser encontrado, garante que o dinheiro dele vai ser usado pra ajudar sua família financeiramente e tendo fechado essas pontas soltas, invade o covil dos nazistas, pra vingar Hank e libertar Jesse.
E o carater de vingança fica bem claro quando ele mata Jack de uma maneira que ecoa diretamente como Jack matou Hank. Após isso ele morre, com uma bala da própria arma, em um laboratório de metanfetamina que tanto marcou sua vida. E assim se encerra a vida de Walter White.
Agora vamos lá. Quem é o grande herói de Breaking Bad? É o Hank, disparado, ele passou a série inteira em conflito com todos os vilões. Ele matou Tuco, levou um tiro dos gêmeos e matou um deles, brigou com Gus, foi morto pelos supremacistas brancos. E sua morte foi o gatilho pro Walter parar de lutar somente pra manter o seu império pra passar a lutar pra corrigir a merda que ele fez.
E sendo o Hank o herói, o Walter nunca ataca diretamente o Hank, ele tenta sempre neutralizar o Hank, pois sabe que seu cunhado o prenderia sem pensar duas vezes pelos seus crimes, mas fazer intencionalmente o mal ao Hank é uma linha que ele nunca cruzou. E é esse o truque para Walter nunca ser o vilão da série, não importa o quanto ele se corrompa, ele sempre marcou como alvos pessoas piores que ele, evitando matar os heróis, e no fim, quando o herói é derrotado, ele vinga o herói e atinge o mais próximo que ele consegue de uma paz interna após lidar com todas as atrocidades que ele cometeu.
Agora vamos lá, e daí se o Walter nunca foi o vilão da própria história? Não é como se a série tivesse prometido isso, nem como se ela fosse melhor se no final o Heisemberg tivesse se tornado de fato o personagem mais cuzão da série toda. Breaking Bad é sobre a transformação de Walter (e sobre os EUA, mas isso vai ter post futuro), e é excelente mesmo com o Walter matando nazistas. Eu escolhi falar de Breaking Bad, pois é um ótimo exemplo muito icônico de um efeito que está rolando muito forte da séries da atualidade.
As séries de sucesso de hoje em dia, usam muito o recurso do anti-herói pra promover uma escala de cinza na moralidade de seus personagens, mas seus protagonistas, por mais escrotos que sejam, se concentram em enfrentar pessoas piores que eles. Isso é meio que a marca registrada das séries atuais, desde Tony Soprano. E seja Don Draper, seja Dexter Morgan, eles nunca são o pior que a série tem a oferecer. Existe um limite pro quão sórdidos podem ser os nossos protagonistas.
Claro, tem exceções. Duas bem notáveis na atualidade. Uma delas é Narcos, onde o Pablo Escobar é colocado como personagem principal. Porém mesmo Narcos, precisou colocar muito da perspectiva em um policial americano chamado Steve Murphy, que narrava todos os episódios pra marcar seu status de ponto-de-vista da série na teoria (já que na prática a gente via o Pablo em diversas ações que o Murphy não tinha como ficar sabendo).
Mas o maior exemplo que temos mesmo de uma série que colocou o vilão no protagonismo de verdade foi House of Cards, que não por coincidência dialoga diretamente com as obras de William Shakespeare que fizeram a mesma coisa, Macbeth e Richard III. Frank Underwood é indiscutivelmente o que a série tem de mais sórdido a série coloca muito do foco em suas tentativas de eliminar obstáculos personificados em personagens bons, personagens que não estão afundados no mar de lama que é o congresso americano.
Hoje em dia as séries de televisão estão mais do que nunca focadas em batalhas de cinza contra cinza do que na clássica batalha de preto contra branco, bem vs mal. Personagens complexos e conflituosos com defeitos e que podem ter uma moralidade duvidosa, e isso está diretamente ligado ao boom de audiência que as séries tem tido desde Os Sopranos. Porém, essas batalhas de cinza contra cinza são sempre cinzas de tons diferentes, e o nosso protagonista quase sempre virá no tom de cinza mais moral do que seu rival.
Breaking Bad sendo uma das séries de maior sucesso de toda essa leva, e um dos exemplos máximos do protagonista corrompido na cultura pop recente, gerou de seu sucesso, um spin-off, que conta a história do aliado de Walter, Saul Goodman. Advogado amoral que ajudou Walter diversas vezes, e o spin-off, chamado Better Call Saul, serve justamente pra nos mostrar o lado bom de Saul, e quais eventos em sua vida aconteceram para transformá-lo em um advogado corrupto.
E é isso que tenho a dizer sobre uma história que apesar de ter o potencial de colocar em seu protagonista um vilão, não foi até os limites dessa ideia, mas isso em nada prejudicou a obra. No próximo texto vamos ver uma história que também não foi até os limites da ideia e foi notavelmente prejudicada.