Orange is the New Black é uma série que não possui cold openings, o que significa que em todo episódio, a primeira coisa que vemos é a abertura da série (a menos que você pule) e que a primeira coisa que ouvimos em cada episódio é a frase: “Os animais! Os animais! Presos, presos, presos, até a jaula encher.” O que sempre foi pesado de se ouvir, mas ao terminar a quarta temporada da série a frase se torna mais pesada que nunca. Enquanto que a desumanização que a prisão causa em suas detentas é um tema que existe desde o começo da série e vai perdurar até seu final, ele nunca foi colocado em tanta evidência quanto na quarta temporada.
Orange is the New Black em teoria é sobre o período em que Piper Chapman passou como detenta na prisão feminina de segurança mínima Litchfield. Na prática, embora Piper seja indiscutivelmente a protagonista da história, na perspectiva da trama geral da prisão ela é sempre só mais uma prisioneira, e não é incomum ela ter uma trama própria que parece completamente insignificante em comparação aos conflitos que estão realmente guiando a temporada. O exemplo máximo disso é a segunda temporada, onde uma traficante barra-pesada chamada Vee entra na prisão e tenta estabelecer um grande império lá dentro que começa a afetar todas as personagens da série, exceto a Piper que estava em um drama pessoal, pois seu namorado estava chifrando ela fora da cadeia. E entre uma grande guerra entre gangues englobando os personagens mais carismáticos da série, e a Piper sofrendo por dor de corno, eu não preciso dizer qual é o ponto que realmente estava interessando aos fãs e recebendo atenção dos roteiristas.
A série tem uma fórmula, que inclusive me lembra muito LOST, de em cada episódio, uma personagem ter um flashback de fora de sua vida na prisão (que pode ou não mostrar por que ela foi presa), onde os eventos do flashback ecoam com os eventos com os quais a personagem lida dentro da prisão. E ao longo dos 52 episódios da série até agora, Piper em seu status de personagem que mais aparece, ainda está esperando ter um quarto episódio em que ela realmente seja o foco e o flashback do episódio. Ao invés disso a série se esforça muito para não repetir flashbacks e para dar ao máximo de personagens secundários, a chance de brilhar em um episódio onde seus dramas e conflitos internos importem.
A importância disso é clara, a série evita criar essa estrutura em que tudo que acontece na prisão acontece com esse grupo de no máximo 12 presas e tem essa multidão atrás dela que só faz espaço, mas que não realmente importa. Em Orange is the New Black, o número de personagens com personalidade trabalhada e nomes e que realmente podem afetar a trama é de 41 (mas posso ter errado a conta), e a cada temporada, não somente novas detentas entram em Litschfield, como mais detentas renegadas ao plano de fundo são promovidas e tratadas como personagens em vez de cenário.
Isso anda lado a lado com a premissa da série, que essas detentas são seres humanos, todas elas têm uma história, todas elas têm uma perspectiva, nenhuma delas é meramente um pedaço do cenário para compor o ambiente em volta da Piper, e as inúmeras figurantes que vemos nos episódios não serão desumanizadas, eventualmente elas terão seu próprio episódio e sua própria trama também.
Orange is the New Black sempre insistiu na tecla de que a desumanização das presas é o que destrói elas dentro da prisão. E uma das maneiras que a série tem de se mostrar isso, é se passando em uma prisão de segurança mínima. Em Litchfield as prisioneiras não tem celas nem grades, elas ficam em cubículos abertos dos quais elas podem sair no meio da noite tranquilamente se quiserem. A prisão não tem câmeras e as presas passam boa parte do tempo delas na prisão com praticamente nenhuma supervisão. Logo no primeiro capítulo, o conselheiro da prisão, Healy alerta Piper “Isto não é Oz.” e ele tem razão, não é mesmo, não temos detentas estuprando outras detentas (embora tenha um grande número de sexo consensual rolando ali dentro), a barra ali é bem mais leve do que estamos acostumados em série de prisão. Isso significa que a vida lá é boa? Não! A vida lá é uma merda. Pois ainda temos um sistema carcerário que te priva da sua humanidade e que te trata como uma inconveniência e um nome no papel, mais do que como uma pessoa, e isso massacra aquelas mulheres diariamente..
E aí veio a quarta temporada, onde Litchfield deu um significante passo para virar Oz (embora ainda não tenha virado, tem uma cena pesada que é uma referência direta à série e ilustra bem o que mudou), a barra que não era tão pesada resolveu pesar. A terceira temporada encerra com os guardas, após terem seus direitos trabalhistas removidos pela empresa privada que comprou a prisão, se demitindo em massa, o que criou para as prisioneiras uma oportunidade de fugir.
Para o mundo real? Para a sociedade? Para ameaçar, roubar e matar? Não! Para um lago vizinho, onde elas entraram no lago e se divertiram, mesmo sabendo que elas não tinham como realmente irem pra mais longe e obviamente seriam recapturadas, o mero ato de entrar em um lago e se sentir 1% mais livres do que o de costume foi muito importante pra elas. Tanto quanto o direito de beber uma cerveja nos telhados da prisão em Shawnshank Redemption. Porém enquanto elas se divertiam e se sentiam livres, os guardas contratados para substituir os da demissão em massa estavam chegando, e é aí que a porra fica tensa.
É a nova leva de guardas, formada em sua maior parte por veteranos de guerra (pois eles são mais baratos de contratar) e liderados por Desi Piscatella, que foi transferido de uma prisão de segurança máxima masculina para Litchfield. E eles têm uma postura clara. Ser guarda da prisão é uma guerra de “nós vs elas.” e Piscatella em particular, insiste que nenhuma prisioneira seja tratada com respeito nem como seres humanos, elas são criminosas, e não tem nada de ruim que elas não mereçam como punição por seus crimes.
Pois bem. Os guardas da prisão na quarta temporada são divididos em quatro grupos. O primeiro, dos que não se demitiram na demissão em massa e estão aí desde a primeira temporada. Fazem parte desse grupo Luscheck, e Healy, sendo que esse último é um conselheiro e não um guarda, mas enfim, ainda sim é um funcionário da prisão. O segundo grupo é dos contratados pelo pessoal da empresa na temporada passada e que são um bando de vacilão sem treinamento nenhum de como lidar com as presas. Fazem parte desse segundo grupo um molecão sem espinha dorsal chamado Bayley, um cuzão chamado Coates, e um cara chamado Aydin Bayat que é um criminoso infiltrado. O terceiro grupo é de veteranos da guerra do Afeganistão, composto por uma mulher chamada MacCullough, um gordo chamado Dixon, um careca chamado Stratman e um canalha chamado Humphrey. E o quarto grupo é o pessoal que veio transferido da ala de segurança máxima e desse quarto grupo só o Piscatella faz parte.
Eu faço isso para reiterar que ainda no começo da temporada, a personagem Alex Vause estava sendo sufocada até a morte pelo Bayat, que se infiltrou na prisão como membro do segundo grupo, só para matar Alex. Alex é salva pela prisioneira Lollys Whitehill, que tem problemas mentais graves e sofre de paranoia e mania de perseguição, e ela salva Alex, matando o guarda. Com a ajuda da presa que cuida do jardim da prisão, Frieda, elas picotam e escondem o corpo, e como Piscatella e os veteranos haviam acabado de entrar na prisão, eles não realmente deram pela falta dese guarda.
E a temporada dá um bom foco na culpa que Alex e Lollys sentem por terem cometido o primeiro assassinato delas na vida. Enquanto isso Piper acidentalmente une as detentas racistas em um grupo neonazista que se torna extremamente vocal na prisão. Ruiz ascende de personagem menor nas temporadas anteriores a líder do tráfico interno na prisão. E uma celebridade começa a ter tratamento privilegiado na prisão. E essas tramas vão nos distraindo como o centro dos episódios enquanto vemos ao fundo como o tratamento dos guardas com as presas se torna mais abusivo do que jamais foi.
Não é como se Litchfield nunca tivesse tido guardas abusivos, Mendez da primeira temporada foi um exemplo marcante de um dos primeiros antagonistas da série, inclusive sendo o responsável pela morte da detenta Tricia, que descanse em paz. Mas ainda sim, as detentas conseguiram se juntar e deram um golpe em Mendez pra mandá-lo pra cadeia, e fazer a justiça acontecer com ele. E o resto dos guardas, por mais que pudessem ter momentos babacas, no geral não eram personagens nem antagonistas nem que criavam nossa antipatia, eram pessoas normais com seus próprios corres.
Agora esses veteranos de guerra que chegaram? Não é o caso de um escroto passando da linha, é o caso de um grupo de escrotos que são escrotos em grupo. Eles começam a morar juntos em uma casa na propriedade da prisão e instantaneamente começam a agir feito uma fraternidade, eles gostam de zoar, beber, se divertir um com os outros, e tratam as presas feito brinquedos.
Sob o pretexto de investigar o tráfico de calcinhas usadas que Ruiz estabelece, todas as detentas latinas começam a ser assediadas sexualmente durante as revistas. Uma detenta, Blanca Flores é obrigada a ficar em pé em cima de uma mesa por dias até seu corpo ceder (e nunca cede, pois a Flores é foda), como punição por se recusar a tomar um banho (uma vez que a falta de banho fazia com que os guardas não quisessem revistá-la). Maria Ruiz tem anos adicionados a sua sentença por seu envolvimento com as calcinhas, para servir de exemplo pras outras presas, o que a convence a começar a negociar drogas, por não ter muito mais a perder. Mas o mais chocante mesmo, é quando um dos guardas, chamado Humphrey, vê Maritza Ramos brincar com sua amiga de fazer perguntas do tipo “se apontassem uma arma na sua cabeça e te obrigassem a escolher entre comer um rato bebê ainda vivo ou várias moscas, qual você escolhia.” e decide se divertir levando essa presa para sua casa, apontando-lhe uma arma na cabeça e obrigando ela a fazer a mesma escolha.
Tudo isso com o consentimento de Piscatella, que acredita que se elas não quisessem passar por isso, que não fossem criminosas. Piscatella desenvolve uma relação de extrema camaradagem com os guardas, de agir como um pai que protege seus filhos com ele, que em qualquer filme de guerra é a característica do general mais admirável, mas a série nos mostra o outro lado dessa característica, a vista grossa que ele faz para todas as atrocidades. Proteger esse grupo de escrotos com uma frieza de quem não vê nada de errado nisso nos chama a atenção pro quanto Piscatella é horrível.
E a coisa piora quando acham o corpo do guarda que Alex e Lollys mataram. Piscatella usa o incidente para diminuir a autoridade do bem-intencionado-porém-incompetente diretor da prisão Caputo, e pegar ainda mais pesado com as presas para descobrir a assassina. O que dá a abertura para Humphrey, obrigar duas detentas com problemas graves de saúde mental a lutarem entre si para poder apostar com outros guardas sobre quem ganharia. Destruir a saúde mental de duas pessoas para ganhar uma aposta de vinte dólares enquanto dá umas risadas.
Enquanto isso, Piscatella pessoalmente tortura Red, uma das detentas mais respeitadas da prisão, por ter influência sobre outras presas e por ser a cozinheira, proibindo ela de dormir e fazendo questão de acordá-la e obrigá-la a trabalhar sempre que possível. Mesmo depois que Lollys é descoberta (por denúncia de um funcionário da prisão, ou seja, a tortura dele não deu em nada), ele continua a torturar Red, pois quer fazer dela um exemplo pras outras presas, já que ela o desafiou.
Pois bem. Isso resulta em um protesto. Quando ele empurra Red na frente de todas as detentas e a obriga a trabalhar sem descanso, Flores que trabalhava ao lado de Red na cozinha sobe na mesma mesa onde foi obrigada a ficar em pé por dias e fica em pé. Piper a acompanha e sobe na mesa também e então todas as detentas, independente de sua etnia e grupo interno na prisão sobe em cima da mesa, e Ruiz, grita para Piscatella que nenhuma vai se mover até que ele se demita.
A temporada começou com todas as presas, unidas independente de seus grupos internos para desfrutarem juntas o fato de que elas se sentiam mais livres do que nunca. E fecha com todas as presas, independente de seus grupos internos, unidas para protestar contra o fato de que elas se sentem mais oprimidas do que nunca.
Piscatella como o autoritário que é, responde ao protesto pacífico com violência, e graças ao bosta do Humphrey, que obrigou Suzanne a espancar outra detenta para apostar na briga, Suzanne entra em pânico ao vê-lo entre os guardas e tendo histórico de problemas mentais, se descontrola e começa a socar a parede. Um dos guardas, Bayley, o bundão, tenta segurá-la, e na tentativa de segurar Suzanne enquanto imobiliza Poussey ao mesmo tempo ele acidentalmente mata Poussey, colocando pressão forte demais em cima dela.
A cena mais impactante da temporada. Tudo nela é muito calculado para nos criar o máximo de agonia. A morte de Poussey foi um acidente, e nós sabemos que o Bayley é literalmente o único guarda de toda a prisão que não teria coragem de fazer mal a ninguém, mas ele não foi treinado para lidar com essas situações. Poucas cenas antes, Caputo comenta com Bayley que ele era uma pessoa boa demais e que a prisão iria corrompê-lo. Ver a atitude de dois psicopatas como Piscatella e Humphrey desencadear uma série de eventos que levou o sangue pras mãos justamente do único que não precisava ir pra casa sabendo que é tão incapaz para seu trabalho que matou alguém, é parcialmente agoniante, mas claro, não tão agoniante quanto ver uma das personagens mais carismáticas da série lentamente sufocar até a morte.
A culpa da morte de Poussey é em 10% do Bayley, como o vacilão sem treinamento ou preparo que foi obrigado a fazer repressão física nas detentas. 30% do Humphrey, que por sadismo e escrotidão gratuita traumatizou Suzanne ao ponto do descontrole. E 60% do Piscatela, que criou o contexto para que tudo aquilo acontecesse, fez vista-grossa em todos os eventos que causaram a situação e insistiu que detentas não deviam ser tratadas como gente. Inclusive a última coisa que ele diz antes da morte de Poussey é “Bayley, tire esse animal daqui.” se referindo a Suzanne. Animal mesma palavra que abre todos os episódios da série, e que também é o título do episódio “The Animals.”
Essa dinâmica dos guardas desumanizarem os demais não acontece só dentro da prisão.. Antes de ser um guarda, Bayley foi um adolescente de merda que farreava contra a própria vontade por pressões de uns amigos merdas e em um incidente, passou em frente a um campo onde as detentas de Litchfield estavam trabalhando, ele atirou um ovo em uma delas sob pressão de seus amigos e recebeu como resposta o grito “eu sou um ser humano, porra.” da pobre Frieda que tava lá cumprindo pena e levou um ovo na cara. Ao ouvir a bronca de Frieda, Bayley fica mal por ter sido um escroto.
A verdade é que Bayley pode ser uma pessoa boa, mas ele é fraco demais para fazer o bem ou pra questionar o mal, então foda-se o quanto ele é do bem, ele não é inofensivo, e pode ser usado como vetor para as prisioneiras serem tratadas feito lixo. Dentro e fora da prisão. Ele vai ser quebrado ali dentro, Litchfield vai sugar tudo que esse rapaz tem de bom e transformar ele em uma pessoa fria aos poucos.
Após matar acidentalmente Poussey, um dos guardas veteranos, o Dixon, explica pra Bayley que essas coisas acontecem e contou dois casos de assassinatos que ele cometeu no Afeganistão com civis inocentes só pra descarregar a tensão e matar o tédio, sendo um deles uma menina que esse guarda teria estuprado. E ele fala isso pra Bayley casualmente, eram civis do país inimigo, ele não via eles como gente, assim como não vê as prisioneiras. A maior atrocidade que Dixon havia feito na temporada havia sido quebrar o relógio da Taystee só pra ser cuzão, mas na reta final ele casualmente admite que matou e estuprou crianças civis na guerra e que está de boa. Eis um filha da puta.
Mas agora esse texto não é só pra mencionar todas as vezes que os guardas trataram as prisioneiras como animais. Isso a temporada deixou bem claro, e vocês não precisam ler esse texto pra perceber isso. Isso é só uma contextualização para o que eu achei realmente interessante, que é o outro lado. Eu quero focar também no lado das prisioneiras, e na maneira como elas NÃO desumanizam os guardas.
Durante a terceira temporada, a personagem Tiffany Dogget é estuprada por um dos guardas amadores vacilões contratados na leva do Bayley, o nome dele é Coates, e ele desenvolveu uma pequena amizade com Dogget. Tudo certo? Não, ele era um escroto com Dogget, mas ela não notava ou não ligava, enfim, ela gostava dele mesmo assim. Até que em determinado momento Coates a estupra, e é um dos momentos mais pesados da temporada. E nisso morre a amizade deles, Dogget não consegue se sentir confortável na presença dele, e precisa de uma boa conversa com sua amiga Boo para entender que a culpa não foi dela e que ele era um estuprador, e que embora Dogget tenha sido estuprada várias vezes na sua vida, e educada pela sua mãe a achar que isso não é nada demais, ela precisou entender que isso era algo grave sim, e que o que o Coates fez é imperdoável,e ela não precisa passar por isso.
Enfim, na quarta temporada Coates implora perdão para Dogget, e ela o perdoa. É! Isso aí, e todo esse desenvolvimento para ela entender que quando ela é estuprada isso não é algo que passa, e ela vai e joga no lixo, pois o escroto pediu desculpas, e estamos todos muito putos com ela.
Mas vamos lá, embora ele não mereça em nada o perdão de Dogget, até porque suas desculpas não foram nada sinceras, como descobrimos mais tarde, ela ainda sim o perdoa, e o que significa Dogget perdoar seu estuprador? Significa que mesmo ela sendo a vítima, ela não conseguiu resumi-lo ao seu crime, ela ainda via seu antigo amigo nele (que também não era muito amigo), e muito embora ela saiba e admita que a amizade nunca vai voltar a ser o que era, ela prefere seguir adiante com a vida em vez de sempre que vê-lo pensar no crime que ele cometeu.
Em resumo, mesmo que Coates não merecesse seu perdão, ela o tratou como gente, em vez de tratá-lo como um monstro ou um criminoso. E isso é um reflexo direto ao tratamento que nenhum guarda dessa temporada deu às presas. Eu acho que dava para Dogget humanizar Coates sem perdoá-lo, não teria jogado fora o desenvolvimento dela na temporada passada, mas ela fez o que ela fez, e vamos ver como a quinta temporada trabalha isso. O importante é o fato de que ela, considerou o crime dele um evento em sua vida que não resume como ela vê ele. E porque isso é importante? Pois é exatamente assim que Piscatella vê as presas. Como o crime que elas cometeram e como esse crime lhes tira o direito de ter qualquer coisa.
Dogget não é o único exemplo. Lá no começo do texto falei do guarda que se infiltrou só pra matar Alex. Pois bem, como ele foi picotado e demorou para acharem seu corpo, ele não foi identificado, o que é bom, pois se ele fosse identificado ele podia ser rastreado até Alex e podiam descobrir a cumplicidade dela no crime. Porém Alex conhecia ele, ele e Alex trabalhavam junto pro mesmo traficante, por isso que ele foi matá-la quando ela depôs contra o traficante. Alex não se arrepende de tê-lo matado, mas ela sabe quem ele era, e eles já trabalharam juntos diversas vezes. E por isso ela deixa espalhado por Litchfield bilhetes escritos “Seu nome era Aydin Bayat”.
Por que ela fez isso? Pois ela tem respeito o suficiente pelo seu assassino para achar que ele merece ser identificado e que em sua morte saibam quem ele é. Pois ela não vê nele meramente o cara pago pra matá-la, ela vê nele um ser humano, ele tinha hobbies, amigos, uma história, e virar um “guarda-não-identificado” numa papelada burocrática não é digno pra ele. Um contraste enorme com o fato de quando a prisão explicou pra imprensa a morte de Poussey, eles escolheram não mencionar o nome dela. Alex reconhece que matou um ser humano e por isso quer dizer o nome dele, Litchfield, enquanto instituição ainda precisa admitir que seu sistema matou um ser humano.
Tanto Alex quanto Dogget se recusaram a desumanizar pessoas que elas tinham todos os motivos do mundo para querer desumanizar, e isso é o que as torna diferente dos guardas. Os guardas não tem absolutamente nada contra as presas pessoalmente, mas desumanizam elas por uma questão de impor seu poder. Por prazer. Ou por uma noção de que é seu dever profissional, e é isso que os torna monstruosos e irredimíveis aos nossos olhos.
Mas como eu já disse. Por mais que os guardas tirem a humanidade dessas detentas, a série não tira. A série lhes dá história, personalidade, e vida, e garante que o expectador sempre veja as presas como pessoas. E pros guardas, a série dá esse tratamento?
Sim! Dá. Embora não seja comum, alguns funcionários da prisão já tiveram seus episódios de Flashback. E na quarta temporada, vemos dois funcionários da prisão lidarem com seus conflitos internos. Luscheck e Healy. Justamente os dois que estão na prisão desde a primeira temporada, e sabe o que mais? Os dois são cuzões.
Luscheck é preguiçoso, racista, e caga pro seu trabalho e pras presas. Toda interação dele com qualquer pessoa ele é apático e trata todo mundo mal e faz questão de ser grosso e escroto. Na temporada anterior ele dedura provavelmente a única outra personagem cuja popularidade rivaliza com a de Poussey, Nicky, por ter escondido heroína na mesa dele, e manda ela pra prisão de segurança máxima (mas hey, todos amam a personagem né? Então ela voltou, mesmo que “ninguém jamais voltou da segurança máxima” seja algo dito na série. Será que pressão dos fãs o suficiente fazem o fantasma da Poussey assombrar a prisão?). nessa temporada,
Luscheck lida com a culpa da merda que fez, e é obrigado a lidar com o fato de que ele é uma pessoa horrível. Diferente de Coates, ele não é perdoado por Nicky, mesmo fazendo uma auto-reflexão e tentando se redimir pela merda que fez, inclusive sendo o responsável por trazer Nicky de volta da segurança máxima. Aqui! Pronto! Uma auto-reflexão do quanto ele é um pedaço de merda, um desejo de redenção e de compensar seu erro, e nenhum perdão da vítima, dava para seguir esse caminho também com o verme do Coates. O importante é que Luscheck começou a se tomar consciência do quanto ele é uma pessoa horrível, além de deixar implicito que ele está apaixonado por Nicky, e isso é importante, dá um ente-querido pra ele.
E o Hayley? Bem, ele é o conselheiro das presas. Ele é homofóbico, misógino e tem problemas graves em relação a querer demonstrar poder e autoridade. E definitivamente o último emprego pro qual ele está qualificado é numa prisão feminina. Diferente de Luscheck ele não é agressivo, ele é retraído e remoí rancores, ele é bem intencionado, mas se frustra e desconta sua frustração nas presas. E assim como Luscheck, nessa temporada ele percebe que ele faz isso, ele finalmente depois de quatro temporadas admite pra si mesmo que é horrível no seu trabalho, enquanto a série, através de um flashback nos permite ver sua relação com sua mãe e a origem de toda sua relação negativa com mulheres e lesbiandade. A sua incapacidade de lidar com a loucura de Lollys, que é a mesma que a de sua mãe, fez ele perceber que ele não serve pra trabalhar na prisão, e após quase se suicidar ele decide se internar em uma clínica psiquiátrica, e tratar de seus problemas.
Luscheck e Hayley não são monstros. Eles tem entes queridos, eles não gostam de encarar os escrotos que eles são. Eles desejam poder se redimir, e podemos ver seus conflitos, e não são os únicos, os guardas da leva anterior também, mesmo o Mendez, pudemos ver a relação dele com sua mãe na temporada passada, além da sua relação com seu futuro filho (que não é dele, mas ele acha que é). Agora, os guardas veteranos? A série não dá a eles a chance de ter uma vida pessoal fora da prisão.
Os amigos deles são eles mesmos. A casa deles é propriedade da prisão. Eles não tem família ou entes queridos, e o único que tem uma história de algo que fez fora da prisão é um criminoso de guerra. Nenhum elemento que permite que humanizemos as presas e os demais guardas é oferecido aos veteranos, eles só tem sua imaturidade, seu sadismo e sua crueldade.
Piscatella, não é um dos veteranos, embora seja o grande vilão da temporada, e tem 1% a mais de elaboração que seus colegas. Sabemos que ele é gay e que seus pais tentaram curar ele de ser gay usando religião. Obviamente não funcionou, e a experiência criou em Piscatella um senso muito forte de “ninguém é capaz de mudar.”, e aparentemente ele mora com o companheiro ou tem algum ente querido, pois ele tem uma foto dessa pessoa no escritório. Claro que o cenário convenientemente obstruí a imagem desse ente querido de Piscatella para que o expectador não possa vê-lo.
Piscatella e os veteranos são monstros. Acima de qualquer humanização e redenção. Mesmo Vee, a vilã da segunda temporada que até então era a personagem mais irredimivel da série, ganhou seu flashback e foi mais humanizada que eles. Alias, todo penúltimo episódio de cada uma das três temporadas anteriores foi dedicado a uma antagonista. Na primeira temporada foi da Dogget, que queria assassinar Piper. Na segunda foi da Vee, que fodeu a vida da grande maioria das detentas implantando um tráfico pesado de heroína na prisão. Na terceira foi da Aleida, que havia liderado os ataques transfóbicos à Sophia e foi responsável por jogá-la na solitária, e agora na quarta temporada foi do Bayley, que matou a Poussey.
Por ultimo quero observar ainda uma ponta solta. A única personagem da temporada que meio que não se encaixou com nada. Judy King. Ela é uma celebridade na prisão e ganhou um monte de tempo em tela explorando sua personalidade. Mas a verdade é que a trama dela é a única que não converge pros conflitos com os guardas veteranos nem com Piscatella. A trama dela é um grande alívio cômico inclusive, nunca saindo disso. Inclusive, na cena em que todas as presas sobem em cima das mesas como protesto, Judy King é visivelmente a única que não tem a menor ideia do que está acontecendo.
A única detenta que não fazia ideia de um plano de protesto, e como poderia? Ela é a única que não sofreu nada nas mãos nos guardas em nenhum momento. Ela é uma celebridade, o que significa que ela foi muito bem tratada ao longo de toda sua experiência em Litchfield, afinal ninguém quer alguém com voz na mídia sendo privado de sua humanidade. Ela bebia água com gás, tinha uma cela isolada que era um quarto privado e recebia comida diretamente na sua porta, entre outros luxos.
Afinal, a Judy King era a única detenta em Litchfield que era mais do que uns dados nos computadores, e uma papelada burocrática, Judy King era um ser humano, afinal ela teria uma voz após sair da prisão. Então ela não vai ficar presa até a jaula encher.
Quando os guardas anteriores se demitem, a guarda Bell cochicha pra Caputo, “boa sorte com macacos mandando no zóologico.” se referindo a uma prisão sem guardas, onde os criminosos tem o poder. E bem, a prisão ficou só algumas horas sem guardas, mas ainda sim a previsão dela se realizou. Nessa temporada, os animais tomaram conta do zoológico, mas não eram os animais que estavam presos.