Bojack Horseman é atualmente uma das duas grandes séries de animação que estão tratando com o tema da depressão, com um protagonista tendo sua personalidade egoísta e danosa como um escudo pra esconder uma pessoa quebrada, em constante sofrimento, odiando a si própria e a beira de um suicídio. A outra série é Rick and Morty, a qual eu recomendo fortemente. Enfim, eu já falei aqui sobre como esse perfil de personalidade do Bojack é uma maneira de desconstruir o típico protagonista cuzão de animações para adultos, mas nesse texto eu quero explorar um aspecto específico do emaranhado de contradições e auto-sabotagem que é a personalidade de Bojack e falar sobre sua relação com corridas.
Corridas são um simbolismo no qual a série constantemente toca de leve, mas é muito fácil passar desapercebido, o quanto correr é uma atividade que tem muito significado pra ele. Ele é um cavalo, então isso faz sentido, afinal cavalos correm, e eu só fui perceber o quanto isso era mais que um detalhe e sim um tema quando eu vi a última cena da terceira temporada, que estreou mês passado no Netflix.
A primeira menção a corridas na série vem logo no primeiro episódio. Quando Bojack menciona que Secretariat é o seu herói de infância e sobre como ele sempre sonhou em interpretar Secretariat em um filme.
Na vida real Secretariat foi um cavalo de corrida fodão que ganhou muitas corridas na década de 1970 e que ganhou um filme em 2010. No universo de Bojack Horseman, onde não existem animais, já que todos animais são antropomórficos e inseridos na sociedade iguais aos seres humanos, Secretariat era tratado como um atleta normal célebre por suas vitórias, e no final da primeira temporada, vemos em um flashback que Bojack mandou uma carta para Secretariat falando que gostaria de ser como ele.
A série não confirmou se em algum momento da vida dele ele já sonhou genuinamente ter um corredor profissional igual Secretariat, só que Bojack queria ser igual seu herói. Enfim, todos sabemos que seja la qual era a ambição de Bojack na juventude, ela foi descartada, pois ele entrou no Show Business. Ele entrou nessa carreira, pois ele sentia que era a única maneira dele ser amado pelas pessoas, um ideal que foi enfiado nele por sua mãe desde a infância.
Ele achou que se ele fosse um comediante, ele ia se sentir amado, e trinta anos na carreira ele está na meia idade e percebendo que, não, ele não se sente amado, ele se sente genuinamente infeliz, e tem que passar o dia convivendo sozinho com a pessoa horrível que ele é. E é nesse ponto da vida dele que a série começa.
Quando ele era criança e enviou uma carta pra Secretariat, ele tinha uma infância horrível com pais abusivos e solidão, por isso ele mandou em sua carta de fã pra Secretariat a pergunta “o que você faz quando fica triste, e como que não se fica triste.” e Secretariat respondeu que ele começou a correr, como uma maneira de lidar com a tristeza e nunca parou, e que Bojack deve correr sempre que ficar triste.
Claro que quando Secretariat disse isso, os pais de Bojack estavam brigando do lado dele e não tenho certeza se ele entendeu tudo o que Secretariat disse.
Mas enfim, correr pode ser visto como uma grande maneira de se fugir de seus problemas. Secretariat definitivamente fugia de seus problemas, ele se suicidou quando descobriram que ele apostava nas próprias corridas, ele fez um pacto com Nixon pra não ir pro Vietnam, mandando o próprio irmão pra correr no seu lugar. Ele não encarava seus obstáculos, ele corria deles.
Não só isso como quando Bojack é escalado para interpretar Secretariat na cine-biografia do mesmo, a cena do teste de casting, é justamente uma em que o atleta admitiria que ele corre por ter medo, medo de ser uma pessoa vazia que não corresponde a noção de grandeza que os fãs enxergam no grande atleta, e ele corria pra fugir, fugir de si mesmo, fugir de sua tristeza, ele fugiu do Vietnam e ele fugiu da vida quando descobriram um crime seu. Um homem cavalo em uma eterna fuga, por isso ele corria.
Será que é o caso de Bojack?
Bom, além de ter em seu maior ídolo, um corredor, e de interpretar esse corredor em um filme, Bojack no começo da segunda temporada decide que vai começar a correr toda manhã. Essa decisão vinha como parte de uma postura radical de Bojack de mudar de atitude e se tornar uma pessoa melhor, mais otimista, menos amargurada e por conclusão dele, mais feliz.
Claro que Bojack não é uma pessoa feliz, e está na casa de seus 50 anos, ele viveu toda uma vida infeliz e não vai mudar do dia pra noite começando a correr, mas ele insiste, insiste em um estilo de vida alto-astral metaforizado na corrida, até perceber que sua infelicidade não tem cura, então ele desiste de correr.
Mas não parou de fugir, assim como Secretariat, Bojack também foge de seus problemas. No meio da segunda temporada ele abandona as gravações do filme-biografia de Secretariat na metade pra se isolar por meses no Novo Mexico com uma amiga de infância, vivendo em um barco que ele comprou e nomeou de Escape from L.A.
Claro que ele não leva seus problemas consigo pro Novo México, ele recomeça lá do zero, mas ele continua sendo o escroto que ele sempre foi, e por isso logo consegue colocar a perder a amizade de 30 anos que ele tinha com Charlotte, sua amiga de infância. Ele estraga toda sua relação com Charlotte e com as pessoas que ele conheceu no novo méxico que ele foge de lá, foge do dano que ele causou. Ele volta pra Los Angeles e se vê obrigado a retomar a vida da qual havia fugido, para fugir da merda que fez, o que significa que ele volta a praticar corrida.
Ele não aguenta o tranco de subir a ladeira da própria casa, e tem que parar pra descansar, nesse momento então aparece um macaco, que literalmente apareceu em todos os episódios da segunda temporada correndo na frente da casa de Bojack e lhe dá um conselho sobre corridas. Um bom conselho: Que fica mais fácil aos poucos, desde que ele não desista.
O que de certa forma serve pra vida de Bojack. Ser feliz é um trabalho que vai depender de muito esforço de Bojack, uma vez que quem mina sua própria felicidade é ele. E é algo que a cada dia que passar vai se tornar levemente mais fácil, desde que ele não jogue tudo pro alto como ele sempre faz.
Enfim, na terceira temporada, Bojack tem também um episódio de fuga. Depois de sua personalidade, e auto-destruição destruir os laços com todas as pessoas que já se importaram com ele ao longo dessas três temporadas, ele sai em uma jornada pra se drogar com a única pessoa com quem ele continuou em bons termos com. Sarah Lynn.
Sarah Lynn é a atriz que interpretou a filha de Bojack em Horsin’ Around e os dois atores têm uma relação meio que de figura-paterna, uma vez que Sarah Lynn nunca pôde contar com sua família, e meio que de duas-pessoas-autodestrutivas-que-trazem-o-pior-uma-da-outra-e-deviam-ficar-longe-uma-da-outra. Enfim, Sarah Lynn era a única relação com quem Bojack não tinha estragado tudo. Por isso ele se junta de Sarah Lynn para se drogar por semanas consecutivas e fugir de todas as frustrações que ele acompanhou na terceira temporada.
Essa jornada de se drogar dura semanas até Sarah Lynn morrer de overdose, dando a Bojack novamente a sensação de que mesmo fugindo ele caga tudo o que toca. Ele diretamente colaborou pra morte de sua amizade mais antiga, e novamente viu que ele não se livra de seus problemas fugindo, só leva eles pra outro lugar.
Em sua depressão, Bojack descobre conversando com Diane, que depois de tudo, aparentemente ainda consegue ser amiga de Bojack, e lhe fala sobre como pra ela Horsin’ Around era como ela fugia, era uma sitcom boba que toda semana tirava ela da infância horrível que ela teve, e que Bojack durante seus anos de sitcom permitiu que diversas pessoas fugissem da própria infelicidade de maneira bem menos destrutivas que as fugas de Bojack. Então Bojack decide que vai voltar ao ramo das sitcons.
E é curioso, pois depois que Bojack tem essa epifania ele se torna um ser humano cavalo legitimamente melhor. A nova sitcom iria se chamar Ethan Around e ia ser um spin-off baseado no personagem de Horsin’ Around, Ethan, interpretado por Bradley. Bradley não fez carreira como ator depois que a sitcom acabou e se arrependeu, e Bojack decidiu dar uma força pra ele entrar no show-business dando a ele um spin-off.
Agora vamos lá, por toda a série, Bojack sempre foi um tremendo narcisista, ele odeia não ser o centro das atenções, e odeia quando estão dando foco em gente que não ele. Após a morte de Sarah Lynn, e a confissão de Diane de como Horsin’ Around foi uma fonte importante de escapismo pra ela, o narcisismo dele diminui muito. Ele lê o roteiro que Bradley escreveu pra sitcon e fica bravo que Bradley deu as melhores falas pro personagem de Bojack, quando o personagem de Bradley que seria o protagonista, e ele fala que Bradley não precisa ter medo de pegar o foco, dando um apoio genuíno a auto-estima do colega.
Ele vê uma das atrizes-mirins e a fala como seus pais estão orgulhosos e a trata de maneira extremamente apropriada (em contraste claro com como ele tratou Sarah Lynn na infância, onde ele destruía a auto-estima da garota com conselhos merdas). Porém ao descobrir que a menininha tinha ambições reais de entrar no mundo de Hollywoo e ser uma celebridade, e diz que tem a Bojack como ídolo, ele quebra. Ele não consegue mais continuar sendo parte de um ciclo que vai gerar uma nova Sarah Lynn. Ele foge… pra se matar.
Bojack entra em seu carro e dirige até fora da Califórnia, onde ele enfia o pé no acelerador, fecha os olhos, larga o volante e espera o desastre acontecer. Claro que Bojack possui em casa um complexo sistema de enforcamento de cavalos que ele comprou na segunda temporada, mas ele fez questão de se matar em alta velocidade, correndo com seu carro em uma estrada.
Seu suicídio é interrompido por ele mesmo, que retoma o controle do carro, quando ele enxerga uma multidão de cavalos correndo na estrada. E é essa a cena que encerra a temporada.
Então vamos repensar isso: ele acelerou o carro pra fugir da sua culpa pela morte de Sarah Lynn, e do ciclo de pessoas quebradas por dentro do qual ele faz parte. Fugir tanto literalmente, pelo fato de que ele saiu correndo, entrou em um carro e pisou no acelerador saindo da cidade e do estado, como fugir metaforicamente, pois isso culminaria em um suicídio. Porém ele desistiu disso tudo ao ver um bando de cavalos correndo. Bojack parou de correr metaforicamente ao ver uma corrida literal. Tem muitas camadas de corrida e fuga nessa cena de uma vez só. O que nos faz pensar se existe mais no ato de correr do que meramente fugir.
Afinal, Bojack voltou a correr literalmente quando parou de fugir. Secretariat podia correr pra fugir de sua vida e seus problemas. Mas Bojack não, ele foge dos seus problemas, mas não é correndo que ele faz isso. Pra ele, correr pode significar outra coisa.
Então lá vai a minha teoria. Correr, para Bojack, tem menos a ver com fuga e mais a ver com controle. Sim, a terceira temporada nos trouxe o tema do controle, em um episódio – um dos melhores da temporada em minha opinião – em que Bojack tenta cancelar a assinatura de seu jornal, e o serviço-de-não-deixar-o-cliente-cancelar-assinaturas-e-dificultar-sua-vida encaminha uma mulher pra no processo de não deixá-lo cancelar sua assinatura faz com Bojack uma longa sessão de psicanálise da qual o cavalo realmente precisava. Pois bem, nessa conversa com a psicologa atendente, Bojack trás a tona o tema do controle. Ele quer cancelar o jornal, pois ele quer sentir que em algum ponto ele tem controle da própria vida, pois em todo o restante de sua vida ele não tem.
Ele teve uma autobiografia escrita sobre ele, que não só ele não escreveu, como ele se sentiu genuinamente magoado pelo que estava escrito e nunca recebeu um “foi mal” da escritora em retorno. Ele tem sua carreira comandada por Princess Carolyne, e sua campanha para o Oscar comandada por Ana Spanakopita, duas mulheres fortes e de autoridade. Bojack não foi obrigado por ninguém, mas o show-business nunca foi realmente um lugar onde ele queria estar, mas agora ele está preso nele. Bojack está preso em uma vida infeliz e não sente que ele pode apitar nos rumos que ela esta tomando. A grande decisão de carreira que ele fez, foi pressionar os estúdios a fazerem o tal filme do Secretariat, mas ao final, o filme se tornou algo muito diferente do que Bojack queria que fosse o filme.
Isso tudo pode ser simplificado com o fato dele transar com Ana, e ela insistir que ele tem o controle da relação quando ela obviamente usa a relação para controlar Bojack.
Enfim, nessa temporada, Bojack toma mais decisões visando controle das direções que sua vida está dando do que qualquer um. Ele insistiu em se envolver com um projeto de um filme cult, que ele não conseguiu, pois Princess Carolyne sabotou. Ele insistiu em ter um relacionamento de verdade com Ana Spanakopita, mas ela o abandonou. Ele demitiu Princess Carolyne, insatisfeito com as decisões recentes que ela tomou em nome dele e ele forçou pra a propaganda do filme Secretariat que ele mais gostou ser a que iria pros outdoors.
Então se Bojack busca controle, será que o ato de correr poderia significar que quando você corre, você decide a direção em que você corre? Poderia ser isso? Ou os cavalos que Bojack viu correndo deveriam significar cavalos selvagens, e todo o subtexto de liberdade que um cavalo selvagem carrega, será que Bojack deseja ser um corredor, não profissional como Secretariat, mas um selvagem que corre nos desertos?
Independente de qual é a verdadeira simbologia da corrida que Bojack viu nos cavalos, ela é o literal oposto da corrida que Secretariat fazia, e das fugas de Bojack. Aqueles cavalos não estavam fugindo. Eles estavam seguindo em frente, e eu espero que isso indique algum futuro pra Bojack.
A terceira temporada se diferencia das duas anteriores por não terminar com nenhum gancho. A primeira temporada se encerra com ele fechando o contrato pra interpretar Secretariat em seu filme-biografia. A segunda temporada fecha com ele se oficializando na corrida pro Oscar. A terceira fecha com ele produzindo Ethan Around, mas ele está fugindo, ele não quer se envolver com aquela fábrica de tragédias. A terceira temporada fecha com Bojack no meio do deserto, sem ninguém guiando qual o próximo passo pra ele. E talvez esse seja o melhor rumo possível pra uma quarta temporada, um Bojack livre, livre pra traçar seu destino.
Pois bem, encerro deixando vocês com esse belo vídeo do youtube, contrapondo a cena do quase-suicídio com o discurso de Secretariat. Poderoso.